Conte Sua História - Vidas Indígenas
Depoimento de Ian Wapichana
Entrevistado por Jonas Samaúma e Edivan Fulni-ô
São Paulo, 07/05/2021
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV991
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:25) P/1 - Ian, seja muito bem-vindo ao Museu da Pessoa. Eu queria pedir para você abrir esse momento cantando.
R - Eu separei um uma flautinha também para chamar esse momento.
Peço a benção aos guias e as entidades manifestadas neste plano. Por onde os pés pisarem que o chão seja canto, como a cigarra anuncia a chuva depois da seca. Cerrado é resiliência, em toda a sua essência mostra sua beleza!
(00:02:17) P/1 - Muito agradecido. Agora eu queria pedir para você fechar os olhos. Entrar em conexão com você mesmo e voltar para aquela que seja sua lembrança mais antiga. A primeira memória que você tem dessa vida.
R - Eu lembro muito dos igarapés de onde eu vim, de Boa Vista, Roraima. Muitos dos rios são imensos, às vezes você, assim como o mar, não consegue enxergar o fim. Lembro muito da minha avó, a gente indo em várias comunidades que tem na região, tanto na região do Amajari, que é onde a minha família está mais localizada. E consigo ver também os buritizais, que correm pelas estradas ligando ali Roraima para o Amazonas, para Manaus, e para Venezuela, que são caminhos opostos.
(00:03:36) P/1 - Eu queria que você contasse rapidamente o que você sabe da história do seu povo?
R - Meu avô era um grande contador de histórias, assim como o meu pai. Hoje eu acho que o meu pai herdou muito isso dele. Meu avô contava mais a história dele como nômade também, uma pessoa que vivia mais sozinha nos lugares e ia conhecendo outras comunidades, ficava isolado assim por um tempo, [a] dez quilômetros das outras comunidades. Ele fazia esse trajeto a pé e trazia muitas histórias de encantados, da mitologia wapichana, da cosmovisão wapichana também. Eu sentia muito dele essa necessidade de falar pra...
Continuar leituraConte Sua História - Vidas Indígenas
Depoimento de Ian Wapichana
Entrevistado por Jonas Samaúma e Edivan Fulni-ô
São Paulo, 07/05/2021
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV991
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:25) P/1 - Ian, seja muito bem-vindo ao Museu da Pessoa. Eu queria pedir para você abrir esse momento cantando.
R - Eu separei um uma flautinha também para chamar esse momento.
Peço a benção aos guias e as entidades manifestadas neste plano. Por onde os pés pisarem que o chão seja canto, como a cigarra anuncia a chuva depois da seca. Cerrado é resiliência, em toda a sua essência mostra sua beleza!
(00:02:17) P/1 - Muito agradecido. Agora eu queria pedir para você fechar os olhos. Entrar em conexão com você mesmo e voltar para aquela que seja sua lembrança mais antiga. A primeira memória que você tem dessa vida.
R - Eu lembro muito dos igarapés de onde eu vim, de Boa Vista, Roraima. Muitos dos rios são imensos, às vezes você, assim como o mar, não consegue enxergar o fim. Lembro muito da minha avó, a gente indo em várias comunidades que tem na região, tanto na região do Amajari, que é onde a minha família está mais localizada. E consigo ver também os buritizais, que correm pelas estradas ligando ali Roraima para o Amazonas, para Manaus, e para Venezuela, que são caminhos opostos.
(00:03:36) P/1 - Eu queria que você contasse rapidamente o que você sabe da história do seu povo?
R - Meu avô era um grande contador de histórias, assim como o meu pai. Hoje eu acho que o meu pai herdou muito isso dele. Meu avô contava mais a história dele como nômade também, uma pessoa que vivia mais sozinha nos lugares e ia conhecendo outras comunidades, ficava isolado assim por um tempo, [a] dez quilômetros das outras comunidades. Ele fazia esse trajeto a pé e trazia muitas histórias de encantados, da mitologia wapichana, da cosmovisão wapichana também. Eu sentia muito dele essa necessidade de falar pra gente como tudo aconteceu.
Sabemos que os povos originários têm várias formas de interpretar o nosso universo, a nossa criação, se não é diferente o nosso povo, e a gente acredita que a gente veio de vários lugares. Wapichana significa wa, nós, e pichan é gente, então é nós, é como se fosse nós mesmos, seres humanos.
(00:05:18) P/1 - Conta um pouquinho como era sua vida quando você era criança.
R - Eu cresci lá, nasci em 97, em Boa Vista, Roraima. É uma cidade bem nova. Tem cerca de setenta anos, foi colonizada há pouco tempo. Uma cidade pequena ainda em comparação às outras civilidades do Brasil, é uma cidade em desenvolvimento. Apesar de já ser uma capital de um Estado, essa região de Roraima era tudo comunidade. O pessoal, o exército, os coronéis foram chegando nessa região; foram abrindo a estrada do Nordeste para lá, na busca pela borracha. O pessoal que morava nessa região - tinha Macuxi, tinha Wapichana, Ingaricó - eles foram se isolando para as regiões das serras, e alguns parentes resolveram ficar dentro da cidade. A maioria da população de Roraima é indígena, até dentro da cidade, dentro da capital também. Apesar de muitos não se reconhecerem mais pela autofobia, está muito intrínseco isso nas pessoas hoje em dia, da pessoa não se reconhecer mais, de tanta opressão que foi gerada nesse contexto de urbanização.
(00:07:14) P/1- Você tem memórias dessas cenas de opressão? Chegou a vivenciar isso lá, ou viu seus pais passarem por isso?
R - Claro, isso é muito comum, até dos próprios parentes que não se reconhecem tratar a gente como se fosse algo da história, algo do passado que não está mais aqui. Tratam a gente como lendas. Ser indígena não existe mais para os parentes próprios que não se reconhecem, por isso que a gente está nessa retomada de todos os espaços, para falar para os nossos parentes que não se reconhecem que eles se perderam no meio do caminho, porque é muito difícil sim ser indigena e estar dentro da cidade. É uma coisa que não estávamos preparados.
(00:08:10) P/1 - Queria voltar um pouquinho para o seu avô. Você falou que ele era um grande contador de história. Você chegou a conhecê- lo?
