Campanha Ashoka - História de mudança social
Depoimento de Suzana Pádua
Entrevista por : Cláudia Leonor
Itatiba, 14 de junho de 2005
Realização: Museu da Pessoa.net
Código do depoimento: Cabine 03
Transcrito por: Edson Osmar Rodrigues Arruda
P1 - Suzana, eu vou pedir para você falar de novo o seu nome completo, o local e a data do nascimento.
R - Meu nome é Suzana Machado de Pádua, eu sou carioca, nasci no Rio de Janeiro, em 30 de dezembro de 1950.
P1 - E você passou a infância no Rio de Janeiro?
R - Passei minha infância no Rio, foi criada de maneira bastante tradicional, família bem tradicional, estudei numa escola americana, minha mãe tem descendência inglesa, aliás ela é inglesa, a nível de papéis, mas já foi criada no Brasil. Eu fui para uma escola americana de freiras, bastante rígidas, rigorosa, e eu não gostava do colégio, mas hoje eu até agradeço, porque eu uso bastante o inglês que é uma ferramenta, sem dúvida, muito poderosa.
P1 - E qual, assim... Da sua infância, o que você seleciona como um momento marcante, forte?
R - A minha área de interesse, que mudou mais minha vida, foi trabalhar com conservação de natureza e da biodiversidade. A perda da biodiversidade do Brasil, a perda da natureza, a devastação que está acontecendo, começou a mexer muito comigo, mas ironicamente eu sou filha de caçador, papai foi o que eles chamam de “begin hunter”, aquele caçador que caçou mesmo. Ele foi à África duas vezes, foi à Índia, caçou uma cabra na Espanha que era dificílima, que só o Franco dava licença, então ele era realmente empenhado nisso, ia sempre para Mato Grosso etc. E eu era pequena e não existia a palavra conservacionista, mas eu sempre questionei: qual é a graça de matar um bicho que tá ali, uma onça que está correndo, aquela magnitude daquele animal tão lindo, de repente você dá um tiro e o bicho cai? Mas na época o papai era um herói. Eu acho que os valores mudaram, hoje um...
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Depoimento de Suzana Pádua
Entrevista por : Cláudia Leonor
Itatiba, 14 de junho de 2005
Realização: Museu da Pessoa.net
Código do depoimento: Cabine 03
Transcrito por: Edson Osmar Rodrigues Arruda
P1 - Suzana, eu vou pedir para você falar de novo o seu nome completo, o local e a data do nascimento.
R - Meu nome é Suzana Machado de Pádua, eu sou carioca, nasci no Rio de Janeiro, em 30 de dezembro de 1950.
P1 - E você passou a infância no Rio de Janeiro?
R - Passei minha infância no Rio, foi criada de maneira bastante tradicional, família bem tradicional, estudei numa escola americana, minha mãe tem descendência inglesa, aliás ela é inglesa, a nível de papéis, mas já foi criada no Brasil. Eu fui para uma escola americana de freiras, bastante rígidas, rigorosa, e eu não gostava do colégio, mas hoje eu até agradeço, porque eu uso bastante o inglês que é uma ferramenta, sem dúvida, muito poderosa.
P1 - E qual, assim... Da sua infância, o que você seleciona como um momento marcante, forte?
R - A minha área de interesse, que mudou mais minha vida, foi trabalhar com conservação de natureza e da biodiversidade. A perda da biodiversidade do Brasil, a perda da natureza, a devastação que está acontecendo, começou a mexer muito comigo, mas ironicamente eu sou filha de caçador, papai foi o que eles chamam de “begin hunter”, aquele caçador que caçou mesmo. Ele foi à África duas vezes, foi à Índia, caçou uma cabra na Espanha que era dificílima, que só o Franco dava licença, então ele era realmente empenhado nisso, ia sempre para Mato Grosso etc. E eu era pequena e não existia a palavra conservacionista, mas eu sempre questionei: qual é a graça de matar um bicho que tá ali, uma onça que está correndo, aquela magnitude daquele animal tão lindo, de repente você dá um tiro e o bicho cai? Mas na época o papai era um herói. Eu acho que os valores mudaram, hoje um caçador não seria mais um herói na nossa sociedade, porque não cabe mais, o mundo mudou, a realidade mudou, hoje você tem... Todos esses animais estão contados, com os dias contados, se a gente não fizer alguma coisa a respeito. Então a gente começou, quer dizer, a grande mudança na minha vida foi a partir, realmente, da preocupação com a conservação da biodiversidade. Mas com isso veio um outro olhar também para a vida humana, porque eu fui criada no Rio, como eu te falei, de uma forma bastante tradicional, onde você sinceramente não via, não tenho nenhum orgulho de falar isso, mas a gente não via pobreza, entende, o seu olhar não era treinado pra ver a realidade, as vezes, muito ao seu lado.
