P- Oi Joyce, boa tarde, obrigada por ter vindo aqui dar essa entrevista. Eu gostaria que você falasse seu nome completo, data e local de nascimento.
R- Meu nome é Joyce Silveira Moreno, originalmente Joyce Silveira Palhano de Jesus, Silveira Moreno é nome de casada. Nasci no Rio de Janeiro no dia 31 de janeiro de 1948.
P- E o nome dos seus pais?
R- Minha mãe foi quem me criou, Zemir Silveira Palhano de Jesus, e meu pai se chamava Helge Arvid Johnston, era dinamarquês. Eu fui registrada originalmente só com o nome da minha mãe.
P- Existe alguma ligação da sua família com a música?
R- Muita, a minha família é uma família supermusical desde lá de trás. O meu avô materno, o pai da minha mãe era comandante de navio e ele gostava muito de música, então ele trazia dos Estados Unidos para onde ele ia muito. Ele era da Marinha Mercante e ele sempre trazia discos de jazz, disco de ópera. Então, isso fez com que minha mãe e as irmãs e irmãos dela, todos crescessem ouvindo muita música e ela levou isso pra casa. Quando eu nasci, a casa já era supermusical. Ela ouvia música direto, meus irmãos também, filhos dela do primeiro casamento e um particularmente que é o Newton, que é treze anos mais velho do que eu, era músico, fazia baile, era amigo do pessoal da bossa nova, especialmente do Menescal com quem ele tinha estudado no colégio Santo Inácio e também de vários outros músicos. Então, a minha casa era uma casa que recebia quando eu era pequena, pequena que eu digo assim, dez anos, pessoas como Menescal, Luís Carlos Vinhas, o pessoal que tocava no conjunto do meu irmão que era o Eumir Deodato que toca acordeom na época com ele, fazia baile. O Vinhas substitui o Eumir quando ele faltava, o Vinhas ia, Hugo Marota, João Palmas, Sérgio Barroso Neto. Esses músicos todos dessa época que faziam baile com meu irmão, tocavam com ele, meu irmão era guitarrista. E eu acabei aprendendo a tocar por causa disso, eu ficava observando,...
Continuar leituraP- Oi Joyce, boa tarde, obrigada por ter vindo aqui dar essa entrevista. Eu gostaria que você falasse seu nome completo, data e local de nascimento.
R- Meu nome é Joyce Silveira Moreno, originalmente Joyce Silveira Palhano de Jesus, Silveira Moreno é nome de casada. Nasci no Rio de Janeiro no dia 31 de janeiro de 1948.
P- E o nome dos seus pais?
R- Minha mãe foi quem me criou, Zemir Silveira Palhano de Jesus, e meu pai se chamava Helge Arvid Johnston, era dinamarquês. Eu fui registrada originalmente só com o nome da minha mãe.
P- Existe alguma ligação da sua família com a música?
R- Muita, a minha família é uma família supermusical desde lá de trás. O meu avô materno, o pai da minha mãe era comandante de navio e ele gostava muito de música, então ele trazia dos Estados Unidos para onde ele ia muito. Ele era da Marinha Mercante e ele sempre trazia discos de jazz, disco de ópera. Então, isso fez com que minha mãe e as irmãs e irmãos dela, todos crescessem ouvindo muita música e ela levou isso pra casa. Quando eu nasci, a casa já era supermusical. Ela ouvia música direto, meus irmãos também, filhos dela do primeiro casamento e um particularmente que é o Newton, que é treze anos mais velho do que eu, era músico, fazia baile, era amigo do pessoal da bossa nova, especialmente do Menescal com quem ele tinha estudado no colégio Santo Inácio e também de vários outros músicos. Então, a minha casa era uma casa que recebia quando eu era pequena, pequena que eu digo assim, dez anos, pessoas como Menescal, Luís Carlos Vinhas, o pessoal que tocava no conjunto do meu irmão que era o Eumir Deodato que toca acordeom na época com ele, fazia baile. O Vinhas substitui o Eumir quando ele faltava, o Vinhas ia, Hugo Marota, João Palmas, Sérgio Barroso Neto. Esses músicos todos dessa época que faziam baile com meu irmão, tocavam com ele, meu irmão era guitarrista. E eu acabei aprendendo a tocar por causa disso, eu ficava observando, ficava ali meio cabreira porque eu era pequena e ninguém dava muita bola, mas eu ficava olhando tudo, ouvindo tudo e aí acabei aprendendo a tocar. Com catorze anos eu comecei a tocar sozinha o violão do meu irmão, quando ele saía para trabalhar. Ele era bancário e estudante de Direito, então ele saía para trabalhar eu pegava o violão dele e ficava tocando, foi assim que eu comecei a tocar.