R - Claro, sim. Meu avô é um cara que gostava de viver sozinho. Ele foi picado várias vezes por cascavel e se curava sozinho. Uma vez eu o vi pegando uma cobra na mão, só botou ela para fora da estrada. Tinha um amor enorme pelos cachorros; dormiam com ele na casa, [pra] todo lugar que ele ia os cachorrinhos junto. Todos assim, quando ele veio a falecer alguns anos atrás. Eu tenho alguns cachorrinhos também e eles vieram assim na minha direção, após eu saber que o meu avô tinha falecido; estavam com uma carinha tristinha.
Eu senti a energia do meu avô por essa ligação dele com os cachorros, com os animais. Acreditamos que nós, seres humanos, também podemos acessar um lugar que podemos nos transformar em qualquer coisa que a gente quiser, mas ainda isso é invisível aos nossos olhos e é um pouco… Você não acredita, é inacreditável para muitas pessoas.
(00:09:50) P/1 - Falando nisso, você sabe alguma história disso, onde aconteceu ou era falado alguma coisa do ser humano animal?
R - Temos os parentes Canaimé, que são da região da Guiana Inglesa, de Roraima, um pouco da Venezuela também. São parentes de outros povos que têm um conhecimento primário, eu acredito nisso, que é o conhecimento de todas as ervas, de todas as plantas, e esses outros, vamos dizer, poderes. [Eles] têm essa ligação com a terra de poder fazer essas transformações no que for, seja em árvore, em um animal, em outra pessoa.
(00:10:53) P/1 - Eu queria voltar um pouquinho ao seu avô. Que memória marcante você tem com ele?
R - Uns dias atrás eu estava relembrando com alguns amigos que as últimas vezes que eu estive com ele foram há uns dezesseis, dezessete anos, mais ou menos. A gente passou o dia andando no meio do lavrado, que é o bioma lá de Roraima. Ele mostrando vários animais, várias casas de cupim, mostrando o tamanduá, como era; vi o tamanduá de perto, ele sabia os lugares que o tamanduá passaria, então a gente ficou ali, vigiando. Mais para o final da tarde a gente foi em uma cachoeirinha, já estava escurecendo, tinha vários vaga-lumes. Eu tinha mais ou menos uns seis anos. Comecei a olhar aquela paisagem. Meu avô pulou dentro da água; quando ele pulou eu vi uma luz na minha frente, como se fosse uma aurora boreal.
No ano passado eu comecei a ter essa lembrança de quando vi isso. Na hora que eu vi foi muito comum; depois, refletindo, eu falei: “Que doideira é lembrar isso assim, do nada, de um dia para outro. Coisas da nossa infância que acontecem, que a gente não tem acesso, mas acho que [temos] em um momento de meditação, de relembrar coisas do passado, cheiros de nostalgia do futuro.”
(00:13:00) P/1 - E sua avó? Você lembra, teve contato com ela?
R - Sim. A minha avó optou por morar na cidade, lá em Boa Vista mas, como eu falei, a cidade é praticamente toda indígena. Começou com os coronéis, com algumas pessoas que foram trazidas de outros estados para poder construir Roraima, e a minha avó optou por morar lá.
Eu tenho algumas questões. Ela não passou a cultura como deveria para nós, porque já era outro estilo de vida dentro da cidade. Eu não sei se é porque ela tinha medo dessa opressão, de sei lá… Você está falando a língua na cidade, você vai morrer, ou alguma coisa do tipo. De fato, eu não sei o que aconteceu pra ela não querer ensinar a língua para gente [e] continuar a cultura, mesmo indo vários pajés na casa dela semanalmente; vários parentes que vinham de outras comunidades e precisavam resolver alguma coisa na cidade iam direto na casa dela. A casa dela era um ponto de referência que era bem perto do centro para outros parentes, [pra] ficar ou ir lá almoçar, tomar um café, alguma coisa do tipo, um chibé, depois resolver as suas coisas na cidade e voltar para comunidade - geralmente, quando os parentes chegaram na cidade é para resolver alguma coisa e voltar no mesmo dia.
(00:14:47) P/1 - A comunidade e a cidade ficam a que distância da aldeia?
R - Lá tem muitas comunidades. Somos mais ou menos treze mil Wapichana. São muitas comunidades Wapichanas, muitas comunidades de Macuxi, muitas comunidades que já juntaram Macuxi e Wapichana. Tem Ingaricó, Waimiri Atroari, Yanomami, tem muitos.
(00:15:25) P/1 - Como foi a sua vida na infância? Do que você lembra?
R - A gente já estava dentro da cidade. Meu pai trabalhava como contador, como técnico de contabilidade, e a minha mãe fazia faculdade de Pedagogia - na época era magistério, se não me engano. A gente estava lá, mas quase toda semana a gente estava nas comunidades, uma diferente da outra. Por isso que eu conheço também todos os lados, porque o meu pai tinha essa vontade de conhecer as outras comunidades, por ser família dele também, estar lá junto com os parentes. E por parte da minha mãe também.
A minha mãe não é indígena. A família do meu avô por parte de mãe é do Ceará e algumas pessoas de Roraima e Manaus, e da minha avó da região de Manaus. Sempre estive caminhando por todos os lugares.
Meu avô foi professor de várias comunidades. Minha mãe cresceu dentro da comunidade, já era um ambiente que ela já conhecia, antes de conhecer meu pai.
(00:16:52) P/1 - E o que você sentia de diferença entre a cidade e a aldeia, entre esses dois mundos?
R - Principalmente a poluição sonora, a forma de alimentação, que na cidade é horrível; é outro contexto. Essa agitação da cidade eu não gosto. Todo mundo está preocupado com o tempo lá. Quem faz o tempo é a gente mesmo, a gente não tem pressa para nada.
Hoje eu procuro viver assim, mesmo estando em vários lugares, porque hoje é o meu trabalho. Trabalho viajando, indo para cada canto, fazendo um trabalho de uma pessoa e vou indo, mas sempre procurando ficar em um lugar mais isolado possível, porque a cidade é uma coisa que adoece a gente muito.
(00:18:00) P/1 - E que lembrança você tem? Você falou que o seu pai te levava nas outras comunidades. Você tem alguma memória marcante dessas outras comunidades que você visitava?
R - Sim. Tem essas que era perto do meu avô também, que tem registros de pinturas rupestres. Tem um rio que pega uma região que é a Pedra da Galinha. Em época de cheia o rio está cheio e não mostra essa pedra; quando abaixa o rio mostra as pinturas na pedra. Esse é o mais marcante para mim, um dos mais marcantes que traz uma memória da região do meu avô.