P1 - Que bairro você morava?
R - Então, eu morava na Gávea, ao lado da Favela da Rocinha, e de outras favelas inclusive, e a gente não percebia, não percebia essa distância social. É claro que tudo isso agravou, da mesma forma que agravaram-se os problemas ambientais, agravaram-se também os “gaps”, as distâncias entre ricos e pobres hoje é muito acentuada, e que na época que eu me criei no Rio, apesar da eu não me considerar uma pessoa tão velha assim, mas em uma geração teve uma mudança muito grande, então hoje você tem realmente uma gritante diferença entre ricos e pobres e uma violência extraordinária, que não havia na época que eu era garota, não havia mesmo, eu andava tranquilamente, ia pra praia, voltava da praia, ia pras aulas todas de ônibus e voltava e não tinha perigo nenhum. Então o mundo mudou muito. Agora, o olhar pelo outro, ele, para mim, veio por meio do olhar, um olhar diferente pela natureza, então eu acho que é assim, aconteceu um grande novo paradigma na minha vida, pra usar a palavra da moda aqui, que foi o respeito pela vida de uma maneira mais integral, sabe, mais essencial, e isso fez com que eu me sentisse mais estimulada a trabalhar pela causa da biodiversidade e pela melhoria da qualidade de vida das populações onde nós temos projetos de conservação.
P1 – Deixa eu perguntar uma coisa, você disse que seu pai, ele é como um herói, o caçador, tudo, né, e você questionava todo esse envolvimento com a não conservação, né? Tem assim, alguma pessoa que tenha sido um modelo, que tenha te marcado, tenha te influenciado, nessa questão da conservação do meio ambiente, da relação com o meio ambiente, ou foi o seu pai mesmo?
R – Olha, o caçador, é estranho, mas o caçador ele está preocupado com a natureza, porque ele se expõe, ele vai pra natureza, e isso fez... O fato do papai ser caçador nos levava em contato direto com a natureza, então nós íamos pro Mato Grosso, nós íamos, volta e meia, pra algum lugar onde a natureza era presente, porque ele queria caçar. Mesmo na
Gávea, tinha muitos pássaros e papai, volta e meia, matava um pássaro e o pássaro vinha pra mesa. E o pássaro vinha pra mesa, todo mundo comia e minhas lágrimas desciam, sabe? “Como é que ele teve coragem de matar um passarinho e o passarinho está sendo... de repente virou comida?”. E eu não me conformava com isso. Bom, a tal ponto, que hoje eu sou praticamente, não sou totalmente vegetariana, mas noventa por cento vegetariana. Eu tenho pena, sabe, eu não acho que seja justo a gente estar se alimentando de uma outra vida.
P1 - E você conversava isso com seu pai?
R - Conversava, ele achava graça... papai era assim, muito interessante como pessoa. Para nós ele era um herói mesmo, de outra maneira, porque ele era extremamente carinhoso, principalmente com as duas filhas, e ele achava interessante, ele achava excêntrico, ele achava assim: “Ela é diferente.” (risos) Mas eu nunca pensei que eu ia trabalhar com isso, nunca, então eu me formei em outra coisa completamente diferente, me formei em Programação Visual na PUC. Aí comecei a desenhar móveis, fiz decorações de interiores junto com programação visual, então eu era designer, era uma coisa genérica... Eu uso tudo na verdade hoje em dia, então assim, por exemplo, todos nossos programas tem um logotipo cuidado, aparência pra mim é fundamental, o belo tem que estar presente, sabe, então, cuidado... A gente tem um centro de educação que na verdade foi como eu entrei para a Ashoka, por conta de querer fazer essa educação para conservação mais amplificada. E a gente tem um centro e o centro é todo cuidado, ele é... tem uma certa sofisticação de detalhe, que faz parte da minha pessoa, eu não tenho como abandonar isso...
P1 - Do social?
R - ... É, então por exemplo, eu entro num lugar, o lugar tem que estar harmonioso, tem que estar agradável, as pessoas se sentirem bem, e isso eu acho que eu adoraria ver em tudo quanto é lugar, não é só o lugar em que a gente constrói, né? Por exemplo, hoje eu tive almoço aqui na Ashoka, com outros “fellows” que fazem construção, porque nesse momento eu gostaria muito de ter um projeto de edificar casas dignas pros assentados com quem a gente trabalha no Pontal. Então não pára, entende, eu falei pra eles: “Eu não quero só uma casa, não, é uma casa que seja melhor pra eles morarem, que tenham uma vida digna, eu quero isso em primeiro lugar, mas eu quero uma casa bonita também, que eles tenham orgulho, com varanda, com jardim…”. Isso pra mim faz parte.