P- Conta um pouco da sua infância, em que bairro você foi criada?
R- Eu fui criada em Copacabana no Posto 6, onde eu nasci, e estudei no colégio São Paulo que era uma escola católica, de freiras em Ipanema, no Arpoador, na avenida Vieira Souto de frente para a praia de Ipanema. Então, eu fui completamente garota de Ipanema nessa época (risos). Estudei ali desde o primário até o final do curso clássico. E a gente morava em Copacabana num apartamento bastante simples de dois quartos. Minha mãe comprou com muito sacrifício, ela era funcionária pública, sustentava os filhos sozinha. Ela foi casada duas vezes com o pai dos meus irmãos e com o meu pai e nas duas vezes ela, digamos assim, não se deu muito bem. Então ela teve que segurar a barra toda sozinha e segurou brilhantemente, formou todos os filhos, botou todo mundo na universidade, foi uma tremenda guerreira mesmo. Então eu cresci ali no Posto 6 que é um cantinho de Copacabana especialmente sossegado, um dos mais tranquilos e naquela época, anos sessenta, época da minha adolescência, do meu despertar para música, era um lugar paradisíaco. Copacabana, Ipanema, aquela área ali, era o paraíso para uma adolescente.
P- Ainda na sua infância, o que você gostava de ouvir?
R- Olha, a minha casa não era uma casa muito típica nesse ponto, porque se ouvia muito jazz, muito, muito, muito. Meu irmão, esse que era guitarrista, ele trazia todos esses discos do Miles, da Ella Fitzgerald, aquele famoso disco da Julie London com Barney Kessel a gente tinha em casa, que foi o disco que formou o pessoal da bossa nova no início, ouvia-se muito isso. A minha mãe gostava do Sinatra, gostava de Lúcio Alves e Dick Farney, eram os cantores que ela adorava. Então a gente ouvia sim, muita música. Agora, sendo carioca, morando no Rio de Janeiro, tinha uma presença de samba muito forte, a cultura do samba é muito forte. Então o carnaval nessa época era um carnaval de rua muito saudável, em todos os bairros tinha muito carnaval de bairro e tudo isso foi formando o caldeirão musical dentro de mim. A rádio nacional que se ouvia na minha infância, a gente também ouvia essas coisas da rádio, então a música brasileira e muito especialmente o samba que é a música da minha cidade e isso foi muito forte, o samba e o jazz que chegava através do meu irmão. Quando apareceu a bossa nova eu tinha onze anos de idade, por aí, eu fiquei estatelada, enlouquecida com aquelas harmonias, com o João Gilberto, aquela coisa, aqueles acordes, aquilo me pirou geral e me deu muita vontade de aprender tocar e de começar a fazer música também. Eu já cantava, já gostava de cantar, quando eu era pequena meu irmão me botava pra cantar com eles nas festinhas, cantava Noel Rosa, aquele repertório assim, e depois já com treze anos eu já ia às minhas próprias festinhas e cantava as coisas de bossa nova que pintavam na época, Barquinho, Meditação esses repertórios do João. Aí quando eu comecei a tocar, obviamente eu fui procurar isso e comecei a tentar reproduzir no violão e fui aprendendo sozinha e fui começando a tocar.
P- Você começou a pegar o violão sozinha, seu irmão ajudou?
R- Meu irmão, imagina. Desde quando que irmão mais velho ajuda a irmã chata? De jeito nenhum, ele tinha mais o que fazer. (risos) Eu aprendi sozinha mesmo, cheguei até a dar aula para uns desavisados, coitadinhos que não sabiam que eu nunca tinha estudado violão, então eu tive uns alunos e tal. Mas com dezoito anos eu encontrei o Jodacil Damaceno que é um concertista clássico, companheiro de geração do Turíbio Santos e que me deu aulas de técnica de violão, de leitura, enfim, teoria musical. Estudei também com a Wilma Graça, mas foi o Jodacil quem botou a minha mão no lugar e eu devo a ele a minha mão direita e ele sabe muito bem disso. Outros violonistas que estudaram ele foram o Guinga, Rosinha de Valença, ele foi um grande professor e ele, através do clássico, aparelhava a gente para tocar o popular também com maior desenvoltura. Então toda a minha formação de violonista nesse início, quem ajeitou, foi o Jodacil, foi meu grande professor.
P- Você começa a se envolver com música ainda adolescente e estudando. Como era isso no colégio?