Tem cavalos selvagens ainda, cavalos em bandos que andam livres, já mais próximo da Venezuela. É um pouco divisa com a Venezuela.
(00:19:07) P/2 - Quando eu conheci seu pai, lembro que ele falava muito sobre árvores. Queria saber se você teve alguma conexão, alguma memória com alguma árvore específica, alguma história com alguma árvore.
R - Eu sonho direto que quando eu morrer vou virar uma goiabeira, acho que por ser uma das frutas que eu mais gosto, mas eu tive um pensamento desse fazendo um curso. Uma vez me perguntaram o que eu queria ser depois que eu morresse. Eu já vinha pensando nisso, eu quero me tornar uma árvore.
É uma pergunta doida. O que você quer ser depois que você morrer? Eu falei assim: “Eu quero ser uma árvore”.
Meu pai tem um conhecimento imenso de agroecologia, de plantas medicinais. É um cara que estuda muito isso, principalmente agora está focado nos trabalhos das plantas do cerrado. O cerrado é um bioma que está caminhando para a sua extinção. A ideia dele é conseguir trazer a água de volta para lugares que já não existe mais água, fazendo esse reflorestamento com plantas do cerrado mesmo, não colocando plantas de outros biomas, que dificultam o processo.
(00:21:16) P/1 - Você falou da questão da diferença entre alimentação da cidade e nas comunidades. Na comunidade o que se comia?
R - Carne de caça, muito peixe, açaí, buriti, muita coisa com farinha. Geralmente, as nossas comidas tem esses ingredientes. A mandioca, que usamos para tudo, pra fazer vários tipos de coisa. É muito comum o peixe também.
Hoje entrou o arroz, entrou o feijão; não era uma coisa tradicional, mas temos hoje também. Trazemos como tradição muito milho também, bebidas feitas de abacaxi, de mandioca mesmo.
(00:22:16) P/1 - A sua educação foi em escola ou foi fora de escola?
R - Foi dentro da escola e fora também. Minha mãe é pedagoga, já tinha facilidade de ter o conhecimento dentro de casa. Ela já incentivava um livro, meu pai a matemática. Incentivaram bastante para a gente ler. Eu tenho outros irmãos, tenho seis irmãos, e tinha essa facilidade dentro de casa - a minha mãe, por ser pedagoga, tinha facilidade em ensinar.
Eu estudei na escola depois de um tempo, fiz até o primeiro ano [do ensino médio], mas eu reprovei várias vezes. Reprovei na sétima série por falta. Eu não queria ir porque é uma coisa que nunca foi para mim estar dentro de uma sala de aula; eu preferia estar na estrada pegando carona, indo para outras cidades e só indo assim. A escola, para mim, não fez nenhuma diferença até hoje, a não ser pelas pessoas que eu conheci nesse caminho, que foram pessoas essenciais para minha vida. Alguns professores também, principalmente professores de filosofia e história, geralmente são aqueles caras que têm a mente mais aberta para conversar sobre tudo.
(00:23:55) P/1 - Pegando carona, viajando, como era isso? Como foi a primeira vez que você pegou carona?
R - Comecei essas viagens sozinho, de dezessete para dezoito, em uma viagem para Tocantins. Fui sem grana, na confiança de “vai acontecer o que tiver que acontecer. Eu me entrego para o universo, da mesma forma que eu vim posso ir embora, sem esse medo de estar vivo ou de morrer. Só estar existindo já me basta.”
É incrível como as coisas acontecem, o poder que você tem de mentalizar as coisas e fazer acontecer o que você quiser. Na estrada eu comecei a vivenciar muito isso e trazer isso para o meu dia a dia também. Por exemplo, eu estou precisando de uma coisa material, então vou mentalizar, vou focalizar aquela coisa e ela vai vir, vai aparecer. Relacionamentos, amizades - relacionamento eu falo de tudo, com amigos, a família - tem alguma coisa para ser resolvida: estou aqui mentalizando, vai ser resolvido. São poucas coisas que parecem não dar resultado; trazendo aquela energia centralizada, você alcança o que você quiser.
É incrível que eu tenha vivido isso até hoje, desde essa época que eu comecei a pegar as estradas. Quando eu estava andando pelas BRs eu sentia muito isso: “Do que você precisa? O que você quer?”
Teve uma vez que eu estava vindo de Chapada Diamantina para Luiz Eduardo Magalhães, que já é indo para o Distrito Federal. Parei em uma estrada. Já estava andando desde as cinco horas da manhã, era umas quatro da tarde, mais ou menos. Já tinha acabado a minha água. Olhava para estrada e não tinha nenhuma fazenda, não tinha nada, nenhum rio. [Fazia] muito sol. Minha sorte é que eu estava com um guarda-solzinho pequenininho, com violão e a mochila, andando desde as cinco horas da manhã sem conseguir pegar carona.
Sentei na beira do asfalto, fiquei refletindo: “É agora, então é isso. Esse é o teste que eu tenho que fazer de sobrevivência. Estou no meio do sol, não passa nenhum carro, não tem nada aqui ainda. O que eu vou fazer?” Eu fiquei umas duas horas sentado; levantei, falei: “Vou continuar andando.” Antes de eu levantar eu falei: “O primeiro carro que passar eu vou pedir carona.”
Eu levantei, estava vindo um carro. Eu pedi carona, foi o cara que parou. Eu: “Nossa, que doideira!” Eu fiquei atrás, estava sem água e eles me levaram quarenta quilômetros para frente, que tinha uma ocupação, um assentamento. Fui pedir água para o pessoal, me deram com gelo, várias garrafas para eu levar na estrada, me deram alimento.
Estava fazendo um sonzinho antes de ir embora para continuar a estrada andando, tinha quebrado uma corda do meu violão; estava lá, tocando com cinco cordas. Aí os caras: "Pô, que massa, que legal o teu som.” Aí quebrou outra corda. Eu estava tocando com quatro cordas, eles viram e me deram a grana para eu comprar as cordas do violão. “Não, para de andar, compre a sua passagem aqui.” Mas eu estava mesmo querendo andar, pela necessidade de andar e refletir, estar consigo mesmo.
Acho que você só tem uma experiência consigo mesmo quando você está sozinho. É muito difícil você estar com várias pessoas e conseguir olhar para dentro de si, porque sempre você vai estar olhando alguma coisa, ou lembrando: “Tem isso para resolver”, “a pessoa está passando por isso”, tem esses detalhes… Quando você está sozinho e só tem você e o mundo, você começa a refletir [pra] dentro.