P1 - Suzana, em que momento você começou deixar o design de lado e começou a trabalhar com o meio ambiente, conservação...
R - Olha, o responsável pela grande mudança foi o meu marido, que aliás o Museu da Pessoa já entrevistou...
P1 - Quem é?
R - Cláudio Pádua, entrevistou, eu não me lembro... Agora, recentemente.
P1 - S.O.S. Mata Atlântica?
R - Provavelmente. Então, o Cláudio era formado em Administração de Empresas e também é filho de família mineira, política, tradicional, e a família toda achou que ele era maluco, que estava largando toda uma vida mais estável para ir trabalhar por um ideal que era a conservação da natureza no Brasil. Mas ninguém levou ele a sério, ele voltou para a universidade, estudou biologia, aí ele foi fazer mestrado e doutorado fora e a grande mudança foi quando ele foi coletar os dados do doutorado dele, no Pontal do Paranapanema. Então, o Pontal para nós é uma escola, porque foi onde tudo começou, é um símbolo. O mico-leão-preto, que foi a espécie que ele estava estudando, que é uma espécie altamente ameaçada que vive em São Paulo, numa determinada região que, coitado, quase todo o habitat dele se foi... A gente foi morar lá, foi para mim um choque muito grande, porque a gente estava vindo dos Estados Unidos, com uma vida muito confortável, e de repente estava morando num casebre, no meio do mato, dentro da reserva que era na verdade um parque estadual, no Morro do Diabo. E a vida era muito sem conforto, muito terrível, muito... No começo foi horrível. Eu chorei muito no início, achando que eu ia fazer minha mala e ir embora, mas eu comecei a trabalhar com educação ambiental, percebendo que as pessoas achavam: “Por que não cortar tudo para fazer uma fazenda de gado? Porque isso para mim não serve para nada.” Isso me doía profundamente, porque eu sempre tive essa ligação forte com a natureza. Aí eu comecei a trabalhar com educação ambiental, tentando passar para as pessoas essa noção de orgulho, sabe? “Vocês moram do lado de uma área que sobreviveu e que é uma das poucas ainda que restam, e com várias espécies ameaçadas, e se a gente não salvar nada, se as pessoas não tiverem esse senso de orgulho, de pertencimento, de vontade, de empenho, de serem motivadas o suficiente para trabalharem por essa causa...” Foi assim que minha vida mudou, aí eu comecei a trabalhar com educação ambiental, que não era a minha área, fiquei totalmente apaixonada, acabei fazendo mestrado...
P1 – Como é que você fez para colocar essa idéia em prática?
R – Bom, eu estava fazendo um mestrado nos Estados Unidos – que eu tenho energia demais, se não eu entro em depressão, aliás é uma receitinha pras pessoas que têm tendência à depressão, você tem que canalizar sua energia para uma coisa positiva, isso é uma coisa muito simples de falar, mas nem sempre é simples de executar – e eu comecei, nos Estados Unidos, a ficar mal porque eu não conseguia fazer, eu não tinha grana pra estudar e tal... Comecei a fazer um mestrado numa área completamente diferente. Quando eu me apaixonei pela área da educação ambiental eu voltei aos Estados Unidos, ao centro que eu estava estudando e disse: “Olha, eu quero mudar, porque eu quero fazer educação ambiental, porque eu estou apaixonada por essa área, ou eu vou fazer mestrado nisso ou eu vou largar o que eu estou fazendo.” Eles aceitaram, mas também foram muito corajosos, porque eu não tinha passado nem em educação, nem passado em ambiente, quer dizer, era uma área nova pra mim. Eles aceitaram, e quando eu voltei, que o Cláudio ia terminar o doutorado dele, eu fiz o meu mestrado, acabei e fiquei assim cada vez estudando mais. E tinha uma pessoa na Flórida, a Suzan Jacker, professora que me orientou, ela era uma expert nisso e ela me mandava um monte de material. Então eu morava no mato, recebendo um monte de material, e lia, lia, lia, e usei muito bom senso e muita intuição, depois eu fui ver que muitas coisas que eu tinha feito, tinham várias teorias dizendo que aquilo estava correto, mas (risos), foi o lado inverso, entende? Eu não estudei pra depois ir fazer, eu fiz e depois eu fui atrás de ver o que eu podia... como que eu podia melhorar.
P1 – O que mudou, a partir daí, na sua vida?