R- Era muito bossa nova na veia, era o que a gente ouvia, era o que a gente gostava, o Tamba Trio, eram os trios, era a música instrumental dessa época que era gloriosa. Luizinho Eça era um ídolo para nós. Sylvinha Telles era a minha cantora predileta. Depois, quando saiu o primeiro disco da Wanda Sá, era o Wanda Vagamente, eu tinha dezesseis anos, adorei aquele disco. Ouvíamos também os discos da Nara que tinha um repertório muito interessante e estava sempre buscando coisas novas. Enfim, a gente ouvia tudo aquilo e João Gilberto era o Deus e os santos eram muitos, que eram todos esses que eu estou falando. Mas era muito por aí de se ouvir a bossa nova pra minha geração, especialmente pra quem era carioca nos anos sessenta e adolescente, era a música da juventude, era a coisa mais pop que tinha, tanto que quando apareceram os Beatles, ninguém nem deu muita bola porque aquilo que a gente tinha era tão rico, tão sofisticado, tão cheio de harmonias, tão cheio de riqueza melódica, enfim. Eu particularmente só fui me interessar por Beatles bem mais tarde e, assim mesmo, porque muitos companheiros de geração estavam se interessando, aí eu fui parar para ouvir, aí eu falei: “Não, esses caras são bacanas, eles tem uma música legal também”. Mas para quem vinha de uma cultura de bossa nova e jazz era difícil gostar de outra coisa.
P- E a tua entrada na universidade? Você estuda aqui no Rio de Janeiro mesmo?
R- Eu fiz vestibular pra PUC, passei, entrei na faculdade de Jornalismo que na época era o que hoje se chamaria Comunicação. Eu queria ser jornalista caso a ideia de fazer música não desse certo. Estudei Jornalismo, fui estagiária do Jornal do Brasil, do Caderno B em 1967 de onde eu saí porque eu tive uma música classificada no Festival Internacional da Canção e aí assinei um contrato com uma gravadora e aí a minha vida de músico começou.
P- Mas como é que surgiu essa coisa de inscrever essa música no Festival?
R- Era música e letra minha. O que aconteceu foi que na verdade eu acompanhava os festivais da Record, o Festival Internacional, esses grandes festivais da época, acompanhava como fã. Tirando a turma do meu irmão que era muito mais velha do que eu, eu não conhecia ninguém na área musical. Eu tinha tido umas gravações esporádicas antes disso chamada pelo Menescal, muitos jingles e tal, porque ele era amigo do meu irmão. Então ele me ouviu uma vez cantar, meu irmão botou uma fita caseira que eu tinha gravado para ele ouvir e ele gostou muito. Na ocasião eu achei que eles estavam de sacanagem comigo, mas não era não, era sério (risos). E aí depois ele me chamou para um disco até de um mineiro que é o Mascarenhas, que estava fazendo um disco próprio, acho que era até um disco em esquema independente chamado Conjunto Sambacana que na verdade não existia, era um nome fantasia. Conjunto Sambacana era o conjunto do Menescal tocando e na vontade do Pacífico, pelo que o Menescal me contou na época, seria Os Cariocas cantando, mas eu acho que o dinheiro não deu pra cobrir aquilo tudo, então o Menescal arregimentou uma garotada, eu, inclusive, que na época tinha dezesseis anos e assim eu fiz meu primeiro trabalho profissional, entrei em estúdio pela primeira vez, ganhei um dinheirinho. Mas foi só aquilo, gravei os vocais ali junto com o grupo, mas ficou nessa. Nunca mais tinha acontecido nada, nem eu tinha muita pretensão, porque as pessoas que eu curtia, eu não tinha ainda acesso a elas por mim mesma. Quando surgiu esse festival de 1967 eu inscrevi e tive duas músicas selecionadas e acabou ficando uma, que era uma música chamada “Me disseram”, uma música que na época deu muita polêmica porque eu falava no feminino singular, fala “meu homem”, eu tinha dezenove anos e cara de criança, então uns diziam que era música de puta, outros diziam que não, que era música de feminista (risos). E na verdade eu estava ali me expressando do jeito que eu sabia e podia naquele momento. E aí o que aconteceu foi que com a música tendo sido classificada, eu tomei coragem pra cantar. Um outro amigo