Entrevista de Marcelo Silva Falcão
Entrevistado por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 18/10/2021
Projeto Porto e Cidade - BTP/Ultrcargo
Entrevista número: PCSH_HV1084
Realizado pelo Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Marcelo, para começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Marcelo Silva Falcão, nascido em 28 de outubro de 1971. Nasci em Santos.
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
R – Edson e Medianeira.
P/1 – O que eles fazem, com que eles trabalham?
R – Os meus pais já são falecidos, né? Meu pai sempre foi portuário, a vida toda. Começou bem cedo na área do porto. Começou na estiva e depois ele passou para a antiga CDS, que se transformou depois em Codesp e hoje é a autoridade portuária. Trabalhou por mais de trinta anos nessa atividade e a minha mãe sempre foi do lar.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Meus pais eram bem diferentes. Meu pai era uma pessoa mais rígida. Sem perder a mão, mas era rígido com os filhos na questão de educação, de estudo. A minha mãe sempre, acho que é natural da mãe, mas passava a mão na cabeça dos filhos, escondia algumas coisas nossas para não ter problema com o pai, quando chegava do trabalho. Mas boa criação, meus pais ensinaram bastante questão de valores, princípios, então nós tivemos uma boa formação educacional.
P/1 – E como era sua relação com eles?
R – Era bem tranquila. Eu, como sempre fui um garoto caseiro, sempre fui muito preso ao estudo e a televisão, não era aquela criança de estar muito na rua, diferente dos meus irmãos, então era bem tranquilo. Eu participava mais com minha mãe do que com meu pai, então eu adquiri algumas habilidades com a minha mãe, de cozinha, cuidar da casa, ser uma pessoa do lar. Hoje isso está muito em moda, o homem vive sozinho, então ele tem que saber fazer algumas coisas, então a...
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Entrevistado por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 18/10/2021
Projeto Porto e Cidade - BTP/Ultrcargo
Entrevista número: PCSH_HV1084
Realizado pelo Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Marcelo, para começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Marcelo Silva Falcão, nascido em 28 de outubro de 1971. Nasci em Santos.
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
R – Edson e Medianeira.
P/1 – O que eles fazem, com que eles trabalham?
R – Os meus pais já são falecidos, né? Meu pai sempre foi portuário, a vida toda. Começou bem cedo na área do porto. Começou na estiva e depois ele passou para a antiga CDS, que se transformou depois em Codesp e hoje é a autoridade portuária. Trabalhou por mais de trinta anos nessa atividade e a minha mãe sempre foi do lar.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Meus pais eram bem diferentes. Meu pai era uma pessoa mais rígida. Sem perder a mão, mas era rígido com os filhos na questão de educação, de estudo. A minha mãe sempre, acho que é natural da mãe, mas passava a mão na cabeça dos filhos, escondia algumas coisas nossas para não ter problema com o pai, quando chegava do trabalho. Mas boa criação, meus pais ensinaram bastante questão de valores, princípios, então nós tivemos uma boa formação educacional.
P/1 – E como era sua relação com eles?
R – Era bem tranquila. Eu, como sempre fui um garoto caseiro, sempre fui muito preso ao estudo e a televisão, não era aquela criança de estar muito na rua, diferente dos meus irmãos, então era bem tranquilo. Eu participava mais com minha mãe do que com meu pai, então eu adquiri algumas habilidades com a minha mãe, de cozinha, cuidar da casa, ser uma pessoa do lar. Hoje isso está muito em moda, o homem vive sozinho, então ele tem que saber fazer algumas coisas, então a relação era muito tranquila. Meu pai era muito mais a respeito, assim, de futebol e estudo. Ele era mais um orientador.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Nós somos em quatro irmãos, eu sou o segundo de quatro. Tenho uma irmã mais velha e depois de mim tem mais um irmão e uma irmã caçula. Nós somos em quatro.
P/1 – E como era a relação de vocês, na infância?
R – Olha, com as irmãs bem tranquilo. A irmã caçula sempre foi a nossa xodozinha, até hoje, com o falecimento dos meus pais eu me tornei a referência da família. A caçula, apesar de já ser uma mulher, já ter filhos, inclusive, está sempre muito próxima a mim. Agora, com meu irmão, a gente sempre teve uma relação conturbada. Mas assim, conturbada não de ódio, mas de briga, de moleque. Porque ele era o oposto a mim, então ele não queria estudar, só queria saber de jogar bola, de aprontar, então a gente tinha esses conflitos, mas depois de adulto a gente se dá super bem, cada um respeitando o seu espaço. E a mais velha sempre foi muito tranquila também, ela se dá bem com todos.
P/1 – E, Marcelo, você conhece a história dos seus avós, chegou a conhecê-los?
R – Sim, tanto de pai, quanto de mãe. Por parte de mãe, minha mãe é de Uberaba. Então eles vieram para cá muito cedo. Uberaba, Minas Gerais. O meu avô não era da área do porto, tinha outra atividade. A minha avó sempre foi do lar, então eu a conheci, Eles faleceram [quando] eu tinha sete anos de idade. Agora, já os avós por parte de pai, eu já convivi um pouco mais, porque eles vieram a falecer já quase na fase adulta. A minha vó também era do lar e meu avô era estivador. Ele saiu do Exército com dezoito, dezenove anos e com vinte anos casou com a minha avó e já começou a trabalhar no porto como estivador até aposentar, ele foi também quase trinta anos nessa vida.
P/1 – E você sabe por que eles vieram pra Santos?
R – Vieram à procura de oportunidades, mesmo, porque o local onde eles moravam… hoje Uberaba é uma cidade já grande, mas, na época, na década de cinquenta, era algo mais interior, não tinham tantas oportunidades. E como meus avós tinham seis filhos, então ele resolveu vir para cá, para criar a família, dar uma condição melhor. Tanto é que ficaram, minha mãe, meus tios ficaram, todos estão por aqui ainda.
P/1 – E quais os principais costumes da sua família? Tem algo que te remete à infância, algum cheiro, alguma comida, ou alguma data comemorativa?
R – A família do meu pai era bem de confraternizar, não precisava muito de motivos. Bastava estar sol que o pessoal queria fazer um churrasco, era muito atrelado ao samba. E, por coincidência, na semana passada a gente estava no velório de uma tia e aí alguns primos se reencontraram e falaram: “Pô, a gente precisa fazer o que a gente fazia no passado”. E nós nos reunimos num clube aqui em Santos, de cerca de trinta pessoas, nem todos puderam vir, mas a gente já deu o pontapé inicial, fizemos a mesma bagunça que fazíamos há trinta anos. Então a minha família gosta muito de se reunir, de uma forma bem caseira, faz churrasco, faz uma feijoada, uma dobradinha, escuta uma música, bate conversa fora, não é uma família muito de fazer viagens, mas eles se reúnem muito.
P/1 – E você sabe a história do seu nascimento, como seus pais escolheram seu nome?
R – Sim, sei. Na realidade, quem escolheu meu nome foi minha avó, mãe do meu pai. Tanto é que eu sou afilhado dela. A minha mãe queria que meu nome fosse Anderson, mas aí a minha avó, naquela época o pessoal tinha um poder meio coercitivo, então os mais velhos tinham o poder do mando, aí ela: “Não, gostaria que fosse Marcelo”. Tinha uma história, acho que era novela, alguma coisa nesse sentido, aí a minha mãe: “Não, tudo bem”, aí colocou Marcelo. Até o meu primeiro ano de vida eu dei um pouquinho de trabalho para os meus pais na questão de saúde, mas depois disso foi uma criação tranquila, não dei trabalho, não.
P/1 – Marcelo, tenta resgatar qual foi a sua primeira lembrança de vida.
R – É engraçado falar assim. A minha mãe dizia que eu gostava muito de roupa com gravata e, por incrível que pareça, eu tenho uma recordação. Se for tentar retornar ao passado, eu tenho, na realidade, duas recordações: uma com três para quatro anos e outra com cinco. Eu lembro que, com quatro anos, eu morava num apartamento, era só eu e minha irmã, os outros dois irmãos ainda não existiam e tinha um guache, minha mãe comprou alguma coisa no supermercado que veio um brinde, um guache, aquela prancheta de pintor e eu pintei a parede inteira do quarto, pelo lado de dentro. Eu levei uma bronca e isso ficou marcado na minha mente (risos). Eu tinha uns quatro anos. E depois, acho que no ano seguinte, com cinco anos - foi antes de eu começar a estudar - eu comecei com seis anos, no pré-primário. Eu lembro que a minha mãe comprou, foi comprar roupa para o final de ano aí, só sei que minha mãe e meu pai discutiram: “Mas ele quer”, aí comprou uma camisa branca e eu lembro que foi com uma gravata azul, borboleta. Era um desejo tão grande que eu tinha por aquilo, que isso ficou marcado na minha memória. Até hoje eu lembro, parece que eu estou vendo hoje, eu vestido com a camisa, olhando no espelho, com a camisa branca social, com a gravata borboleta (risos). São essas lembranças.
(08:30) P/1 – E você lembra da casa onde você cresceu, do apartamento?