R – Ah, absolutamente tudo! Foi um grande momento, foi um dos momentos mais duros. Eu acho que eu, como educadora, hoje adoraria ver as pessoas mudando e descobrindo o seu caminho sem tanto sofrimento e sem tanta dureza, foi muito duro, porque no início, como eu te falei, não tinha conforto, era uma vida completamente diferente. Eu peguei leishmaniose, fiquei doentíssima, aí eu olhava para aquilo tudo com muito mágoa, aí eu comecei a trabalhar e me apaixonei. Quando você tem alguma causa que você trabalha, que é maior que você... Por exemplo, eu estou te dando esta entrevista, eu tenho a nítida sensação de que eu sou um veículo para uma mensagem, a Suzana não pode aparecer, a mensagem da Suzana é que tem que aparecer. Então, quando você percebe que sua missão é maior que você, te dá uma energia muito, muito grande. Isso, assim, eu passei a acordar cinco horas da manhã para escrever propostas, para conseguir os recursos que eu precisava, eu nunca tinha escrito uma proposta na minha vida, eu nem sabia o que era isso. E olhando para trás, cem por cento das propostas que eu escrevi naquela época, eu consegui o recurso, e consegui realizar porque os objetivos estavam tão claros na minha mente, tudo veio tão canalizado, que eu consegui. Depois eu tive muitas propostas negadas, mas isso faz parte, não é para desanimar, quem tiver passando por isso, isso é normal. Mas eu acho que mudou tudo, mudou esse senso de que você está vivo por uma razão, sabe, a gente não está aqui à toa, a gente tem uma coisa a cumprir. E como educadora eu acho, sinceramente, que cada um de nós tem um brilho diferente, nem todo mundo vai brilhar na mesma coisa, e como educadora eu acho que o papel é a gente conseguir abrir as portas da percepção da pessoa pela própria pessoa, sabe? “Onde é que eu me sinto bem?” Onde é que meu coração bate, onde é que meu olho brilha?” E é disso que a gente tem que ir atrás, e aí a felicidade, que é outra palavra mágica - eu acho que a gente não foi criado pra ser feliz, a gente foi criado para de algum jeito responder uma expectativa da sociedade - eu acho que a gente é realmente feliz quando a gente descobre que a gente tem alguma coisa a cumprir e a contribuir pros outros, para um bem maior, para um bem coletivo.
P1 – Me fala uma coisa, quando você começou esses projetos, seu primeiro, segundo projeto, quais eram? Como você chegava nas famílias, como isso se organizou na prática? Esse pensamento todo seu, saída do mestrado, da coisa mais intelectual, mais pensada, e ir pra prática...
R – O mestrado não foi exatamente intelectual não, ele foi na prática, porque meu medo era... Tão novo esse mundo acadêmico pra mim, que por exemplo, eu fui fazer entrevistas na comunidade pra entender um pouco da realidade da comunidade e em vez de fazer trinta entrevistas eu fiz quinhentas, eu ia de cinco em cinco casas pra ter aquela visão, “Ai não, meu Deus, e se eu errar? Vão dizer que eu estou tendenciando a...” Foi um exagero, mas na verdade foi muito interessante, porque eu consegui compreender mais a realidade de onde eu estava trabalhando, então eu não parti de pressupostos nossos, a gente veio com a idéia de conservação, isso era a minha base, mas eu tinha que compreender o que era aquela comunidade onde eu estava trabalhando.
P1 – Que comunidade que era?
R – Teodoro Sampaio, a cidade é Teodoro Sampaio, fica no Pontal do Paranapanema, é o segundo lugar mais pobre de São Paulo, do estado de São Paulo. E depois, anos depois, veio toda a migração maciça do MST, aí é uma outra história, que na verdade tem outro “fellow” da Ashoka, o Laurico Lins Júnior, que trabalha diretamente com esta questão dos assentados, porque a minha questão foi muito mais educativa. Mas eu comecei assim, trabalhando primeiro com as escolas, primeiro eu fui ao prefeito - só para você ter uma idéia, eu fui falar com o prefeito que eu queria oferecer um programa de educação ambiental e aí eu preparei trilhas no parque, e programas no parque, para visitação pública e visitação estudantil - e aí o prefeito provavelmente achou que eu ia pedir coisa pra ele, me deixou esperando quatro horas, só que eu tinha levado um livro, fiquei sentada lendo e tal, e aí quando eu cheguei pra falar com ele, ele disse: “Mas você não veio pedir nada?” Eu falei: “Não, eu vim te dizer, eu não queria que você soubesse por outras fontes, que eu estou aqui, eu sou de fora, eu sou carioca, tô morando aqui, vou morar aqui por um tempo, e eu queria desenvolver um programa, eu queria que você soubesse que esse programa vai acontecer.” Daí para frente eu tive um aliado. Mas aí você começa assim: no início pra falar em público não podia pegar o papel porque eu tava tremendo, eu ia falar com os professores eu tremia, aí eu comecei a falar na rádio, a fazer programas na praça pública... Ai outra coisa interessante: eu passei a descobrir que em regiões pobres como o Pontal, não tem lazer, então eu fazia lazer ecológico, então festival de música ecológica, concurso de camiseta ecológica na noite de lambada, fechava a rua principal na maior lambada – isso é bonito, anos 89, 90, em plena lambada. Assim eu comecei a descobrir que o lazer atrai muita gente e você passa a mensagem, quer dizer, no meio do concurso, no meio da lambada, pegava o microfone, aí eu já tava completamente sem vergonha e dizia: “Olha, isso aqui tudo pertence a vocês, a gente só tá fazendo isso porque isso é um patrimônio e vocês precisam ajudar a gente a conservar, porque se não, não vai sobrar nada, eu não vou ficar aqui pra sempre, mas isso aqui tem um potencial enorme.”