meu que se classificou também, o Macalé, me convidou pra cantar a música dele e eu fui cantar, então, duas músicas nesse festival. Nenhuma das duas teve grande sorte nas apresentações, no festival em si, mas isso me abriu as portas para um contrato com a Philips que depois passou a se chamar PolyGram e hoje se chama Universal, então pra que saísse o meu primeiro disco. Também nesse festival eu fiz muitas amizades e conheci pessoas que também estavam estreando nesse festival como o próprio Bituca, o Toninho, o Marcinho, o Ronaldo, como outras várias pessoas que estavam chegando ali também pela primeira vez. Então foi um festival bacana, de novas amizades, de novos encontros e de outros que já eram quase veteranos, que já estavam começando e eu também fui conhecendo, Dori Caymmi, Nelson Motta, Danilo Caymmi, eu já tinha conhecido os baianos primeiro, foram meus primeiros amigos na área da música, Caetano, Gal, Bethânia, Gil eu conheci depois, Torquato Neto que foi uma das primeiras pessoas também com quem eu fiz amizade na época. Enfim, havia um ambiente muito musical no Rio de Janeiro e muita gente nova, muita coisa nova aparecendo, tinha também a rapaziada nova do samba que era Paulinho da Viola, Élton Medeiros, novos que eu digo assim, para o samba que sempre tem uma faixa etária mais alta, para o pessoal do samba eles eram uns caras novos. E aí fui conhecendo essas pessoas também, Maurício Tapajós, enfim, tinha um grande ambiente musical muito interessante e assim eu acabei fazendo meu primeiro disco que saiu em 1968, aos vinte anos. Então, metade era de músicas minhas e a outra metade era de músicas desses meus amigos que me deram músicas inéditas, então tinha música do Marcos Valle, tinha do Caetano, tinha uma do Paulinho da Viola, tinha uma parceria minha com o Macalé além das minhas músicas que eu fiz sozinha, tinha a primeira música gravada do Toninho Horta e Ronaldo Bastos, Litoral, tinha Francis e Vinicius que escreveu o texto da contracapa do disco e foi muito generoso, muito bacana desde o início da minha carreira, foi um superpadrinho que eu tive, Vinicius e Tom foram pessoas que me abraçaram mesmo. Então esse foi o meu primeiro disco e foi o meu início mesmo em uma carreira profissional.
P- Quando você vê esses mineiros chegando para esse festival, te chamou a atenção de alguma forma?
R- Não como um coletivo ainda, mas claro, o Bituca não há o que dizer, era aquela coisa deslumbrante, ele chegou com três músicas, todas três maravilhosas, arrasou, acabou com o baile, ele fechou e foi incrível e nossa amizade começou ali e o Toninho a mesma coisa, porque o Toninho com dezenove anos, que foi quando a gente se conheceu, nós somos da mesma idade, ele já era o Toninho, era um cara que já tocava praticamente como ele toca hoje. Ele já veio pronto, ele nasceu já prontinho. A linguagem do Toninho de violão era escandalosamente avançada e própria. Então foram as duas pessoas assim que de cara bateu e “Alô, tem uma coisa diferente aí”. E não por acaso estão eles aí.
P- O Toninho nos deu uma foto que é você cantando e ele tocando em um festival.
R- Ah, deve ter sido Yarabela em 1969 naquele Festival Universitário de Belo Horizonte.
P- Você passa a frequentar Minas depois de conhecê-los?
R- Na verdade, Minas é que me frequentou antes de eu frequentar Minas porque começou a vir um monte de mineiro para o Rio e os cariocas começaram a abrir suas casas, tanto eu quanto Ronaldo Bastos, quanto Luizinho Eça, quanto Mauricio Maestro, quanto os Caymmi, enfim, Paulinho Jobim. Vinha Chegando aquele monte de gente e a gente ia acomodando um aqui, outro ali, ficava um na casa de um, outro na casa de outro até se ajeitar. Tinha essa coisa, o Rio sempre foi muito generoso com relação às pessoas que chegam, as pessoas vão chegando e vão virando cariocas, vão chegando e vão botando o pé naquele mar, chegando e ficando. E isso aconteceu com os baianos, aconteceu com os mineiros, aconteceu com gaúchos, aconteceu com os cearenses, sempre tem essa coisa do Rio ser muito cosmopolita mesmo. E