R – Lembro, lembro. A família do meu pai o chamava meio de nômade, porque ele não parava em lugar nenhum. Nós vivíamos de aluguel. Meu pai foi ter casa própria eu já tinha vinte e poucos anos. Então eu morei em algumas casas e eu lembro de todas elas. Foi esse apartamento, com três anos. Se eu tiver que fazer uma conta aqui, eu já mudei umas doze vezes, até meu pai ter a casa própria e eu casar e sair de casa. Ele mudou umas doze vezes, assim, brincando. Se eu quiser, fizer a conta, vai dar esse número. Então eu lembro de todas as casas, todas as situações.
(09:14) P/1 – Tem alguma casa que tenha te marcado mais, algum bairro?
R – Tem. Tem um bairro que eu gosto muito até hoje, no Guarujá, se chama Vila Santa Rosa. Tem uma casa que nós moramos por dois anos, uns dois anos e pouco e, no quintal, nos fundos, ela tinha muitas árvores. Tinha dois pés de goiabeira, fruta pão, coqueiro, cana. Então, ali, a minha infância, esses dois anos, eu já não saía de casa, porque eu sempre fui muito caseiro. Então ali eu curtia, meus primos iam para lá, a gente brincava, subia na árvore, eu comia goiaba. Coisas que hoje você não vê muito. Tanto é que, toda vez que eu vou visitar algum parente nesse bairro, aí a minha esposa até fala: “Você vai passar pelas casas onde você morou, né?” (risos). Eu falo: “Vou”. Então, a gente faz um tour de meia hora, eu fico passando em frente a todas as casas que eu morei nesse bairro, inclusive esta, que eu gostei muito.
P/1 – E quais suas brincadeiras favoritas desta época?
R – Eu gostava de jogar bola, eu gostava de jogo de futebol e bicicleta. Então, quando morava em casas com quintal grande, eu ficava andando de bicicleta, depois ia pra rua. Mas dentro de casa mesmo meu negócio era leitura e assistir televisão. Eu gostava de Sessão da Tarde. Quando a minha mãe resolvia fazer alguma coisa na cozinha, um bolo, alguma coisa assim, eu gostava de estar próximo, de ficar pegando a bacia e... como fala? Pegar aquele resto do bolo, não sei se todos fazem isso, mas na minha família fazia muito, então a gente brigava. Quando os meus irmãos estavam na rua e a minha mãe resolvia fazer bolo, eu aproveitava e comia aquilo lá sozinho. Mas, assim, na rua, era futebol e bicicleta. Fazendo rampa. A gente colocava pedra e colocava um tipo de um compensado e vinha com a bicicleta, corria e fazia como se fosse uma rampa. Então eu gostava muito disso. De vez em quando uma queimada. Aí depois, já na adolescência, na época da geração de prata do vôlei, da década de oitenta, aí o pessoal começou com a onda de vôlei e o futebol ficou um pouco esquecido. Aí vôlei eu também gostei, eu já cheguei a praticar um pouquinho. Mas era isso, nada assim de anormal, não.
P/1 – E a vizinhança, você brincava com os amigos da rua, isso existia?
R – Então, existia. Alguns poucos amigos tenho relação com eles até hoje, alguns nós nos encontramos na faculdade, tinha uma menina que era minha vizinha, morávamos na mesma rua e estudávamos juntos, acho que foi no pré-primário, naqueles festejos juninos nós dançamos juntos, e depois nós só fomos nos encontrar na faculdade, estava fazendo Direito na época e ela estava um ano na minha frente, só que ela estava fazendo algumas matérias na minha classe. Ela ficou me olhando, fiquei olhando para ela, aí reativou a amizade. Eu converso com ela de forma mais frequente hoje, mas por conta do meu pai mudar muito, então você perde essas referências da escola, das pessoas, mas algumas pessoas, sim. Diferente de uns primos que eu tenho, uma irmã do meu pai que casou e morou naquela casa por mais de cinquenta anos e meus primos ainda moram no mesmo lugar. Então a vizinhança, você cria essa raiz, você passa a conhecer todas as gerações dali da vizinhança, diferente de mim. Infelizmente, quando essas mudanças do meu pai… quando ele mudava não era só de bairro, às vezes ele mudava de cidade. Já morei em Santos, já morei no Guarujá, já morei em São Vicente. Então fica um pouco mais complexo.
P/1 – Isso que eu ia te perguntar: na sua infância, qual foi a cidade que você mais ficou por mais tempo?
R – Guarujá, fiquei mais tempo no Guarujá. Santos foi em uma oportunidade, São Vicente também em uma. Nós ficamos uma média de dois anos, aí o restante foi no Guarujá e aí ficava mudando só de casa.
P/1 – E fala uma coisa: nessa época você pensava no que você queria ser quando crescesse, com o que você queria trabalhar, ou não?
R – Sim, acho que desde os meus nove anos eu comecei a traçar o que eu queria da minha vida. E eu queria ser advogado, porque a família do meu pai era formada por alguns advogados. Alguns até bem conhecidos aqui em Santos. Então, tinha essa vontade, tanto é que eu me formei em Direito, só que aí eu comecei bem cedo na área portuária e são ritmos bem diferentes. E quando você é mordido pelo mosquito do porto, dificilmente alguém sai. E foi isso. Então o Direito ficou mais para o diploma mesmo e a realização de um sonho de garoto, mas a minha vida é no porto. Praticamente quase toda ela no porto.
P/1 – Marcelo, me conta uma coisa: como você ficou sabendo que existia o porto? Isso veio da escola, veio dos seus avós, seus pais? Como foi essa descoberta, assim?
R – Num primeiro momento, quando você… porque o Porto de Santos, como é o maior da América Latina, então é bem visível, mas as crianças não conseguem associar as coisas. É muito mais pela família, conversa de família. Meu avô com meu pai, eu não tenho, não tive só avô e pai no porto, tenho tios que foram estivadores, trabalharam na CDS, primos também que atuam no porto até hoje. Então grande parte da família ainda é atuante no Porto de Santos, então era uma conversa de domingo, era uma conversa de casa. Você começava a escutar os assuntos e associar como era o dia a dia do porto.
P/1 – E qual é a sua primeira lembrança da escola?
R – Foi no pré-primário. Eu sempre fui muito ligado à minha mãe e, nesse dia, por coincidência, quem me levou pela primeira vez na escola foi meu avô, porque minha mãe não podia, não lembro qual o motivo. Então eu fiquei assim meio que assustado, fiquei meio traumatizado, eu arregalava os olhos, ficava na porta e eu tenho uma mania que meu avô também tinha, meu pai também tinha, nós acordamos, a gente acorda muito cedo. Pode ser domingo, seis horas da manhã a gente está em pé. Nesse caso eu, agora nesse momento, então eu acordo cedo. O meu vô era o primeiro a chegar na escola, então estava, na escola ninguém, portão fechado e eu e ele e eu ficava imaginando: “Será que ele vai me largar aqui na porta, sozinho?” Mas aí depois as pessoas começaram a chegar, ele entrou comigo na escola, entregou para professora, aí eu me acalmei, aí toquei. Foi o primeiro, primeiro dia de aula foi o primeiro trauma (risos).
P/1 – E você ficou nessa escola até quanto tempo?
R – Eu estudei nessa escola do pré-primário até a quarta série,que é o ensino fundamental hoje. Fiquei por cinco anos.
P/1 –Teve algum professor marcante?
R – Teve, teve sim, eu tive a professora do pré-primário, não esqueço o nome dela, Najla Simões o nome dela. Eu procurei pelas redes sociais, Facebook, LinkedIn, essas coisas, não encontrei. Faz muito tempo também, já tem mais de quarenta anos isso, mas eu não encontrei. Essa professora ajudou na formação, era uma mulher que acalmava os alunos. Muito querida. Tive outras também, mas a que mais me marcou foi a primeira professora, mesmo.
P/1 – Nessa época você estava morando em qual cidade?
R – Estava no Guarujá mesmo, na Vila Santa Rosa. A escola era Gladston Jafet.
(17:27) P/1 – E você lembra de alguma história marcante desse período?