P1 – E em que momento esses projetos se transformaram no Ipê?
R – Então, o que aconteceu foi assim: no início a gente sempre acreditou em ter estudantes e os primeiros estudantes às vezes davam mais trabalho do que ajuda. Os estagiários as vezes brigavam porque um tomou a água gelada do outro da geladeira, mas isso faz parte, depois começaram realmente entrar estagiários... até o Lauri, que hoje é fellow também da Ashoka, veio como estagiário ainda na graduação, E o Ipê hoje tem quase setenta pessoas, e a história do Ipê, ela vem com os estudantes, eles vinham pra fazer estágio, por exemplo, hoje, uma pessoa que trabalha comigo já há quinze ou dezesseis anos, a Gracinha, ela é de Teodoro, família muito simples, e hoje ela está acabando o mestrado na USP. Ela ficou um ano na Universidade de Colúmbia, porque a gente incentiva o crescimento profissional de todos, eu acho que um dos segredos do Ipê é esse. Mas a gente começou eram três pessoas, era o Cláudio, o Mateiro e eu, aí vieram estudantes, alguns estudantes ficaram, como a Cristiana, que até hoje está com a gente, foi a primeira estagiária nossa que ficou e tem quase vinte anos que está com a gente. Esses estudantes que vinham e foram estudando e fazendo mestrado, doutorado – a gente está com um grupo bem legal, bem forte, poderoso – de repente a gente percebeu que não dava mais pra manter como Projeto Mico-Leão-Preto, porque vários já estavam desenvolvendo outras frentes de trabalho por conta própria, para os seus mestrados etc. E a gente precisava profissionalizar a instituição, então foi assim que a gente criou o Ipê, em 92, que é Instituto de Pesquisas... É Ipê, “tracinho”, que a gente queria homenagear a árvore, então é Ipê - Instituto de Pesquisas Ecológicas. Aí a gente criou e hoje vem vários, continua... O sistema é assim: o sênior que já está com seu projeto andando, o júnior, que é uma pessoa que já é formada e o aprendiz que é o estagiário. A gente tem um sistema que não é bem hierárquico, porque todo estagiário pode vir a ser um júnior e o júnior pode vir a ser um sênior, e foi assim que a gente cresceu. O que a gente faz é tentar realmente ser... por exemplo, profissionalizar todas as áreas que a gente está atuando, a gente tem que ser bom no que a gente faz, porque senão a gente não é levado a sério. E a gente também incentiva muito essas pessoas que entram a estudarem cada vez mais para melhorarem sua performance profissional, então muitos já foram para fora e muitos estão fazendo seus mestrados e doutorados em universidades na Inglaterra, nos Estados Unidos ou mesmo no Brasil, em boas universidades.
P1 – E com a criação do Ipê, o que aconteceu com os projetos de conservação, de estudos, eles potencializaram o quê...
R – O Ipê, ele formalizou uma coisa que já estava acontecendo, que é esse grupo integrado, mas tem mil histórias, um dia eu vou ter que sentar e escrever as histórias. Por exemplo, tinha um computador, que era o meu, e fila de gente: “Olha, passou a sua hora, pelo amor de Deus eu preciso fazer alguma coisa, e tal...” E um carro, que era o meu, e assim por diante... As reuniões, as vezes, quando tinha papel demais, eram em cima da minha cama de casal, porque era o lugar que tinha para a gente espalhar mais... Então era tudo muito... uma vontade grande demais de fazer as coisas, o recurso muito pequeno, e era um grupo muito empenhado, muito comprometido, mas muito incipiente. Depois que a gente começou realmente a conseguir recursos mais estáveis, vamos dizer assim, pros projetos continuarem. Mas a própria sustentabilidade do Ipê, nós ainda estamos trabalhando firmemente por ela, então a gente tem hoje algumas parcerias que são muito recentes com algumas empresas como a Martins Distribuidora, que é um grupo de Uberlândia que é muito poderoso, que abriu várias portas pra gente, Havaianas, Havaianas Ipê que é um sucesso nosso, que a gente tem o maior orgulho onde tem, estão estampadas nas solas as espécies ameaçadas, então tem uma com o papagaio da cara roxa, que aliás eu estou usando, uma camiseta feita pela comunidades onde a gente atua, tem o mico leão da cara preta e o peixe boi, são espécies que a gente trabalha e as Havaianas estão estampando, e hoje o mais emocionante de todos é a Natura, que é nossa parceira na universidade que a gente tá fazendo, que é pós graduação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável...