nesse momento calhou de ser o momento em que os mineiros estavam vindo em hordas para o Rio de Janeiro e a gente ia recebendo todo mundo e as pessoas iam chegando. A primeira vez que eu fui a Belo Horizonte foi exatamente para cantar nesse festival. Eu nunca tinha ido a Belo Horizonte antes, não conhecia nem a cidade, mas conhecia das histórias e tinha todos esses amigos, tinha Nelson Angelo, aí fui conhecer Lô e Beto em Belo Horizonte, tinha o Marcinho, tinha o Brant queridíssimo e os músicos Helvius Vilela, esse pessoal todo que foi vindo. E depois, o Bituca [Milton Nascimento] explodiu nacionalmente, isso foi uma coisa que incentivou muito o pessoal a vir pra cá e todos foram ficando por aqui e sendo também bem sucedidos, porque todos eram supertalentosos, brilhantes. E houve também esse momento em que nós tínhamos uma turma, quer dizer, eu era uma pessoa de muitas turmas. Mas uma das turmas, que era uma turma muito intensa porque a gente convivia muito e fazia parte desse primeiro núcleo, que, segundo Ronaldo Bastos, uma vez ele me falou isso, o Clube de Esquina não é um movimento mineiro apenas, ele também é um movimento carioca porque houve muita gente do Rio envolvida. E se a gente for ver dessa forma, a gente acaba considerando que nós todos fazemos parte desse primeiro núcleo do Clube da Esquina, do que viria a ser chamado Clube da Esquina. A gente estava junto o tempo todo e fazendo muita música e os lugares onde as pessoas se reuniam eram principalmente a casa do Luizinho Eça, a casa do Tom por causa, principalmente, do Paulinho que era amigo de todo mundo e do próprio Tom também que via com muitos bons olhos essas amizades musicais do Paulinho. Tinha também a casa do Marcos Valle que foi o grande incentivador do Milton no início da carreira, quem praticamente botou o Milton num momento muito difícil. Depois da primeira explosão, que as pessoas se deram conta de quanto a música do Milton era complexa e tal, ficou um pouquinho difícil para ele com relação à gravadora, rádio, essas coisas. E aí o Marcos convida ele pra gravar Viola Enluarada e explode outra vez, os dois cantando juntos, foi um gesto do Marcos superbacana de admiração por um colega que ele via que tinha um supertalento. E o Marcos nesse momento estava num grande momento da carreira, então estava podendo fazer isso. Foi bacana. E bom, ia-se muito na minha casa também, que era uma casa pequena, porém aberta e muito sincera e estava sempre recebendo as pessoas também, do mesmo jeito. E onde mais? Tinha a própria casa do Bituca que morava naquele cafofo na Xavier da Silveira, que a gente também frequentava embora fosse um ovo assim, mas sempre se estava por lá. Enfim, era muito isso, casa de um, casa de outro, as pessoas se frequentavam e se viam, trocavam ideias, mostravam músicas. Cada um queria mostrar uma música melhor do que o outro, tinha uma coisa bacana, saudável. Tinha a casa do Caymmi também, que quando os pais estavam viajando, o Danilo dava muitas festinhas, recebia muito (risos). Então a gente ia muito lá. Ia-se muito lá em casa, às vezes o Bituca dormia lá em casa, as coisas eram muito tranquilas nesse ponto, as pessoas eram muito abertas, muito confiantes e muito jovens. E tudo era muito amoroso, muito sincero, muito verdadeiro. Isso era bacana.
P- Sobre o álbum Clube da Esquina, você se recorda da primeira vez que você ouviu?
R- Olha, algumas daquelas músicas eu já conhecia porque, em 1970, eu viajei para o México com o Luizinho Eça e um grupo chamado Sagrada Família do qual fazia parte o Naná, Maurício Maestro, Nelson Angelo. O líder era o Luizinho. Tinha o Ion Muniz que é um grande saxofonista. Enfim, era um grupo de treze pessoas e eu fazia parte desse grupo. Quando eu voltei dessa turnê, casada com Nelson Angelo - foi o meu primeiro casamento, durou quatro anos e pouco e tive duas filhas com ele, a Clara e a Ana, as duas são cantoras -, eu conheci as pessoas que frequentavam e continuavam frequentando a minha casa, que dessa vez era a nossa casa mesmo, que tinha eu, ele, mais