Entrevista de Pyara Rapkiewicz Calisto
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 22/06/2023
Projeto: Mulheres na Tecnologia
Entrevista número: MTS_HV006
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Pyara, primeiro eu quero te agradecer por estar aqui, por ter vindo até aqui, por estar disponível para contar um pouquinho da sua história. Primeiro eu quero que você se apresente, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R - Certo! Eu me chamo Pyara Rapkiewicz Calisto, eu nasci em Curitiba, no dia quatro de março de 94.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu acredito que eu nunca perguntei. Mas tem uma curiosidade que eu acho meio interessante, que eu nasci exatamente às 4:44 do dia quatro de 94. Só o mês que foi em março.
P/1 - E você sabe a origem da sua família?
R - Eu sei a origem por parte de mãe, por parte de pai eu não conheço, porque ele abandonou minha mãe quando eu era nova, devia ter mais ou menos um ano de idade. E daí, a partir disso, nunca mais tive contato com ele, ou com nenhuma parte dessa família. Muitos anos depois eu até fui procurar mais sobre, daí eu descobri que ele havia sido morto alguns anos antes, então eu nunca tive esse contato. Já da parte da minha mãe, se eu não me engano, a minha avó, ela estava fugindo de uma das guerras mundiais que aconteceu na Polônia e daí ela veio para cá. E daí ela começou a constituir família, a minha mãe, ela já nasceu aqui, mas tem, acho que um tio, ou uma tia, que inclusive nasceu na Polônia. E ela, inclusive, às vezes até falava em polonês com familiares. Eu nunca entendi.
P/1 - E você tem relação com esses avós maternos?
R - Meu avô materno, eu acredito que ele morreu quando eu ainda era criança, tanto que eu lembro uma vez com seis anos de idade no Rio Grande do Sul, que são originais de lá, depois de vir da Polônia se estabeleceram lá. Mas eu não cheguei a conhecê-lo, eu cheguei a...
Continuar leituraEntrevista de Pyara Rapkiewicz Calisto
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 22/06/2023
Projeto: Mulheres na Tecnologia
Entrevista número: MTS_HV006
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Pyara, primeiro eu quero te agradecer por estar aqui, por ter vindo até aqui, por estar disponível para contar um pouquinho da sua história. Primeiro eu quero que você se apresente, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R - Certo! Eu me chamo Pyara Rapkiewicz Calisto, eu nasci em Curitiba, no dia quatro de março de 94.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu acredito que eu nunca perguntei. Mas tem uma curiosidade que eu acho meio interessante, que eu nasci exatamente às 4:44 do dia quatro de 94. Só o mês que foi em março.
P/1 - E você sabe a origem da sua família?
R - Eu sei a origem por parte de mãe, por parte de pai eu não conheço, porque ele abandonou minha mãe quando eu era nova, devia ter mais ou menos um ano de idade. E daí, a partir disso, nunca mais tive contato com ele, ou com nenhuma parte dessa família. Muitos anos depois eu até fui procurar mais sobre, daí eu descobri que ele havia sido morto alguns anos antes, então eu nunca tive esse contato. Já da parte da minha mãe, se eu não me engano, a minha avó, ela estava fugindo de uma das guerras mundiais que aconteceu na Polônia e daí ela veio para cá. E daí ela começou a constituir família, a minha mãe, ela já nasceu aqui, mas tem, acho que um tio, ou uma tia, que inclusive nasceu na Polônia. E ela, inclusive, às vezes até falava em polonês com familiares. Eu nunca entendi.
P/1 - E você tem relação com esses avós maternos?
R - Meu avô materno, eu acredito que ele morreu quando eu ainda era criança, tanto que eu lembro uma vez com seis anos de idade no Rio Grande do Sul, que são originais de lá, depois de vir da Polônia se estabeleceram lá. Mas eu não cheguei a conhecê-lo, eu cheguei a conhecer só a minha avó materna, mas ela também já estava com seus noventa anos, eu acho. Mas não parava também, ficava de um lado para o outro trabalhando na roça, com noventa anos, pé inchado e continuava trabalhando.
P/1 - Você tem alguma lembrança, alguma história com ela?
R - Eu lembro de uma vez tá lá na casa dela e ela fazendo biscoito, e daí eu estava só na cozinha existindo, enquanto ela tava lá fazendo e conversando com a minha mãe. Eu acho que essa é uma das poucas lembranças que eu tenho dela. Porque realmente eu só vi nesse período que eu tinha seis anos de idade, depois disso era só relatos.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Eu tenho duas irmãs. Não vou saber dizer a idade delas hoje. Mas a Adriana e a Adelita.
P/1 - São parte de pai e mãe, só mãe, só pai?
R - São parte de mãe, eu sou de outro casamento. Elas duas são do primeiro casamento da minha mãe e eu sou do segundo.
P/1 - E você conviveu com elas?
R - Uhum. Até a adolescência a gente interagia com frequência. A Adriana continua morando na mesma casa, no mesmo terreno na verdade, numa casa nos fundos. A Adelita comprou um apartamento, depois comprou uma casa, foi se mudando. Hoje eu acredito que a Adriana esteja com a casa em que eu cresci, a mãe está com outro apartamento que combinaram de comprar para ela, para ela meio que se aposentar e ter num lugar menor. E daí minha irmã tem a casa dela com a família dela, a Adelita.
P/1 - E você, na infância, você tem recordações com elas? O que vocês gostavam de brincar, fazer juntas?
R - Com a Adriana eu nunca interagi muito, ela sempre foi uma pessoa bastante fechada, na minha percepção. Com a Adelita, ela já era mais participativa na minha vida, tanto que meu primeiro estágio, foi ela que ficou insistindo para eu ir atrás. Era uma prova que tinha que fazer para estagiar no Ministério Público, e daí ela ficou falando: “Vai, faz, faz, faz”. Quase não fiz. Fui fazer e no final deu certo! Estagiei dois anos no Ministério Público, depois disso. Ela foi uma figura bastante presente nesse sentido, de estudos, trabalho, ela sempre me incentivou muito nesse sentido.
P/1 - E quando você era pequena, na infância, você gostava de ouvir histórias?
R - Eu gostava bastante de assistir filmes, não tanto, mas eu gostava também de ouvir histórias, mas a minha mãe, por exemplo, ela tem zero costumes de contar histórias, ela é uma pessoa extremamente fechada, tanto que até, às vezes, eu perguntava: “Compartilha comigo coisas da sua vivência, porque eu posso aprender com essas coisas”. Ela: “Passado é passado, não tem que ficar conversando ou falando sobre isso”. E eu acho que entendo a parte dela, porque ela realmente passou por muita coisa e ela passou por muita coisa que eu imagino que ela não gostaria de ter passado, então até entendo ela ser bastante fechada. Mas é isso, eu nunca tive esse espaço para ficar pedindo por histórias.
P/1 - Você quer contar um pouco mais da sua mãe, um pouco da história dela?
R - Minha mãe era irmã do meio, de sei lá, sete pessoas, talvez, foi uma família relativamente grande. E daí ela compartilhou uma vez comigo, que quando ela estava por volta dos seus 23 anos, ela reparou que dentro de casa ela não teria espaço para se desenvolver, então, se ela fosse herdar alguma coisa demoraria muito, porque as outras pessoas mais velhas herdariam primeiro e ela, por conta própria também, não conseguia se manter e ter sua autonomia na cidade. E foi quando ela com uma prima, que eu chamo de tia na verdade, foram para Pato Branco, começar a trabalhar como diaristas. Daí de Pato Branco, ela foi para São Paulo, onde ela conheceu o pai das minhas irmãs, daí eu acho que foi por lá mesmo que terminaram, se eu não me engano. E daí ela conheceu o meu pai, foi quando foram para Curitiba. E daí ela comprou uma casa em Colombo, que é a região metropolitana. E daí, lá ela começou a cuidar tanto das minhas duas irmãs, quanto de mim.
P/1 - E ela conta como foi essa mudança para Pato Branco ainda nova?
R - Foi quase que uma fuga, ela só foi meio que na cara e na coragem, porque realmente a minha avó, assim, do que eu lembro dela, ela não era uma pessoa muito comunicativa, ela era meio chucra, meio grossa. Deu para ver que minha mãe também puxou bastante disso. Mas é muito engraçado que recentemente, alguns anos atrás, eu me descobri uma pessoa autista e autismo é genético. E quando eu comecei a olhar para minha família, eu comecei a reparar esses traços. Então, às vezes que a minha mãe não falava muito, por exemplo, que ela era uma pessoa fechada. Eu lembro de casos de estar andando com ela dentro de uma loja, por exemplo, chegar uma pessoa para conversar com ela e ela virava a cara e continuava andando. Eu achava muita grosseria. Mas hoje eu entendo que pode ser traços de uma pessoa autista, lidando com a vida, lidando com a sociedade. E daí, até a minha irmã, por exemplo, a Adriana, que também é bastante fechada. Começou a fazer mais sentido, sabe? Mas, por exemplo, uma das irmãs da minha mãe, ela praticamente não falava, ela mais grunia, fazia barulhos. E é comum algumas pessoas autistas não serem oralizadas. Só que daí quando eu começo a lembrar dela também, eu começo a ficar triste, porque a forma como tratavam ela na época, sabe? Uma família do interior, que tinha zero conhecimento sobre o que seria essa condição, como lidar com isso, então ela passava grande parte do tempo presa dentro de casa, não deixavam ela sair. E às vezes quando ela conseguia sair, o que ela fazia? Fugia. Ela ia para o meio do mato e ela preferia ficar no mato, do que ficar presa dentro de casa.
P/1 - Tem algum parente, pensando em primos, tios, que tenham uma importância nessa fase da sua vida? Tem algumas recordações?
R - Como grande parte era do Rio Grande do Sul e a minha mãe estava meio que sozinha aqui, junto com essa prima, que eu chamo de tia, exatamente por causa dessa proximidade da gente ir na casa dela, às vezes e tals. Essa era a parte da família que eu tinha mais contato. Então, tinha, acho que dois primos e uma prima, que eram dessa tia e daí as minhas irmãs. Essas eram as pessoas mais presentes durante a minha infância e adolescência. Eu acho muito legal que cada pessoa me marcou de forma muito diferente, tipo, a Adriana acabava não conversando muito, mas de certa forma eu admirava ela, porque isso ela engravidou na adolescência, ela casou super cedo. Ao contrário da minha outra irmã que, por exemplo, teve a oportunidade de entrar no ensino superior, estudou e se formou. Mesmo sem essas coisas ela fez todo o corre dela e sustentou tanto a minha sobrinha, quanto meu sobrinho e se sustentou, então, arrasou. Ela conseguiu sobreviver na sociedade, arrasou. Já a minha irmã do meio, a Adelita, ela me marcou muito porque ela estava sempre me colocando: “Vai estudar, vai trabalhar, vai fazer coisas”. Eu percebo como isso, hoje, me acrescenta enquanto profissional. Eu comecei a trabalhar com dezesseis anos, antes disso já até fazia alguns bicos, mas oficialmente com dezesseis. E desde lá até aqui, eu aprendi muitas coisas pelos espaços onde eu passei, então. Eu vejo, por exemplo, que existem pessoas com trinta anos que nunca trabalharam e eu fico: “Como? Como você chega com trinta anos e nunca precisou trabalhar?” Tem um privilégio aí. E daí a minha prima, ela me marcou muito porque ela sempre foi muito estudiosa e ela foi para física e virou professora, então isso ficou muito significativo para mim, tanto que, mesmo com a pressão da minha família e na época do trabalho que eu estagiava no Ministério Público, para ir fazer direito, eu decidi fazer filosofia, porque para mim era mais importante. E ela ter ido para física, que era considerada a gênia da família e tals. Porque ela, no ensino médio, já tinha conseguido estudar no UTFPR e coisas assim, então ver que ela foi para uma dessas áreas me incentivou também a seguir um caminho desses. E daí, dos outros dois primos, um deles… Não sei se precisa colocar um alerta de gatilho para falar sobre suicídio e coisas assim. Ele acabou se suicidando, quando eu era bem nova. E eu lembro que comentavam bastante sobre ele ser esquizofrênico, que ele ouvia vozes e tals. Tanto que teve situações, por exemplo, que chegou até mim quando criança, essas coisas chegaram para mim, que tinha dias, por exemplo, que ele saía de noite ou de madrugada para ficar jogando futebol sozinho na rua, mas que ele falava como se estivesse jogando com outras pessoas. Quando eu fiquei sabendo do suicídio dele, foi um grande choque, porque é isso, isso não tinha… nessa época eu não tinha contato com isso na família. Então, eu fiquei bastante reflexiva na época sobre isso. Me marcou bastante, porque também foi logo um ano depois que a minha tia tinha morrido.
