P/1 – Nanci, você pode falar o seu nome completo?
R – O meu nome é Nanci Fiorini Marçal, eu tenho 31 anos.
P/1 – Você nasceu em que data?
R – Catorze de março de 1983.
P/1 – Em que lugar?
R – No Hospital Modelo.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Isso.
P/1 – Nanci, seus pais são de São Paulo?
R – Meus pais eram sim, mas eles já são falecidos, os dois.
P/1 – De onde que era o seu pai?
R – Meu pai era do Rio de Janeiro, de Nova Friburgo, a minha mãe era daqui de São Paulo mesmo.
P/1 – E seus avós também são do Rio de Janeiro? Os pais do seu pai?
R – Eram, eram sim.
P/1 – Você conheceu?
R – Não. Não, quando eu nasci, eles já tinham falecido.
P/1 – E a sua mãe, os pais da sua mãe são de São Paulo?
R – Eram. Eram também, já são falecidos. Mas eles, eu conheci.
P/1 – O que eles faziam?
R – O meu avô… eu os conheci, assim, aposentados já em casa. Mas o meu avô, eu sei que ele já tinha sido lixeiro, mas eu não sei dizer assim, te explicar o que ele fazia.
P/1 – Mas ele contava história da época que ele era lixeiro? Seu pai e sua mãe contavam?
R – Não, eu não lembro. Eu era muito pequena. A minha tia que de vez em quando conta.
P/1 – Que história que ela conta?
R – Uma vez comentou comigo que ele já havia sido lixeiro, que eu vi uma matéria na TV falando sobre lixeiro, e eu falei: “Nossa…”, porque na reportagem falava, eles falavam que eles eram mal tratados e aí, eu acordei de manhã um dia e comentei com a minha tia. Aí ela falou uma vez: “Seu avô foi lixeiro”, mas foi só isso, foi um comentário.
P/1 – E você sabe como o seu pai e a sua mãe se conheceram?
R – Não, não sei.
P/1 – Quantos anos você tinha quando eles morreram?
R – A minha mãe faleceu eu tinha oito anos e o meu pai, foi mais ou menos com a mesma idade, oito para nove anos.
P/1 – O que o seu pai fazia?
R – O meu pai trabalhava numa fábrica de copo e a minha mãe era copeira na Phillips.
P/1 – Quando você era criança, eles viviam juntos, eles eram casados?
R – Não, meu pai se separou da minha mãe logo que eu nasci.
P/1 – Você teve contato com o seu pai?
R – Tive, mas era semanal assim, não, era quinzenal.
P/1 – E você tem mais irmãos?
R – Tenho. Nós somos quatro. Eu tenho uma irmã mais nova.
P/1 – E tem duas mais velhas?
R – E dois mais velhos já casados, já sou tia.
P/1 – E quando o seu pai e a sua mãe casaram, eles foram morar onde? Onde vocês nasceram?
R – Na verdade, ela só mudou de casa, porque ela morava no Itaim e veio morar para aqui, na zona leste, na Ponte Rasa.
P/1 – E era a casa onde você nasceu?
R – É a casa que eu fui criada.
P/1 – Como é que era essa casa?
R – Era uma casa de um fundo de quintal, você entrava assim, direto na cozinha, o armário na cozinha, assim vermelho, aquele fogão antigo com o pé alto, sabe, vermelho também, que na época, combinava o fogão, o armário e a geladeira. Era vermelho. E eu e a minha irmã sempre gostamos de riscar as paredes, então estava tudo pintado.
P/1 – E como que vocês dormiam nos quartos, como é que era?
R – Era um quarto e a gente dormia todo mundo junto, assim. Era um quarto com três camas.
P/1 – E o que a sua mãe fazia?
R – A minha mãe, nessa época, ela já não trabalhava mais, ela ficou doente. Quando eu nasci, ela já não podia ter filhos, ela já tinha tido um infarto. Então, ela já não podia ter mais filhos e ela já estava doente, já dependia muito da gente pra fazer as coisas. Mas enquanto não era doente, ela sempre lutou muito, batalhou muito, porque ela criou a gente sozinha, longe do meu pai.
P/1 – Mas quando você nasceu, ela não trabalhava mais?
R – Não, não, ela já tinha ficado doente.
P/1 – E quem sustentava a casa?
R – Ela tinha uma aposentadoria. Porque a firma era boa, na época, então não deixou desamparada, deixou com aposentadoria, todo final de ano a gente ganhava brinquedo dessa firma, várias bonecas legais.
P/1 – Que firma que era?
R – Era a Phillips. Aí depois, você chegava, tinha o quarto assim, era uma parede amarela e com as três camas e assim, um corredorzinho, tinha um banheiro pequeno. Tinha um tanque, depois tinha um quintal e dava no corredor. Tinha um quintal, descia o degrau grandão, eu lembro que eu caí de andador ali, eu quebrei o dente. Esse dente da frente. Eu fiquei banguela durante tanto tempo, tem tanta foto minha banguela, mas eu falei: “Essas eu não vou levar” (risos).
P/1 – Você já andava com o andador?
R – Não, não, isso era andador de criança.
P/1 – Ah, quando você era criança?
R – Isso. Aí, o andador caiu do degrau da cozinha e eu caí e quebrei o dente.
P/1 – E aí, quando você conheceu o seu pai, ele já era separado da sua mãe?
R – Não, eu sempre conheci o meu pai, mas eles nunca… depois que eu nasci, nunca mais ficaram juntos.
P/1 – Mas ele visitava vocês? Vocês iam para casa dele?
R – Visitava.
P/1 – Como é que era?
R – Meu pai, ele não nos levava para casa dele, mas ele ia visitar sempre que podia. Era sempre quando recebia, no final do mês assim, ou no começo.
P/1 – Ele ajudava a sua mãe?