P1 – Ah, é?
R - ... então vamos ter um campus, já teve um concurso de arquitetos...
P1 – Lá no Pontal?
R – Não, vai ser em Nazaré Paulista, onde é a nossa sede...
P1 – Ah, tá.
R - ... Porque aí tem toda uma história que foi meio pulada, porque tem coisa... é um pouco demais, que a gente acaba ficando um pouco confusa. Mas nesse processo de ampliação das frentes todas, que a gente atua com mais gente, uma das coisas que eu pessoalmente percebi – na minha cabeça, das mais importantes que a gente tava fazendo – era essa área de educação para a conservação, então nós escrevemos uma proposta em 95 e 96, que foi como eu entrei para a Ashoka, para fazer um Centro de Educação, para cursos de curta duração na área da conservação e do desenvolvimento sustentável, e aí nós viemos parar, uma estranha coincidência, tivemos muitas ajudas talvez de outra esfera não muito explicável, e nós acabamos nos estabelecendo em Nazaré Paulista, que fica a uma hora de Guarulhos, do aeroporto de Guarulhos, num lugar muito bonito, à beira de um reservatório de água muito importante de São Paulo E a gente ali tem um Centro que tem capacidade para vinte e seis pessoas, a gente dá curso de curta duração e tudo. Mas essa foi a semente para a nossa idéia de pós graduação, que sempre tava no nosso sonho e agora a gente está realizando.
P1 – Que bárbaro! Me fala uma coisa, quando vocês começaram esse trabalho de educação ambiental, como que a comunidade recebeu?
R – A comunidade, ela em geral tem de ser conquistada, porque, por exemplo, eu era de fora, falo igual carioca, eu fui morar no Pontal do Paranapanema, chegando dos Estados Unidos, com forno de microondas, sabe, umas coisas que para eles... imagina, isso nos anos 88... eu era um ET, entende: “O que essa mulher está fazendo aqui com três filhos pequenos? Você vai morar dentro da reserva?” “Vou!” “...Mas seus filhos vão ser comidos pelas onças.” Então é assim. Aí, o que acontece? Você trabalhando... A gente tem um modelinho, que a gente começa com as espécies ameaçadas, estudando elas, porque a base é a ciência, então o que a gente vai fazer, onde a gente vai pôr corredor de mata, onde a gente vai fazer todas as ações nossas de conservação? O que indica é o nosso estudo “in loco”, o nossos estudo de campo. Então a gente ia pro mato, aí chegava todo mundo cheio de carrapato, eu não, porque eu trabalhava sempre na área de educação, mas aqueles pesquisadores todos iam pro mato, chegavam lameados até aqui, cheios de carrapato, aquela coisa... A comunidade acha que é excêntrico e acha engraçado, e a educação, o papel da educação ambiental, é pegar essas informações científicas e decodificar numa linguagem bem acessível e contar história, por exemplo: “o mico-leão vive em família, um protege o outro, o pai carrega o filhote para a mãe poder amamentar quando ela está descansada...” – Essa parte é a que eu mais gosto – “...então o pai ajuda o tempo inteiro para poder a mãe estar ali...” Então a gente contava histórias que foram descobertas na ciência, na parte científica, e aí a comunidade começa a se interessar, porque você está contando de uma maneira interessante, agradável e leve. Aí eu ia pra rádio, eu contava histórias, eu fazia programa nas escolas, eu ia popularizando e aí no final eu era uma pessoa popular na comunidade, e aí a comunidade passa a te aceitar. Hoje o Ipê, na comunidade de Teodoro Sampaio, é uma instituição muito bem quista, muito aceita. O que acontece é que a comunidade, no início, ela tem uma certa restrição, porque ela acha que você é de fora, que você vai impor alguns valores seus, mas depois que ela vê que você está ali para colocar nada goela abaixo, que você quer construir junto, que você está levando os interesses da própria comunidade em consideração, você começa a criar condições de uma nova realidade, então ela passa realmente a fazer parte, a te aceitar e a ser, enfim, aliada, parceira – exatamente – ela passa a ser parceira das ações e ela mesma acaba levando adiante várias novas idéias que partiram deles e não mais do que você planejou.