P/1 - A mãe dele?
R - Aham. Deve ter até alguma coisa relacionada com isso. Pelo menos foi isso que disseram na época. E deu para ver como isso afetou muito esse lado da família, tanto que eu lembro que esse outro primo, que era o irmão dele, era uma pessoa muito alegre, sempre brincalhona e tals. Mudou bastante depois disso, se tornou uma pessoa mais séria e tals. Até me surpreende quando se tornou Padre. Decidiu ir para a igreja, começou com o seminário e coisas assim e seguiu por esse rumo. Eu nunca mais troquei ideia com essas pessoas também. A última vez que eu acho que eu conversei com a minha prima, foi quando eu estava na reitoria da UFPR, daí eu achei muito legal, que ela se tornou professora da UFPR, de física, em licenciatura. E daí a gente ficava conversando sobre isso, sobre educação, sobre paradigmas de filosofia, de ciências. Ela nessa perspectiva da física e eu na perspectiva da filosofia, era muito legal. E esse primo eu não lembro a última vez que a gente trocou ideia, eu acho que a última vez que eu vi ele foi quando eu estava me mudando pela última vez da casa da minha mãe em Colombo, que eu lembro que eu estava numa época meio difícil, precisei ir para lá. Mas ao ir para lá, eu reparei que não era a solução e daí eu acabei saindo. Eu lembro de estar ele e uma outra tia, que era irmã dessa que faleceu, lá também, na casa da minha mãe.
P/1 - Como era o bairro? Vocês moravam todos juntos, as famílias meio próximas, ou não?
R - A minha tia era de São José dos Pinhais ou Pinhais, eu acho, acho que era de Pinhais. E daí no terreno que minha mãe tinha comprado, morava minhas duas irmãs, eu e ela. E daí o meu cunhado também e a minha sobrinha, que o meu sobrinho nasceu uns anos depois. Daí nessa casa eu fui desde, sei lá, acho que desde que eu nasci até uns vinte, eu cheguei a sair algumas vezes antes, mas eu sempre voltava. Daí com vinte foi quando eu me mudei, fiquei fora, só fui voltar depois, eu acho que com os 25, nessa situação que eu citei, que eu voltei e reparei que não era viável para mim, daí eu saí de novo. E eu lembro que luz a gente sempre teve, água eu acredito também, asfalto foi só depois de uns quatorze, quinze anos, eu acho. Eu lembro que eu me machuquei muito naquela rua caindo de bicicleta e outras formas. Mas daí foi muito engraçado que só fizeram asfalto na rua, todas as outras do lado não tinham. Mas eu acho que hoje é quase tudo asfaltado lá, a região.
P/1 - Que brincadeiras você gostava de fazer na infância?
R - Então, minha mãe estava sempre trabalhando e minhas irmãs também começaram a trabalhar muito cedo. Então, eu ficava sozinha em casa. E daí eu ficava na rua, então ficava sempre na rua, brincando de bola, correndo, arrumando briga, esse tipo de coisa que se faz na rua. Eu lembro que na escola eu também gostava de brincar muito de “polícia pega ladrão” então ficava sempre correndo de um lado para o outro. E tem até uma história engraçada, que eu sempre brinco dizendo que foi o primeiro golpe de estado que eu sofri. Porque eu não sei exatamente o que aconteceu no caminho, sei que eu fui perdendo um pouco isso, mas quando eu era mais nova, eu gostava sempre de propor brincadeiras, então eu gostava de juntar a galera e ficar propondo brincadeiras. Daí eu lembro que eu tinha proposto uma brincadeira uma época com uma galera, a gente estava brincando, daí no outro dia ninguém tava brincando comigo, aí eu fiquei: “Ué, o que está acontecendo?” E daí eu comecei a perguntar e me disseram: “A gente montou uma nova brincadeira sem você”. Eu falei: “Ué, mas é a mesma brincadeira que eu criei”. “Sim, mas sem você”. Eu fiquei: “Ué?!” Super confusa. Eu tinha cinco ou seis anos de idade, eu acho. Eu não entendi o que estava acontecendo. Mas daí foi engraçado que eu comecei a brincar com as crianças mais velhas, daí eu fui brincar com pessoas de outras salas. Mas eu sempre brinco que foi o primeiro golpe de estado, com seis anos de idade.
P/1 - E nessa vizinhança, antes da pré escola, tem alguma história marcante com outra criança?
R - Bets também era algo que a gente jogava muito. E nossa, eu lembro a diferença de quando asfaltaram a rua, porque antes, numa rua de pedra, para jogar bets, era imprevisibilidade total, você jogava bolinha de um jeito, ela podia parar em qualquer canto, daí quando já tinha o asfalto, já ficou bem mais fácil. E eu lembro que muitas famílias passaram pela rua, então sempre tinham pessoas diferentes para brincar e tals. E de histórias, tinham algumas figuras marcantes no bairro, como, por exemplo, o Lequinho, que era uma pessoa que possivelmente fazia uso de substâncias e ele ficava arrumando briga aleatoriamente com as pessoas no bairro. E daí eu lembro até uma vez que ele chegou falando comigo: “Não, porque vamos sair no soco só de brincadeira”. Daí eu: “Não, eu não quero fazer isso”. “Não, vamos, vamos”. E eu: “Não! Por que você quer fazer isso?” Mas eu lembro que essa era uma pira dele, ele ficava arrumando confusão direto. E me surpreendeu muito quando eu recebi a notícia, alguns anos atrás, que ele tinha sido encontrado morto na frente de casa, enforcado numa árvore. Eu achei super pesado, super pesado. Mas é isso, ele ficava querendo arrumar briga com várias pessoas no bairro, em algum momento isso ia acabar voltando. Mas eu achei bem pesado isso ter acontecido. De outras figuras do bairro…. Teve uma vez que eu fui expulsa de um grupo de jovens da igreja. Eu já era adolescente já, eu acho que devia estar no meus treze ou quatorze anos. E eu sempre fui muito questionadora sobre religião. E daí eu lembro que eu participava desse grupo e daí eu sempre ficava fazendo perguntas, assim, enquanto as pessoas faziam a leitura das passagens e tals. Eu ficava perguntando, perguntando, até uma vez que chegaram para mim e disseram: “Olha, você não pode mais frequentar o grupo.” Eu fiquei: “Ué, por quê?” “Porque como você é uma pessoa muito inteligente que não acredita em Deus, você é um perigo para as outras pessoas”. Daí eu fiquei: “Como assim? Qual fita?” Mas não me deixaram mais participar.
P/1 - E como foi para você?
R - Eu participava mais pelas pessoas, por estar num lugar com pessoas, porque crescendo em Colombo, não tinha nada para fazer. Por exemplo, eu até tinha televisão em casa, mas chegou um momento, que só ficar assistindo televisão. Eu queria fazer outras coisas, eu queria ver pessoas, eu queria fazer coisas. Em Colombo era tudo muito longe, qualquer projeto de esporte, música, qualquer coisa nesse sentido era muito longe para chegar. Até tinha, era um projeto que se chamava Projeto, não lembro o nome completo. Mas que era uma casa que ficava no mesmo bairro, que as crianças iam extracurricular, sabe? Depois da aula. Só que eu lembro que eu não gostava, porque só ficavam dizendo para a gente fazer o dever de casa, não tinha necessariamente atividades para entreter as pessoas. Então, eu passava uma manhã inteira dentro da sala, para de tarde ir para um outro lugar, onde eu ficava o tempo inteiro dentro da sala de aula. Daí eu preferia ficar na rua. Mas é isso, não tinha muita coisa para fazer e nem sempre tinham pessoas na rua também. Então, eu fui para o grupo de jovens mais para isso. E daí quando não deu certo, eu falei: “Então tá bom”. Continuava encontrando as mesmas pessoas em outros horários, só não participava mais do grupo de jovens.
P/1 - Você tinha quantos anos quando rolou isso?
R - Acho que devia ter uns treze ou quatorze.
P/1 - E na escola, teve algum professor, alguma professora muito marcante para você?
R - Teve uma professora que me ajudou a pronunciar o S, porque eu não sabia pronunciar o S, eu sempre trocava por C, por T, desculpa. Então, eu não falava suco, eu falava tuco. Eu tive esse problema de dicção até a terceira série, que foi quando uma professora começou a me acompanhar de forma mais ativa, vamos dizer assim, estar mais em cima de mim, trocando mais ideias e tals. Daí ela me deu a dica de ficar fazendo tipo uma cobra, para aprender a pronunciar o S. Daí eu lembro que eu comecei a fazer isso, com o tempo eu perdi completamente o problema de dicção, conseguia falar tranquilamente o S. Tanto que consigo até hoje. Mas lembro que essa professora foi muito marcante, acho que foi na terceira série. Mas eu não lembro o nome dela agora, acho que era Cristina. Não vou lembrar.
P/1 - E teve alguns outros casos na escola? Você contou que propôs uma brincadeira e foi expulsa, mas tiveram outras?
R - Nossa, muita coisa. É porque eu passei praticamente da primeira série até o terceiro ano, estudando praticamente com as mesmas pessoas.
P/1 - Na mesma escola?
R - Era o mesmo complexo, mas não necessariamente a mesma escola, porque tinha um muro que divide os dois espaços, mas era praticamente a mesma escola. Então, antes disso eu tinha participado da creche, que era um outro espaço. E daí quando eu fui para o primário já foi nessa escola. E quando eu fui para o ensino fundamental II, foi no espaço do lado. E daí não existia ensino médio lá, mas começaram a abrir com a minha turma. Então, a minha turma foi o primeiro primeiro ano, foi o primeiro segundo ano, foi o primeiro terceiro ano, antes disso não tinha o colégio. Então, tinha um momento que eu já estava enjoada da cara dessas pessoas. E tretas também que foram se acumulando com o tempo e tals. Então, existem muitas histórias, mas elas acabam se confundindo um pouco, por ser isso, sempre as mesmas pessoas. Mas eu lembro que quando eu estava no fundamental I, eu gostava de cortar caminho por um terreno baldio, porque eu voltava sozinha para casa, desde os meus seis anos de idade já voltava sozinha para casa. E daí eu gostava de cortar caminho por um terreno baldio, porque eu passava no meio de uma florestinha. E às vezes eu passava mais um tempo lá, brincando e tals. E daí era engraçado que eu passava pelo meio desse terreno baldio, eu atravessava a rodovia e daí eu ia para o outro terreno baldio que tinha do lado, para continuar atravessando pelo terreno baldio.
P/1 - Sozinha?
R - Às vezes com amizades, mas geralmente sozinha. E daí eu lembro que uma época os familiares começaram a falar que não era mais para andar pelo terreno baldio, porque estava perigoso, porque tinham visto alguém lá e tals. Mas estava sempre indo igual. E era isso. Tinha até que pular o muro para passar pelo terreno. E sempre tive essa pira, assim.
P/1 - E nessa fase ainda, antes do colegial. O que você pensava em ser quando você crescesse?
R - Nossa, eu tinha algo quando eu era criança, que eu tenho um pouco até hoje, de que eu me imagino fazendo tudo, qualquer coisa. Então se as pessoas dissessem, tipo, ser engenheira, por exemplo, eu começava a imaginar como seria a vida sendo engenheira. Ou quando eu vi as minhas irmãs, por exemplo, que uma delas estudou contabilidade. Eu ficava pensando: Como seria estudar contabilidade? Como seria? E daí eu lembro que eu sempre tive essas reflexões de tipo caminhos possíveis, ao invés de pensar: Não, eu quero ser isso com certeza. Mas tiveram momentos que eu estive mais certa, por exemplo: Não, eu quero ser engenheira civil, não durou. Quero ser advogada, não durou. Quero ser professora, também não durou. Eu fui passando por diferentes áreas, diferentes interesses. Infelizmente eu percebo que o mercado de trabalho não valoriza tanto isso, mas tem até um conceito que é um profissional generalista, que é isso, tenho experiência de tudo e já fiz um pouco de tudo. Hoje eu gosto de me perceber dessa forma, mas quando eu estava crescendo, nossa, eu pensei em mil caminhos possíveis. Isso até foi um grande debate na minha família, porque daí achavam que eu não queria nada com nada, uma hora você quer uma coisa, uma hora você quer outra coisa, então o que você quer? E de fato, quando se tratava de profissão, achava até que era uma pressão desnecessária para um adolescente, tipo, você precisa seguir isso, você precisa começar uma carreira nesse momento e seguir até o final da sua vida nisso. E todos os planos que eu fiz até hoje, dentro de carreiras, nenhum deles se manteve. Então, eu não tô triste com isso, eu estou muito feliz onde eu estou trabalhando hoje. E eu percebo como a minha experiência em diferentes lugares só soma ao trabalho que eu faço, sabe? Mas de criança o que eu pensava? De tudo, de tudo. Médica, astronauta, de caminhoneira, cozinheira, tudo, tudo. O que você me dissesse, uma pessoa que chegasse na minha frente dizendo: “Eu faço tal coisa”, eu começava a me imaginar na profissão.