R – Isso! E comprava muito doce, cada vez que ele ia lá, a gente tinha um bar na rua que ele sempre ia comigo no bar e a gente comprava um monte de doce.
P/1 – O que mais que você lembra do seu pai?
R – O meu pai, ele era moreno, alto, grandão assim, só que ele bebia muito, ele sempre bebeu. Aí, a bebida foi acabando com ele, mas ele sempre trabalhou, sempre lutou, sabe, assim? É que a bebida foi levando ele embora.
P/1 – Você lembra dele bebendo?
R – Meu pai bebendo? Não, eu nunca peguei essa parte, sempre me falam, eu vou mais pelo o que me falam, porque assim, ele morava em Pirituba e eu morava na Zona Leste, então a gente acabava não tendo um contato assim, mas eu sei que ele bebia bastante.
P/1 – E ele morreu do quê?
R – Provavelmente, de cirrose. Eu fiquei sabendo por acaso por uma vizinha que chegou pra mim e perguntou: ‘Por que você não foi no enterro do seu pai?”, eu falei: “Porque ele não morreu”, aí o meu irmão, que na época, depois tomava conta de mim, eu perguntei e ele me falou: “Não, seu pai morreu. Só que eu não ia te contar agora”.
P/1 – Sua mãe já tinha morrido?
R – Já, minha mãe faleceu em 26 de novembro de 1992.
P/1 – Quanto tempo depois seu pai morreu?
R – Eu não lembro, eu não fui nem no enterro.
P/1 – E o que você lembra da sua mãe?
R – A minha mãe, a minha mãe era a melhor pessoa do mundo. A minha mãe era (choro emocionado).
P/1 – Se emociona, né, de lembrar? (pausa) É normal, Nanci. A gente se emociona quando a gente começa a lembrar, acontece com todo mundo, viu?
R – Minha mãe… (choro) eu não vou conseguir…
P/1 – Não tem problema, a hora que você conseguir, como você conseguir…
R – A minha mãe sempre foi muito guerreira, ela sempre trabalhou, trabalhou na firma, depois teve que ficar tomando conta da gente, mas nunca faltou nada, nunca ela deixou faltar nada, era casa simples, mas nunca faltou nada, nunca a gente precisou pegar nada de ninguém. A minha mãe, ela era alta, ela era filha de italiano, então ela falava muito com a mão assim, e também fazia muita comida, que hoje eu me lembro, mas eu nunca consigo fazer uma.
P/1 – Que comidas que ela fazia?
R – Ela fazia bolinho de chuva, ela fazia uma gelatina com água de beterraba, que eu gostava de comer, ela tinha uma forma que era branca de plástico e tinha uns desenhos assim, em volta do lado de dentro, então, você punha a gelatina, endurecia, aí você virava a gelatina num prato assim, eu lembro que ficava em volta da mesa, eu e a minha irmã, esperando a gelatina cair no prato. Aí, ela ficava com os desenhos da forma, então ela ficava alta assim. Tinha o bolinho de chuva, ela detestava quando ela estava fritando, você ia lá e comia. Mas eu sempre fazia isso (risos), sempre…
P/1 – Você era levada?
R – Bastante, bastante.
P/1 – O que você aprontava?
R – Meu irmão, na época, era marreteiro na rua. E ele chegava do serviço, sempre trazia doce, eu sempre foi formiga, ele sempre trazia doce, um dia ele não trouxe doce, eu falei: “Como que ele não trouxe doce?”, e eu fui mexer na carteira dele, para ver se caía bala e a minha mãe tinha lavado a cozinha, a cozinha tava molhada, cheia de água e os documentos dele todos caíram no chão. Ele acordou e viu que estava, ele ficou bravo, eu não gostava de dormir no berço e a minha irmã não gostava de dormir na minha cama, aí ele inverteu, ele colocou uma no berço e uma na cama, a gente chorou a noite inteira, ninguém dormiu (risos). Mas ele é mole, ele é grandão, mas ele é mole, não adianta. Aí, ele no meio da madrugada, foi lá e trocou (risos). Acho que ele pensou: “Se eu não trocar, eu não vou dormir. Então é melhor eu trocar” (risos). Mas eu comecei a andar, quer ver, nessa época eu engatinhava, eu comecei a andar, eu tinha nove anos, porque eu tenho paralisia cerebral.
P/1 – Você nasceu assim?
R – Eu nasci com paralisia cerebral, com anoxia de parto.
P/1 – Com o quê?
R – Anoxia de parto, quando falta ar ou quando o cordão nasce enrolado no pescoço e faltou oxigênio no cérebro, então eu tenho essa paralisia por conta disso. Tenho escoliose também, eu digo que eu tenho um pouquinho de tudo, que eu passei ali na prateleira: “Quero um pouquinho disso, daquilo, isso aqui também, isso aqui para não fazer falta”, eu tenho um pouquinho de tudo, mas nem por isso eu desisto. Eu não coloco na minha cabeça: eu sou deficiente e simplesmente paro, claro, tem dia que eu estou reclamona, tem dia que eu levanto de mau humor, mas eu nunca desisto do que eu quero.
P/1 – Quando que você descobriu e entendeu que você tinha paralisia cerebral? Que você era diferente das outras crianças?
R – Quando eu tinha sete anos, eu perguntei para o meu irmão assim, sentado no mesmo degrau da… eu perguntei porque Deus tinha feito todas as crianças normais e eu não. Aí, ele me explicou, primeiro ele chorou bastante e ele me explicou que foi porque Deus não quis. Mas eu acredito que eu vim assim, com esse problema até por ser umbandista, eu vim com esse problema ou para corrigir alguma coisa lá de trás, ou porque alguém lá em cima confia muito em mim, sabe que eu posso carregar. E enfim, eu tenho um lema, se te derem um limão, faça uma limonada e vai em frente, não desiste, mas eu sempre… eu brincava na rua, no colo de uma prima minha que ela não mandou foto, ela pulava corda comigo no colo, tinha até uma musiquinha que a gente cantava que era: “O homem bateu em minha porta e eu abri…” e por aí vai, e ela pulava comigo no colo, no meio da rua. A gente brincava, eu ficava vendo minha irmã brincar de mãe da mula. Eu ficava sentada no portão de casa muitas vezes. Às vezes, eu ia para casa de uma amiga.