R – Olha, eu lembro dos festejos juninos, eu gostava muito dessa época, as barracas. Quando começava já a falar nesse assunto, eu já ficava bastante eufórico, que eu gostava de dançar, gostava das brincadeiras das barracas, encontrar com os amigos fora do horário de aula, porque naquela época era diferente você estar interagindo com os colegas de classe, fora. Hoje não, hoje tem internet, tem jogos on line, então a garotada se conversa, de alguma forma. Era um momento que a gente tinha, além da educação física, que a gente fazia, de estar brincando, estar correndo, estar jogando conversa fora. Eu gostava muito, era uma semana de festejos juninos que me marcava bastante. Outros momentos que me marcaram, que não foi assim, muito feliz, estou com marca no corpo até hoje: eu jogando bola no intervalo da aula, isso daí foi na primeira série, foi na primeira série, a grade da quadra, aquele cercado da quadra estava solto e eu correndo. A gente não estava nem chutando bola, a gente estava chutando um pedaço de caco, de azulejo. Eram outras épocas, então a gente ficava jogando bola com aquilo. Eu bati com o braço, espetou no meu braço, nesse meu braço aqui, esquerdo. Eu, apavorado, ao invés de puxar, não, eu empurrei, aí rasguei. Eu, com medo, aí bateu o sinal pra voltar, eu voltei assim, com a mão, cheio de sangue no braço e fiquei na fila, naquela época que você entrava, tinha fila para entrar. Tudo que você tinha que fazer, você tinha que fazer fila, colocar a mão no ombro, cantar Hino Nacional e tudo. E aí eu comecei a cambalear, querendo desmaiar, e a professora, na hora que veio buscar a fila, percebeu que eu estava já meio mareado aí ela veio perto e ela viu que meu braço estava todo ensanguentado, aí ela me levou na enfermaria, da enfermaria me levaram pro hospital e tomei acho que foram sete pontos. Isso marcou. E a última foi no dentista. Tinha um dentista, era uma Kombi na época, então a prefeitura, uma vez por semana, estava lá. E eu não sei como eles buscavam o aluno para fazer o tratamento. Aí um belo dia, a professora: “Marcelo!” Eu levantei. “Vem aqui”. Cheguei na porta e ela: “Vai no dentista.” Aí eu já comecei a ficar apavorado, aí me levaram para Kombi, que ficava na escola, a dentista fez toda a avaliação e arrancou alguns cacos de dentes que eu tinha. Eu era garoto ainda, [tinha] seis pra sete anos. E nessa época ninguém dava satisfação pro pai ou pra mãe, se podia arrancar ou se não podia (risos). Eu cheguei em casa com o dente arrancado. Eram outras épocas. Isso me causou, não foi trauma, mas marcou. Positivo ou não, mas marcou.
P/1 – E como foi a mudança de escola?
R – Ah, toda vez que a gente mudava de escola não era fácil, porque você tinha que começar... nas aulas, no dia a dia é normal, mas você criar círculo de amizade, pode parecer que não, mas você precisa dos colegas, às vezes você falta, um dia, você precisa de uma matéria, fazer trabalho em grupo, então é difícil. Pelo menos leva um mês, dois meses, para poder estar interagindo com os colegas. Mas depois de um certo tempo você começa a se acostumar. Mas no início era difícil pra gente.
P/1 – E o fundamental II você fez no Guarujá também?
R – Fiz uma parte no Guarujá e, no final, em São Vicente e foram colégios do estado. Do pré-primário à quarta série era ensino municipal e depois foi estadual. Eu tive duas escolas, fiz da quinta até a sétima e a oitava eu fiz numa escola em São Vicente. Aí depois eu retornei para o Guarujá, para fazer o colegial.
P/1 – Tem alguma história dessas escolas, que você queira compartilhar?
R – A oitava série foi um ano muito bom, porque nós éramos em quatorze alunos somente. E eram três homens e o resto eram meninas e nós criamos um laço muito forte por serem poucos alunos, então os professores conseguiam se dedicar melhor. A gente participava de bastante trabalho juntos, não tinham muitos grupos, então normalmente o professor fazia no máximo três grupos de trabalho, então um acabava ajudando um o outro, moravam todos na mesma região. Foi um ano muito bacana, passou rápido. Alguns se encontraram no colegial, que ali naquela escola que a gente estudava não tinha primeiro, segundo e terceiro colegial, mas alguns conseguiram ir para a mesma escola, alguns inclusive na mesma classe, mas foi um ano muito bacana. Foi, assim, onde a amizade se fortaleceu mais. O pré-primário e a oitava série acho que foram os dois melhores momentos, assim.
P/1 – E o colegial? Como foi voltar pro Guarujá? Você foi sozinho ou sua família foi junto?
R – Não, fomos todos. O colegial foi mais para cumprir prazo, porque eu já trabalhava. É um negócio muito insano, então eu trabalhava duro, chegava na escola para cumprir… estudava. Mas não era tão dedicado quanto nos anos anteriores, não é? Não era com a mesma dedicação. Então a gente estudava para aprender o básico e garantir a nota, para não reprovar, que era muito cansativo. Então fazer vínculo era raro, muito raro.
P/1 – Com o que você trabalhava, Marcelo?
R – Olha, fiz de tudo um pouco. Comecei com treze anos. Comecei numa empresa de reforma e conserto de geladeiras e ar-condicionado, então ela fazia a reforma e eu comecei lixando, preparando as peças para pintura. Tinha uma linha de produção, enquanto estava mexendo no motor, essas coisas, a gente pintava, quando o cliente pedia. E eu preparava toda essa peça pra ir pra área de pintura. Eu trabalhei mais ou menos um ano nessa empresa. Aí um belo dia, na escola, um colega trabalhava num posto de gasolina, aí eu falei: “Pô, vamos para praia, no sábado?” E ele: “Não vai dar, porque eu vou trabalhar, porque está na alta temporada, então o negócio está bombando, eu não vou poder”. Eu falei: “Ah, tá bom”. Aí eu fui pra praia, no sábado, quando eu voltei eu passei nesse posto de gasolina, para bater um papo com ele. Aí ficamos conversando, só que estava tão corrido o negócio, que aí ele trabalhava de frentista e eu fiquei do lado do calibrador de pneus, aí eu sempre fui meio entrão, aí eu comecei a calibrar, calibrar, vi um rapaz fazendo. Aí depois o carro parava e não vinha ninguém atender e eu atendia, aí eu comecei a ganhar caixinhas. Um real, dois reais, no valor de hoje. Só sei que eu cheguei umas três horas da tarde, fui embora onze horas da noite. Eu ganhei mais dinheiro naquele dia do que eu ganhava por mês nessa empresa que eu trabalhava. Mas até eu não me iludi, aí no domingo apareci lá de novo e fiquei por três semanas seguidas, nos finas de semana ia pra lá. E o gerente do posto falou: “Vem trabalhar com a gente aqui, eu estou precisando de um garoto aí, para poder ajudar a lavar carros, essas coisas”. Aí eu fui, enfim, fiquei quase cinco anos nesse mundo. Aí fiz de tudo um pouco: fui caixa, fui gerente de posto de gasolina. Aí um belo dia apareceu uma oportunidade no porto, foi no início da década de noventa, 1993, se não me falha a memória, que era chamada Força Supletiva, era uma frente de trabalho que foi criada com gerenciamento dos sindicatos, porque, normalmente, eram as indicações dos portuários para poder estar suprindo a falta de mão de obra, porque estava naquela fase da empresa estatal para a empresa privada. Então o governo já não estava investindo tanto no porto e também não estava mais contratando ninguém e a demanda aumentando, então tinha essa falta de pessoal. Aí foi quando eu comecei no porto. Eu comecei na capatazia, fiquei um tempo na capatazia e aí a minha vida no porto começou daí, vamos dizer, 1993 pra frente.
(26:14) P/1 – Antes do porto eu queria saber como foi a experiência de começar a trabalhar com 13 anos, ainda menino. Você lembra do primeiro dia de trabalho?
R – Olha, eu sempre quis trabalhar. Sempre tive essa vontade de trabalhar, então pra mim foi muito tranquilo, foi algo, quando apareceu a primeira oportunidade, eu adorei. Não dormi direito no domingo, para poder estar, na segunda-feira, lá. Mas quando a gente fala do primeiro trabalho, uma coisa que me marcou bastante não foi nem o trabalho, foi o contexto do trabalho. Eu lembro que eu contei pro meu pai, como eu falei no início, meu pai era bastante rígido. Então, eu contei pro meu pai: “Pai, hoje eu comecei meu primeiro dia de trabalho”. Meu pai: “Parabéns, filho, legal, bacana, responsabilidade, né?” Aí ele falou assim: “Então, o seguinte: a partir de hoje você tem as suas responsabilidades. Teu material escolar e a tua roupa você compra, né?” Aí, eu: “Está bom. Acho justo, acho justo”. Aí terminamos a conversa, na hora que eu estou saindo, ele me chamou: “Volta aqui, faltou mais um detalhe: se você perder o emprego, você continua comprando o seu material e a sua roupa”. No início você fica meio em choque, mas depois, aí é lição de vida. Aí eu entendi qual foi a mensagem dele, ele falou assim: “Você tem um emprego, você tem que ser responsável e garantir seu emprego, é um meio de você sobreviver. Hoje eu estou aqui e amanhã não vou estar mais. Então você tem que valorizar o que você tem”. No início eu fiquei assim, meio chateado e em choque, mas depois, com o tempo, eu entendi a mensagem dele. E eu falo isso para meus filhos, inclusive. Então, você tem, se você tem um emprego jovem e só usa o dinheiro para curtir a vida, você começa a não ter responsabilidades. Você deixa de valorizar aquilo que você conquistou. Então, acho que, se tiver alguma coisa que me marcou no meu primeiro emprego, foi isso, a mensagem que meu pai mandou. Fora os outros, assim, é muito tranquilo. Eu sempre gostei de fazer algo novo, quando eu trabalhava no posto de gasolina, já tinha acho que uns quinze anos, eu trabalhava na parte de lavagem de carro, essas coisas. Aí, quando não tinha nada, eu ficava na frente e ajudava o pessoal, ficava batendo papo e, na época, vinha uns senhores, uns clientes, com um talão de cheque, para pagar com cheque, se pagava muito com cheque. E a maioria não sabia preencher e, como eu falei no início, eu era muito entrão, quando meu pai fazia cheque para pagar as contas, eu ficava do lado dele e pedia pra preencher. E ele falava: “Tudo bem, mas se tu rasgar, o bicho vai pegar, se tu rasurar, o bicho vai pegar”. Então eu fazia com todo cuidado. Eu aprendi. E aí eu comecei a preencher os cheques da clientela. E o caixa, o gerente na época, olhava assim: “Pô, tu preenche rápido, preenche direitinho”. E quando vinham os caminhões para abastecer o posto, aí um belo dia o dono esqueceu de deixar o cheque pronto para pagar, não tinha esse negócio de pagar em boleto, se pagava no cheque. E foi no final de semana o dono do posto tinha viajado, estava só o gerente, aí na hora chegou lá 25 mil litros de combustível, não esqueço até hoje, aí encheu o tanque do posto, aí ele pegou, foi pegar o cheque e os cheques só estavam assinados, não estavam preenchidos. E o gerente ficou meio apavorado, eu falei: “Dá aí que eu preencho”. Eu estava acostumado a preencher cem, cento e cinquenta reais, fazendo uma analogia aos dias de hoje, eu tinha que fazer um cheque de 23 mil reais, 24 mil reais e uns quebradinhos. Aí eu fiz. Eu fui conquistando a confiança. Aí o dono me passou pro caixa, falou: “Não, você domina bem os números, então você fica aí” (risos). Aí foi indo, então alguns casos inusitados eram esses aí.