(00:29:01) P/1 - Você tinha falado que tem seis irmãos. Eu queria saber quem é o mais velho, quem é o mais novo e como é a sua relação com seus irmãos.
R - Eu sou o mais velho deles, estou com 24 anos agora. O mais novo tem oito anos; é o Andã, que é um jovem escritor. Tem a Yaionari, que tem treze anos agora e é uma designer incrível, desenha absurdamente. Tem o Oziel, que já é um dos cabeções da família, que tem quinze pra dezesseis. Ele é o cara que pensa lá na frente de todos os meus irmãos, é o cabeçudo. Tem o Arthur, que sabe tudo das tecnologias do TI, de celular, sabe as funcionalidades, programação; ele é o cara atrás dos bastidores que faz as coisas acontecerem. Tem o Irã, que também é da área do TI, está em Roraima trabalhando, e tem o Eloí, que faz assistência social. É um cara do rap, também muito a frente com as ideias, os pensamentos dele.
(00:30:48) P/2 - Como é a sua relação com eles?
R - Perfeita. Eu sou um grande fã dos meus irmãos e eles também são grandes fãs meus. É muito massa poder ser o exemplo deles, mesmo não levando essa vida acadêmica que todos pensam em ter, mas me veem como exemplo de fazer outros trabalhos sociais que não dependem de uma carreira acadêmica.
(00:31:18) P/1 - E você tem alguma história com eles, com algum dos seus irmãos que marca, que você contaria em um fogo por exemplo?
R - A gente já passou por muitas coisas. A gente morou muitos anos no Santuário dos Pajés, que é a reserva indígena que tem lá no Distrito Federal, a única reserva indígena, que é uma comunidade multiétnica. Tem vários povos. Têm Kariri-Xokó, Xucuru, tem alguns parentes Bororo, Guajajara, tinha a minha família Wapichana, tinha um parente Guarani, Tuxá… Que eu me lembre é só, ficam divididos nessas áreas.
O Santuário dos Pajés é um lugar de retomada que teve na época da construção de Brasília pelos parentes Fulni-ô Tapuia do Pernambuco, de Águas Belas. Eles foram ajudar na construção de Brasília e precisavam de um lugar para continuar sua cultura, sua língua. Os Fulni-ô hoje são… Os parentes estão retomando, mas eles são o único povo do Nordeste que ainda fala a sua língua fluentemente. Vários outros parentes estão na retomada, conseguiram resgatar muito do dicionário, mas os Fulni-ô são os únicos que continuaram desde a época da invasão.
(00:33:13) P/1 - Você foi crescendo em Roraima, então?
R - É, eu fui para Brasília com nove anos. Meu pai passou em um concurso da FUNAI e foi trabalhar na FUNAI do DF, trabalha até hoje. Ele passou um tempo morando lá para ver como é que era, porque para nós ainda era… A gente nem imaginava como era uma cidade grande, nunca tinha saído dali da região. Tinha ido no máximo em Manaus, Manaus também é muito grande, mas não é a mesma coisa. Ele foi, depois a gente foi junto.
A princípio moramos no Riacho Fundo I, que é um satélite da cidade de Brasília e foi um dos primeiros choques: “Estou dentro da cidade grande.” Boa Vista é uma cidade, mas não é uma cidade grande com vários shoppings, por exemplo, supermercados supergrandes e essas coisas. Foi onde eu conheci também a periferia mais de perto, mais de dentro, os trabalhos que a galera fazia, a molecada que ficava lá na esquina só fazendo merda, outros que já tinham um plano visionário, de estrutura também para a própria quebrada.
A gente ficou cinco anos lá. A criminalidade era muito grande onde a gente morava, tinha pessoas tomando tiro todo dia. Alguns dos nossos amigos chegaram a falecer por esses conflitos territoriais, dessas guerras de quadras que tinha lá.
A gente já tinha recebido o convite para ir morar no santuário. Assim que a gente chegou em Brasília a gente foi e conheceu o Santuário dos Pajés, que era coordenado pelo cacique Santxiê Tapuya, que foi uma grande liderança para a nossa existência. Eu falo que hoje eu sou quem eu sou por causa das influências do Santxiê, que foi essa grande liderança do Santuário dos Pajés.
Já tínhamos cinco, seis anos morando na cidade e fomos para o Santuário. Foi outro choque, porque eu tinha saído de Roraima e tinha me desvinculado de toda a minha família. Ficaram meus tios, minhas avós, meus primos, todo mundo ficou lá; só foi a minha família para Brasília, meus irmãos, meu pai e minha mãe, desvinculando todo mundo. Fomos morar no Riacho, construir uma nova família, novas amizades, e de novo o mesmo baque, tendo que mudar de novo.
Para uma criança e um adolescente isso é muito complicado, você ter que recomeçar. Às vezes, para um adulto é mais fácil, agora para uma criança que já está acostumada com aquela vivência, com aquelas amizades, para mim foi muito difícil.
Chegando lá no Santuário, não tinha energia; eu já estava dentro do mundo das redes, do computador, de fazer programação, de estudar, de editar vídeos, de procurar jogos, de como fazer jogos. Já estava nessa ideia de fazer cinema, que sempre foi uma paixão para mim, então foi bem forte, porque acabou esse mundo para mim, esse mundo da cidade nesse momento.
Eu falei: “Opa, vamos voltar para o início para lembrar quem você é.” O Santxiê, que é também um grande professor, tinha um conhecimento enorme, contava várias histórias, de retomadas principalmente, dos parentes norte-americanos que retomaram na força, os parentes do Chile que confrontaram os invasores. Isso foi me dando força.
Eu via com um olhar de quando eu estava na cidade, de um olhar periférico. Dentro do Santuário eu já estava olhando com olhar indígena lá de Roraima, sabendo que toda a minha história não tinha essa mesma sabedoria que era a história indígena, mesmo sabendo que eu era indigena não tinha tanto essa ligação morando dentro da cidade. [Isso] gerou um impacto e a autofobia era muito forte, de não me reconhecer mesmo, muito dos meus irmãos também. Passamos por um processo muito forte, até a vinda do Santuário para as nossas vidas.
Anos depois a gente conheceu a ayahuasca, conheceu as medicinas, que não são comuns para nós lá em Roraima. Foram outros portais se abrindo, a gente foi relembrando as histórias. Meu pai sempre que ia em Roraima gravava meu avô, então nós temos documentadas várias histórias que ele contou da vida dele.