P/1 – Você ia como?
R – Vinham me buscar, não dava pra ir sozinha. Mas eu sempre fui muito… a minha irmã, às vezes, me batia, eu tacava a muleta na cabeça dela (risos), eu sempre fui muito levada.
P/1 – E você tinha que ir para médicos?
R – Tinha. Eu fiz tratamento na AACD, minha mãe me levou para fazer esse tratamento na AACD.
P/1 – Como que era esse tratamento lá na AACD? Você lembra?
R – Só não tinha alfabetização, agora, a parte de fisioterapia, tudo, essa parte tinha, sim. Eu fazia turbilhão que era uma banheira grandona que ficava com água movimentando quente para mexer com a musculatura, tinha um exercício que eu adorava fazer que era o da bola, que é para treinar equilíbrio, é uma bola grandona, você senta em cima e a fisioterapeuta empurra, adorava fazer isso. E só tinha uma fisioterapeuta que eu gostava, o nome dela era Carla, quando ela não ia, tinha uma japonesinha que era chatinha, não gostava dela, não fazia nenhum exercício com ela.
P/1 – Você tinha amigos lá na AACD?
R – Olha, eu era bem pequena, não vou te falar que eu lembro, porque eu não vou lembrar.
P/1 – E a escola, com quantos anos você entrou?
R – Na verdade, eu aprendi a ler e a escrever numa padaria. Uma amiga da minha tia que me ensinou a ler e a escrever, então eu já fui para a escola sabendo ler e escrever, porque as escolas que eu frequentei, antes do Cieja, elas não tinham a parte de alfabetização. Então, eu ia mais para fazer fisioterapia mesmo, porque na AACD, você tem um limite de idade, não é para a vida toda, tem um limite de idade e eu ia para essas escolas mais para fazer fisioterapia, então eu fui para o Recanto Arco Iris, eu fui para Associação Sementinha, onde eu fazia um trabalho voluntario com as professoras que era que eu tomava conta das crianças com Síndrome de Down, os bebês.
P/1 – Mas aí com quantos anos?
R – Ah, eu devia ter já uns 15 para 16 anos.
P/1 – E como que você começou a andar?
R – Meu tio, Uriel, ele construiu para mim, um andador feito de cano, aquele cano PVC marronzinho e eu andava muito na rua nesse andador, era um andador sem rodinha, sem nada e eu comecei a andar nele, ele me fazia ficar dando voltas e voltas na rua para eu ficar com a perna forte e conseguir ficar em pé e andar. Mas eu sempre corri muito para médico, fiz cirurgia, muita coisa.
P/1 – Depois que os seus pais morreram, quem tomou conta de vocês?
R – Então, foi o meu irmão mais velho, o Edmilson, com esse que eu morava antes de vir morar com a minha tia. Só que um dia aconteceu um acidente, ele trabalhava de noite e vinha para casa só de manhã, ele era segurança. E eu levantei de manhã, falei que estava com fome, ele pôs a forma em cima da mesa, foi para cama, acendeu um cigarro e dormiu e eu fui para a cozinha para fazer café, eu coloquei a água do café numa boca e o leite na de trás para ferver, quando eu fiquei na ponta do pé para olhar o leite se estava fervendo, a minha blusa foi parar na boca do fogão e nisso eu já devia ter uns 11 anos e aí, o fogo subiu na roupa e eu gritei muito até que a minha irmã acordou, chamou o meu irmão, depois eu acabei indo parar no hospital, aí depois que eu sai, eu já fui para a casa da minha tia.
P/1 – Você se queimou muito?
R – Queimei. Queimei aqui, começa aqui no pescoço e termina aqui.
P/1 – Você foi para casa de qual tia?
R – Neusa. Ela está nas fotos. E assim, eu agradeço muito porque se eu consegui chegar até onde eu estou hoje foi por eles, assim, de falar: “Vai lá, você vai conseguir”, eles nunca me deixam desistir.
P/1 – E seus irmãos ficaram morando lá? Só você foi para a tia Neusa?
R – Meus irmãos moram lá, só eu vim para casa da minha tia.
P/1 – Onde que era a casa da tia Neusa?
R – É aqui na zona Norte, no Tucuruvi. E lá que eu moro até hoje.
P/1 – E como é que foi a mudança de você sair dos seus irmãos e ir morar com a tia Neusa?
R – Não foi tão grande porque eu sempre ia passar férias, né? Então, não foi tão chocante, assim, sabe? Foi tranquilo. Eu gosto.
P/1 – Quem morava lá?
R – Mora lá?
P/1 – Naquela época, quem morava?
R – Eu, minhas primas que eram pequenas e o meu primo e a minha tia e o meu tio. Hoje, eles casaram, cada um tem a sua família, então estamos só eu, a minha tia e o meu primo com a esposa, Joana e o meu sobrinho, Joaquim.
P/1 – Como é que é a sua tia Neusa? Como é que ela era com você lá?
R – Ela é legal, a gente se dá muito bem. Eu converso bastante com ela.
P/1 – Você lembra do primeiro dia que você mudou para casa dela?
R – Faz mais de 20 anos. Não, não vou lembrar, faz mais de 20 anos.
P/1 – Mas o que mudou na sua vida de lá para cá?
R – Mudou muita coisa, porque assim, eu quase não tinha como ir para médico, essas coisas. De lá, não tinha como, então desde essa época pra cá já ficou mais fácil, ela me leva, a gente vai para festa de família, a gente vai junto, vai para o centro, eu procuro fazer tudo que eu posso, mesmo dentro das minhas limitações. E ela participa de tudo comigo.