o Novelli e a Luci. Casamos no mesmo dia, casamos juntos numa cerimônia dupla, dividimos um apartamento e começamos a tocar juntos, e a ideia era fazer um grupo. Nessa época eu tinha esse contrato com a Philips, que eu chutei o contrato de uma maneira que depois até me arrependi porque depois ficou esquisito, a gravadora ficou meio grilada comigo, mas eu tinha feito dois discos, aquele primeiro que eu falei e um outro em 1969 que tinha músicas minhas e de Nelsinho, música do Danilo, músicas de outras pessoas também dessa nossa geração. E aí quando a gente foi morar nessa, digamos, comunidade - lembra que a gente estava em 1970, todo mundo meio hippie e fomos morar nessa comunidade - convidamos o Toninho que estava a duras penas terminando o segundo grau, ali fazendo curso, de uma dureza, batalhando para ter o diplomazinho dele de segundo grau, mas o que ele queria, o que ele era, o que ele nasceu pra fazer era música. Então a gente chamou ele para ficar morando lá também com a gente. O Naná, que fazia parte do grupo saiu e foi para Europa como Gato Barbieri e aí entrou o Nenê que também foi morar lá em casa. Nenê é baterista do Rio Grande do Sul e esse grupo se chamou A Tribo. E era uma tribo mesmo, a gente morava todo mundo junto nesse apartamento que era grande, no Jardim Botânico, o Bituca morava um pouquinho acima e fazia as refeições lá, claro, direto (risos). Ele descia por uma escadinha que tinha ali e ia lá pra casa, de forma que eu tinha contato com essas músicas que estavam sendo feitas e tal. Já tinha conhecido o Lô e o Beto em Belo Horizonte, antes, na época desse festival em 1969, que também tinham chamado muito a minha atenção porque eram dois garotos que na época tinham dezenove anos, eram meninos. Não, era dezessete anos porque o Beto estava para ser convocado pelo exército e era uma paranoia essa história que iam cortar o cabelo dele (risos). Chamou muito a atenção porque era uma coisa meio Beatles, mas era uma coisa meio Beatles com acorde e era bacana pra caramba o que eles faziam, era uma coisa diferente, não era aquela coisa burra de acorde perfeito, era um negócio muito legal. Enfim, todas as pessoas faziam parte desse grande coletivo de músicos e nesse apartamento do Jardim Botânico a gente recebeu muita gente, o Paul Horn, flautista americano de jazz que ia gravar com a gente, que ficou superamarrado no som que a gente fazia e acabou não dando certo. Enfim, eram coisas que estavam acontecendo, uma coisa que rolava, mas que a gente nem se dava conta. Depois as mulheres todas engravidaram, eu, a Lucy, a mulher no Nenê, e empregada, ficou todo mundo grávida ao mesmo tempo e aí eles foram à luta e tiveram que arrumar trabalho como sideman, músico acompanhante, e acabaram indo tocar com a Elis que ficou tocando com essa banda que no final das contas era A Tribo com mais uma ou duas adições, que durou algum tempo. E nessa época eu estava meio parada, estava de mãe, tive minhas duas filhas, se bem que, na segunda filha, eu cheguei a gravar um disco com o Nelsinho - eu vou chegar nele daqui a pouco. Mas então, nessa fase, foi uma fase em que eu estava acompanhando bem o processo todo de criação, ouvia as músicas, as pessoas mostravam, chegavam, faziam as músicas novas.
P- Você chegou a acompanhar o cotidiano de gravação?
R- Do primeiro Clube da Esquina não. Acompanhei o cotidiano de gravação de outros discos do Bituca depois, o Minas, e Geraes, o Clube da Esquina 2 do qual eu gravei uma música tocando violão, uma música minha, mas esse primeiro não, eu estava realmente ocupada (risos).
P- Como eram essas gravações? Tinha muita gente?
R- As gravações do Bituca basicamente eram as grandes festas, as pessoas chegavam: “Vai fazer o que hoje?”, “Qual é a boa de hoje?”, “Ah,vou lá na gravação do Milton”, era assim. Não sei como eles conseguiam gravar, porque era muita gente, muito barulho, muita interferência, mas ainda assim saíram discos espetaculares, os melhores da vida dele, eu acho.
P- Você esteve ocupada com a maternidade e elas vão crescendo, e você?