P/1 - Sem limites! E Como foi a época do colegial?
R - Nossa, foi complicado! Porque quando você é criança e você apresenta uma dissidência de gênero, até que passa batido, às vezes as pessoas não dão tanta bola para isso. Mas na adolescência é quando as pessoas começam a cair matando. E daí eu lembro que isso fez com que eu me tornasse uma pessoa extremamente fechada, eu parei de interagir com as pessoas, eu faltava muito no colégio, muito, tanto que eu até reprovei o terceirão por falta, eu precisei repetir o terceirão, porque era isso, todas essas pessoas que eu havia crescido, de uma hora para outra começaram a se tornar insuportáveis. Então, era sempre muito difícil a interação com as pessoas e ainda mais o autismo causando junto, se tornava ainda mais difícil entender o que estava acontecendo. Então, eu me meti muito em briga, que não era nem eu que começava, as pessoas que começavam a querer brigar comigo. Então, sei lá, um bate boca dentro de sala já se tornava alguém querendo me bater fora de sala. Isso foi algo que se repetiu muito. E daí, foi isso, nesse momento da vida eu comecei a me isolar cada vez mais, me separar cada vez mais das pessoas, passar cada vez mais tempo sozinha. E daí eu tinha amizades específicas, tipo, do colégio inteiro tinha três pessoas que eu conversava. Infelizmente hoje eu não tenho mais contato com essas pessoas, porque eu não sou muito de redes sociais, daí você acaba perdendo as pessoas. Mas eu me lembro que eram pouquíssimas pessoas que eu me sentia confortável para trocar ideia, para estar próxima. Quando eu estava dentro da sala de aula, eu geralmente estava dormindo, eu não ficava prestando atenção nas coisas que aconteciam, não participava. Em apresentações de grupo, eu sempre dava uma desculpa para não apresentar, ou preferia fazer o trabalho sozinha, então eu fui me isolando cada vez mais nesse período. E foi muito engraçado quando eu repeti o terceirão, porque eu estudava num colégio de bairro em Colombo e quando eu repetia, eu fui estudar no colégio estadual do Paraná, que é o maior colégio público do Estado. E assim, lá tem laboratórios, têm laboratório de física, química, biologia, tem um laboratório para cada coisa, uma uma biblioteca gigantesca, tem piscina no colégio público, uma piscina olímpica, tem pista de corrida, num colégio público. Daí foi quando eu comecei a reparar mais possibilidades, até porque, nossa, quando eu tava em Colombo eu não tinha perspectivas das coisas, eu sei lá, o que tinha de trabalho na região era um supermercado que tinha aberto perto de casa. E daí quando eu comecei a estagiar no Ministério Público, comecei a estudar no Colégio Estadual, foi quando a cabeça começou a de fato, aqueles caminhos que eu ficava sonhando quando eu era criança de toda e qualquer profissão, eu comecei a enxergar as possibilidades de seguir esses diferentes caminhos. E daí isso foi muito bom porque… Esse era um período que eu estava muito depressiva, exatamente porque é isso, eu praticamente não tinha contato com as pessoas, eu não enxergava perspectivas e caminhos para seguir, então a única coisa que eu vi era tristeza e depressão. E começar a trabalhar e estudar no centro, num outro colégio, foi chave para eu abrir a cabeça para vários caminhos. E foi muito interessante também, porque estar numa nova turma, com novas pessoas, para interagir, para conhecer, eu fui percebida de uma forma completamente diferente do que eu era no outro colégio, então todas aquelas brigas que tinham se acumulado e as pessoas que não olhavam uma na cara da outra, ali era um terreno onde ninguém me conhecia, ninguém tinha ideia de quem eu era, de onde eu tinha vindo. Então, foi uma oportunidade de eu fazer novas amizades, conhecer novas pessoas e tals. Isso foi muito chave. Hoje eu não tenho mais contato nem com as pessoas que eu estudei em colégio de bairro, nem com as pessoas que eu estudei no CEP, mas foram amizades importantes na época, sabe? Eu não faço questão de sempre manter contato com as pessoas, porque até as pessoas próximas eu tenho dificuldade de manter contato.
P/1 - Quero ver se eu entendi, você comentou que nessa época veio o diagnóstico de autismo?
R - Não, eu não tenho, hoje, o diagnóstico formal, é o que eu estou indo atrás. O que eu tenho é o auto diagnóstico de alguns anos atrás, com 26 mais ou menos, que foi quando eu comecei a estudar mais sobre o assunto e daí que eu… Depois de quase um ano, estudando sobre, que daí eu passei a me apresentar mesmo como uma pessoa autista.
P/1 - Tá! Mais recente.
R - É, mais recente.
P/1 - Nessa época…
R - Nessa época eu não tinha ideia, mas isso já influenciava. Mas eu não tinha noção que era isso que me afetava, por exemplo.
P/1 - Só tinha algumas dificuldades assim, era isso um pouco o que acontecia nas suas relações, assim, daí você não tinha entendimento, ou…
R - Eu acredito que também. Mas tinham vários fatores que influenciavam, eu lembro, por exemplo, que eu tinha muita facilidade com matemática e daí às vezes eu até era, qual palavra que dá para usar, seria soberba a palavra, seria metida, às vezes, por essa facilidade. Porque eu via que eu tinha uma grande facilidade, que as outras pessoas não tinham, então, às vezes, por exemplo, tiveram situações da professora de matemática, da época, enquanto ela estava terminando de entregar as provas para as pessoas, eu já estava devolvendo a prova já toda respondida. Só que eu tinha mania de só colocar as respostas, eu não colocava as contas, então resolvia muito mais rápido as coisas. E eu lembro que isso incomodava as pessoas, porque é isso: Como ela está tendo tanta facilidade com o conteúdo e eu estou tendo tanta dificuldade? Daí quando você é metida sobre isso, você também não ajuda. Então, eu acredito que isso foi gerando inimizades, que foram se escalando, se escalando, se escalando, ao ponto em que… É isso, as pessoas, enquanto elas estavam fortalecendo os laços entre elas, elas estavam e eu também, me separando cada vez mais delas, criando cada vez mais distância. Então, eu acredito que isso possa ter acontecido também, sabe? Mas eram diversos fatores. Mas eu lembro que na época eu entendia zero disso, hoje refletindo, com terapia também, revisitando esses espaços, eu consigo enxergar dessa forma, mas durante muito tempo eu realmente só tinha zero noção do que estava acontecendo, do porque era tão difícil interagir, do porque era tão difícil fazer amizades, do porque era tão difícil conversar com as pessoas. Eu lembro de situações dentro de sala, por exemplo, de eu estar indignada com alguma coisa… Eu lembro até de uma aula de filosofia, eu não lembro exatamente o que o professor estava falando, mas eu lembro que eu simplesmente atravessei o professor e comecei a desabafar: “Porque essa cidade é uma merda, não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê…” E daí eu lembro que na época estava tendo aquela discussão sobre a Lady Gaga, se ela era transgênero ou não. E daí eu disse uma frase que era assim: “As pessoas, ao invés de se preocuparem com a política, preferem ficar assistindo a Lady Gaga rebolando a bunda”. E daí eu lembro que teve uma pessoa da sala que falou: “Mas a Lady Gaga não é…” Eu nem lembro como a pessoa colocou, mas fazendo referência a isso. E daí eu lembro que nessa hora eu só fiquei olhando para a cara do professor, tipo, você está entendendo do que eu tô falando! Eu não era fácil de interagir também, se duvidar até hoje eu não sou.
P/1 - Mas nesse momento do terceiro ano foi importante ter um outro lugar para se apresentar para o mundo e para si, é isso?
R - Sim. Isso é até algo que se repete depois quando eu me mudo para Roraima, que também foi algo chave. Mas isso um pouco mais velha, conto daqui a pouco. Pode continuar com as perguntas.
P/1 - Como foi esse último ano, se formar…? Sei lá, imagino que seja um período meio de transformações, desafios, como que tava essa juventude, essa adolescência, quais eram as movimentações que estava à tona?
R - Eu estava estagiando no Ministério Público, desde os dezesseis, foi dos dezesseis para os dezessete, daí no final do primeiro ano no Ministério Público, foi a primeira vez que eu fiz o vestibular. Daí eu lembro, que na época eu prestei para psicologia. Daí eu passei na primeira fase, mas eu já sabia que eu tinha reprovado no colégio por falta, daí eu nem fui fazer a segunda fase do vestibular. Mas ao mesmo tempo colocaram uma faixa gigantesca no colégio, de que eu tinha passado na UFPR. E tinham me reprovado. Daí foi quando eu fui estudar no CEP. Nesse segundo ano também, no Ministério Público e no CEP, foi quando eu decidi fazer direito, porque aí eu tinha como plano virar promotora, até os meus 25, começar a trabalhar com isso e tal. Mas aí passando mais tempo dentro do Ministério Público e ouvindo os relatos de histórias de pessoas que tinha se tornado promotoras, eu vi que poderia ser arriscado para mim, porque eu acho que isso pode estar relacionado ao autismo também, porque é comum na comunidade, mas eu tenho um forte senso de justiça e quando isso começa a quebrar eu começo a ficar muito frustrada. E quando você é uma pessoa que trabalha na justiça e você tem um forte senso de justiça, é muito fácil arrumar problemas. Tanto que eu ouvi diversos relatos de pessoas promotoras que tiveram carros queimados, casas queimadas, que foram perseguidas nos lugares onde moravam. Então, eu comecei a refletir e pensar, assim, tipo: não tô gostando tanto do curso e é um futuro que pode ser bastante perigoso para mim. Então, por que eu vou continuar fazendo isso? E eu lembro que eu tinha ido para o direito, porque eu queria entender como a sociedade funciona, para entender como ela funcionava para conseguir fazer, principalmente mudanças estruturais, porque eu sempre, desde lá os meus dezesseis, sempre muito insatisfeita como as coisas funcionavam, desde o sistema de educação, até outro sistema. E daí foi quando eu comecei a refletir sobre a filosofia. E eu cheguei a começar o curso de direito e daí eu lembro que quando eu saí do Ministério Público me convidaram para estagiar no Tribunal de Justiça, porque já conheciam o meu trabalho, já gostavam de mim. E quando eu estava estagiando no Tribunal de Justiça e fazendo direito, teve um dia que eu falei: “Não, isso daqui não é mais para mim”. Eu saí no meio do horário do estágio, falando: “Olha, não volto mais, desisti. Não é isso que eu quero para minha vida”. Eu lembro que foi na metade do semestre, então precisava mais uns seis meses para fazer o vestibular de novo. Mas foi o que eu fiz, eu passei seis meses aí dando rolê com os punk da quinze, lá de Curitiba, dando vários rolês aleatórios, até que eu comecei no curso de Filosofia. Daí no curso de Filosofia me encontrei, na época, tanto que no final do primeiro ano já tinha começado um estágio de docência, então eu estava dando aula logo no final do primeiro ano. E os cinco anos que eu passei dentro da universidade, eu sempre estive envolvida com coisas, ou dando aula de forma voluntária, ou desenvolvendo projetos dentro da universidade, sempre fui muito ativa nesse sentido. E daí eu já ia entrar na parte de Roraima já. Mas tem mais coisas interessantes.
P/1 - Eu só queria voltar. Como foi esse estágio no Ministério Público, ainda nova?