P/1 – Ela era religiosa?
R – A minha tia? Ela já frequentou centro espirita, sempre foi católica, não praticante, assim, mas hoje, nós somos umbandistas.
P/1 – Quando que você começou a ser umbandista?
R – Na verdade, o meu pai era, meus pais já eram, só que eu não… por ser muito pequena, sempre mantive uma distância. Agora, depois de adulta é que eu resolvi mesmo há dois anos atrás entrar para Umbanda e trabalhar.
P/1 – Por que você resolveu?
R – Porque eu frequentava o centro, mas assim, sempre tive vontade assim, mas na época dos meus pais eu ainda era pequena e tinha medo. Então, eu comecei a ir nesse que eu vou hoje e gostei, me senti bem, porque religião é uma coisa que você para fazer parte dela, você tem que se sentir bem, você tem que se sentir acolhida e lá, somos uma família, no centro. Eu falo que lá é a minha segunda família, eu adoro todos e todos me adoram.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho lá para a casa da sua tia. Aí, você brincava, o que você fazia lá? Como é que foi a vida lá?
R – Eu adorava brincar de escritório. A gente pegava livros, cadernos, a gente ficava brincando de escritório, eu e minhas duas primas, ou senão, a gente brincava de Barbie, elas tinham tudo, né? A gente brincava de Barbie. Brincava de escolinha, a minha prima tem mania, ela tentava me alfabetizar, então ela falava: “Quais são os movimentos da terra?”, e eu não conseguia decorar, ela falava: “Quais são os movimentos…?”, eu sei que no final, ela queria me matar, a gente brincava também na rua, aí nessa época, a gente fazia bailinho na casa da vizinha que tinha em frente a minha casa, tinham dois sobrados, a gente era amiga da menina, hoje a menina mudou do sobrado, a gente brincava, fazia bailinho, então, a gente comprava aqueles salgadinhos de pacote, sabe aqueles tipo isopor? Comprava esse pacotão, colocava nas mesas assim, ligava o rádio no último volume, colocava umas bolinhas no teto que brilham, e ficava dançando, a gente ensaiava o passo na cozinha, era engraçado, a gente ria muito, tinha um passo que chamava sete oito, se ela assistir isso aqui, ela vai me matar depois, mas eu não tio nem ai, é claro, se estivesse, não estaria falando.
P/1 – Que música que vocês escutavam?
R – Na época, tinha Spicy Girls, New Kids on the Block, tinham muitos, um monte de músicas. Tudo muito antigo, até quando toca uma, eu só falto entrar dentro do rádio, era uma coisa legal de fazer.
P/1 – Você gostava de dançar?
R – Eu gostava de dançar. Eu gosto de dançar. Eu gosto de dançar, eu gosto de cantar, tudo isso me faz bem, me deixa feliz.
P/1 – Quando que você começou a cantar?
R – Não, eu não canto profissionalmente não, eu canto para brincar.
P/1 – Você falou que com 15 anos, você já era voluntária?
R – É, eu na escola que eu trabalhava, que eu fazia fisioterapia, na Associação Sementinha era uma escola para criança pequena com Síndrome de Down. A dona da escola montou a escola porque nenhuma escola aceitou a filha dela que tinha Síndrome de Down, então ela resolveu abrir essa escola e eu estava procurando, eu precisava fazer fisioterapia, eu precisava… então, eu não tinha a parte de alfabetização, mas eu tinha umas aulas particulares, eu tinha aula de inglês, eu tinha aula de computação e tinha a parte terapêutica que era a que eu precisava.
P/1 – Nessa Sementinha?
R – Isso. Era em Altinópolis.
P/1 – Zona Norte?
R – Depois, foi para Maria Amália, na zona Norte.
P/1 – Quem te levava?
R – Eu ia de perua, com a perua escolar.
P/1 – Mas era a sua tia que pagava?
R – Não, a perua não era paga, não.
P/1 – A Sementinha?
R – Era. Era ela que pagava.
P/1 – Aí lá mesmo, você ficou como voluntária?
R – Fiquei, fiquei, aí a gente fazia jantares para arrecadar fundos para a escola, porque estava começando. Então, eu ia lá apresentar os shows. Uma vez eu apresentei um show dos Vips lá no restaurante, na serra, no Cabana Verde, se eu bem me lembro. E eu apresentei. Eu me lembro que esse dia estava um frio e eu fui de vestido de bolinha porque era festa anos 60, então, consegui com a minha psicóloga, um vestido branco com aquelas bolas pretas, sabe? Aquele laço gigante atrás. Lá fui eu, o maior frio e eu lá (risos). Mas eu não estava sentindo nenhum frio. Eu lembro que aquele vestido teve que abrir para passar, porque como eu tenho escoliose, é ruim de… às vezes, uma roupa não me serve, por causa das costas serem maiores. Aí, ela teve que abrir o vestido para mim, mas eu queria entrar dentro daquele vestido de qualquer jeito. Aí depois, eu ia para a casa da dona da escola, que era na serra. Eu ia, ficava lá, depois ela me levava embora.
P/1 – Bacana, ela?
R – Era bacana. Ela chama Patrícia Cristiano Delgado.
P/1 – Quanto tempo você ficou nessa escola?
R – Uns três anos.
P/1 – E você era voluntária?
R – Era.
P/1 – Como que era o horário de aprendizado e para ser voluntario?
R – De aprendizado era… a aula de inglês era com ela mesma, com a Patrícia.
P/1 – Mas tinham outras crianças, outros jovens?
R – Não tinha…
P/1 – Era só você?
R – Era só eu, então era bom e não era. Era bom porque era só eu, então era tudo pra mim (risos), mas era ruim porque eu sentia falta de pessoas da mesma idade para conversar, mas eu cuidava das crianças meio período, à tarde e de manhã, eu ficava no telefone, no almoxarifado.