P/1 – E a juventude, como que foi trabalhar, você tinha tempo pra diversão?
R – Sim, eu tinha, sempre fui uma pessoa de poucos amigos, mas alguns amigos que a amizade perdura até hoje, mesmo que a gente não se converse tanto. Normalmente, nos finais de semana a gente ia para um clube, à noite, porque tinham uns bailinhos, as discotecas da época. Eu não era muito dançador, não, mas meu negócio era bater papo, ver as pessoas. A gente tomava nossos drinks, lá, os Hi-Fis da vida, mesmo que os pais não gostassem, mas não chegava embriagado, nem nada, mas a gente curtia. Depois, no final, a gente ia fazer um lanche, comer uma pizza, essas coisas. Então meu divertimento era esse. E durante o final de semana era um futebol, algo dessa natureza, porque durante a semana era muito pesado, era trabalho, estudo, trabalho, estudo. Mas era isso.
P/1 – E você ficou no posto até que idade, você lembra?
R – 1992, até 21, vinte, 21 anos. Isso aí.
P/1 – E, Marcelo, você saiu, se formou na escola e logo em seguida entrou na faculdade, ou levou um tempinho?
R – Não, levei um tempinho. Eu me formei já com trinta e poucos anos. Porque quando eu comecei a trabalhar no porto, se eu achava que a minha vida era insana, ficou mais ainda, porque era muito corrido, tinha falta de mão de obra, então teve momentos, em 1995, quando fui para a primeira empresa privada do porto, tinha dias que eu entrava às sete da manhã e saía à uma. Teve um dia que eu acabei até dormindo na empresa, porque não tinha condução pra ir embora, então era algo muito puxado. Quando minha vida começou a ficar mais estabilizada, não só financeiramente, mas em questão de horário, aí eu acordei para fazer a graduação.
P/1 – Então, me conta como foi que você começou a atuar no porto, como surgiu esse interesse, como você ficou sabendo?
R – Eu fiquei sabendo pelo meu pai, que meu pai ainda estava na ativa, eu trabalhava no posto, aí um belo dia meu pai falou, me chamou e [chamou] meu irmão - que tem dois anos de diferença de idade - e falou: “Ó, está aparecendo uma oportunidade no porto”. Ele explicou o contexto, falou assim: “É um trabalho supletivo, você não tem carteira assinada, você não tem ganhos fixos, é por demanda, você vai lá para uma parede, você é um avulso, você vai lá para a parede, se tiver atividade você vai, se não tiver, não vai”. Aí ele deu alguns conselhos. No meu caso, como eu estava empregado, ele falou: “O teu tá ali garantido, tu tem o teu fixo, mas ao mesmo tempo, no porto aparecem várias oportunidades”. E como eu era solteiro, ele falou assim: “A escolha é sua. Tem esses dois caminhos, a escolha é sua”. Eu falei: “Não, eu vou encarar. Vou encarar o porto”. Porque as oportunidades - era algo muito grandioso - eram maiores. E aí ele fez a minha inscrição e a inscrição do meu irmão, na capatazia, que é o sindicato chamado SintraPort, aí eu comecei a trabalhar na capatazia, trabalho de armazém, aí trabalhei por alguns meses na capatazia, era um trabalho braçal que a gente fazia, tinha de todos os tipos, trabalho braçal era com essa categoria. Aí alguns meses depois, outro sindicato também fez o mesmo formato de força supletiva, que era o Sindaport, que era o sindicato da administração. Aí eu me inscrevi, aí eu participei, eu comecei a fazer um trabalho mais administrativo, que era de assistente, analista. Aí trabalhava em Gate, trabalhava em balança, então fazia um trabalho mais administrativo. Isso perdurou, vamos falar, de 1993 até 1995, mas nesse intervalo eu também fiz um trabalho em outro sindicato, que era a estiva. Aí essa oportunidade apareceu de uma forma diferenciada. Como eu falei no início, eu tenho vários primos, tios, que trabalham no porto, e um tio - hoje já falecido - era estivador. Aí falou: “A estiva vai abrir inscrição para cadastro, para ter um banco de pessoas pra trabalhar, para suprir a falta, a demanda, você quer?” Falei: “Quero!” Aí eu me inscrevi, fiz a inscrição, aí eu peguei a carteira, na estiva o pessoal chama de bagre. Hoje é cadastro, tem o cadastro e tem o registro. Os registros são os mais antigos, que são os antigos carteiras pretas e os cadastros são os bagres. Ainda trabalhei na estiva durante um ano, aí foi quando apareceu a oportunidade para mim numa empresa privada, quando veio a lei 8630 algumas empresas pegaram parte, fizeram concessão de parte do porto. Essa empresa de terminal de contêineres foi a primeira. Então eu fui convidado por um antigo coordenador de onde eu trabalhava, ele foi para lá como gerente, eu fui, fiquei por dezessete anos lá. Fiz de tudo um pouco, só não fui operador de equipamentos. Mas, assim, se perguntar qual atividade que eu fiz lá, fiz prontidão de carga, fiz Gate, fui sequenciador de carga, foi ship planner, trabalhei no controle operacional, fui supervisor, fui coordenador, fui gerente. Eu fiz de tudo um pouco, nesses dezessete anos.
P/1 – Qual era a empresa?
R – Libra Terminais, era do grupo Libra.
P/1 – Marcelo, me conte uma coisa: você, nesses almoços, nessas conversas com seus familiares que trabalhavam no porto, enquanto você ouvia, teve alguma história que tenha que te marcado ouvindo seus familiares contando, falando como era o porto, você se interessou pelo porto um pouco por eles, você acha?
R – É, isso acontecia, como eu falei, muito nos finais de semana, na casa desse meu avô, que era estivador, pai do meu pai. Enquanto as mulheres estavam lá na cozinha ou cuidando das crianças, os homens estavam conversando. Os meus tios também eram, um era estivador, o outro trabalhava na antiga CDS, como o meu pai, então tinha sempre quatro homens ali que eram da área portuária e não tinha como não estar conversando sobre isso. Casos inusitados, não, né? Mas, assim, eles falavam da atividade, porque as atividades dos quatro, eram dois a bordo do navio e dois eram internos, então eles contavam algumas situações, aí você ficava ali, escutando, às vezes perguntava alguma coisa, principalmente termos técnicos. Lingada, quando falavam lingada, “mas o que é lingada?” Aí falava: “Não, a lingada é isso, são as sacarias que faz amarração embaixo, o pessoal de terra, aí sobe pelo guindaste de bordo, aí põe a lingada à bordo e os estivadores lá soltam e acondicionam a carga nos porões”. Aí eles contavam essas historinhas e eles explicavam esses termos técnicos que a gente, a criançada, às vezes ficava perdida. E não eram todos que se interessavam por isso, não, eram poucos, eu e mais um que, de vez em quando, fazíamos algumas perguntas. O resto queria mais é saber de bagunça. Tanto é que a maioria deles hoje não estão no segmento, estão fazendo outra coisa da vida (risos), já mostravam desinteresse desde cedo.
P/1 – E você lembra de alguma história marcante?
R – Não, marcante não, era rotina mesmo. Como eu falei, eram termos técnicos, lingada, quando falavam… tinha um guindaste lá que eles chamavam de He-Man. Era algo mais novo, mas tinham uns guindastes que tinham nomes, aí você achava que era um bicho, alguma coisa assim, não, eram guindastes, que tem um tanto de capacidade de tonelagem. “Ah, tá”. Então no porto eles usam muito apelido, o estivador a bordo tem a questão da pata de elefante, são ferramentas de trabalho, tipos de equipamentos.