R- Aí surgiu uma proposta, porque A Tribo chegou a gravar um pouquinho, umas três ou quatro faixas para a Odeon que era onde estava o Milton, enfim, onde viria a ser o lar do Clube da Esquina, quando ele passou a ter esse nome. E tinha um diretor artístico no Odeon chamado Milton Miranda, eu gravei um compacto duplo com quatro músicas, Nada será como antes, do Bituca e do Ronaldo, gravei uma música do Nelsinho, gravei uma música do Danilo, gravei Maria Fulô do Sivuca, era um compacto de quatro músicas. E pouco depois disso ele me chamou lá, Milton Miranda perguntando se eu queria gravar um disco meu, que ele estava afim de fazer um disco comigo, ele até queria que o Milton fosse o produtor. E aí ele perguntou, porque ele conhecia os meus trabalhos anteriores e ele sabia que era um trabalho basicamente de composição, mas eu estava realmente em uma fase em que eu fiquei alguns anos sem compor nada, e então eu disse a ele que eu, naquele momento, trabalho de composição eu não tinha, mas eu tinha para oferecer a ele artistas espetaculares que estavam prontos para gravar e aí falei do Nelson, falei do Toninho, falei do Danilo, falei do Beto. Do Lô eu não precisei falar porque já tinha o trabalho com o Bituca, mas falei do Novelli. Enfim, falei, falei muito, apaixonadamente do trabalho desses caras, mas falei: “Tem uma coisa efervescente, se você não pegar, você vai ser bobo. Você tem que ir à luta e tem que conseguir gravar esses caras. Eu me disponho a fazer um disco, mas eu gostaria ou de gravar as músicas desses caras, ou participar de algum projeto que incluísse todo mundo”. Era uma fase em que tudo era muito coletivo, então ele falou: “De cara eu lhe ofereço o seguinte, já que você está casada com o Nelsinho, você está bem envolvida com o trabalho dele, proponho que você faça um disco juntos, você faz um disco com ele e eu vou tentar colocar os outros que você está me falando, para ver se eu consigo fazer eles gravarem também”. Aí eu voltei pra casa com essa novidade e o que aconteceu foi que ele não conseguiu fazer todo mundo individualmente, mas ele propôs um disco coletivo com Beto, Danilo, Toninho e Novelli que é aquele disco da latrina que tem na capa (risos), foto do Cafi [Carlos Filho], enfim, do qual eu não participei, mas participei tendo dado a sugestão na gravadora, de maneira muito enfática, lá para o Milton Miranda e ele foi maravilhoso de ter topado. Então eu gravei o disco com o Nelsinho que tem uma música só, minha, que é Meus vinte anos, parceria minha com Ronaldo Bastos, eu canto várias músicas do Nelsinho, o repertório é basicamente dele e foi em 1972, se não me engano, que a gente fez esse disco. No início eu estava grávida da Aninha e gente continuou depois que ela já tinha nascido e todo mundo toca ali, os músicos todos, têm Toninho, Novelli, Tenório Júnior que Deus o tenha, maravilha, querido, Hélcio Milito do Tamba Trio, Rubinho, Rubinho Moreira, estava todo mundo lá, Beto tocando baixo, cantando, fazendo vocal de apoio, um povo.
P- Conta pra gente um pouco da gravação do Clube da Esquina 2.
R- Eu tinha participado daquele disco Minas, do Bituca dentro dos coros lá que ele montou e do Geraes não, mas eu assisti muitas gravações. Aí eu fui para os Estados Unidos e à essa altura já estava separada e fui trabalhar nos Estados Unidos, fiquei lá uns seis meses, conheci o Claus Ogerman, maestro alemão que fazia os arranjos do Tom, do Sinatra, desse povo todo e gravei junto com Maurício Maestro. A gente gravou um projeto para o Claus Ogerman que eram composições nossas, minhas e do Maurício, juntos, separados, enfim, gravamos esse projeto que nunca foi lançado, mas era um projeto lindíssimo, com muitos músicos de jazz de lá da época, tipo Michael Brecker, uns cara muito da pesada, Joe Farrell, Buster Williams que era o baixista e aí nós gravamos e era o repertório muito novo. Quando eu voltei para o Brasil eu já tinha conhecido o Tutty com quem eu me casei, Tutty Moreno, baterista que se a gente pensar na divisão dos grupos que tinha antes, ele era um cara da Tropicália, ele era dos baianos, ele morou em Londres com o Gil, dividiram apartamento, enfim, a relação que ele tinha com os baianos era mais ou menos a que eu tinha com os cariocas e com os mineiros, de muita intensidade, de troca, como morar em comunidade, essa história toda é por isso, a gente nunca tinha se conhecido, embora a gente tivesse muitos amigos em comum. Mas, então, a gente foi se conhecer em Nova York e aí voltamos casados de lá e eu tinha um repertório muito grande de músicas minhas e comecei a mostrar para as pessoas, porque até então eu sempre ficava achando: “Não, eu vou guardar, porque quando eu fizer um disco...”. Mas aí chegou uma hora que eu falei: “Quer saber? Eu vou mostrar para as pessoas”. E a primeira pessoa que ouviu foi justamente o Milton, porque eu e Maurício fomos à casa dele mostrar a demo do disco que nós fizemos com o Claus Ogerman e tinha essa música Mistérios, que era uma parceria minha com Maurício que na verdade era um tema que ele tinha começado a fazer lá em Nova York, que estava meio empacado, ele parou nas duas primeiras frases e ficou meio assim, não sabia como continuar e aí eu terminei a melodia para ele e fiz a letra, e a gente ficou com essa música pronta e gravamos, ficou superbonita. Daí o Bituca ouviu essa música e quando ele ouviu, eu já conheço a peça, saquei que tinha acontecido alguma coisa, o olho já deu um brilho diferente, ele falou: “Ah, deixa essa fita aqui, deixa eu ouvir essa música”. E aí veio logo a notícia de que ele queria gravar o Clube da Esquina 2 e nós participamos da gravação, eu toquei violão, o Maurício fez um arranjo superbonito, botou o Boca Livre que estava iniciando ali para cantar e assim foi que a gente teve a nossa música lindamente gravada pelo Bituca.