P/1 – Como que era cuidar das crianças, o que você fazia?
R – A professora precisava sair um minuto para ir ao banheiro… porque eu também não tenho muita coordenação, então, se acontece alguma coisa, eu não consigo correr e pegar, mas assim, eles ficavam todos sentadinhos. Eu fazia mais bagunça do que eles, no fim (risos). Eles pintavam o rosto com tinta, eu pegava e pintava o pé deles e colocava no papel pardo assim, depois pendurava pela escola. Era bem legal. E de manhã, eu ficava no telefone agendando alguma festa, ou ligando para algum lugar para conseguir alguma doação, porque às vezes, fazia festa junina, fazia feijoada e essas coisas tinham que ser na escola, quando era… ai, eu lembro que uma vez eu falei com o Leandro Lehart do Art Popular, ele pediu para falar com a dona da escola, eu: “Mas quem gostaria?”, ele falou: “Leandro Lehart”, eu: “Quem?”, eu não sabia se eu soltava o telefone ou se eu ia lá… (risos), ou se eu gritava, porque a minha vontade era abraçar o telefone e gritar: “Patrícia”. Aí, eu: “Pati, o Leandro Lehart está no telefone”, ela: “Ele falou que ia ligar”, eu: “Tá bom, desculpe, hein!”, desliguei e deixei ela falar. Mas eu ligava na padaria, no açougue, pra conseguir pão, carne para fazer… tinha o irmão dela, que era o Alexandre, ele me chamava de Dona Maria, eu detestava que ele me chamava de Dona Maria. Ele me assustava, ele falava: “Dona Maria, sai da lata”, eu dava cada pulo, falava: “Alexandre, eu vou te bater”. Isso foi em 1900 e… deixa eu ver… é, 1990 e… minha mãe morreu em 92, é 93.
P/1 – E você continuava tendo contato com os seus irmãos?
R – Eu continuo, a gente tem…
P/1 – Naquela época vocês tinham contato?
R – Tínhamos, a gente nunca se afastou assim, eu saí porque eu tive necessidade, não tinha como eu ficar lá do jeito que eu estava, mas não que a vida fosse ruim com eles, mas é que eu precisava de um pouco mais.
P/1 – E vocês se encontravam quando, de fim de semana?
R – A gente se encontra de fim de semana ou quando tem alguma festa de família que eu tenho que ir para lá. A gente se encontra. Não que a gente tenha perdido, isso eu nunca quis. Nunca falei: “Vocês que fiquem ai”, não, a gente tem sempre o contato, hoje existe o santo Facebook, graças a Deus. A gente vai se falando, tem telefone. A gente se encontra quando dá, tudo bem que às vezes, eles pisam na bola comigo, que eles falam que vão me buscar e não vão, aí eu fico meio com cara de idiota, mas tudo bem.
P/1 – E voltando um pouco lá, aí você ficou três anos nessa Sementinha…
R – É.
P/1 – E depois?
R – Depois, deixa eu ver se eu lembro, porque nunca ninguém procurou tanto (risos). Aí depois, eu fui para padaria, para a Maria Helena pra aprender a ler e a escrever direitinho.
P/1 – O que era essa padaria?
R – Tem até hoje, é na rua da minha casa. Ela é dona da padaria. Aí, ela se ofereceu para me ensinar a ler e a escrever e eu topei. Eu nunca gostei muito de fazer conta, Matemática não é comigo, a Gisele vai me matar, porque ela é minha professora de Matemática, eu sei, eu já estou sentindo, mas tudo bem, também, não tem problema. Mas eu sempre gostei de História, de Português e ela me dava muito texto pra ler, meu tio também me dava muita cópia pra fazer, meu tio achava chato, mas sabe por quê? É que na época, na padaria, eu comia pão fresquinho, pegava o pão quentinho, passava manteiga e comia. E quando ela tinha que me dar Matemática, ela falava: “Eu te dou uma carolina se você acertar” e eu tomava sempre. Mas eu aprendi a ler com ela e agradeço muito também…
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Aí, já era 16 para 17 anos.
P/1 – E você começou a ler? Você pegava livros para ler, revista? O que você lia?
R – Revista, porque tinha letra grande, era mais fácil. Ela me dava umas revistas interessantes, não era revista de fofoca, era revista do meio ambiente, essas coisas. E aí, hoje eu sou meio assim, eu não tenho muita paciência para ler, mas eu leio. Mas é porque tem internet, né? É mais rápido.
P/1 – E quanto tempo você ficou aprendendo com ela lá na padaria?
R – Acho que uns dois anos, mais ou menos.
P/1 – Você ia todo dia para padaria?
R – Todo dia eu ia.
P/1 – Como que você ia para lá?
R – Andando.
P/1 – Aí, você já usava andador? Que andador…
R – Nessa época, eu não usava andador. Eu lembro…
P/1 – Você andava sem andador?
R – É.
P/1 – Você já estava fortalecida?
R – Já. Só que como eu cresci, aí a escoliose cresceu junto, entendeu? Hoje, está um pouquinho mais complicado, mas eu não deixo de fazer… agora eu estou com um projeto de fazer um blog para pessoas com deficiência mesmo, pra gente poder trocar experiências, porque você, às vezes, fala assim, o deficiente fala assim; ‘Eu tenho um problema”, você fala: “Eu sei”, mas não adianta você falar: “Eu sei”, sabe por quê? Porque você não é deficiente, e tem muita coisa, muitos galhos, muitas minhocas na cabeça que vocês que não têm assim, deficiência nenhuma, não vão entender. Então, eu estou pensando em criar esse blog para isso, para a gente trocar experiências, pra gente… sei lá, se falar de alguma forma.
P/1 – Quais são esses galhos que tem na cabeça?