P/1 – Marcelo, como foi pra você, como você se sentiu ao entrar no porto, começar a fazer parte desse universo, que você tanto ouvia? Você se lembra da sensação?
R – Lembro, lembro! Na região, na Baixada Santista como um todo, existiam alguns empregos que eram glamourosos na época, um era trabalhar no porto. Nas Docas, o pessoal falava Docas, que era a CDS, Companhia Docas de Santos. Depois estatizou, virou Codesp. E na Cosipa, que hoje é a Usiminas. Então quem trabalhava nessas duas empresas era glamouroso. Todo mundo queria trabalhar, e comigo não foi diferente. Então quando eu entrei numa condição diferente, de quem já trabalhava lá, mas assim, para mim foi uma baita oportunidade, foi abrir uma porta. Falei: “Agora eu tô aqui dentro, agora é comigo! Agora não depende de mais ninguém.” Foi um momento de felicidade o meu primeiro dia, foi um momento de felicidade. E você começar a vivenciar aquilo que o seu pai, seu avô falavam, na prática, no momento é meio que assustador, porque quem trabalha no porto, quem não está habituado a trabalhar no porto, quando começa a ver aqueles equipamentos rodando, aquele navio, fica um pouco assustado, fica muito assustado, mas depois vai se adaptando, mas para mim foi um marco. Quando eu pisei no primeiro dia, para trabalhar, para executar uma atividade no porto, eu falei: “Agora é comigo, a porta se abriu”.
P/1 – O que você lembra desse dia?
R – Eu lembro que nós fomos para... como que aconteceu: para selecionar os funcionários eles foram para uma seção, que era a terceira seção aqui em Santos, tinha alguns chefes de seções e a maioria já tinha trabalhado com meu pai e alguns para me escolher. Acho que foi por conta do nome: “Não, deve ser filho de fulano, beltrano”. Como eram todos filhos de portuários, então o pessoal: “Não, aquele lá eu já trabalho com o pai, já sei como é”. Aí começaram a escolher. Foi muito tranquilo. Feita a escolha, separou a turma para trabalhar, aí foram dadas aquelas orientações. No primeiro dia de executar atividade normalmente, a gente, como era uma força supletiva, fazia um trabalho menos nobre. Quando eu digo menos nobre, não que o trabalho não seja nobre, normalmente o funcionário de Docas estava num trabalho de produção, na qual ele ganhava por produtividade, ou nas horas extras. Então aquilo que não dava produção, ou era ordinário, era a gente que fazia. Então nobre nesse sentido. Tinha os ____ de armazém, que davam apoio. O que facilitou, por sermos filhos de portuários, então o pessoal nos recebeu, nos acolheu de uma forma diferente. Não ficou com o nariz torcido, então deu um apoio, então eu não tenho do que reclamar, nesse sentido. Todas as seções ou funções que eu fiz pela primeira vez no porto, eu sempre tive o apoio de todos.
P/1 – E, Marcelo, você poderia contar um pouco pra gente desta contextualização histórica, desse período da década de noventa, essa falta de mão de obra que você comentou e essa transição das empresas estatais para as empresas privadas? Como foi isso?
R – É, eu lembro, antes da Força Supletiva, meu pai trabalhava muito, fazia muitas horas extras para poder suprir essa falta de mão de obra e, quando nós entramos demorou um pouquinho para se organizar, mas a gente conseguiu atender, fazer que o porto girasse. O cliente, que é atendido pelo porto, não deixasse de ser atendido, como estava anteriormente. Então a gente conseguiu voltar, não ao normal, mas começou a diminuir o que ficou para trás, as pendências. Ficamos, assim, de uma forma cronológica, eu falo por mim, era uma gama de trabalhadores nessa época. De 1993, foi um momento de transição, onde essa equipe de Força Supletiva, com os doqueiros, começou a criar uma sinergia, se enxergar como um todo. 1994 foi um ano bom, tinha até algumas categorias dessa força supletiva que entravam em trabalhos mais vantajosos, de produtividade, porque a mão de obra realmente da estatal estava diminuindo, por aposentadoria, por N razões, por aumento de demanda. E 1995 foi o grande marco, quando teve a primeira empresa que privatizou. Foi um pequeno grupo foi escolhido, essa empresa contratou um funcionário estatal, que era um coordenador de operações, para ser o gerente de operações e montar o time, nesse sentido. E qual é a grande diferença nisso tudo? Por esses dois, quase três anos, você trabalhando num ritmo de estatal, ir para uma empresa privada é uma diferença gritante. Principalmente por investimentos, não só em tecnologia, quanto equipamento, treinamento de mão de obra, então o viés é diferente. Você é cobrado por performance, então é um outro drive. Foi nesse sentido. Então, o que foi bom nisso tudo? A empresa estava começando a entrar e eram só cinco funcionários. Eu era um desses cinco. Então no primeiro ano ela já foi para setenta e foi crescendo, crescendo, até ficar com quase mil funcionários, até a minha saída. Então você cresceu junto com a empresa, você acertou, você errou, como você fazia de tudo um pouco, então isso dá uma bagagem muito grande, pensa que não, mas isso ajuda muito, você pensa diferente. Você consegue trabalhar bem as adversidades. Até hoje, tem alguma coisa que é diferente, as pessoas não conseguem enxergar a solução, para quem já trabalhou nesse ritmo, de estar sempre fazendo algo diferente, cada dia é um dia diferente, porque nós tínhamos uma carência muito forte de espaços, tínhamos equipamentos, mas não tínhamos espaço. E a demanda foi aumentando, então nós tínhamos que criar, ser inovadores, isso ajudou muito. Quando você já entra numa empresa estruturada, então sua curva de aprendizagem tem que ser mais rápida e talvez você perca algumas coisas. Eu, graças a Deus, tive essa oportunidade de crescer junto com a empresa, então nós erramos juntos, acertamos juntos. Fiz grandes amigos, hoje esses meus amigos, que começamos juntos ali, como se diz, no chão de fábrica, alguns viraram diretores de outras empresas, outros foram fazer outras coisas da vida, outros ainda trabalham comigo até hoje, na empresa onde estou, então assim, o porto é grande, é o maior da América Latina, mas as pessoas são sempre as mesmas. Então você circula sempre, você sempre tromba com alguém, em algum momento da sua vida. Falando em ordem cronológica, para mim foi isso. Quando eu passei da fase estatal para privada, começar do zero, um negócio do zero, para mim é muito gratificante.
P/1 – Que interessante a transição. Pensando nas histórias que você ouvia do seu avô, dos seus tios, do seu pai e a experiência que você viveu, até hoje em dia, quais foram as mais marcantes que você consegue perceber, no porto?
R – Assim, tem sempre alguma coisa que a gente faz na vida que marca, na parte profissional. Eu fiquei dezessete anos nessa empresa e depois eu saí, eu queria dar uma descansada e fazer uma coisa diferente, mas não deu, o sangue puxou, como dizem. Aí eu fui trabalhar numa outra empresa, aqui no Porto de Santos também, por onde eu fiquei três anos. E, assim, apesar do segmento ser o mesmo, você vê uma mudança de cultura, porque são organizações diferentes, então pode parecer que não, mas você tem que começar do zero, você sempre tem um recomeço, não é só fazer uma integração por ser um novo funcionário e porque você trabalhar com o mesmo tipo de carga, com o mesmo tipo de equipamento, que as coisas são iguais. Não. Recomeça, Então você fica um pouco em choque, fala: “Pô, será que eu tomei a decisão certa de sair?” Eu fiquei assim durante uns três meses, eu falei: “Será que eu tomei a decisão certa?” Mas não, foi legal, porque consigo ver culturas, seja da organização de forma diferente, você conhece pessoas diferentes, você faz um network muito bacana. Aí fiquei três anos, aí depois desses três anos, eu fui para a empresa que eu estou hoje, que eu já estou há quase sete anos. A mesma coisa: é um choque cultural, porque muda tudo. Pode parecer que não, mas muda tudo. Mas respondendo a sua pergunta, comparando o momento atual, o que eu vivi, aos meus pais, tios e avós, o que assim, mudou muito, evoluiu muito, foram duas coisas: tecnologia, então hoje a tecnologia ajuda muito nos processos operacionais. Olhando assim, de forma cronológica, quais foram as principais mudanças desde a época do que os meus avós, tios, pai falavam, até o momento atual, eu vejo assim duas grandes mudanças: a primeira delas é a questão tecnológica. A primeira, não, uma delas. Quando eu comecei no porto era muita coisa no papel, para carregar uma carga, você ia com uma lista, então o processo era frágil e não performava bem, porque você perdia tempo. Hoje não, hoje você coloca numa lista, no sistema, a informação vai via coletor para todos os equipamentos, então assim, é um ganho de performance e segurança na informação gigantesco. Isso nós estamos falando de trinta, 25 anos. Então evoluiu muito. E um que me marca muito, eu não falei anteriormente, mas foi uma coisa que eu recordei agora, é a questão da segurança do trabalho. Então, antes, a conscientização, não só das empresas, mas como do trabalhador portuário, na questão de segurança, era aquém do que é hoje. Então se fazia por usos e costumes, se fazia que era a melhor forma de se fazer, se fazia porque o trabalho tinha que ser realizado e isso colocava em risco as pessoas. O meu pai foi um caso. Ele teve uma chave que bateu na lateral do rosto dele, ele perdeu 50% da visão de um dos olhos. Aí complicou mais por conta da diabetes, mas assim, ele teve um acidente de trabalho e hoje você percebe que a cultura de segurança está enraizada, pelo menos nas empresas que eu passei, sim. Não só em questão de treinamento, de conscientização, mas também de ferramentas, de comunicação, de condição de trabalho.