P1 – Como surgiu essa coisa que você falou das camisetas? Como que é isso?
R – Ah, então, a gente, até uns cinco anos atrás, mais ou menos, nós trabalhávamos muito mais pelo orgulho, pela auto-estima, dessa mata que só existe aqui, nenhum outro lugar do mundo tem mico-leão, etc. Isso funciona, mas leva muito mais tempo. De uns anos pra cá a gente começou trabalhar alternativas de renda para a melhoria da qualidade de vida e sempre focando as espécies que a gente trabalha, então por exemplo, as camisetas, as sacolas, as buchas... tem um assentado nosso, o Valentim, que trabalha com as eco buchas, então é a bucha que ele planta...
P1 – Aquela bucha vegetal?
R - ... Bucha vegetal junto com árvores, é sempre uma coisa que a gente está esverdeando o Pontal, o Pontal estava muito devastado. Mas a gente está sempre... Por exemplo, a bucha do Valentim hoje é feita em formato do mico-leão, em formato da onça; então, enquanto a pessoa está bordando uma camiseta dessas, ela está aprendendo sobre a espécie, ou ela está trocando informações, ela está entendendo que ali, só ali, vive o papagaio da cara roxa, naquela região do Superagui. Então ela passa a valorizar mais, e ao fazer a camiseta e ganhar um pouco de dinheiro com a camiseta, fica um processo de todo mundo ganhar: a natureza ganha, porque tem mais aliados, a comunidade está ganhando, então vai melhorar a qualidade de vida deles, e é um círculo do bem, é um círculo vicioso do bem, é um “win win”, todo mundo ganha, e aí passa a ser uma coisa... E a gente está fazendo isso com várias frentes, então hoje a gente tem o café orgânico que é um café sem agrotóxicos, que é plantado às sombras das árvores, tem a bucha, eco-bucha, tem essa linha toda de artesanato, com as mulheres. A vontade, as vezes é muito grande delas, por exemplo, as mulheres dos assentados, às vezes, andam cinco quilômetros para irem a uma oficina que a gente está oferecendo. É muito cruel a forma de vida, e qualquer coisa que você ofereça para sair realmente... mas tem que ser contínua, você não pode só oferecer uma vez e ir embora, então acho que é um compromisso. A gente tem isso em vários lugares, Nazaré Paulista, onde nós temos a nossa sede, aqui pertinho, nós temos um grupo de mulheres trabalhando com afinco em artesanato, fazendo coisas lindas, sempre com as espécies que a gente está trabalhando, para valorização da natureza, nem que seja a folhinha do Ipê, algum detalhe.
P1 – E Suzana, me fala uma coisa, você se vê como uma empreendedora social?
R – Eu preferiria o termo “empreendedora sócio-ambiental”, é uma das minhas... Foi por isso que eu demorei a chegar na minha entrevista, porque foi a pergunta que eu fiz pro Bell: “Como é que a gente... Por exemplo, a Ashoka, eu acho que é uma instituição que eu tenho certeza que está na alma do Bell, está na alma das pessoas, mas ainda existe uma divisão ou preferência entre o lado social ao lado ambiental, e pra mim não tem distinção, para mim nós somos natureza, a gente só perdeu o vínculo, o elo, e eu adoraria ver a expressão “socioambiental”, mas eu acho que eu sou... porque ontem, o Guilherme Leal, da Natura, deu uma explicação muito interessante da inquietação, a inquietação que leva à ação, ele definiu o empreendedor dessa maneira. Eu sou uma pessoa extremamente inquieta quando eu vejo desarmonias socioambientais, e claro que a gente não pode fazer tudo, a gente também tem que ter o direito de dormir de noite, mas a gente faz o que dá pra fazer, né, a gente seleciona algumas áreas e vai atrás daquela... Você não pode dar tiro pra todo lado, você tem que selecionar, priorizar, ir atrás e concretizar, e depois ver as coisas... muita coisa já está andando sozinha. Tem, por exemplo, no Ipê hoje, um monte de gente que escreve as suas propostas, mandam as suas propostas, eu nem sei, quando eu vejo já foi aprovado, já está realizando o trabalho, então isso que é o verdadeiro empoderamento das pessoas, as pessoas caminham sozinhas, e é a mesma coisa com as comunidades. O ideal seria que a gente não precisasse pensar, mas hoje tem toda uma linha de mercado justo, que a gente tem que ir atrás, porque as mulheres que estão fazendo esse tipo de trabalho vivem em lugares muito remotos, a gente tem que acabar ajudando elas a canalizarem o que elas estão fazendo.