R – Ah, tem tantos. Eu não queria responder (risos), mas vai, deixa eu ver mais ou menos, tem umas perguntas que de vez em quando eu me faço assim: será que eu nunca vou casar? Umas perguntas assim que eu nunca conto (choro), porque eu vejo as minhas primas todas casadas, sabe? Todas com as famílias, daí eu paro e penso: “Poxa, será que não vai acontecer”?
P/1 – Nesse blog, é um lugar para trocar experiência?
R – É, porque eu acho que do mesmo jeito que eu tenho, outras pessoas, com certeza, têm, entendeu? Mas eu vou falar de outras coisas também, eu vou falar sobre acessibilidade, vou falar sobre direitos dos deficientes, por exemplo, existe, mas não é todo mundo que sabe, tem muita gente que eu vejo que paga condução ainda hoje, a gente não precisa mais pagar condução. Eu nem ando de ônibus, mas eu sei que existe… existem meios de você fazer as coisas sem precisar se matar para fazer, sabe, mas não é todo mundo que sabe. Então, vou falar sobre esporte para deficiente. Esse blog vai chamar “A Eficiência da Deficiência”.
P/1 – O que você sabe de esporte? Você praticou esporte?
R – Não, não, eu vou ter que… algumas coisas eu vou pesquisar. Eu só estou te falando assim, para você ter uma ideia mais ou menos de como vai ser, mas tem… eu já fiz teatro, então tem…
P/1 – Vamos voltar lá pra trás então, para a gente chegar. Depois que você ficou esses dois anos na padaria…
R – Aí deixa eu ver o que aconteceu… depois da padaria, aí eu logo conheci o Cieja, foi no ano de 2005, assim. Eu fiquei um tempo fazendo a Promove, até descobrir que tinha um supletivo para mim, no ano de 2004, 2003, eu entrei e em 2005, eu tive que sair, porque eu tive um problema de saúde e precisava tratar, então eu precisei ficar internada.
P/1 – Que problema que você teve?
R – Eu tive hepatite C, eu precisava tratar, então eu tive que me afastar. Eu não sei como que eu fiquei com essa hepatite, porque a minha mãe já é falecida, eu não sei se foi com transfusão, não sei. Depois, o meu próprio organismo, ela virou uma hepatite autoimune, meu próprio organismo desenvolveu essa hepatite. Então, mas hoje ela está controlada, eu não tenho mais… não faço mais o tratamento.
P/1 – Quanto tempo você ficou internada?
R – Não, não é que eu fiquei internada. Eu precisava… no final do tratamento foi que piorou um pouco, porque eu tive um problema de garganta e tomei um remédio chamado nimesulida e quem tem hepatite não pode tomar esse remédio, não pode tomar remédio de jeito nenhum, então só alguns, mas aspirina C, essas coisas, não pode tomar, porque isso mata o fígado, o meu fígado ficou cheio de ferida por dentro, então, eu tive que ficar comendo coisa… meu fígado, minha boca, estourou umas feridinhas, então eu tive que ficar para comer coisa pastosa, para poder limpar, sabe? Hoje, isso tudo já passou.
P/1 – Quanto tempo durou isso?
R – O tratamento da hepatite? Uns dois anos.
P/1 – Aí, você ficava em casa?
R – Eu fiz no Hospital do Ipiranga o tratamento, porque é um tratamento que tem que ser feito pelo governo, é o governo que banca, porque é muito caro, os medicamentos são caros, ou você come ou você compra esses remédios.
P/1 – Era a sua tia que ia com você no hospital?
R – Era a minha tia.
P/1 – Você ia toda semana?
R – Toda segunda-feira. Eu tinha que tomar uma injeção que só tinha lá. E ela era dada ou no braço, cada dia tinha que ser num lugar, ou no braço, ou na barriga, ou aqui assim. E aí, depois tinha uma reação… eu voltava para casa, mas tinha uma reação violenta e você fica com a imunidade baixa. Então, eu tive duas pneumonias, então eu passei uma parte boa no hospital. Eu tive que dar uma parada. Eu lembro que eu o voltei no ano de 2005 que foi quando eu fiquei internada, no dia 22 de outubro aconteceu uma coisa super legal, as minhas primas, elas são assim, como se fossem minhas irmãs e um dia a minha prima virou para mim, eu estava deitada na minha cama com dor de cabeça, porque a vacina tem uma reação, dá dor nas juntas, então eu ficava com muita dor, dá febre, então podia estar um calor, 39, quase 40, eu estava com 15 cobertas, eu estava morrendo de frio. Aí, a minha prima desceu e falou assim: “Nanci, você tem dinheiro?”, na época, o governo pagava dinheiro para o estudante, era uma ajuda de custo de 60 reais e foi até pelo Cieja que eu recebi, eu tinha o cartão e eu tinha, todo mês, eu tirava esse dinheiro, deixava guardado para comprar alguma coisa, fazer unha. A minha prima um dia, chegou para mim e perguntou se eu tinha dinheiro, eu falei: “Tenho, você precisa?”, ela falou: ‘Não, então guarda que a gente vai no show do KLB”, esse dia eu lembro que eu quase pulei da cama, eu fui no show, mas foi muito difícil, porque uma semana antes, duas semanas antes, eu piorei e eu tive que voltar para o hospital para tomar remédio por causa da pneumonia e eu me lembro que eu fui para o hospital mas pensando: “Putz, não vou no show”, que nessa altura eu já queria me matar, fiz, fiz e consegui ir no show. Eles me liberaram pra ir no show, depois tinha que voltar. Aí eu fiquei no noivado da minha prima, eu fui votar, porque era outubro, eu tive que cumprir o meu dever cívico e ir votar, agora é só uma desculpa (risos), e eu lembro que eu fui para o samba, eu fiz um monte de coisa, aí depois que eu fiquei mais ruinzinha foi que eu voltei, mas depois, voltei para casa e não tive mais que voltar.