(00:39:24) P/1 - Nossa, que precioso! Queria que você se aprofundasse um pouco nessa vivência do Santuário dos Pajés, de várias etnias morando juntas. Como é que era o cotidiano na aldeia? Como era a sua vida, do que você lembra?
R - A princípio tinha muitos conflitos por causa desse choque cultural. Cada povo é diferente; mesmo sendo indígena, cada povo tem a sua cultura e sua crença, mas sempre [se] chegava a um diálogo. Chegou um tempo em que as comunidades não conseguiam mais conversar, então o que fizeram? Cada um se isolou em um espaço do território. Hoje são 32 hectares, mais ou menos, e estão divididos.
Essa área que hoje é o Santuário dos Pajés era mais ou menos de um milhão de hectares, e pela especulação imobiliária na época do governo do Paulo Otávio e do Arruda, que eram os governadores lá de Brasília - dois corruptos, um hoje está preso… O Paulo Otávio é um… Eu vou falar mesmo, não tenho medo. Ele é casado com a filha de Juscelino Kubitschek, que foi o cara, o presidente que mandou construir Brasília. Ele é um dos caras mais ricos que tem no Brasil atualmente, se não no mundo, um nome das maiores empreiteiras que tem aí. Eles burlaram todas as leis por serem governadores na época, burlaram tudo e desmataram, chegaram desmatando tudo, novecentos hectares para construir o bairro para alta burguesia, apartamentos de um milhão de reais com teatro dentro, cinema, essas coisas assim. Segundo eles, Brasília não estava suportando o tanto das pessoas que tinham, essa é a explicação deles para poluir lençóis freáticos, destruir a terra e árvores centenárias, fora os animais que moravam naquela região e que hoje não existem mais, principalmente cobras, aves, lobo-guará, capivaras, tamanduás. Hoje não tem mais porque os prédios chegaram, e eu vi isso desde o começo, desde a construção desses prédios até hoje. Vi o tanto que eles cavaram para baixo para colocar tudo de concreto.
(00:42:37) P/1 - No Santuário cada família tinha como se fosse sua casa ou era uma vida mais comunitária?
R - Quando a gente foi morar, sempre foi muito comunitário. Todo mundo comia junto, todas as famílias. Tinha um lugar específico, a cozinha coletiva, todo mundo fazia comida lá. Depois que o Santxiê morreu, em 2013 - a gente foi em 2011 para 2012 e em 2013 ele morreu, fez a passagem - o pessoal se separou, as famílias não se juntavam mais. Não ficaram de luto por muito tempo, creio que [foram] uns dois anos de luto.
Ele era um cara que movimentava as questões em Brasília, nos atos era uma linha de frente em Brasília e de uma hora para outra veio a falecer, no meio de uma luta pela demarcação da terra, então a gente ficou meio sem saber o que fazer. Os filhos dele eram novos ainda, na época não podiam assumir a liderança. Foi um choque para mim também porque ele era o meu tutor, ele era quem estava fazendo eu me reencontrar, então foi bem forte para todo mundo. Tinha fogueiras todos os dias, e assim que ele faleceu isso foi morrendo dentro da gente, também pela saudade dele estar presente, puxando essas conversas todo dia. Acordava às cinco horas da manhã, fazia uma fogueirinha, já puxava todo mundo para ficar conversando, então a gente sentiu muito essa falta. Até hoje muitos não voltaram.
Depois de um tempo a gente abriu o Santuário para voltar às atividades. A gente sempre fazia atividade lá com as escolas, com outros grupos, outras religiões que queriam conhecer o Santuário, mas a gente via que não era a mesma coisa sem o Santxiê lá.
(00:45:18) P/1 - Lá vocês plantavam?
R - Sim. A maioria das pessoas que moram lá hoje, como é um território dentro da cidade no centro de Brasília, estudam nas universidades, na UNB, ou trabalham na região, mas também tem pessoas que só ficam lá dentro, que cultivam, que comem do que plantam. A pandemia está sendo bem cruel para as comunidades por falta de alimento. Muita demanda, principalmente de alimento.
(00:46:07) P/1 - Pra gente fechar o Santuário, o que você tem de memória que mais impactou, que lhe transformou? O que você mais aprendeu convivendo nesse espaço?
R - Eu aprendi a ser eu, como ser indígena. Acho que foi o momento mais gratificante que eu pude ter, pelos ensinamentos do meu pai, do Santxiê, de outros parentes que passaram por lá também.
O Benki [Piyãko, líder espiritual dos Ashaninka] foi lá uma vez. A gente fez um trabalho de ayahuasca que foi muito importante para a minha família. Meus outros irmãos também eram novos na época, creio que o até um irmão de dez anos tomou. Foi muito importante para essa retomada que a gente está fazendo. Estamos na arte, na música.
(00:47:19) P/1 - Como foi esse encontro com o Benki?
R - O meu pai fazia Engenharia Florestal na UNB, que é a Universidade de Brasília. Teve uma vivência com os parentes lá no Acre, lá nos Ashaninka; ele foi para lá e quando ele voltou, você olhava para ele e já era outra pessoa. Você olhava nitidamente para ele, a feição dele já era outra, com os olhos brilhando, jorrando mesmo essa luz que é a força que a ayahuasca tem, essa força que traz para nós. Ele começou a falar para nós da vivência que ele teve da ayahuasca, do que ele sentiu, do que ele viu. Falou que era importante pra gente também tomar quando a gente quisesse.
Teve uma oportunidade de algumas pessoas de Brasília trazerem o Benki para poder fazer um trabalho. O Benki avisou meu pai: “Estou indo para Brasília”. Geralmente ele viaja só quando as pessoas o levam para os lugares; não viaja assim: “Vou viajar daqui para lá.”
A gente foi para essa cerimônia. Fomos eu e meu outro irmão, Eloí, que é o segundo depois de mim, e o meu pai. A gente tomou e eu entrei em uma força muito grande, mas eu acho que eu não consegui me entregar da minha primeira vez. Eu senti muito pela forma que eu estava tocando violão também, o Benki estava lá, fazendo o som dele com violão, e eu falei: “Que massa! Um parente que toca violão e canta ao mesmo tempo também.” Eram poucos que eu via assim, e ainda mais estava em um ritual fazendo um trabalho, tocando violão. Pra mim isso foi muito doido.