P1 – Quais são os desafios teus hoje como empreendedora sócio-ambiental? (risos)
R – Eu acho que empreendedorismo socioambiental primeiro. Se você fosse perguntar em ordem de prioridade, eu acho que a sustentabilidade da própria instituição, hoje uma instituição do tamanho do Ipê é... Eu fico brincando porque eu tenho o direito de morrer, não que as coisas dependam de mim, não é essa pretensão de jeito nenhum, hoje o Ipê caminha sozinho, tanto que eu não moro em Nazaré e a sede do Ipê é em Nazaré e tem um grupo grande no Pontal, completamente independente, competente, etc. Mas a instituição ainda é frágil, então a gente hoje trabalha muito pra melhorar a imagem do Ipê, quer dizer, ser mais conhecido, pra conseguir mais recursos livres para a gente poder aplicar no fortalecimento institucional, isso é um. E o outro é esse sonho que está se realizando agora. para a sustentação do Ipê, tem essa história das Havaianas e outros produtos que a gente está correndo atrás pra dar esse marketing relacionado à causa, então a Havaianas dá um percentual para a instituição e com isso a instituição pode realmente aplicar nas áreas que se sente mais fragilizadas. Havaianas realmente é um exemplo, mas a gente está querendo ir atrás de outras, de outras organizações fortes para... Martins também está nos ajudando etc. Mas a outra [coisa] realmente agora é o desafio, é a nossa pós graduação. Eu digo que a gente precisa voltar várias vidas para realizar tudo que a gente tem em sonhos... Mas esse realmente... Por quê? Porque como educadora eu fico achando assim, vai ser uma alavancagem muito forte de você ter um centro onde as pessoas vêm de vários lugares do Brasil e que vão e disseminam tudo isso que a gente levou tanto tempo... a gente e outros profissionais, a gente está muito bem rodeado nisso. Agora, o desafio maior é a gente contagiar o bem, porque a máquina de… – por isso que eu acho que é tão importante o que vocês estão fazendo – a máquina de manipulação pro mal ela é muito forte, você liga uma televisão, você vê as notícias horrorosas e você se sente impotente diante de toda essa magnitude de coisas ruins que estão acontecendo: poluição dos mares, o buraco do ozônio – eu to falando só na área ambiental, fora toda a área social – e não é nada disso, cada um de nós tem um poder enorme de transformação, só que não vêm à mídia e a mídia é muito poderosa, então a importância da comunicação do que está sendo feito, de que tem toda uma gama de pessoas, de grupos integrados, trabalhando para um mundo melhor, mais harmonioso e mais ético, eu acho que isso é fundamental, a gente precisa divulgar isso, porque isso dá força, te dá estímulo, isso mostra que as pessoas têm a capacidade de ir à luta e mudar alguma coisa. Eu acredito é nisso, que a gente precisa divulgar, para o ruim não tomar conta, para a gente perceber que cada um tem um papel, um papel, que é igual a um dominó, um dominó do bem e outra. que é disso mesmo, eu não estou sendo demagoga não, eu acredito nisso de fato, aconteceu comigo. Eu era uma pessoa tão comum e consegui fazer uma coisa que eu tenho... É pequenininho, mas eu estou fazendo alguma coisa, então...
P1 – Me fala uma coisa, para a gente ir acabando, porque você respondeu quatro perguntas agora... (risos)
R – (risos) Ah, eu vou falando...
P1 – Pra gente finalizar, Suzana, quais são as características de um empreendedor sócio-ambiental, de personalidade, que você tem e que você achava importante quando você se tornou “fellow”, enfim, quais são as características?
R – Olha, como eu estou lidando com um grupo grande de gente jovem, eu vejo as vezes essa inquietação, que é muito importante a pessoa dizer: “Gente, não precisava ser assim, podia ser diferente, isso é um passo muito importante que pode ser dado!”
E a outra coisa que eu não sei como te responder, mas é energia, sabe, a pessoa tem que ter aquela coisa de acordar de manhã e ter vontade de fazer alguma coisa e isto eu não sei... eu acho que é muito estimulável, porque a pessoa, não precisa ter aquela energia só para ir à luta, para trabalhar com comunidade, ela pode, de repente, ser mais introspectiva e fazer alguma coisa que vai mudar muito, através de um artigo que ela vai escrever ou de uma pintura que ela vai deflagrar uma realidade, sabe? o mais importante é descobrir onde que está este brilho que cada um de nós tem, onde está o diferencial, mas agora, realmente, se você for me perguntar algumas características do empreendedorismo, do empreendedor, eu diria que energia é uma delas e essa inquietação pra consertar alguma coisa que incomode. Ficar incomodado, ficar angustiado com alguma situação e querer mudar, talvez seja um passo decisivo.
P1 – Obrigado pela entrevista!
R – Imagina!
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