P/1 – Aí, você voltou para o Cieja?
R – Então, depois de muito… primeiro, eu fui estudar teatro.
P/1 – Onde você foi estudar teatro?
R – Era numa ruazinha que tinha perto da minha casa, chamava Rua Capricho, lá eles têm um projeto que chama… ai meu Deus, como é que chama? CJ, é o Centro Jovem com atividades para os adolescentes. Eu lembro que na época, eles até que ficaram meio com medo, porque não tinha acesso para mim, mas eu fui, fiz teatro, tenho certificado, tenho fotos, é que eu não tenho a minha senha do Orkut, então eu não trouxe as fotos, as fotos estão no Orkut.
P/1 – Quanto tempo você ficou lá?
R – O curso durava dois anos. Eu recebi todos os diplomas.
P/1 – Que peça que você encenou?
R – Nossa, tinha uma peça chamada Pai de Família, que falava de sonho, que assim, a menina queria ser atriz e os pais eram empresários, então eles queriam que ela seguisse a profissão deles e ela tinha o sonho dela de ser atriz, então ela lutava contra isso e eu fazia a Madalena, que era a empregada da família, era uma empregada folgada, nossa, se eu tivesse uma empregada dessa na minha casa eu mandava embora.
P/1 – Você lembra um trechinho?
R – Aí, eu lembro, porque a fala da Madalena é curta…
P/1 – Fala um pouco.
R – Eu ficava na mesa assim, a madame tomando café, a Melissa e eu sentada na mesa, então ela lia as revistas e eu ia lá assim, para ler (risos), aí ela: “Vai fazer alguma coisa”, eu falava: “Já estou indo, quero só saber o que vai acontecer na novela”, eu virava a página da revista. E o que mais que teve? Teve o curta que eu fiz que era na verdade, era pra ser só uma coisa… um sketch para apresentar para os alunos, no fim, o curta acabou indo parar na internet, no YouTube. Chamava, o curta chamava “Jogando com o poder”, eu lembro que eu que escrevi o texto, eu que dei o nome.
P/1 – Como que era o texto?
R – Era um texto de uma madame dondoca, eu falei: “Já que eu fiz empregada, agora, eu vou enfiar o pé na jaca, quero ser a madame”, eu fiz um texto de uma mulher arrogante, grossa, sedutora… eu escrevi o texto, levei para o professor, ele gostou e acabou indo para o projeto que ele tinha que era o projeto do Ateliê das Artes, meu professor chama Ceceu Trajano, ele acabou colocando nessa; no site, mas eram várias sketchs, não era só a minha e eu fazia a Maria Angélica, que ia sair de noite, ela traía o marido dela. Ela ia sair de noite, aí a empregada queimou o vestido que ela ia usar e ela falava no telefone assim… a moça falava: “Então, eu queimei…” “O meu vestido de brilhantes, de bordado com brilhante, você vai pagar cada diamante que tinha naquele vestido, você está escutando, sua incompetente”, aí ela: “Desculpa”, depois que inventaram uma desculpa, o mundo descambou, era assim. Assim era a Maria Angélica.
P/1 – Aí acabou o curso lá?
R – Acabou.
P/1 – E você não continuou?
R – Não, eu fiz um curta agora para escola, chama “Lola vem me ajudar”, mas é um curta tipo para rodar para pessoas que olham o deficiente com indiferença, sabe? Eu fiz esse curta, a professora chegou para mim e disse que a escola estava com esse projeto de fazer alguma coisa para… porque a gente tem um blog, fazer alguma coisa pra colocar nesse blog. Aí, eu sentei com a professora e fiz o texto, com a professora Vânia, e o curta está no blog…
P/1 – Você fez o texto? E quem que filma?
R – Foi um professor, metade foi o meu amigo.
P/1 – Mas aí depois desse curso de teatro, você voltou para o Cieja?
R – Voltei para o Cieja.
P/1 – E como é que foi a volta? Como é que é lá no Cieja? Vocês aprendem o quê? Quem são os amigos?
R – Então, eu estou no 3C, porque é por módulo, então eu estou no 3C, que corresponde a quinta e sexta série.
P/1 – O Cieja é uma escola da prefeitura? O que é?
R – É uma escola da prefeitura. E lá, eu aprendo agora coisas de quinta e sexta série, acho que o ano que vem… tem mais o não que vem, eu não faço…
P/1 – Quem são os alunos, seus colegas de lá?
R – Na minha sala, tem o Leonardo, Raul, eu não vou lembrar o nome de todo mundo, eles vão me bater depois, mas tem o Leonardo, Raul, a dona Tereza, a Iris, o Carlos, a dona Neusa, a dona Valdenira, tem uma turma boa.
P/1 – Você tem muitos amigos? Você encontra as pessoas lá?
R – Muitos. A gente fez também uma peça no ano passado que eu era do módulo 2, da professora Vânia, a gente fez uma peca chamada “Um palácio muito especial”, onde eu faço a rainha, o Mauro, que é o meu amigo faz o rei, tem mais duas cadeirantes que fazem as filhas. Então, a gente montou um palácio e assim, alguns alunos fazem os gatinhos das princesas assim. E tinha a empregada que queria matar os gatinhos e tinha o guarda do palácio que quem faz é o Leonardo, e a gente chegou a apresentar essa peça no CEU Jaçanã, no final do ano passado e nós reapresentamos ela agora, no começo desse ano, na Uninove, de tanto que o pessoal gostou. Então, as minhas férias foram interrompidas porque eu tive que apresentar a peça. Eu gosto da escola porque eles não ficam só no caderno, naquela coisa chata, a gente faz coisas além, sabe? Eu gosto de aprender na prática, que nem, tem aula de inglês, eu já falei para a professora que eu gosto de aprender falando, não me põe para escrever não, que eu não gosto.