(Pausa)
Respondendo à pergunta do que marcou, que evoluiu de uma forma cronológica, da época da minha infância até o momento atual, posso dizer três pontos. A primeira delas são os tamanhos das embarcações. Antes de eu trabalhar no porto, quando era criança, atravessando a balsa de Guarujá/Santos ou Santos/Guarujá, você tinha uma dimensão das embarcações passando. A segunda foi o impacto, quando eu comecei a trabalhar no porto, foi a primeira vez próximo ao navio, eu achava... nossa, parecia algo grandioso, e para os dias de hoje… As embarcações cresceram muito, assim muito! São grandes. O segundo ponto é a questão da tecnologia, que mudou todo o processo operacional, não só em questão de confiabilidade das informações, mas também na velocidade, na performance operacional. Quando uma operação é rápida, então você consegue atender melhor o cliente e atender mais clientes, então o fluxo funciona muito bem. Eu sou da época que se trabalhava no papel, tanto pra ter um atendimento de Gate, quanto um atendimento no pátio, para fazer um carregamento para o navio, uma descarga, era tudo por lista. Então quando se atualizava, alguém trazia uma lista nova, se perdia um tempo, documento, quando chove, molha. Enfim, a velocidade, tudo aquilo que a gente já conhece. Hoje não, hoje é tudo via sistema, é tudo via coletor. O papel está acabando dentro desse processo operacional. E o terceiro dele, que para mim é o mais relevante, é a questão da segurança do trabalho. O meu pai foi um funcionário que teve um acidente de trabalho, onde uma peça bateu na lateral do rosto dele, que comprometeu em 50% a visão dele. Naquela época, na época mesmo que eu entrei, o trabalhador portuário não tinha tanta consciência da segurança, então tinha muito problema com as mãos, acidente com as mãos, ele fazia por fazer. Ele fazia porque precisava ser feito, ele precisava entregar o trabalho, ele fazia aquilo sempre, então ele entendia como correto. Então eu enxerguei, nesses 25, quase trinta anos na atividade, que essa consciência vem mudando. A cultura de segurança é um valor hoje para as empresas e pro funcionário também, ele enxerga isso como um valor. Tanto é que as empresas, pelo menos as que eu conheço, as que eu trabalhei, o funcionário, independente da hierarquia dele, se é um trabalho inseguro e que não é para ser feito, tem que se preparar, tem que se avaliar para fazer, ele não faz. Ele não faz e ele não é sancionado, ele não é demitido por isso, muito pelo contrário, as pessoas param, analisam, veem a melhor forma de se fazer e o trabalho é feito. Então eu costumo dizer que as empresas, hoje, quando se trata de segurança das pessoas, não existe hierarquia, existe um grupo de trabalho, colegas de trabalho que querem sair melhor do que entraram, no seu dia a dia, então eu enxergo essa evolução. Não é só por questão de legislação, não, é porque é um valor hoje, um valor para o negócio. São esses os três pontos, assim que, nessa trajetória mesmo, ouvindo meu pai, meu avô, conversando, no início das minhas atividades, foram que me marcaram.
P/1 – Marcelo, pensando nessa trajetória dentro do porto, teve algum cargo, alguma função que você tenha gostado mais de exercer?
R – Olha, cargo de gestão que eu gostei mais, assim, estou falando de todos os cargos, foi de supervisão, porque a função de liderança que, para mim, a mais desafiadora é a de supervisão, porque é aquela que está diretamente com a equipe de trabalho, ela está no dia a dia, ela sente as dores, sente os anseios da equipe de trabalho, então ela responde a necessidade da equipe de trabalho. E isso é desafiador, porque pra você ser um supervisor hoje, ou um encarregado, dependendo da nomenclatura de cada empresa, a primeira linha de liderança é com a equipe de trabalho. Não basta ser uma pessoa técnica, você precisa ter uma habilidade emocional, tem que ter uma agilidade emocional, tem que ter um equilíbrio emocional, você tem que estar preparado como gestor. Isso é um aprendizado, é um aprendizado, porque você, com uma equipe de grande número, nem todo mundo vem trabalhar com o mesmo pique, vamos falar assim. Um, às vezes vem mais aborrecido, por um problema particular, outros são mais alegres, estão mais dispostos, outros não. Então você tem que ter essa habilidade de estar conduzindo as pessoas pro objetivo da empresa, que eles façam de uma forma feliz e da melhor forma possível. Então, pra mim, o que eu mais gostei, eu trabalhei alguns anos como supervisor, foi essa função, assim. E é o que eu mais valorizo hoje dentro de uma organização.
P/1 – Qual é a sua função, hoje?
R – Sou gerente de operações.
P/1 – E como funciona seu trabalho, no dia a dia?
R – Hoje eu tenho seis coordenadores diretos e desses coordenadores tem mais 25 supervisores abaixo e abaixo desses supervisores tem mil pessoas, quase mil pessoas. É desafiador. Mas, ao mesmo tempo, é gratificante, é gostoso. Não me vejo sendo um homem de Exatas, eu sou um homem de Humanas. Você está engajando as pessoas para o propósito, para os objetivos da empresa. É isso. Então a gente tem algumas coisas que a gente persegue, que é o engajamento da pessoa, não só na questão de segurança, mas também nas entregas de performance do negócio, você tem que estar buscando alternativas pra fazer de forma diferente, de forma simplificada e estar cuidando das pessoas. No nosso grupo de gestores, a gente tem alguns ritos e tem uma página que a gente fala de gente, a página é essa: “People”, Pessoas. Vamos falar de gente, é a questão de desenvolvimento pessoal, é questão de processos de trabalho, um que está com problema, outro... assim a gente se ajuda. Então tem a empresa que dá todo suporte, mas o que a empresa não pode, a gente tenta buscar ajudar as pessoas da melhor forma possível. como toda organização tem um estratégico, tático e operacional. Meu papel é está no estratégico, mas pelo número de pessoas não tem como não navegar entre o tático e o operacional. Não tem como, se não, não consigo... a palavra é essa, “sentir” a necessidade do time e poder, não é porque eu sou o porta-voz da empresa, eu sou o facilitador, para poder levar para as pessoas o que elas precisam, para poder entregar o resultado, não é? Então não tem como eu ficar sentado no escritório, só olhando dados, eu preciso estar lá com as pessoas, estar próximo das pessoas. Não é fácil, Porque o dia a dia consome a gente, mas a gente tem que ter um rito aí de pelo menos umas duas vezes por semana estar andando, conversando com a turma, vendo a operação, vendo se estão fazendo de uma forma bacana. Se precisa de algum suporte, seja de maquinário, seja de processo, enfim. Às vezes são coisas bestas que eles precisam para facilitar a vida deles.
P/1 – E quais foram os maiores aprendizados que você tirou dessa sua experiência portuária?
R – É mais comportamental. A operação do porto é muito rápida, a performance é questão de velocidade, entrega. Todo segundo é importante, então isso acaba transformando as pessoas, elas acabam se tornando muito céleres. Elas passam a ter rotina de almoçar e jantar rápido, a fazer tudo rápido. E fazer rápido não é problema, mas tem que fazer direito (risos). E um dos aprendizados é a questão de ouvir. você tem que ter habilidade de ouvir as pessoas, por mais relevante ou menos relevante que seja um assunto que ela traga. Eu digo isso porque eu já cometi alguns erros de julgar o que a pessoa fosse falar, o que a pessoa ia me trazer, porque você, tecnicamente, conhece, quando ela vai falar alguma coisa, você já acha o ela vai falar. Não é isso, eu já cometi alguns erros nesse sentido. hoje eu sou mais ouvinte, ou tento, pelo menos. Não vou dizer que eu não possa cometer alguns erros. Eu tento ouvir, absorver o que a pessoa tem, entender o que ela traz. O não é uma resposta, mas o importante é a pessoa se sentir ouvida, aí você terá os argumentos para poder justificar suas respostas. Então o grande aprendizado é isso: ter a temperatura das pessoas, ter que sentir as pessoas, o comportamento das pessoas. Com o tempo você adquire essa habilidade e você vê quando a pessoa está bem e quando a pessoa não está bem. Quando está precisando de alguma coisa ou não está precisando de alguma coisa, precisando de uma palavra, ou não precisando de uma palavra. É isso, as empresas são formadas por pessoas e as pessoas têm que estar bem, e eu falo: “A gente tem que se divertir, tem que fazer do trabalho uma diversão, com responsabilidade, mas é uma diversão”.
P/1 – E, Marcelo, como é seu dia a dia?