R - Foi muito legal! Porque antes de entrar no ministério público, eu tinha estagiado numa revendedora de produtos para laboratório, eu tinha começado estagiar lá, trabalhava no serviço de atendimento ao cliente. E apesar de eu gostar do trabalho, o ambiente era péssimo. Então, eu pedia ajuda para minha supervisora, por exemplo, ela virava para mim e dizia: “Se vira, faz qualquer coisa aí”. E quando eu comecei a trabalhar, já era um desejo, eu queria ter começado a trabalhar oficialmente desde os meus quatorze, eu queria muito dinheiro para conseguir me virar, fazer os meus corres, sem ficar dependendo tanto da minha família. Mas só que daí sempre ficavam dizendo: “Não, continue estudando, continue estudando”. E foi quando eu comecei a faltar ao colégio, que daí falaram: “Não, já que você não está indo para o colégio, então vai arrumar um trabalho”. Eu falei: “Sucesso. Até que enfim consegui o que eu queria”. Só que daí foi isso, esse péssimo ambiente, eu fiquei acho que um mês e meio só trabalhando nesse espaço. E daí eu comecei a inventar desculpas para não ir mais. E daí quando deu certo o estágio no Ministério Público, eu fiquei muito ansiosa, porque foi uma surpresa total. Eu tinha feito a prova já fazia meses e não tinham entrado em contato, daí eu lembro que estava quase no final do ano e a minha irmã já estava em cima assim: “Não, porque você precisa de um trabalho, vai trabalhar no shopping, vai fazer qualquer coisa”. E daí eu lembro que eu tinha dito: “Não, amanhã eu vou pegar os meus currículos e eu vou levar nos lugares”. E daí no que eu acordo no outro dia, com uma ligação do Ministério Público dizendo que tinha dado certo o estágio. Daí eu falei: “Sucesso”. É isso, eu arrumei um trabalho. E foi muito legal, porque eu aprendi muito lá. Eu estagiei no setor de distribuição de inquéritos criminais, então os processos, eles vinham da delegacia e a gente distribuía entre as promotorias. Então eu tinha contato com várias promotorias diferentes, com várias formas diferentes de trabalhar, com várias perspectivas diferentes mesmo sobre como fazer justiça, isso foi muito rico para eu começar a entender como funcionava todo esse processo de fato, porque, nossa, o sistema judiciário é extremamente complexo. E estar próximo e trabalhando naquele espaço e entendendo, foi algo muito chave, que me desenvolveu muito enquanto pessoa, porque, tipo, sei lá, eu odiava falar no telefone, por exemplo, e ficar conversando com pessoas. E eu era obrigada nesse espaço a fazer isso, eu precisava atender telefone, eu precisava atender balcão. E daí foi muito bom porque eu fui aprendendo realmente a fazer essas coisas, porque no balcão do Ministério Público, aparece qualquer pessoa, vai aparecer o advogado de oitenta anos, que já devia ter se aposentado, mas até hoje não se aposentou, a pessoa que acabou de se formar, como desde a pessoa que está respondendo processo, quanto pessoas que são vítimas em processos. Eu lembro de uma senhorinha uma vez, apareceu falando: “Não, porque estão dizendo que eu matei o meu marido, mas eu não matei o meu marido, eu queria ter matado, mas eu não matei”. “Senhora, não diga uma coisa dessas em público, não fala que você queria ter matado uma pessoa aqui, isso pode ser perigoso para você”. Mas entendi. Foi muito legal também porque eu virei meio que uma coringa no setor, então eu fazia de tudo. E eu fazia tanto de tudo, que eu entendi às vezes mais de como realizavam certos processos, do que as próprias pessoas que trabalhavam lá, que entendiam na teoria como funcionava, mas não sabia na prática como fazer as movimentações. E daí eu peguei tudo, assim. E sempre que tinha um BO, um caso um BO, um problema dentro do trabalho, que boletim de ocorrência estavam sempre chegando, sempre que tinha algum problema geralmente me pediram para resolver, quando um processo sumia, ou alguma coisa assim, porque daí eu que tinha mais noção das movimentações e onde as coisas poderiam estar. Eu lembro que na época até comentaram, começaram a comentar sobre a possibilidade de me contratar como comissionada, para eu continuar trabalhando lá. De tanto que a galera tinha gostado de mim.
P/1 - Isso na escola ainda?
R - Quando eu estava no ensino médio.
P/1 - Essa foi minha experiência no Ministério Público. Na verdade, no Ministério Público, eu também lembro que no primeiro ano, eu fiquei muito focada em entregar as coisas que me pediam. Então, terminou o primeiro ano, as pessoas praticamente não me conheciam, porque eu não conversava com as pessoas do escritório. Daí no segundo ano, quando eu fui estudar no CEP e mudei um pouco a minha perspectiva, comecei a valorizar mais essas relações, interações com as pessoas. Daí foi quando eu conheci todas as pessoas que trabalhavam no local, fiz amizade com pessoas promotoras e tals. Juízes também. Que ficaram só naquela época, quem me dera ter esses contatos hoje. E daí foi quando fizeram uma despedida para mim do Ministério Público, uma festa. Daí no convite dessa festa, uma pessoa do Tribunal de Justiça recebeu esse convite, me ligou perguntando: “Ah, você está saindo do Ministério Público, o que aconteceu? Por que você está saindo?” Daí eu falei: “Não, é que deu os dois anos de contrato e não pode ser mais do que isso.” Daí perguntou: “Mas você já está cursando direito, como é?” “Não, eu estou no ensino médio, mas eu estou indo cursar direito”. “Assim que você entrar no curso me avisa que a gente consegue uma vaga para você aqui no TJ”. Daí eu: “Ah, sucesso”. Daí eu lembro que até demorou um tempo até eu conseguir os documentos para conseguir começar no TJ e a pessoa já estava até ficando meio ansiosa e me cobrando: “E aí, e aí, quando vai ser?” Deu certo, comecei a estagiar lá. Mas aí foi isso, eu passei seis meses, e vi que não era aqui que eu queria estar. Falei um pouco do curso de Filosofia.
P/1 - Se você quiser contar dessas aulas que você dava, projetos que você participava.
R - Eu comecei numa ONG, na real, que era o Instituto Sócrates, que daí eu dava aula de oratória. Engraçado, né, com nove anos de idade não conseguia pronunciar S e daí depois com dezenove, vinte, eu já estava dando aula de oratória. E daí eu comecei nesse espaço como monitora e professora de oratória, porque eu lembro que desde os meus dezesseis eu estava sempre fazendo cursos de administração e coisas, assim, de oratória, exatamente para conseguir trabalho. E daí isso acho que foi no meu primeiro semestre, daí para o segundo semestre eu já consegui um estágio dentro da própria universidade. Porque o curso de Filosofia na UFPR, ele é tanto de manhã, quanto de noite e é uma carga horária espelhada. Então, as mesmas disciplinas de manhã, são as mesmas disciplinas de noite. Daí o que eu fazia? Eu pegava as disciplinas do primeiro semestre de manhã e pegava de outros semestres de noite. Então, eu estava no meu segundo semestre, mas eu já estava fazendo matérias do último semestre. E daí foi quando eu conheci um professor de educação, que tinha aberto vagas para estagiar com ele. E daí como eu já estava fazendo a matéria, falei: “Não, vamos”. E daí eu lembro que teve até uma concorrência na época para esse rolê, mas eu lembro que deu bom e eu consegui. Daí foi isso. Eu fiquei até o final do curso participando desse estágio. Daí eu passei por diversos colégios de Curitiba, tanto pelo CEP, quanto outros. E foi muito interessante, porque daí, a mesma disparidade que eu tinha visto saindo de um colégio de bairro em Colombo e indo estudar num Colégio Estadual do Paraná, foi nessa época que eu comecei a ver a disparidade entre os próprios colégios do centro de Curitiba e de regiões mais afastadas, porque era isso, o CEP piscina, quadra poliesportiva, tudo, e nos outros colégios, mal tinha computador, mal tinha biblioteca. E a gente tá falando até de colégios antigos na cidade. E foi muito interessante também, porque daí eu comecei a ver diferentes formas de dar aula, diferentes projetos que a docência dentro do colégio aplicava. E comecei a participar ativamente desses projetos também. E o que mais me apaixonou na época foi Cine Debates, eu adorava organizar Cine Debates. Então, eu estava sempre procurando oportunidades ali de mostrar um filme, mostrar um curta, mostrar uma série e depois realizar um debate entre as pessoas. Isso foi muito legal porque eu comecei a aprender a colocar pessoas numa sala e tirar coisas dessas pessoas. Então, como fazer as pessoas conversarem uma com as outras, como tentar exprimir ideias das coisas que estão sendo apresentadas, como tentar casar as ideias das pessoas, porque às vezes uma pessoa está dizendo uma coisa de um jeito e outra pessoa está dizendo de outro jeito e elas estão falando a mesma coisa, só que elas não estão se entendendo, então essa mediação também, foi algo que eu fui aprendendo a fazer nessa época. E isso é muito chave, porque essas foram as habilidades que depois começaram a me garantir trabalho em outros lugares, principalmente em organizações da sociedade civil. Então, movimentos sociais, sindicatos, associações, centro comunitários, porque isso era a dificuldade que as pessoas tinham. Como que você faz uma reunião, como que você faz essa reunião ser produtiva para as pessoas, ser útil para as pessoas, proveitosa e tiram encaminhamento desses espaços? E foi o que eu comecei a fazer para os movimentos sociais, depois que eu me afastei da universidade. E foi em 2018 que eu consegui o meu primeiro projeto remunerado, trabalhando com isso. E daí eu falei: “É isso, esse é meu corre. Eu quero trabalhar com questões sociais”. E daí foi muito engraçado, que no ano de 2018, 2019, que eu comecei a me dedicar para isso, foram surgindo cada vez mais oportunidades em diferentes movimentos, então eu atuei tanto em movimentos feministas, quanto de redução de danos, movimentos pretos, movimentos indígenas, movimentos por transporte, por moradia, por trabalho. Até greve de nutricionista, uma vez eu tava. Não tinha ideia do que eu estava fazendo lá, mas eu estava lá para acompanhar, para ver como funcionava e como estava acontecendo. E isso foi muito legal. Daí também nessa época, surgiu a oportunidade de eu fazer uma vivência com uma equipe de comunicação de um sindicato de agricultura familiar. E daí foi muito legal, porque na agricultura familiar, são diferentes povos que são contemplados. Então, povos ribeirinhos, quilombolas, povos de terreiros, povos indígenas, povos campesinos, até povos periféricos também podem ser considerados, podem ser enquadrados dentro de agricultura familiar. E nessa vivência, eu passei mais ou menos um mês viajando entre São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, fui até a Bahia, parando de lugares em lugares, conhecendo diferentes movimentos pela agricultura familiar e diferentes lideranças.
P/1 - Mas isso foi um projeto seu?
R - Não, era algo que estava acontecendo e eu aproveitei para participar. E daí isso foi chave. Porque isso foi a virada para entender a filosofia brasileira. Porque no departamento de filosofia da UFPR, nem se fala sobre filosofia brasileira, filosofia é filosofia Europeia. Não existe filosofia no Brasil, eu cheguei a ouvir isso de doutores, no departamento de filosofia, no Brasil, que não existe filosofia brasileira. Interagindo com esses povos e com essas lideranças, foi que eu comecei a reparar como a academia está muito desassociada do que está acontecendo de fato no Brasil. E um debate muito importante que eu reparei, por exemplo, é sobre território. E esse era um conceito que em cinco anos de Universidade eu não tinha visto dessa forma. E essas pessoas falavam sobre território como a própria existência, então o território é essencial para você plantar, para você ter sua casa, para você ter espaço para fazer coisas. Então, o território é chave. E daí quando eu comecei a perceber isso e finalmente entender isso, vindo dessas pessoas, que deu uma chave muito grande para mim. E eu voltei dessa viagem virada, querendo mudar o mundo.
P/1 - Teve algum aprendizado que você carrega?