P/1 – Mas você não escreve esses textos? Esses que você falou que você fez?
R – Eu escrevi o da Madalena, eu escrevi com ajuda da professora. O único que eu escrevi sozinha foi o da Maria Angélica. É assim a minha vida, gente…
P/1 – Tem alguma coisa pra perguntar?
P/2 – Eu ia perguntar isso, mas acho que você já respondeu, que parece que você gostou muito de fazer teatro…
R – Eu gosto muito. A única coisa que eu acho que não tem jeito na vida é para morte, porque se você quiser e correr atrás, você faz tudo.
P/1 – E no Cieja, não tem ninguém que você paquera, que você gosta?
R – Não (risos), assim, não.
P/2 – Ninguém que você dá uma piscadinha?
R – Ah, eu não vou falar o nome dele, mas tem. Tem sim.
P/1 – Nanci, quais são os seus maiores sonhos, hoje?
R – Eu digo que eu sou uma pessoa que já tem tudo. Lógico, o meu maior sonho hoje é conseguir um emprego e poder trabalhar, mas não pelo fato de ganhar dinheiro, sabe, mas de poder fazer alguma coisa útil para mim, para o próximo, eu não sei pensar só em mim, não sei. Alguma coisa que eu possa fazer, que eu possa, claro, ganhar um salário, que eu possa ajudar em casa, sabe?
P/1 – Você gostaria de fazer o quê?
R – Bom, como eu tenho essa deficiência, eu costumo ser realista comigo, eu falo: “Não, vamos lá, o que dá para eu fazer?’, então eu procuro telefonista que fica mais sentada, assim, uma coisa que não tivesse que sei lá, subir e descer escada muito. Telefonista, recepcionista, porque na Sementinha do Amanhã, eu trabalhava como telefonista, as mães adoravam falar comigo, que elas falavam que o meu bom dia era o melhor, porque era assim: “Associação Sementinha, bom dia!”, já que é para acordar, vamos acordar. Mas eu acho que eu sou uma pessoa que sou sortuda. Eu digo que… ontem, eu até li uma coisa num livro que eu tenho que fala sobre felicidade. A pessoa, às vezes, quer ser feliz, mas ela não sabe ser feliz. Ela não sabe ser feliz com aquilo que ela tem, ela quer sempre mais e o mural da passagem, o tamanho da sua felicidade não tem o tamanho da sua exigência, mas o tamanho do que você merece, do que você precisa. A gente no precisa de muito para ser feliz, a gente pode ter sei lá, a roupa do corpo, se a gente souber ser feliz com o que a gente tem. As pessoas complicam a vida, acho que não precisa… a vida não é para ser complicada, as pessoas complicam, isso é assim, mas eu quero fazer de outra… não adianta, então, eu sou feliz com o que eu tenho, se eu tiver que conseguir mais alguma coisa, eu vou conseguir, eu vou lutar, eu vou fazer qualquer coisa. Hoje, eu estou fazendo artesanato, pinto caixinha de madeira, às vezes, vendo, eu estou tentando vender agora. É que trabalhar com artesanato é meio difícil, porque assim, você ganha dinheiro no começo para comprar coisas pra você produzir mais, então é meio difícil essa área. Mas se é o que eu posso fazer no momento, é o que eu vou fazer. Se mais pra frente aparecer alguma coisa, beleza, senão eu estou feliz com o que eu tenho, o que eu acabei de dizer.
P/1 – Nanci, o que você achou de contar a sua história aqui para o Museu da Pessoa?
R – É bem difícil, porque tem coisas que a gente não lembra, né? Eu estava ali com as fotos, a menina falou: “De quando que é essa…”, porque a minha tia botou as fotos, não teve, sabe… “De quando foi essa foto?”, a única que eu acho que eu consegui lembrar perfeitamente foi a do jogo do Brasil, que foi agora, se eu não lembrasse disso também, eu ia me internar, mas o mais difícil foi lembrar as fotos, assim, algumas perguntas que você faz que você tem que mexer na caixinha de lembrança. Eu digo que todo mundo tem uma caixinha, que é a caixinha de Tandera, sabe, um desenho antigo que tinha, que tinha uma caixinha chamada Caixinha de Tandera, todo mundo um dia tem que abrir essa caixinha, é difícil. Eu dei uma palestra no Cefai, foi o não passado, dia 24 de setembro…
P/1 – O que é Cefai?
R – Eles formam professores, eles formam educadores. Depois, pergunta para a Gisele que ela te explica melhor o que é o Cefai, eu não sei. Mas eles me convidaram pra ir lá para dar essa palestra, para saber como que era a vida do deficiente, eu falo que às vezes, quem não tem deficiência quer saber como que é ser, que o ser humano nunca está feliz com o que tem, se tem cabelinho enrolado, quer alisar, se tem liso, quer enrolar. Aí, às vezes, a minha vida, ela é muito… como que eu vou dizer? Todo mundo quer saber: “Como é que é isso?”, aí eu acabo falando de todo… limitação, todo mundo tem, ninguém consegue fazer tudo na vida, eu não consigo fazer tudo, você não consegue, ele não consegue, é difícil, e eu fui para falar sobre isso, porque da mesma maneira que eles estavam lá para ensinar, a gente também tem muita coisa para ensinar. O deficiente tem muita coisa pra ensinar e é só deixar, é só dar espaço e tem muita gente que tem medo, ou não quer trabalhar, ou não quer… então, eu falo que eu vim para derrubar alguns tabus, porque o povo acha que deficiente, se você puser a mão, quebra, né, não é assim, gente, somos pessoas, somos normais com algumas limitações, mas somos pessoas de carne e osso, como todo mundo. A gente acorda, respira, dorme, come e a gente tá ai para dar para o mundo. E só.
P/1 – Queria agradecer. Linda sua entrevista. Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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