R – Eu acordo muito cedo, sete horas da manhã já estou na empresa. Saio às Ddezoito, dezenove horas. No final de semana eu estou conectado às pessoas, que o porto sofre muita variação, a gente, para operar, depende de clima, depende de maré, depende de barra. Então o que você desenha numa operação agora, daqui a seis horas pode mudar. Eu fico tentando dar um apoio pra equipe, como estão as coisas, o que precisa, o que não precisa, mas durante a semana eu tenho alguns ritos, olho os relatórios do período da noite, das dezenove à uma, que são quatro períodos por dia, são turnos de seis horas, então eu venho, olho o turno da noite, faço uma análise. Pergunto, checo com os coordenadores o dia e o próximo do dia. Faço algumas intervenções, se é necessário, é raro, mas quando precisa faço, pelo menos é mais pra entender, para poder apoiá-los quando necessário. E tem as rotinas administrativas que a maioria dos gerentes tem, que é a questão de custos, parte financeira, questão de segurança. Enfim, é um dia a dia pesado, porque são muitas variáveis, são muitas necessidades, muitas entradas, muitas demandas diferentes. O que é gratificante no porto, como eu falei no início, eu optei em não ser advogado e continuar nisso, porque todo dia é um negócio diferente, não tem mesmice, você não cai na mesmice, parece que é um dia novo, não tem um dia igual ao outro, e isso é legal.
P/1 – E você é casado?
R – Sou casado, tenho três filhos. Tenho dois de outro casamento, um de 27, um de nove, tem um bebezinho de seis meses, então [são] três homens. O mais velho também, eu falei para ele estudar, mas ele não quis, ele está no porto também (risos). Ele já está no porto desde os dezenove anos, já está há oito anos, também. É outro. Não tem como, é aquilo que eu falei: a gente faz, a família fala de trabalho, então aí a pessoa não tem como não se apaixonar e não olhar. Ele foi um, tentou fazer outra coisa, mas não quis, aí entrou e não quer sair mais.
P/1 – E como é ver o filho também dentro do porto, indo pro mesmo caminho…? Vários homens da família de vocês.
R – Assim, eu o deixo fazer as escolhas dele. Se ele falar assim: “Pai, eu não quero mais saber do porto, vou fazer outra coisa”. A vida é dele, eu acho que ele tem que fazer o que ele... eu falo pra ele: “Você tem que ser feliz”. Mas ele já me disse que faz o que ele gosta, então eu tento passar para ele as cascas de banana na qual eu pisei, para que ele não pise. Na questão de formação, eu falo assim: “Você se atenta mais nisso, se prepara melhor naquilo”, porque a tendência é a gente, quando está num nível gerencial, começar a pensar um pouco mais na frente. Então eu falo pra ele: “Hoje o porto está dessa forma, mas lá na frente pode mudar, então você tem que estar preparado para o mercado. Tem tecnologias diferentes”. Eu tento passar para ele coisas que meu pai passou e coisas que meu pai também não passou, passar a experiência, para que ele erre o menos possível na atividade.
P/1 – Tem alguma atividade que você curta, para fazer com eles, seus filhos, na hora de lazer?
R – Olha, graças a Deus, pelo menos o caçula ainda não sei como vai ser, mas os outros dois são muito parecidos comigo. Então nós somos muito caseiros. A gente curte um churrasco em casa, curte assistir um filme, raramente a gente sai pra fazer alguma coisa fora e, quando faz, é numa festa em família, algum evento familiar. Não é muito de ficar indo em clube, shopping center a gente não é de ficar indo muito, eles gostam muito de cinema, os dois adoram cinema e vídeo game. Eu não sou chegado em videogame, até porque na minha época não tinha, mas eu gosto de filmes, então quando tem a oportunidade de estar os três juntos, o do meio até vai com mais frequência, o mais velho está trabalhando, ele já tem a vida dele, é difícil, mas quando estamos os três juntos, a gente faz uma sessão pipoca, a gente vê um filme, adora ficar em casa e curtir a família. E futebol, né? Nós somos santistas roxos, o mais velho é mais roxo do que eu, então quando a gente tem oportunidade, agora com a pandemia, a questão da flexibilização, voltar assistir o jogo do Santos. O do meio não, o do meio não é muito chegado no futebol, mas o mais velho é. É isso aí: é o futebol, casa, churrasco e filme. Isso que a gente curte.
P/1 – E como a pandemia impactou a sua vida?
R – Bastante, nos dois sentidos. Eu acho que um deles, porque acho que todos sentiram, por mais que você tenha pouca relação com as pessoas fora, você deixou de ter, né? Então isso faz falta, principalmente para aquelas pessoas que são do lar. Um exemplo: a minha esposa sentiu bastante, o meu filho do meio engordou, porque ele mora em apartamento, então na escola ele corre para lá, corre para cá, ele engordou. Graças a Deus não teve nada pior do que isso, mas eu contraí a Covid, eu e o meu caçula de seis meses. Assim, com certeza fui eu que passei para ele, mas graças a Deus eu fiquei uma semana de molho, em casa, me cuidando. O menino ficou dois dias internado, mas por observação, mas ele não teve nenhuma reação. Como ele teve um pouquinho de febre, quando fez o teste diagnosticou. Então isso impactou bastante. Faz a gente refletir algumas coisas, só quem teve sabe disso. Tu está ali, no dia seguinte tu está um pouquinho pior, porque os cinco primeiros dias tu vai tendo uma evolução negativa, então você começa a ter uma piora e depois vai voltar a ter uma melhora. Aí você fica com aquela sensação: “Será que amanhã eu vou estar entubado?” A gente viu histórias de pessoas que hoje estavam bem, amanhã entubou e no dia seguinte faleceu. Então hoje estava num jeito, no outro dia estava um pouquinho pior e você começa a pensar, você fica isolado num quarto, então você começa a pensar: “Será que amanhã eu estou entubado, será que depois de amanhã eu estou vivo?” Tu pensa nos filhos, pensa em deixar tudo estruturado e isso faz a gente pensar que nem tudo a gente pode levar a ferro e fogo. O trabalho é importante, tudo é importante, mas tudo de uma forma bem cadenciada. Então você tem que ter o teu momento com a tua família, esse é um exercício que eu estou fazendo, é difícil, você tem que valorizar outras pequenas coisas. Eu contei esse exemplo pra todo mundo, porque eu acho legal contar: quando eu saí do isolamento, eu fui liberado, eu fui na padaria comprar pão e a padaria estava com fila. Se você soubesse a curtição que eu tive de ficar na fila para comprar pão, você não acredita! Parecia que eu estava na fila da Disneylândia! Sabe aquela criança quando vai para a Disney pela primeira vez? É a mesma coisa. Então a gente começa, quando a gente fica doente, e fica ali naquela situação de vai ou não vai, você começa a valorizar as pequenas coisas, então isso me deu uma lição muito grande. Tem que valorizar, tem que estar com a família, tem que curtir. Dá pra fazer tudo, a seu tempo.
P/1 – Marcelo, eu teria muitas outras perguntas, mas estou um pouco preocupada com o tempo.
R – Para mim dá mais uns quinze minutos aí.
P/1 – Ah, é?
R – É, eu seguro mais uns quinze minutos, tranquilo. Eu não sei eles aí.
P/1 – Queria te perguntar se você percebe se há alguma influência do porto na cidade de Santos.
R – Sim, bastante. É a maior geradora de emprego direto e indireto é o porto, não é? Porque quando a gente fala em porto, não são só aquelas pessoas que trabalham na atividade portuária, na zona primária. Quando a gente diz a zona primária é onde os navios ficam atracados. Tem desdobramento para todas as outras funções. Transporte, modais de caminhão, ferrovia, documentação. Isso acaba gerando renda para outros tipos de serviços, não é? Shopping, restaurantes. Então o reflexo negativo na geração de emprego no porto reflete diretamente na região, para todas as outras funções. Então a região da indústria de Cubatão e o Porto de Santos são as molas propulsoras para geração de emprego para a região, não tem como dizer o contrário.
P/1 – E, para você, o que representa ter gerações trabalhando no porto, da sua família, e hoje você trabalhar no porto, seu filho, o que representa essa linhagem toda no porto?
R – Olha, eu diria que todos eles são um bando de malucos. Brincadeiras à parte, tomaram as decisões deles, cada um teve uma motivação para isso, não sei quais. A minha foi de: “Pô, eu vou, é algo grandioso, que eu possa crescer, fazer coisas diferentes”. Mas o que marca da minha família estar no porto é que não tem uma pessoa que fale mal dos meus parentes no porto. Então isso daí é um legado. Na verdade, é um legado. E não só pai, avô, como tios e primos. Isso é gratificante, falam: “Ah, tu é neto de fulano de tal, filho de beltrano, tu é primo disso, sobrinho de... trabalhei”, sabe assim? Eu não vejo as pessoas falando mal, que era um péssimo trabalhador, caráter, esse tipo de coisa. Tinha um que era mais duro do que o outro, mas tudo na linha da educação. E cada um dentro da sua atividade, respeitando a sua atividade. Isso, para mim, é gratificante. Isso que eu levo pro meu filho, eu falo assim: “Filho, tu tem que deixar uma história, tem que deixar um legado, tu não vai agradar todo mundo, é natural. Ainda mais agora, no mundo competitivo que a gente vive, diferente do teu avô, o teu bisavô, que era muito mais na amizade, enfim, hoje o mundo está competitivo”. Então tudo que você faça de diferente, algumas pessoas enxergam de forma diferente, como se fosse defesa de mercado, enfim. Mas você tem que ser transparente. Tem que ser transparente, fazer as coisas corretas. Então respeitar sempre os princípios e valores que foram ensinados. Até então, até meu pai, não digo por mim, todos eles têm uma boa história no porto.