R - Deixa eu ver o que foi mais significativo. Entender o conceito de território, foi chave. E também entender diferentes formas de fazer coisas acontecerem. Porque cada uma dessas lideranças tinham diferentes estratégias para lidar com situações que surgiam. Então, povos de terreiro, tinha uma determinada forma de lidar. Da mesma forma que povos indígenas, por vezes, por estarem mais distantes da cidade, tem outras formas de lidar com conflitos. E ver essas lideranças apresentando essas formas e daí somando tudo isso, sabe? Me permitiu ver muitas coisas possíveis a serem feitas. Tanto de manifestações até coisas mais burocráticas, do tipo, ter uma associação, por exemplo, e o quanto um CNPJ de associação te ajuda a realizar várias coisas. Então, isso foi muito chave para me fazer perceber movimentos sociais e o terceiro setor como um todo de uma outra forma. Então, profissionalmente falando e filosoficamente falando, foi a chave para mim, esse momento. Ter viajado por esses territórios, conhecendo essas pessoas, isso foi muito rico. E quando eu voltei para Curitiba, eu até passei mais um tempo lá, mas daí eu comecei a refletir muito sobre como que minhas habilidades se desenvolveriam num outro território, num outro espaço. Porque em Curitiba, eu, da mesma forma de quando eu era mais nova eu não era muito fácil de interagir, nesse tempo que eu passei em Curitiba fazendo coisas, eu também vou arrumando inimizades, pessoas que acabam não gostando tanto de mim e tals, que às vezes até começaram a colocar barreiras para eu fazer coisas políticas na cidade. Então certos espaços eu não conseguia participar, porque tinha pessoa que me conhecia e me barrava de alguma forma. Então, eu fiquei refletindo sobre como seria estar num outro espaço. E daí foi quando eu fui para Roraima, no final de 2019. E daí eu fiquei lá em 2020. E lá, esse mesmo sindicato que eu tinha feito essa vivência, me contratou para coordenar um escritório lá, para atender demandas de todo o estado. Então, foi muito legal. Assustador, em um ponto. Porque é isso, eu já tinha toda essa experiência de outros espaços, que eu estava chegando lá, então eu já sabia de certos riscos, de estar lidando com agricultura familiar, porque tem muita grilagem, tem muitas situações. E tem muitas ameaças, inclusive a vida de pessoas. O Brasil é um dos países que mais matam pessoas ativistas ambientais. Então, eu já tinha essa noção quando eu fui para lá. Então, eu fui bem calma, sem sair arrumando qualquer briga, sem ficar comprando qualquer briga e mais uma perspectiva de fazer parcerias e tentar somar em organizações, colocar a galera para trabalhar junto.
P/1 - Mas dessa mesma temática?
R - Agricultura familiar. E daí foi muito interessante, porque ao contrário de muitos estados, a agricultura familiar lá era mais forte entre povos indígenas do que entre povos campesinos. Então, quando a gente falava de povos campesinos, a gente estava falando de umas duas mil a três mil pessoas e quando a gente falava de povos indígenas a gente estava falando de 50% do Estado. Então, eu comecei a atuar muito mais com esses povos. Imagina, uma pessoa do Sul, indo para o extremo norte do país, interagindo com pessoas de lá. Foi chave. Também foi um espaço que eu aprendi muita coisa. E eu sempre gostava de repetir para as pessoas que eu não tinha nada para dizer para ninguém lá, porque afinal eu era do sul e nem tinha crescido na região e que eu só estava lá para facilitar o debate entre as pessoas. Então eu raramente tomava uma decisão, assim, do nada. Eu estava sempre conversando com todas as pessoas do escritório, tentando juntar o máximo de informações possíveis, tentando sempre colocar movimentos em conjunto, organizações em conjunto, para trabalharem entre si e não tanto eu estar ali fazendo as coisas pelas pessoas. E foi muito legal essa experiência. Eu passei um ano lá. Aprendi muito. Passei por muitas situações. E tem até um caso muito interessante para mim, que foi… Quando eu cheguei lá eu tinha 26 e eu precisei contratar uma pessoa com o dobro da minha idade. E eu estava muito cabreira com isso, porque eu ficava pensando: putz, certeza que essa pessoa vai tirar com a minha cara, o dobro da minha idade. Essa pessoa vai querer cagar regras no escritório, com certeza, com certeza. E não. A pessoa mais nova do escritório eu tive mais problemas do que com a pessoa mais velha do escritório, que foi uma pessoa sempre muito respeitosa. E que eu fiquei muito feliz quando eu estava saindo do escritório, essa pessoa virou para mim… No final foi essa pessoa mais velha que ficou como a coordenadora, eu indiquei ela. E chegou para mim e falou: “Todo trabalho que você fez até aqui, no momento, a gente vai seguir, não tem nada que a gente vai mudar, porque você está no caminho certo”. E daí eu falei: “Sucesso, sucesso”. Não podia pedir mais nada além disso. E daí até hoje eu tenho contato com essas pessoas, de tempos em tempos a gente troca umas ideias e tals.
P/1 - E nesse tempo em Roraima, você lembra de alguma história, algum encontro muito marcante?
R - Nossa, eu esqueci o nome dela, agora, mas era uma Xamã Macuxi. E nossa, conversar com ela foi muito legal. Na verdade, diversas interações que eu tive. Teve uma associação que me mandou um ofício, com assinatura de três Wapichana, que são as representações políticas de lá, me convidando para participar de uma assembleia. Isso para mim, eu queria muito ter levado esse documento comigo depois que eu saí do escritório. Mas acabei não levando. Mas isso foi muito significativo para mim, foi muito legal estar nesse espaço, conversar com essa Xamã. Lá em Roraima também, eu cheguei a tomar a vacina do sapo, não sei se você já ouviu falar, a vacina do sapo é um ritual que a pessoa que vai aplicar, ela faz sete queimaduras, bolinhas de queimadura na sua pele e depois passa. Qual é o nome? É tipo uma cera, um óleo, que fica nas costas de um sapo, daí raspa as costas do sapo e passa nesses ferimentos. E tem até um vídeo do Repórter Espetacular, alguma coisa assim, com aquele Richard, que ficava se enfiando no meio do mato. Tem um vídeo dele tomando essa vacina e passando extremamente mal, muito mal. E realmente, a vacina, dizem que ela vai fazer você se sentir mal onde você tá pior, então se você tá com algum problema de estômago, por exemplo, você vai sentir o estômago, se você tá com alguma coisa na cabeça, você vai ter uma forte enxaqueca. E daí eu lembro que na época eu estava muito estressada, por causa do trabalho. Porque apesar de eu amar o trabalho que eu fazia e amar a equipe que trabalhava comigo, quem pagava as contas do escritório era um pessoal de Brasília, que era difícil de lidar, muito difícil. E daí essas pessoas me estressavam muito, porque ficavam sempre pedindo coisas cada vez mais absurdas. E daí eu lembro que quando eu tomei a vacina, eu senti o corpo inteiro tremendo. Eu falei: “Ah, não, é estresse com certeza”. É muito comum também as pessoas vomitarem quando tomam esse rolê e tal. Eu vomitei também. Até tomaria de novo hoje, porque, eu realmente… você se sente nova depois que você passa por essa experiência. E dizem que é muito bom para evitar picada de inseto e tem algumas coisas lá que dizem que é ótimo. Eu ouvi dizer que aqui em São Paulo aplicam, mas é algo tradicional de lá. Vamos ver o que mais tem de história legal. Tem ótimas histórias com a equipe, eram pessoas muito maravilhosas. Eu lembro a Diana, que ela veio da Venezuela. Eu lembro que ela sempre falava assim: “Eu não sou refugiada, eu vim porque eu quis”. Ela ficava se distinguindo das outras pessoas que tinham fugido da Venezuela. E ela gostava muito da Venezuela, tinha orgulho de ser venezuela e tals. Daí o Evandro, que era essa pessoa com o dobro da minha idade. De qual povo que ele era mesmo? Esqueci. Tinha Amelina, que era Macuxi. Ele era Wapichana. E tinha o Edu também, que era o advogado, que era cearense, mas estava morando em Roraima já fazia mais de dez anos. Nossa, todas as pessoas assim, eram muito diferentes uma das outras e sempre surgiram coisas legais. Com a Amelina, por exemplo, a gente adorava passar horas conversando, a gente parava o que estava fazendo e daí ela com mestrado em antropologia e eu filósofa, a gente começava a trocar ideia, ia longe, ia longe. Amelina é uma pessoa muito querida, até hoje a gente troca ideia.
P/1 - E por que foi uma escolha sua ter saído de lá? Como foi esses caminhos da vida?
R - Então, como eu tinha dito, essa organização que pagava as contas do escritório, era difícil de lidar. E daí tiveram algum problema com o INSS, que era uma parceria que tinham e era daí que vinha a grana para manter o escritório. E o INSS parou de enviar grana. E daí eu lembro que eu fiquei muito chateada na época, porque eu tinha uma política de transparência total. Então, se não tinha grana, chegava para a galera e falava: “Pessoal a gente não tem grana”. Mas com Brasília não era esse mesmo rolê, as pessoas ficavam dizendo: “Não, semana que vem a gente vai depositar, semana que vem, semana que vem”. E isso foi três meses que eu fiquei sem receber. E daí nessa mesma época, uma amiga me convidou para abrir o Instituto de Reflorestamento em Santa Catarina, um Instituto de Reflorestamento da Mata Atlântica. Daí eu falei, acho que é isso, acho que eu dei o meu tempo aqui, consegui reparar aqui, consegui me manter aqui, crescer aqui, consegui fazer coisas que eu queria. E nossa, no escritório a gente reescreveu políticas públicas assim, do Estado, a gente tinha uma equipe muito forte, as pessoas eram profissionais excelentes, a gente conseguia fazer uns trabalhos muito legais. Tanto que teve uma vez que tinham aprovado uma lei, se eu não me engano, que exigia ensino médio completo de todas as pessoas pescadoras, só que grande parte dos povos ribeirinhos, das pessoas, principalmente mais velhas, não tinham nem o fundamental completo. Então não tinha como a gente pedir para uma pessoa passar cinco anos estudando, três anos estudando que fosse, para ela poder voltar a pescar, porque era a atividade primária dela, era como ela tirava a grana. E daí eu lembro que a gente conseguiu uma parceria, na época, para dividir a responsabilidade da emissão da carteirinha com a federação de pesca, e daí a federação de pesca ficou responsável, tanto pela emissão da carteirinha, quanto garantir que essas pessoas continuassem estudando até se formar. E daí isso foi chave, foi chave. Porque é isso, as pessoas puderam continuar trabalhando. Eu lembro até que na época o presidente da federação chegou para a gente e falou: “Não, a gente precisa derrubar essa lei e tals”. Só que no Brasil para derrubar uma lei não é fácil. Então foi muito mais fácil fazer essa parceria com o órgão responsável pela emissão. Esse é só um dos exemplos, a gente fez várias coisas muito legais. Mas daí eu recebi esse convite, decidi voltar para o sul. Daí isso já foi no final de 2020.
P/1 - Pandemia?
R - A pandemia ainda estava bem forte nessa época. Mas eu lembro que já tinha até permitido as viagens de avião, tanto que para você chegar em Roraima, só de avião, porque de carro sem chance. E daí, em contexto de pandemia, eu fui morar no interior, para organizar esse projeto lá. E daí eu fui botando muita grana, o dinheiro que eu tinha ganhado no último trabalho, eu fui colocando nesse espaço para tentar fazer o rolê acontecer. Só que aí teve um grande problema, eu passei alguns meses nessa chácara, só que daí a chácara não estava no nome do pai da minha amiga e nem da minha amiga, que eram as pessoas que estavam morando lá na época, estava no nome da vó dela. E a avó dela, extremamente evangélica, preconceituosa, aproveitou um dia que ela tinha saído com o pai para ir ao médico, em Curitiba, para me expulsar de lá. Daí ela chegou me ameaçando, dizendo que eu tinha que sair. Ela diretamente não, foi o filho dela, mas com ela ali dando o aval. Dizendo que eu tinha que sair de lá, porque se não ia chamar a polícia para me expulsar, que eu estava invadindo o espaço. E eu falando: “Olha, conversa com tal pessoa, foi essa pessoa que me recebeu aqui, é com essa pessoa que eu tô desenrolando os corres, conversa com essa pessoa”. “Não, porque eu já conversei com essa pessoa, que não sei o quê”. E eu conversando com a pessoa no telefone e a pessoa: “Não, como assim? O que tá acontecendo? Isso não pode”. Mas aconteceu, e eu fui expulsa no meio da pandemia. E daí eu desandei total. Daí foi um momento difícil na minha vida.
P/1 - Então você tava começando a desenvolver um projeto e…
R - Deu tudo errado. Deu tudo errado. A grana que eu tinha colocado eu não consegui recuperar. E daí eu lembro que na época eu peguei empréstimo para conseguir me manter, comecei a procurar novamente por trabalho e tals. Mas aí no auge da pandemia, super difícil conseguir alguma coisa, principalmente em áreas sociais, estava ainda mais difícil conseguir algo. Entre diversas mudanças que eu precisei fazer nessa época, porque era isso, eu chegava num lugar e às vezes eu só conseguia passar um mês nesse local, daí precisava trocar. Daí morar com diferentes pessoas, diferentes problemas. Foi complicado. Foi bastante complicado. Mas nessa época eu comecei a estudar áreas relacionadas a tecnologia, então comecei a estudar Programação. Porque eu vi que nessas áreas que estavam com maior número de vagas. Eu preciso de um emprego, preciso me manter. Foi nessa mesma época também que eu cortei relações total com a parte da família da minha mãe. Então, era isso, uma travesti, nessa época eu já me identificava com uma autista. Então, uma travesti, autista, tentando se manter sozinha no mundo. Estudar Programação foi bem legal na época, porque eu já tinha estudado lógica na filosofia, então estudar programação estava até me dando uma utilidade para isso, me dando também perspectiva de pensar: Sucesso, vou estudar essas coisas, vou conseguir um trabalho, vou conseguir trabalhar de casa. Eu lembro que na época eu consegui também uma bolsa para estudar Engenharia de Dados. Daí eu comecei a estudar e daí nessa época surgiu uma vaga como assistente, aí como que era, assistente institucional, acho que era. Mas que foi num Instituto que trabalhava com qualificação para desenvolver projetos sociais. Então, era um Instituto que preparava pessoas para desenvolver projetos sociais. Daí eu comecei a trabalhar nesse espaço, consegui um trabalho Home Office, era uma empresa de São Paulo, eu trabalhava de Curitiba.