Foi a primeira vez que eu vi meu pai passando mal. Ayahuasca é para se encontrar mesmo, se limpar, e das outras vezes foi muito mais intenso. Da primeira vez eu acho que ela veio assim: “Estou chegando!” Das outras vezes já foram mais: “Agora vamos lá! Está preparado? Vamos lá descobrir o que tem nesse universo aí.”
(00:50:13) P/1 - Aproveitando que você falou do violão, como você teve o primeiro encontro com o violão?
R - Meu pai tocava também, eu ficava só observando ele tocar. Ele tentou me ensinar várias vezes. Eu sempre gostei, sempre cantei. Eles sempre me incentivaram, me botaram no coral. Eles também cantam, então sempre me ensinaram coisas de tonalidade, um pouco de teoria, e com o tempo eu fui desenvolvendo. Depois eu vi a necessidade de aprender a tocar para cantar, cantar junto porque às vezes não tinha pessoas que me acompanhavam, ou que não sabiam do jeito que eu queria cantar, do jeito que eu queria que tocasse e tal. Eu falei: “Tenho que aprender.” E fui aprendendo sozinho. Levou um tempo, mas consegui e estou aí. Mas primeiro veio a poesia, depois veio o violão.
(00:51:16) P/1 - Como é que veio a poesia?
R - A minha família é uma família de escritores, de compositores, uma família bem de artistas em várias áreas. Eu via meu avô escrevendo, eu via a minha avó lendo o dicionário por parte de mãe, via minha avó lá lendo o dicionário e o meu avô escrevendo, fazendo composições, gravando naquelas fitinhas até botar uma caneta e ficar girando, botava no sonzinho dele e gravava assim mesmo, em um aparelho que ele tinha de pilha. A gente ficava ouvindo as músicas dele e isso foi uma coisa que me incentivou.
Começava a escrever umas historinhas, desenhar, meio que começando a fazer uns livros próprios, e depois de um tempo, quando o Santxiê faleceu, eu tive a necessidade de escrever o que ele falava, o conhecimento histórico que ele tinha. Comecei a ver todo o material que tinha dele na internet, comecei a escrever várias coisas que ele falava. Fui colocando as minhas letras, pegava o que ele falava e transformava na minha interpretação e na forma que eu falo, muitas vezes com gírias. Depois eu vi o meu pai escrevendo os livros dele próprio e lançando em editais e projetos, em festivais, as histórias dele. Então a gente está caminhando para isso mesmo, para sermos essas pessoas que estarão à frente com essa retomada na escrita, na música, na arte, em vários acessos que tem, que a gente vai ter daqui para frente.
(00:53:40) P/1 - Para dar uma pincelada, você pode falar um poema seu?
R - Meu sangue derramado sobre o papel
a caneta sangra
Eu, pobre réu
Discordo de cada palavra governamental pois mesmo ligado a matéria
eus espiritual
Em cada verso o poeta exalta a vida
em cada tiro em nossa direção vidas perdidas
eis a sina de um povo sofredor, que buscou a justiça e só encontrou ódio e dor
Mesmo sendo amor, cor, pensador
Somos tirados de comédia a tumor
Bem-vindo ao século 21 pós-chacina, cês tiraram tudo que nós tinha
são santos e eus errado, quevedos tornaram meu povo alienado
Desculpa aí, querer escrever amor, meu coração de ar paira sobre o rancor
Objeto, marionete desse povo sofredor
com pilhas carregadas de muita dor, muita dor
Vivências do eus, amor.
(00:54:59) P/1 - E qual foi a história mais bonita que você já viveu com a poesia?
R - Foi de poder me levar para outros lugares. Eu já viajei só com poesias e cantando nos ônibus, na rua, então tem várias, mas o que a poesia me trouxe é essa facilidade de ir para outros lugares e conhecer artistas que vivem a poesia. Não só fazem poesia, mas vivem diariamente, respiram poesia.
(00:55:38)
P/1 - Desses vários artistas que você encontrou, teve algum encontro novamente? Seja alguma história, alguma coisa marcante?
R - Acho que ainda não, mas tem várias referências para mim, no Brasil tem várias. Nelson Maca também é um, o cara é muito futurista, o Sérgio Vaz também é um cara daqui de Sampa que já trouxe essa parada da poesia marginal e que eu gosto mais, que é a poesia da periferia. Tem muitos outros escritores, mas o que eu tenho pegado para ver mesmo são as coisas da Renata, do Ailton, do Daniel Munduruku, e alguns livros de Gustavo Caboco também, que me fazem voltar na minha infância por ele ser Wapichana. Eu acabo lembrando muitas coisas da minha família, de como era, é muita coisa, é muita conexão, mesmo ele morando em Curitiba. De Curitiba para Roraima são pontos distantes, mas muito interessante é essa ligação que ainda não foi perdida, e ainda de lembrar, de ter essa memória ancestral de como vive o nosso povo.
(00:57:35) P/2 - E a partir do ponto que você se enxergou como um artista, você se viu como artista, quais foram as grandes mudanças em sua vida? Do Wapichana artista e outro que também era artista, mas ainda não se reconhecia como?
R - É, eu tive sempre um grande problema de aparecer, de mostrar minha cara. Por ser um artista de rua, só queria aquilo. Eu não queria holofotes, até hoje eu não quero, porque eu sou o cara dos bastidores, acredito eu, mas no começo foi bem difícil, principalmente em Brasília que a gente não tem a oportunidade de se apresentar em lugares que outros artistas grandes se apresentariam. É uma panelinha muito fechada, eles não abrem muitos projetos, principalmente para indígenas, então foi muito difícil. Eu tive que ocupar esses lugares, fazer uma resistência nesses lugares, juntar o pessoal de várias quebradas. A galera digital, quem é que tem uma mesa de som, quem tem uns PA, quem tem uns monitores, quem tem uns microfones, quem tem cabo, juntar esse pessoal. “Vamos lá para o centro, vamos ocupar o centro, fazer uma resistência no centro.” E assim eu fui percebendo, eu também estou nesse lugar, então eu tenho que mostrar a cara também. Não estou fazendo por aqui, por fora, fazendo o rolê acontecer, mas há necessidade de eu falar também porque é o meu ponto de vista indígena e urbano. É muito doido isso, um ponto de vista indígena de contexto urbano.
(00:59:38) P/1 - E você chegou a morar um tempo na rua?