P/1 – Marcelo, e a faculdade, você gostaria de comentar como foi essa experiência para você?
R – Foi, como eu falei: um sonho de garoto que eu realizei, tive alguns momentos da minha vida que eu queria exercer, quando eu já estava assim, meio cansado do porto, porque que cansa, mas depois que tu dorme, descansa o final de semana, você volta com a pilha recarregada, a bateria recarregada, você esquece tudo que você achou na sexta-feira. Pensei em advogar, mas aí depois desisti, porque a celeridade do poder jurídico é diferente da minha. Eu não tenho paciência, eu sou muito acelerado. Eu não vou ter paciência, eu vou me frustrar. Mas a faculdade me trouxe alguns aprendizados. O mundo jurídico é amplo. A linha jurídica serve para tudo, na vida. Então hoje a questão trabalhista, a questão das relações sindicais. Pô, a bagagem que eu tive na faculdade me ajuda no meu dia a dia, no porto. Eu fiz uma pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário. Então o Direito ramifica pra vários segmentos e me ajudou bastante. Não posso dizer, não é porque eu hoje não sou um advogado que eu vou me sentir frustrado, não. Acho que a graduação me deu uma bagagem para minha função atual.
P/1 – E o que o Porto de Santos representa na sua história? Qual é a importância?
R – Olha, ela me fez me encontrar, no sentido assim, profissional, do que eu realmente gosto de ser, como eu gosto de ser, na parte comportamental. O que eu sou na empresa, eu sou em casa. Eu não sou um personagem, eu sou eu (risos). Então eu encontrei a forma, a minha forma de viver e eu só tenho a agradecer ao porto, porque hoje, o que eu tenho é graças ao porto, às oportunidades que o porto me deu. Financeiro, de conhecimento, de conhecimento técnico, como também de conhecimento de pessoas, network. Só tenho a agradecer, não tenho o que me queixar. Tanto é que, quando o meu filho optou em fazer isso, eu falei: “O mundo está começando a ficar mais difícil, mas, assim, vai em frente. Vai em frente, a dificuldade que tu vai encontrar no porto, você vai encontrar em qualquer outro segmento”. As coisas estão começando a ficar mais difíceis, mas não pode desistir, não é? Tudo que eu tenho hoje é graças ao porto, como fazer, ajudou a formar meu caráter, eu tive grandes líderes. Eu costumo dizer isso para meus coordenadores, que a gente tem que fazer do trabalho um aprendizado, eu trabalhei com várias pessoas, vários líderes e se vocês me perguntarem qual foi o melhor e o qual foi o pior, nenhum deles era o melhor e nenhum deles era o pior. Eu tive a habilidade de tentar colher o melhor de cada um. É o que eu falo pros meus coordenadores: “Não existe líder melhor ou pior, existe o líder, tem que saber buscar o que cada um tem de melhor, porque eles são gente também, eles têm um dia bom, um dia ele não está com a cabeça boa, um dia ele vai te dar uma resposta meio atravessada, mas, enfim, tem que saber ter essa habilidade”. Só tenho que agradecer ao porto. Em tudo, financeiramente falando, como pessoa, contribuiu muito.
P/1 – E quais são as coisas mais importantes para você, hoje?
R – No geral? Olha, a família. Se a família não entender o trabalho do portuário, é difícil, porque é puxado. Sem desmerecer as outras atividades, é que as outras atividades você se desliga, você vai final de semana, vai para casa e desliga totalmente. O porto não, o porto te consome 24 horas por dia. Então a família tem que te dar esse suporte. Se a família não estiver bem estruturada e entender o que você faz, você não trabalha bem e em casa também as coisas não ficam bem. Quando você já tem um alicerce, que é a família bem estruturada, você aguenta trabalhar cinquenta anos no porto. Então, para mim, é a família, as relações com as pessoas no trabalho, ter uma relação muito transparente, às vezes eu falo até coisas que as pessoas não gostam. Mas eu falo assim: “Mas eu falo, tu não vai ouvir por terceiros, né?” E a relação transparente, para mim, é tudo. E saúde. Enquanto você tem saúde, você tem força para buscar as coisas. As oportunidades têm, escassas ou não, aparecem, aí você tem que estar preparado para isso. Então é família, saúde e as relações com as pessoas, não tem outra forma, o resto você consegue caminhando.
P/1 – E quais são seus maiores sonhos, hoje?
R – Olha, eu tenho um, assim, posso dizer que é o maior. Tem outras coisas que almejo, mas assim: eu quero... eu já estou com cinquenta anos, então assim, eu tinha um projeto de vida: com cinquenta anos começar a desacelerar, mas agora, com um filho de seis meses, não dá mais. Então eu mudei meus planos. Eu quero ver se, pelo menos até os sessenta anos, eu continuo nessa vida agitada e depois disso não dá para parar, mas, assim, fazer algo mais... ministrar aulas dentro do que eu gosto de fazer, do que eu sei fazer. Consultoria, fazer algo diferente, menos acelerado, mas não sair disso. Quero continuar no porto até morrer, eu não quero parar, não quero ficar assistindo televisão. Eu não quero parar, mas eu quero desacelerar. Meu objetivo é estar com saúde, estar atendendo ao mercado até os meus sessenta anos e depois a gente fazer alguma coisinha diferente, ajudando a juventude aí, com um pouquinho de história.
P/1 – Marcelo, a gente está caminhando pro fim, eu queria saber se você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma história ou alguma passagem da sua vida que eu não tenha perguntado, deixar alguma mensagem.
R – Não recordo de nada, mas a mensagem, como eu falei: o porto tem um mosquitinho, quando ele morde a pessoa ou ela entra ou ela não entra. Ela pode até começar, mas eu já vi casos de funcionário com uma semana de trabalho entregar as ferramentas de serviço, coletor, documentação e falar: “Pega isso aqui que isso aqui não é pra mim”. E realmente essa pessoa nunca mais voltou para o porto, ela foi fazer outras coisas da vida. Então quem está no porto está porque gosta, se apaixonou. Nesse momento de pandemia, uma das atividades que não parou foi o porto. A empresa onde eu trabalho, mil e quinhentos funcionários, administrativo ficou no home office; o pessoal operacional, a linha de frente tocou a vida, se arriscou, porque é a porta de entrada de todas as mercadorias. Onde faz girar todo produto de consumo, seja alimentício, farmacêutico, seja o que for. Então ele faz a coisa acontecer, girar todo esse produto para poder cascatear para outros segmentos. Então o porto... é isso que apaixona a gente, a garra da turma num momento assustador da pandemia, que foi no ano passado. As empresas fizeram todos os controles de saúde, seguiram todos os protocolos de saúde, um pouco mais e o que a gente enxergava de que era necessário fazer foi feito, os funcionários cumpriram, entenderam essa necessidade. Ficou claro para eles que se para o porto, e aí era o porto, no sentido de mercadoria, para todas as outras coisas. E, mesmo não parando, você vê as dificuldades que têm, automobilismo mesmo, a falta de peças. Tu vai comprar um carro hoje, você tem uma dificuldade. Então, é isso, a mensagem é essa: o porto é apaixonante. É apaixonante. Quem entra dificilmente consegue sair, dificilmente consegue sair.
P/1 – E como foi, para você, dividir um pouco dessa história com a gente, ter lembrado um pouco da infância?
R – Para mim foi tranquilo, porque isso aqui que eu tô fazendo, eu faço com meu filho, esposa, às vezes alguns primos que também são da área. A gente, nesses churrascos, como eu falei, fica conversando. Então, pra mim, foi muito tranquilo. Foi mais tranquilo do que da última vez que eu fiz algo, que eu tive que decorar algumas falas. Então para mim é muito natural falar disso, porque eu falo sempre. E é lógico, a gente não lembra de tudo num primeiro momento, a gente vai conversando e vai vindo algumas coisas na cabeça, porque é muita coisa. Então, assim, destacar algo de suma importância, para mim tudo é importante. Quando a gente faz com prazer e gosta. É o que eu falo: no dia que eu não tiver mais tesão de entrar no porto, eu peço para ir embora. Falo assim: “Me dá o que é meu aí, eu vou fazer outra coisa da vida”. Então tem que ter tesão de trabalhar no porto.
P/1 – Marcelo, muito obrigada pela disponibilidade, por tudo!
R – Eu que agradeço.
P/1 – Por ter compartilhado com a gente, foi muito gostoso conhecer um pouquinho mais sobre esse mundo, que a gente acaba ficando um pouco distante mesmo, né?
R – Eu que agradeço a oportunidade. Se precisar voltar, se ficar tudo ruim aí, me chama de volta, que a gente faz tudo de novo (risos).
P/1 – Imagina!
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