P/1 - Você tava na casa da sua mãe?
R - Não, nessa época eu estava morando de favor na casa de uma amizade. Daí eu consegui esse trabalho, daí na época eu até pensei em me mudar, daí essa amizade chegou pra mim e falou: “Não, acabou de liberar um quarto, fica aqui”. Estou nessa casa até hoje. Me perdi. Comecei a trabalhar neste Instituto… foi bom, porque finalmente eu tinha um trabalho. Não consegui pagar todas as dívidas que acumulei durante esse período, até hoje não paguei na verdade, mas esse trabalho foi o sustento, foi o que foi e me mantendo. E daí também foi muito legal, que através desse trabalho eu tive oportunidade de viajar para o Quênia, porque é o Instituto internacional que surgiu no Quênia. E daí acabou a pandemia, decidiram organizar um encontro de todos os escritórios pelo mundo no Quênia, eu tive a oportunidade de viajar para lá. E eu me demiti no Quênia, porque eu comecei a passar por muita transfobia com as pessoas da equipe. E daí eu até cheguei a conversar com as pessoas, com as lideranças da organização. E daí teve uma diretora nacional do Quênia, que ela, entre outras coisas, chegou para mim e falou: “Você é tão mais do que uma mulher trans, você não tem que se preocupar com isso, você não tem que ligar para transfobia, não sei o quê”. E eu olhando para cara dela, tipo: eu faço o quê então? Eu finjo que não está acontecendo, que não existe?! Mas eu já estava tão exausta, quando ela estava me falando essa coisa, que eu só falei, tipo: “Tá bom. Deixa”. Daí quando eu fui pedir ajuda também para a diretora do Brasil, que era a responsável direta por mim, também foi algo do tipo: “Ah, o que você quer que eu faça?” E daí eu fiquei: “Olha, você é uma pessoa adulta, você pode agir, você pode fazer alguma coisa em relação a isso”. A resposta dela foi que eu também era uma pessoa adulta, que eu também poderia lidar com a situação. Eu fiquei tipo: “Ok! Não rola mais eu trabalhar aqui”.
P/1 - Enquanto você tava lá?
R - Enquanto estava no Quênia. Os dois últimos dias da viagem foram bem difíceis. Mas aí voltando para Curitiba, depois da viagem, voltando para o Brasil, foi quando eu vi a vaga aberta na aTip, que é onde eu estou trabalhando hoje. E daí foi tudo para mim, porque era isso, eu já sabia que era uma pessoa autista, eu já sabia da dificuldade de encontrar espaços para trabalhar, porque era isso, eu tinha experiência coordenando um escritório e depois eu só consegui trabalho como assistente, não consegui nada além disso. E daí na aTip foi tudo, assim. E daí todo aquele conhecimento que eu tinha adquirido na tecnologia passou a fazer mais sentido estando nesse estado, porque aí a gente estava trabalhando com a inclusão de pessoas autistas no mercado de tecnologia. A gente quer expandir isso, a gente quer incluir mais pessoas, em outras áreas também, mas tem sido principalmente tecnologia, que é onde, hoje, está o maior número de vagas. E daí nossa, tem sido tudo para mim trabalhar na aTip, porque é isso, toda essa parte social, que sempre foi muito importante para mim, está acontecendo também. E essa parte de tecnologia, que era algo que eu comecei a estudar, comecei a me interessar cada vez mais e aplicou hoje, trabalhando como analista de experiência do cliente.
P/1 - Que ano foi isso?
R - Foi ano passado, 2021.
P/1 - E como funciona o seu trabalho, na prática?
R - Esses tempos eu pedi aumento e ganhei, então é isso, está avançando. Está avançando. E é muito legal, que no começo, eu estava muito focada em dar suporte para as organizações que contratavam os nossos serviços e hoje eu já estou trabalhando muito mais próxima da comunidade, por exemplo, trazendo essas pessoas para esses espaços. E para mim, eu sinto que faz muito mais sentido, exatamente por causa de toda essa experiência social que eu tive. E gosto muito de trabalhar com a comunidade. E apesar de alguns anos já me perceber como uma pessoa autista, me apresentar dessa forma e tals. Eu não tenho, hoje, muitas pessoas autistas ao meu redor, tenho pessoas mais diversas assim, mas autistas até que não tantas. Então estar próxima de uma comunidade autista, interagindo com outras pessoas autistas, vendo as dificuldades que essas pessoas têm, é chave assim, porque é isso, eu passo a me identificar também, eu passo a me ver também nessas pessoas. Como duplo recorte, tanto autista, como travesti. Não sei dizer se… me parece que isso faz com que as pessoas se sintam mais inspiradas na comunidade, eu acho isso muito legal, porque já tiveram pessoas da comunidade que chegaram para mim falando que se sentiam inspiradas comigo pelos comentários que eu faço na comunidade, porque é isso. Eu tento sempre estar dando esse suporte, então quando chega uma pessoa, por exemplo, dizendo: “Estou frustrada com meu trabalho, porque…” Teve uma pessoa recentemente, por exemplo, que tem especialização em Direito e o único trabalho que conseguiu foi quanto caixa de supermercado. E daí a pessoa estava dizendo: “Estou me sentindo muito frustrada com isso, porque é isso, eu passei anos estudando para agora estar trabalhando como caixa de um supermercado”. E daí eu falei: “Olha, o teu cargo não te define”. Da mesma forma como eu já tinha trabalhado até como coordenadora de um espaço, depois eu só consegui trabalhar como assistente. Então, se você precisa disso nesse momento, faça. Mas tenha em mente que você está procurando outras oportunidades e que o seu cargo não te define. Então, conselhos como esse, estou sempre distribuindo na comunidade. E daí dá para ver que as pessoas, elas gostam, de tipo, de ver uma pessoa autista, às vezes mais velha, às vezes com mais experiência, porque tem pessoas mais velhas que eu na comunidade. As pessoas têm recebido bem todos esses conselhos que eu tenho dado e tals. E daí é isso, eu também me sinto super acolhida e super a vontade para compartilhar cada vez mais coisas, interagir cada vez mais com as pessoas.
P/1 - Mas como funciona mesmo o seu trabalho? Você vai para o escritório sempre, trabalha de casa, como é o seu dia a dia?
R - Hoje Home Office total. Inclusive hoje eu estou em São Paulo, porque vou participar de uma palestra amanhã, daí eu combinei as coisas. Mas eu trabalho de casa. Basicamente. acordo de manhã, eu gosto de tomar banho, daí primeira coisa que eu faço, ligo o computador, vou tomar um banho, preparo um café, sento na frente do computador, começo a ler e-mails e mensagens que mandaram nas plataformas da comunidade, tento responder essas coisas. E daí a partir daí eu vou guiando o meu dia conforme as prioridades. Então se eu preciso escrever comunicações, eu começo a escrever comunicações. Se eu preciso entrar em contato com pessoas, eu me organizo para entrar em contato com pessoas. Mas hoje eu tenho feito… É até engraçado, que o Caio, que é o CEO da aTip, esses tempos falou que eu sou o braço direito dele, porque eu tenho feito um pouquinho de tudo dentro da aTip. Mas é isso, esse perfil generalista que eu falei antes, que é exatamente isso que me permite estar fazendo coisas diversas, porque eu tenho essas experiências diversas em diferentes áreas. Então, até quando eu tento estabelecer uma rotina para fazer algo mais específico, eu acabo quebrando isso, fazendo coisas diversas. Mas eu gosto muito disso, eu acho legal.
P/1 - Mas então você fala com o pessoal da comunidade, também com as organizações, você faz meio de campo de todo mundo?
R - Com pessoas interessadas em fazer parceria, com pessoas que estão passando por processo seletivo, do pitaco nos processos seletivos com as organizações, dizendo: “Ó, isso daqui pode não dar certo, esse daqui pode dar certo”. Então um pouquinho de tudo.
P/1 - Para ter mais inclusão?
R - Exatamente. Um exemplo, por exemplo, recentemente com uma das organizações, estavam propondo um desafio técnico para o processo seletivo. E daí eu falei: “Olha, esse desafio não está acessível, tem múltiplas interpretações, tem muitas formas de responder, isso vai gerar problemas para as pessoas. Então, é melhor fazer isso, isso, isso, isso, isso, isso e tals”. E daí fiquei super feliz quando seguiram as dicas, sucesso. Acessibilidade é tudo. Ideia muito legal, porque as próprias pessoas da comunidade chegam falando assim: “Nossa, o processo seletivo está bem definido, tem um cronograma certo, tem previsibilidade, tem acompanhamento, tem atenção”. As pessoas estão sempre elogiando essas coisas. E de fato, isso faz muita diferença, muita diferença. Porque nada mais frustrante do que você se candidatar para uma vaga e seis meses depois receber: a vaga foi congelada. Você passar seis meses sem entender o que está acontecendo, para onde que foi o seu currículo, na mão de quem está naquele momento, ou pior, passar por noventa etapas de um processo seletivo, para no final a pessoa chegar para você e falar: “Ah não, a vaga foi congelada”. “Não, a gente preferiu seguir com outra pessoa”.
P/1 - Você escuta essas histórias?
R - Nossa, eu já passei por isso várias vezes, nessa busca constante por empregos, principalmente nos últimos anos.
P/1 - E tem algum momento que você considera mais importante no seu trabalho?
R - No sentido do momento que passou?
P/1 - Não sei, pode ser atual, nesse trabalho na aTip, mas assim, de algum projeto, de alguma ideia que você deu e realmente houve alguma transformação, algum momento marcante para você?
R - Então, eu tenho sentido muita liberdade para praticamente todas as coisas que eu tenho proposto, a gente dá o encaminhamento. Então isso eu tenho achado chave. Algumas coisas que eu acho muito legais, são aTip chat, que é uma conversa entre pessoas da comunidade, que o Caio mediou primeiro e depois que ele mediu o primeiro, só eu que tenho mediado. E esse é um espaço muito legal, porque é isso, são pessoas autistas dentro de uma sala conversando sobre suas vivências. Então, é muito legal. E eu sempre falo, geralmente no final da conversa, que eu tenho acesso ao banco de dados da comunidade, então eu consigo ver todas as pessoas que estão lá, as transformações, as coisas que fizeram. Mas é muito diferente de você acessar um banco de dados e você ver letras e números, e você entrar numa reunião com uma pessoa e você começar a trocar ideia com ela. E é muito legal, porque eu vejo, apesar da similaridade entre as pessoas, são pessoas muito diferentes umas das outras. Por vezes assim, sei lá, eu já ouvi de pessoas nesse espaço, por exemplo, que a pessoa queria ter o seu próprio negócio, queria enriquecer, queria trazer mudanças estruturais para a sociedade. Da mesma forma que eu ouvi de pessoas que ela não queria nada além de trabalhar no Walmart organizando caixa, organizando prateleiras, que esse era o sonho da pessoa, só que ela só não fazia isso porque não pagava bem o suficiente para ela conseguir se manter. E daí isso é muito legal, porque é isso, é uma comunidade muito diversa, com pessoas muito diferentes umas das outras, apesar da similaridade. E daí é muito interessante ver o relato das pessoas reclamando das mesmas coisas em áreas muito diferentes, às vezes. Então, tem sempre a reclamação: “Ah, muito difícil de entender o que as outras pessoas estão falando, as pessoas não são objetivas o suficiente”. Não que toda pessoa autista tem essa dificuldade específica, mas é comum dentro da comunidade.
P/1 - E o que você projeta para o futuro, para ter mais mulheres nessa área de Tecnologia?