R - Não falo que eu morei na rua porque o universo é muito grande, então todo lugar é nossa casa. Não vejo isso como passar necessidade também. Eu ficava em vários lugares. Até eu hoje vivo assim, mas por exemplo, eu chegava em uma cidade e não conhecia ninguém e ficava em uma praça, dormia nessa praça. Quando era de manhã, já tinha alguém lá me cutucando, me oferecendo café da manhã: “Você já comeu hoje de manhã?” Aí já levava para mim um café da manhã. "Por que você está aqui?” “Sou artista, toco aí na rua.” “Então mostra aí teu som”. Aí a pessoa já me levava para casa dela, já me apresentava para outras pessoas. Eu agradecia: “Obrigado, mas eu não vou ficar aqui não, só estou de passagem.” “Então beleza”. Ia para outra cidade, acontecia a mesma coisa. Dizer que eu morei na rua… Não, eu nunca morei na rua, mas já fiquei bastantes dias.
(01:00:43) P/1 - Morou na estrada.
R - É, morei na estrada, sempre indo, sempre indo, nunca ficava parado em um lugar. Eu acho que o lugar que eu fiquei mais tempo foi na Chapada Diamantina, em Lençóis, no Vale do Capão, porque realmente é um lugar que é outro mundo lá. Se você for para lá, quase não tem como sair.
(01:01:09) P/1- O que você já fez como artista? Você fez disco, fez livro, o que você já realizou?
R - Eu já participei de dois livros de poesia, já fiz alguns. Tem dois anos que eu trabalho com audiovisual, então eu já fiz dois curtas-metragem e alguns clipes. Esse ano vai sair outros materiais também, eu estou editando dois clipes agora, e está vindo um próximo documentário, maiorzinho. Esses primeiros curtas que eu fiz primeiro foram de teste, para justamente pegar como fazia. A filmagem, foi eu que fiz tudo, o áudio, editar o áudio, fazer a trilha sonora, a edição do vídeo. Pra mim foi uma grande experiência.
(01:02:03) P/1 - Como começou esse contato com audiovisual?
R - Foi engraçado. Eu jogava no computador quando eu era mais novo, quando morava no Riacho. Eu queria me mostrar para as pessoas jogando, só que naquela época não tinha live como tem hoje. Eu falei: ‘Vou gravar, como é que eu gravo a tela do computador?” Fui lá, pesquisei como gravar a tela do computador, achei. “Agora como faço para editar e botar uma música de fundo, só botar as partes que eu quero?” E fui mexendo no Movie Maker mesmo na época, que era o editor do Windows, nem sei se existe mais. Daí fui gostando, achava muito fácil editar coisas que eu queria, botava uma música de fundo.
Depois de anos eu comecei a trabalhar um pouco em produção musical. Eu sou instrumentista também, então eu tocava um violão, fazia um loop de violão, pegava uma guitarra, fazia um loop de guitarra, vinha com percussão, flauta e outros instrumentos. Construía uma música legal, construía um pensamento.
Se eu consigo construir uma música, eu consigo construir uma trilha sonora conforme eu quero na minutagem certa, nas viradas de cena. Assistindo filmes e séries a gente tem essa noção de trocas de cena junto com áudio. Eu ficava vibrando com isso e estudando isso. De dois anos para cá eu tenho estudado muito edição de vídeo profissional.
(01:04:16) P/2 - O que você gostaria de falar para todas as pessoas do planeta se pudesse levar uma mensagem?
R - Eu pediria uma coisa, para não continuarem desmatando, porque daqui a cinquenta anos se a gente continuar desmatando a gente vai ter sérios problemas. Se a gente pensa em ter filhos e netos a gente tem que cuidar nesse momento, se religar com a terra intrinsecamente, ter essa conexão verdadeira, segura, para que as nossas futuras [gerações] não adoeçam como nós estamos adoecendo nesse momento que a gente vive, com a poluição, com a alimentação. A gente se alimenta de muito veneno hoje, então [precisamos] repensar novas fórmulas de construir uma sociedade sustentável. Acho que é isso.
(01:05:30) P/2 - Você tem filhos?
R - Tenho uma filhinha. A Terra Tulipa está com um ano e cinco meses agora. Um bebezão, linda.
(01:05:46) P/1 - Como foi que veio essa criança?
R - Eu [me] juntei com a mãe dela, a Raíssa, em 2018. Sempre pensei em ter um filho, já era uma coisa que vivo, que meu coração vibrava e compartilhei com ela. A gente começou a planejar, já estávamos morando juntos, e quando recebemos a notícia ficamos muito felizes, porque nós dois estávamos nessa energia de querer uma criança com a gente e veio. Foi uma das melhores escolhas que a gente já fez na nossa vida.
(01:06:35) P/1 - Você ainda está com essa pessoa?
R - Não, não estou mais hoje, mas nós somos muito amigos ainda.
(01:06:43) P/1 - E como foi? O que mudou quando você virou pai?
R - Ah! Principalmente amadurecer as ideias, pensar novas formas de fazer uma reforma geral no nosso meio como sociedade, principalmente como indígenas no contexto urbano, de lembrar o pessoal que nós somos indígenas. E sim, estamos retomando até a cidade, vamos ocupar tudo, os prédios, os museus, os bancos, vamos ocupar tudo.
Não é uma coisa para ficarem com medo. A gente não vai chegar quebrando tudo, mas a gente viu essa necessidade, de tanto tempo que a gente está escondido por medo dessa opressão. Eu acho que já chegou em um momento que a gente está pensando mais na mata do que em nós mesmos, esse corpo aqui fala o que tiver que ser preciso mesmo para defender o que a gente acredita que é a natureza. Então é isso, sem medo é só se jogar como todos os parentes têm feito, com cautela.
(01:08:27) P/1 - Como é que foi também essa vida de nômade? Como que isso pegou forma? Como é que também sua família viu isso?
R - Nossa! No começo eles nunca apoiaram muito não, porque eu sempre fui muito doido, de sair mais novo. Com quatorze anos eu já fazia essas coisas, já saía e não voltava mais para casa, mas depois que eles começaram a entender quem eu era, sobre o que eu falava, principalmente nas músicas, e os diálogos que a gente tinha de várias coisas, sobre machismo intrínseco na nossa família, tanto na minha mãe [como] no meu pai, nos meus irmãos, sobre gênero, sexualidade… Coisas que os mais velhos não conseguem dialogar, não têm abertura para isso, porque o patriarcado está muito forte, mas eu acho muito legal o que a gente tem feito, essa retomada e abrir esses novos ideais que eles não conseguiram acompanhar no tempo deles.
(01:10:00) P/1 - Tem alguma história que você não contou que você gostaria de contar?