R - Eu sempre priorizo a candidatura de mulheres para as oportunidades que surgem na aTip, quando eu tenho algum controle, às vezes não tenho. Na contratação direta de pessoas, por exemplo, eu não tenho, mas se a gente recebe alguma bolsa para algum curso, algum evento, eu sempre priorizo a candidatura de mulheres. Eu acho que isso seria a chave, no total, se organizações também priorizassem a candidatura de mulheres ao invés de priorizar mulheres na hora de demitir, como algumas organizações fazem. Eu reparo ainda essa disparidade no mercado de trabalho, principalmente de tecnologia, tem muito mais homens e tem muito mais gente branca do que outros recortes. Então, isso precisa mudar. É necessário que isso mude. Porque é até aquilo… aí, não sei se eu falei aqui ou na que eu participei mais cedo. Tem uma frase muito famosa no movimento de pessoas com deficiência, que é: Nada para nós, sem nós. Isso vale para qualquer público que você vai falar. Então, não adianta você querer construir coisas para um público de pessoas, se essas pessoas não estão envolvidas. Então, não adianta hoje, a gente querer pensar em novas tecnologias ou em novos produtos em tecnologia, se a gente não inclui toda diversidade brasileira dentro desse espaço de conversa. Então as empresas precisam contratar pessoas indígenas, precisam contratar pessoas pretas, precisam contratar mulheres, precisam contratar travestis, precisam contratar pessoas não binárias. E precisam contratar pessoas que estão em mais de um recorte desses, porque as pessoas não são caixinhas, as pessoas têm as suas diversidades e multiplicidades, é isso que precisa ser valorizado dentro das organizações, ao invés de esperar pessoas num formato específico. E eu tenho reparado isso acontecer com cada vez mais frequência e até já vi textos no Linkedin, falando tipo: você precisa estudar para entrar na empresa, você precisa ser de tal forma para conseguir trabalhar na empresa. Ou empresas divulgando vagas para pessoas júnior, que estão em início de carreira, mas na verdade estão pedindo pessoas com cinco anos de experiência. Então isso não faz sentido. As organizações precisam ter em mente que elas precisam começar a colher pessoas e desenvolver lá dentro da organização. E não ter medo também que essa pessoa saia da organização, porque está tudo bem também. Inclusive, essa saída da pessoa pode ser para uma outra organização que pode até fortalecer o trabalho daquela que está ali. Então, eu acho que falta essa mentalidade nos Recursos Humanos ainda, de que as pessoas, elas precisam ser qualificadas quando elas entram no emprego e não qualificadas para entrar no emprego, sabe? Porque cada organização tem… e eu reparo nisso até pelas várias que eu passei até hoje, cada organização tem a sua cultura interna, tem as suas tecnologias, tem as suas formas de fazer as coisas, e esperar que uma pessoa entre já sabendo esse funcionamento interno, não faz sentido. Você precisa preparar a pessoa depois que ela entra. Isso é algo muito legal também dentro da aTip, porque… Eu recentemente decidi ingressar novamente no ensino superior para tirar o diploma, então eu comecei a fazer um Tecnólogo de Processamento Gerenciais. E o Caio, que é o CEO da aTip, se propôs a pagar esse curso. Então eu achei isso tudo. Porque é isso, ao invés de me cobrar o ensino superior, ele falou: “Tá aqui ó, vai lá e faça, então. Consiga o ensino superior”. Achei isso chave. Essa mentalidade que as organizações deveriam ter. Então, beleza, você entrou na organização, você não tem essa qualificação, a gente investe em você, a gente te ajuda a ter essa qualificação. E algo que me deixa muito chateada em vagas, é quando eu vejo: “Contratamos pessoas”. Como é que é? “Buscamos pessoas qualificadas indiferente de orientação sexual, gênero…” Só que isso pressupõe que todas as pessoas tiveram as mesmas oportunidades durante toda a vida, isso faz zero sentido, porque as pessoas não têm as mesmas oportunidades. Se você pega o currículo de uma travesti e você pega o currículo de um boy Cis, branco, privilegiado, que teve tudo na vida, e você quer comparar essas pessoas, muito provavelmente vai dar uma disparidade muito grande. Não que não existam travestis qualificadas, doutoras, conheço até, existem essas pessoas, mas quando a gente fala da maior parte da comunidade, não é essa a realidade da maior parte das pessoas. Então é isso. Quando você coloca esse tipo de coisa, você está excluindo a maior parte das pessoas daquele recorte que você diz que está querendo incluir. Até quando a gente fala com mulheres de mais recortes, mulheres periféricas vão ter muito mais dificuldades de acessar certas coisas, do que mulheres brancas que cresceram no meio de um centro urbano, por exemplo. Então é isso. Isso tem que ser chave e essa tem que ser a mentalidade: Vamos pegar pessoas e qualificar essas pessoas para trabalhar. Porque é isso. Uma pessoa que foi qualificada por uma organização, por mais que passe por situações ruins dentro daquela organização, vai continuar tendo alguma admiração de alguma forma, porque se a pessoa só passa por coisas ruins dentro da organização, aí tenha certeza que vai virar as costas e nunca mais vai olhar para trás.
P/1 - E qual a importância de ter mais mulheres? Ter mais diversidade na área da tecnologia, qual a importância disso para você?
R - O que eu comentei do Nada para nós, sem nós. É essencial ter mulheres e todos os recortes possíveis dentro de projetos. Qual é a pergunta mesmo, desculpa!
P/1 - Qual é a importância de ter essa diversidade nessa área?
R - Isso traz riqueza de fato para a organização, porque é isso, são diferentes perspectivas sobre o problema e diferentes perspectivas apresentam diferentes soluções. Então, se você quer formas diferentes de perceber problemas, você precisa ter equipes diversas. Porque se você tiver uma equipe cheia do mesmo recorte, essas pessoas vão dizer a mesma coisa e vão chegar na mesma conclusão. E daí você vai fazer todo um trabalho em cima disso para no final dar errado, porque essas pessoas fizeram um produto só para si. Então, esse é o mais importante de ter equipes diversas. E só aí que você vai estar contemplando um público mais amplo do que aquele que historicamente foi sempre mais beneficiado no Brasil, que são homens brancos, CIS, com mais cara de europeu possível. Essas são as pessoas privilegiadas e beneficiadas na maior parte dos produtos .
P/1 - E você… acho que você já passou rapidamente, mas se você quiser explorar um pouco mais isso… preconceitos por ser uma mulher travesti, autista.
R - Nossa, isso é até uma vez que eu levei para a comunidade, principalmente nesse rolê de quando a pessoa trouxe que mesmo com a especialização só conseguiu o trabalho como caixa. Eu apresentei para essa pessoa… As pessoas neurotípicas, ou seja, pessoas que não possuem uma neuro divergência, elas subestimam muito pessoas autistas e pessoas com outros tipos de deficiência também. E é a mesma coisa por ser travesti, as pessoas subestimam muito a minha existência, o que eu tenho a compartilhar, o que eu tenho a acrescentar. E isso, às vezes, em certos espaços, fica muito evidente, porque é isso, hoje eu estou num espaço que praticamente tudo que eu proponho, vai sendo levado para frente, mas eu já reparei em diversos espaços em que eu dizia coisas e as pessoas ignoravam, eu já fui boicotada em muitos espaços, em que eu participei de movimentos sociais, de estar facilitando uma reunião, por exemplo, uma pessoa atravessar e não me deixar mais continuar falando na reunião, ou eu dizer: “Pessoal, vamos começar a falar de tal pauta agora”, e a pessoa: “Não, não, a gente só precisa continuar conversando algumas coisas”. E passar duas horas numa pauta que nem era tão relevante, só para não me passar a vez, para eu poder falar, entendeu? E por que essa pessoa fez isso? Por machismo, por transfobia, por capacitismo, diversas coisas são possíveis. Mas é isso, é comum essas pessoas neurotípicas, homens, CIS, brancos, subestimaram outras existências, o que essas pessoas têm acrescentar, o que essas pessoas têm apresentar. E isso é péssimo. E é muito ruim estar nessa posição também, de você estar tentando fazer alguma coisa e ter uma pessoa ali te barrando. Tem até o Amartya Sen, que é um filósofo indiano, ele tem um conceito muito interessante sobre liberdade, que ele vai citar três exemplos, um deles é uma pessoa que está dentro de casa e tem um segurança na porta impedindo de sair, esse seria o exemplo de nenhuma liberdade. Porque por mais que a pessoa queira sair, ela não tem a possibilidade, porque tem uma pessoa na porta impedindo ela de sair. Uma outra situação, seria a pessoa estar dentro de casa, com uma pessoa segurança na porta, mas ela não quer sair, isso também é um problema, porque caso a pessoa venha mudar de ideia e queira sair, ela não pode, porque tem uma pessoa que está impedindo, por mais que naquele momento ela não esteja exercendo a liberdade dela. A situação ideal é não ter essa pessoa na porta e a pessoa ter liberdade de sair ou não sair se ela quiser ou não. Então é isso. Hoje eu sinto que muitos espaços têm essa pessoa na porta, dificultando essa saída para mulheres, para travestis, para pessoas trans, para pessoas não binárias, para pessoas com deficiência. Tem sempre essa pessoa na porta, por mais que você queira sair, essa pessoa vai sempre impedir. E essa pessoa específica, pode ser qualquer pessoa, às vezes está na família da pessoa, entendeu? Como eu já ouvi… Esses dias mesmo, eu fui comprar uma mala, eu comecei a conversar com a vendedora e daí eu comentei que eu trabalhava numa organização de inclusão de pessoas autistas e ela começou a falar sobre o sobrinho autista: “Ah, porque ele não falava.” Tudo bem. Crianças autistas, é comum algumas não serem oralizadas. “Mas daí eu comecei a rezar e Deus colocou voz na boca da criança. Então, agora ela vai poder fazer faculdade, ela vai poder casar, ela vai poder arrumar um trabalho.” E assim, nem entre pessoas neurotípicas tá todo mundo casando, nem entre pessoas neurotípica todo mundo vai para universidade, porque colocar essa pressão numa criança que até ontem não estava nem falando, porque? Tipo, se a pessoa quiser fazer isso, esteja ali de apoio, de esse suporte, mas não fique colocando essa pressão de que é isso que essa pessoa precisa fazer. Porque por mais que ela saia da porta, quando ela sai da porta, você está dizendo para ela: É esse caminho que você tem que seguir. Você não está dando a possibilidade da pessoa fazer o que ela quiser, se desenvolver enquanto pessoa, descobrir sua própria vida. E é isso. Quando eu era mais nova, por exemplo, como eu comentei, não tinha ideia do que eu queria fazer, todo o caminho me parecia um caminho possível. E é isso que eu quero mostrar para as pessoas também, que todo caminho é um caminho possível se você quiser segui-lo, se você quiser tirar essa pira. E esse que é importante, estar tirando sua pira, você estar se desenvolvendo enquanto pessoa, se construindo, se descobrindo, fazendo coisas. Não precisa ter essa pressão de você precisa casar, você precisa terminar a faculdade, você precisa começar a trabalhar com tantos anos, você precisa dedicar vinte anos da sua vida numa corporação para você poder se aposentar e ter uma grana. Se for isso que você quiser fazer, vai. Mas se não for, tá tudo bem também. O mundo é tão grande e complexo, confuso, com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, por que tem que seguir um padrão? Porque não estar fora do padrão também está tudo bem também. Até esqueci da pergunta.