R - Sim, eu fico muito feliz de poder ter conhecido todos os parentes que eu conheci esses anos, principalmente os da arte que dão esse suporte pra gente continuar fazendo o que a gente gosta, a gente quer. Na música, nas galerias, tem muitos parentes que são pintores, escritores, designers, cineastas. Tem momentos que a gente está lá, caramba, a gente fica falando, falando, como pensamos o mundo na cosmovisão indígena, mas não temos acesso para adentrar os corações das pessoas e fazer mudar por dentro. Fica uma questão para mim mesmo de como fazer isso daqui um tempo. Acho que a gente já vai estar mais encaminhado.
(01:11:15) P/1 - E o que você sonha para sua vida?
R - Eu sonho em retomar todas as terras possíveis. Seja comprando elas, seja retomando por ocupação, senão vão desmatar tudo.
(01:11:35) P/1 - Qual é o maior desafio que você viu na sua vida ser indígena?
R - Eu acho que o medo das pessoas de não reconhecer quem sou. Acho que esse é o maior desafio, de mostrar para as pessoas que não estou só no livro, faço parte da história e estou vivo.
(01:12:12) P/2 - Você tem medo de alguma coisa?
R - Tenho medo de tubarão, mas confio que nunca vai acontecer nada.
Eu tive um sonho uma vez na beira de um rio. Tinha duas crianças em uma canoa no rio de água doce, as crianças vinham, deixavam a canoa lá e vinham para a terra. Saía um tubarão de dentro da água andando, pegava as crianças e voltava para dentro d’água. Desde o dia que eu tive esse sonho eu fiquei com um pouco de medo de tubarão, mas só isso.
(01:13:03) P/1 - Como foi contar sua história aqui hoje?
R - Foi uma nostalgia. Eu pude acessar momentos que eu não lembrava da minha infância, de estar presente lá com meus primos tomando açaí com farinha. Eu, festejando mesmo, dias de festas. A gente nem está encontrando pessoas esses dias direito, então relembrar isso, as festanças, a forrozada… Lá tem muito, os parentes tocam sanfona e vem a percussão. É muito doido. Cantando na língua… Tive essas lembranças. Foi gratificante.
(01:13:59) P/1 - Você chegou a passar algumas iniciações dentro do seu povo?
R - Não. Eu saí de lá muito novo, com nove anos. Fiquei em Brasília até os vinte e poucos anos, mais ou menos, ia e vinha, mas decidi sair de lá com uns vinte anos mesmo. Falei assim: “Não quero mais ficar aqui, eu quero ir para outros lugares!”
Ia e vinha por causa da minha família que morava lá, mas acho que com o Santxiê foi uma iniciação de conhecimentos das plantas medicinais do cerrado. O Santuário tinha um herbário bem gigante, até hoje tem.
(01:15:07) P/1 - Quer trazer mais um canto pra gente?
R - Pode ser uma poesia? Na verdade, vai ser uma música em forma de poesia então.
Somos filhos da mata e de cada animal
Somos o espírito de quem já morreu
Herdamos a coroa da luta ancestral
Todas as forças unidas se chamam eus
Vivemos o genocídio, guerra contra os meus.
Ensinam que somos sujos, dizem que não somos filhos de Deus.
Somos o próprio Deus, pois ele faz parte de nós.
Não entendem nossas crenças, nunca escutaram a nossa voz
Nova era, mudanças no poder, prepara pra ver
_________ já nasceu
Somos a flecha de cada pajé e de cada matriarca e suas rezas com fé.
Somos a força necessária para unificação e a principal arma pra revolução
Também somos poder, somos a luz e a mudança, somos o princípio, paz, mães e crianças originários
Já estávamos quando vocês chegaram e nunca esqueceremos daqueles que vocês mataram
Agora é diferente, estamos preparados. Se uma liderança cai, novos guerreiros nascem armados com a força do espírito e a luz da manhã.
Treinados na terra-mãe, arcos, flecha, mente sã. Não temos medo da morte pois somos a vida.
O pai adubou a terra, somos as sementes mais ricas
Guerras?
Queremos paz, peguem seus entulhos, seus pensamentos e daqui saiam, vai
Temos o nosso plantamos e colhemos, neste século 21 seus frutos são puro veneno Agronegócio mata e o burguês sempre desenvolvendo
Supermercados, multimarcas que vos envenenam
Novas formas de matar seu próprio povo
Que vive a margem enganado achando que tudo é novo
Séculos e séculos de escravidão
Hoje os povos prezam pela unificação de cada irmão
Rima e perdão
Por cada erro cometido por migalhas em vão
Um dia vão perceber que dinheiro não se come
Meu povo em vários estados morrendo de fome
Periferias, antena ligada, paz para as quebradas
A burguesia nos ofende dando risada
Nós temos que ser, ele só crê no que o olho vê
Soldado carnal, espiritual, desliga a TV
Conexão direta com o pai e com a mãe
Vai, busque respostas com nossos ancestrais, guias
É chegada a hora da luz. Mostra para eles quem nessa terra o conduz
Preparados ou não, aí vou eu, renascido das cinzas para ser guiado por eus
Somos filhos da mata e de cada animal
Somos o espírito de quem já morreu
Herdamos a coroada luta ancestral
Todas as forças unidas se chamam eus
Alô, câmbio na escuta
Falo para você, meu filho, não se iluda
Abra seus olhos, o caos não está à vista e muitos dos meus filhos morrendo na lida todo dia, não era isso que eu queria
Te dei o livre arbítrio e você tirou outras vidas, por ganância, ambição e ódio
De quê? De quem?
Por ouro e pódio. Um dia vão perceber que dinheiro não se come
Mas é a hora de voltar, nem vou lhe avisar
Deixarei nas mãos dos filhos da terra, pois lá não é seu lugar
Irei lhe ensinar tudo o que já esqueceu
Amor, virtude e luz, longe de todo o breu.
Caimê Manauã
Ayaya
(01:19:17) P/1 - A gente começou de olho fechado. Eu vou pedir para você fechar os novamente. Eu queria que você imaginasse, que quando você desencarnasse você só pudesse levar uma memória desta vida para eternidade, que memória que você levaria?
R - Acho que levaria a memória da música porque ela acessa os corações, coisas que a gente muitas vezes não consegue verbalmente. A música tem esse poder de abrir e expandir também.
(01:20:08) P/1 - Agradecido!
R - Ayaya!
Recolher