P/1 - Olhinhos brilhando! Se você quiser comentar, como foi esse processo de se entender e se aceitar autista, mesmo não tendo diagnóstico… Travesti, enfim…
R - É muito interessante, porque o nome Pyara, eu descobri ele quando eu tinha treze anos. Eu estava pesquisando pela palavra amor no Google, em diferentes línguas, e daí quando eu procurei no Híndi, apareceu Pyara. E eu comecei a utilizar Pyara em diferentes personagens da época, que eu gostava de jogar RPG. E daí foi nessa viagem para Roraima, quando eu consegui me afastar de influências daqui, tive oportunidade de realmente me perceber enquanto uma pessoa em outro território, em outro espaço, sem influências de tantas pessoas ao meu redor, que eu passei a estudar mais também sobre o assunto, que eu comecei a me identificar, na época, como uma pessoa não binária. Mas daí é muito interessante, porque quando eu comecei a refletir mais sobre a minha infância, nessa perspectiva, eu comecei a identificar várias coisas que já estavam lá. Por exemplo, quando eu tinha oito anos de idade, eu não quis mais cortar o meu cabelo, eu quis ter o cabelo comprido. Isso foi uma briga na família gigantesca, porque daí: “Não, você precisa cortar o cabelo, você precisa cortar o cabelo”. E eu fui deixando o meu cabelo crescer até os quatorze. Mas eu lembro que teve uma conversa, daí o meu cunhado me levando de carro para igreja, e daí ele começou a falar: “Está ficando feio o teu cabelo, você está parecendo uma menina, as pessoas estão te confundindo, isso não é bom para você, você tem que virar homem”. E de tanto preconceito que eu já sofria naquela época, mas esse discurso, eu me fechei completamente, eu falei: “É isso, eu preciso ser um homem, eu tenho que começar a agir que nem um homem, eu tenho que agir dessa forma”. E foram anos extremamente infelizes da minha vida, por mais que outras coisas boas estivessem acontecendo, em trabalho, estudo, eu me olhava no espelho, eu não me via, eu não me reconhecia. E daí eu ficava sempre pensando formas de mudar o corpo, para ver se eu conseguia me ver, sabe? E não rolava. Daí quando eu comecei a estudar sobre a não binaridade, consegui entender mais sobre isso, as coisas começaram a fazer sentido. E daí eu comecei a pedir para as pessoas me tratarem no feminino. E isso foi fazendo cada vez mais sentido para mim, ao ponto que hoje, quando eu me olho no espelho, eu me vejo, sabe? E eu me vejo feliz. Eu me vejo como eu gostaria de ser. E isso é tudo para mim. E foi muito importante, porque foi exatamente nesse momento em que eu consegui me afastar de todas pessoas ao meu redor que estavam sempre comendo a minha cabeça, sempre falando como eu tinha que ser, quem eu tinha que ser, como eu tinha que viver. E esse afastamento foi tudo. Foi um momento que eu consegui, realmente, me perceber e passar a me sentir quanto pessoa e passar a saber que sou realmente eu agora, sabe? Daí foi muito engraçado, porque interagindo com pessoas que tinham me conhecido durante esses dez anos que eu fiquei fingindo ser um homem, que algumas pessoas diziam: “Nossa, eu não esperava”. Enquanto outros diziam: “Eu já imaginava”. E eram essas pessoas que diziam: “Eu já imaginava”, que eram as pessoas que eu me sentia mais confortável. Enquanto isso, com as outras pessoas eu ficava performando mesmo, eu ficava fingindo ser alguém que eu não era. E nessa mesma época também, foi quando eu comecei a estudar sobre o autismo. E daí foi muito legal, porque muitas coisas começaram a fazer sentido sobre as crises que eu tinha, porque, por exemplo, uma coisa muito comum no autismo é o shutdown e o meltdown, eu não conheço como descrever isso em português, mas esses são os conceitos geralmente usados. O shutdown é quando você chega no momento de tanta sobrecarga, que você só desliga, que você para de funcionar. Então eu posso até estar no meio de pessoas, mas eu não vou estar interagindo, eu não vou estar conversando, eu vou estar quieta, sem conseguir fazer nada. E eu sempre gostei de fazer muitas coisas. Então tinham dias que eu acordava de manhã e eu não conseguia levantar da cama e eu não entendia porque isso acontecia. Eu já sabia que eu era depressiva, há muito tempo, mas é muito diferente uma depressão, você não conseguir levantar da cama por tristeza e você não conseguir levantar da cama porque você não sabe o que é. E daí eu ficava, tipo, mas não é a mesma coisa, tem algo diferente. Porque às vezes era um dia que eu ficava na cama e eu não conseguia levantar. E daí quando eu comecei a estudar sobre autismo, tudo isso começou a fazer mais sentido, Então, porque eu ficava tão ansiosa quando eu ia participar em espaços públicos, porque eu ficava tão cansada depois, porque que eu tinha dificuldade de entender, às vezes, expressões corporais, feições que as pessoas fazem, tons de voz, porque que eu tinha tanta dificuldade de comunicação. Quando eu comecei a estudar sobre o autismo, tudo isso começou a fazer sentido. E daí, é muito engraçado, que eu tenho amizades, que viram para mim hoje e dizem que eu sou a pessoa que eles conhecem que mais se conhece, que mais se entende em processos, em coisas ruins e em coisas boas. E é muito por causa disso, de eu ter começado a estudar, de conseguir me entender dessa forma. E também de fazer parte de comunidades, porque nessas comunidades que você vê outras pessoas com os mesmos problemas, falando das mesmas coisas, as coisas passam a fazer sentido, você repara que você não está sozinha, que tem mais pessoas passando pelo mesmo que você passa. Então, isso foi chave, foi chave. Tanto do autismo, quanto de ser uma travesti, tipo, agora a vida faz sentido, sabe? Eu consigo me ver no mundo de fato. E por mais que todos os sonhos que eu tinha quando criança, caminhos possíveis a seguir, grande parte deles eu não tenha conseguido, eu ainda me sinto muito feliz com quem eu sou hoje. Tipo, é isso. Eu estou com vida numa sociedade que foi planejada para não permitir a minha existência. E eu estou com vida. Eu estou aqui, e eu não vou embora cedo, não pretendo ir. E é isso (risos).
P/1 - Eu aceito quem eu sou, com amor!
R - Exatamente!
P/1 - Você tem algum relacionamento?
R - Eu sou não monogâmica, então…
P/1 - Tem alguns relacionamentos?
R - É! Mas eu também sou uma pessoa ace, assexual. Então sexo para mim não é importante numa relação, o que é importante pra mim é apoio mútuo, troca de ideia. E daí isso eu tenho com algumas pessoas. Mas quando você perguntou mais cedo, por exemplo…
P/1 - Estado civil?
R - Estado civil. Infelizmente a não monogamia não é aceita, porque senão eu diria que eu estou indisponível, por exemplo, porque é isso. O trabalho e o estudo já estão tomando toda a minha vida. Ter mais relações além do que eu já estou tendo no momento, é muito para mim. Inclusive, até com as pessoas que eu me relaciono, às vezes, eu demoro meses para mandar um “oi”, ver como que a pessoa está. Felizmente são pessoas que entendem isso em mim. Tá tudo bem para elas se relacionarem comigo dessa forma. Então, sucesso. Achei pessoas legais.
P/1 - Além do trabalho, o que você gosta de fazer de lazer, tem algum hobby?
R - Eu acho que eu falei no off, que eu adoro jogos eletrônicos, eu tiro uma pira forte, RPG. Gosto muito de jogos de sobrevivência, tira uma pira forte. Mas para além disso, eu gosto de ir em atos, participar de movimentos sociais, gosto muito, acho muito importante, inclusive. Gosto muito de assistir filmes, séries, nossa hiper foco total, assim, às vezes eu viro um final de semana maratonando séries, não tenho problema nenhum com isso, é até algo que eu gosto de fazer. Inclusive, hoje eu estou morando com uma pessoa que tem um projetor, aí já era. Projeto na parede e fico, fico, tempos. Também gosto muito de sair com amizade e tals, dar volta na rua, parque, ver exposições, peças de teatro, gosto bastante dessas coisas. Apesar de não estar fazendo muito nos últimos tempos. Essas são as coisas que eu gosto de fazer.
P/1 - Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Trabalho sempre foi muito importante para mim. Sempre valorizei muito estar trabalhando. Eu fico refletindo nesse importante, se é algo maior, menor, sabe? Eu gosto muito de ver as minhas amizades bem, tanto que tento estar sempre fortalecendo as pessoas que eu conheço de diferentes formas. Gosto de ver pessoas fazendo coisas que gostam, gosto mais ainda quando eu dou um empurrãozinho para a pessoa, aí fico super feliz, por mim e pela pessoa, por eu ter dado um empurrão e a pessoa por ter feito o rolê. É isso. Muito importante para mim, hoje, é estar participando de espaços, construindo coisas coletivas, estar fortalecendo pessoas, apresentando caminhos para as pessoas. Essas são as coisas que eu considero importantes de serem feitas. E que eu incentivo sempre as pessoas a fazerem também.
P/1 - E quais são os seus maiores sonhos?
R - Eu acho que o único sonho que eu mantive de criança, é trazer mudanças sistêmicas, é fazer grandes transformações na sociedade. Isso que eu quero fazer. Como exatamente eu vou fazer isso, não tenho ideia, eu realmente não tenho ideia. Já pensei em muitos caminhos possíveis, já lidei com diversas barreiras entre esses caminhos. Mas é isso, assim, eu gostaria muito de ver, não só o Brasil, mas o mundo como um todo, um lugar mais inclusivo para diversidades, como um todo, sabe? Tipo, quero muito conseguir viver isso ainda com vida. Não gosto dessas pessoas que ficam dizendo: “Ai, nossa” - citando “1984”, de George Orwell - “nós somos os ossos, nós somos o pó da revolução”. Eu não acho que é isso, eu acho que as coisas são possíveis de serem mudadas hoje, a gente só precisa se movimentar para fazer isso acontecer, porque recursos existem, inteligência para fazer isso existe, tecnologia existe, é fazer. É isso que eu quero fazer da minha vida, fazer com que isso aconteça.
P/1 - O que você acha que será o seu legado para as próximas gerações? O que você espera?
R - Essa entrevista já é alguma coisa, com certeza. Mas eu tenho plano de escrever livros. E eu acho que esse impacto que eu vou deixando na vida das pessoas mesmo, porque é isso, toda vez que uma pessoa da comunidade chega para mim me agradecendo por alguma coisa, fico sempre muito feliz, me sentindo realizada, por mais aleatório que seja. Esses tempos, por exemplo, teve uma pessoa que estava me agradecendo porque eu curti a publicação de uma pessoa autista no LinkedIn e daí apareceu para essa pessoa. E daí ela estava me agradecendo, porque ela estuda na mesma Universidade que essa pessoa dá aula e as duas são autistas. E daí ela estava no processo de produzir o TCC e estava tendo dificuldade com a pessoa, orientadora, e daí agora está trabalhando com essa outra pessoa autista, que é da mesma universidade. Então, sabe? Porque eu curti uma publicação no Linkedin, agora essas pessoas estão em contato, entendeu? Isso é chave. Porque é isso, duas pessoas autistas produzindo conhecimento em conjunto. E a pessoa ter me agradecido, porque teoricamente fui eu que coloquei elas em contato. Não fiz nada, eu só curti uma publicação. É chave. Gosto muito disso. Teve uma outra pessoa que recentemente também disse que lembrou de mim, porque tem uma criança em casa de cinco anos e a criança começou a apresentar dissidência de gênero, foi designada como masculina quando nasceu e agora se identifica como uma mulher, como uma menina, no caso. E daí a pessoa chegar para mim falando: “Ah, a criança começou a se apresentar dessa forma para a gente, eu lembrei de você”. Até me pediu dicas de como lidar com a situação. “Vai estudar, vai estudar, e procura outros familiares de crianças trans, porque você vai precisar de apoio”. No Brasil, ser uma criança trans já é extremamente difícil, ser uma criança trans autista, é ainda mais complicado. Então, é isso. Com certeza essas pessoas vão precisar de apoio.
P/1 - Você gostaria de acrescentar algo mais, alguma história que eu não tenha te perguntado? Algum momento, algum encontro?
R - Agora eu não tô lembrando de nada. Mas também já falei tanto…
P/1 - Como foi dividir um pouco da sua história com a gente hoje?
R - Não esperava que eu fosse falar tanto. Também não esperava que eu fosse conseguir falar tanto. Eu estava muito ansiosa antes de começar. Mas eu gostei bastante da experiência, foi interessante e até recomendo para as pessoas fazerem.
P/1 - Oba! Para finalizar, qual é a sua primeira lembrança da vida?
R - Essa é engraçada, porque eu acho que eu devia ter uns dois anos ou três anos. Eu tinha uma tartaruguinha, que tinha uma rodinha embaixo dela, assim.
P/1 - De brinquedo?
R - Aham, detalhe importante. E daí eu tinha o costume de pegar essa tartaruga e colocar dentro da caixa de som, que tinha em casa, tinha um buraco para o som sair, daí eu ficava colocando a tartaruga dentro. E daí eu colocava um pouquinho para dentro e eu conseguia tirar. Teve uma vez que eu coloquei um pouco mais profundo, eu não consegui mais tirar. E eu lembro de alguns anos depois, quando eu já estava com cinco anos de idade, que daí eu tinha força suficiente para baixar a caixa, saiu a tartaruga. E daí eu fiquei: “Nossa”. E daí essa lembrança ficou na minha cabeça, por causa disso, foi algo que eu tinha feito com uns dois, três anos de idade e alguns anos depois isso voltou para minha vida. Essa é a primeira lembrança que eu lembro.
P/1 - Querida, muito obrigada por dividir um pouco, recortes da sua história com a gente. Foi muito gostoso passar a tarde. Enfim, quando tudo estiver pronto, obviamente, a gente manda, você vai ter acesso a tudo. Mas quero te agradecer muito. Foi muito bom.
R - Obrigada pela condução!
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