P- E a gravação como foi, cheia de gente do mesmo jeito?
R- Era sempre assim, não tinha outro jeito (risos).
P- Muitos musicólogos, estudiosos classificam o Clube da Esquina como um movimento, o que você acha disso? Você concorda?
R- Eu acho que isso é uma coisa para os musicólogos responderem, porque quem está no meio das coisas acontecendo, quando se está no meio dos acontecimentos você não tem muito essa clareza do que é o quê. Mas você pode considerar sim como um movimento musical. Eu tive muitas críticas ao Clube de Esquina, porque eu achava um movimento muito misógino, porque só tinha homem e era um movimento sem musa, porque a bossa nova tinha a Nara, a Tropicália tinha a Gal e a Bethânia, todos os movimentos tinham lá as suas musas e o Clube de Esquina era um movimento de meninos, até que eu me toquei que a musa do Clube da Esquina era o Bituca, então aí eu entendi. Mas era um movimento, sim e tendo o Bituca como centro, eu estou brincando com essa história de musa, ou muso, tendo o Bituca como pólo irradiador e aglutinador das pessoas, eu acho que aquilo foi um movimento sim, de pessoas extremamente brilhantes, extremamente talentosas que gravitam em torno do Milton, cada um com a sua linguagem. Se você vê, os trabalhos são diferentes, o trabalho do Toninho Horta é uma coisa, o trabalho do Nelson Angelo é outra coisa, o trabalho do Lô é outra coisa, o trabalho do Beto é outra coisa, do Flávio Venturini é outra coisa. São trabalhos que não nasceram propriamente do trabalho do Bituca, mas gravitam em torno do trabalho do Bituca e o Bituca além do grande compositor que ele é, um dos maiores do planeta, ele foi também o melhor porta voz que esses compositores poderiam sonhar, então, com certeza.
P- Que tipo de inovação que a composição Clube da Esquina traz para a música brasileira?
R- Olha, na verdade, toda essa geração na qual eu me incluo e todas essas pessoas dessa geração, cada uma no seu caminho, cada uma no seu estilo, somos todos filhos do Tom, eu acho que vem tudo dali, o Tom é a grande árvore frondosa da onde vem todos esses galhos que vão florescer em Edu Lobo, por exemplo, em Marcos Valle, em Dori Caymmi, em Francis Hime, freudianamente nos baianos como Caetano, Gil que tentam fazer o oposto do que o pai faz, tentam matar o pai simbolicamente através da Tropicália, mas não tem jeito, a herança está lá. Tem o Chico que é também herdeiro direto, todas as pessoas dessa geração e o Milton não seria diferente, ele e todos os compositores dessa árvore que se chama Clube da Esquina, eu acho que todos eles são descendentes diretos do Tom e, portanto, do que se convencionou chamar bossa nova, mas que é a música popular brasileira clássica. Tem essa coisa da harmonia que é incrível, como eles são um pouquinho mais pop, Bituca foi ficando um pouquinho mais pop até por influência dos mais jovens, do Lô e do Beto, do Toninho. Isso levou ele para um lado um pouquinho mais pop, então ele traz essa coisa harmônica para essa informação, quer dizer, ele traz essa informação harmônica para essa cultura meio pop também. É aí que eu acho que, por exemplo, nos Estados Unidos, as pessoas curtiram muito, como Pat Metheny, porque ficaram apaixonados por essa concepção musical, de misturar isso.
P- Nos anos oitenta você lança um dos discos de maiores sucessos, que é o Feminina e como foi essa década de oitenta para você?
R- A década de oitenta foi engraçada porque de início foi uma década muito interessante. No Brasil, em 1980, como eu tinha tido música gravada pelo Bituca, pela Elis, pela Bethânia, muita gente começou a gravar as minhas músicas, então a gravadora resolveu me chamar, a velha e boa Odeon, nessa época já se chamava EMI Odeon porque eu tinha me desligado da gravadora. Depois que eu tinha feito aquele disco com o Nelsinho, o Milton Miranda mandou me chamar e quis que eu continuasse lá pra fazer um outro tipo de trabalho que eu não estava afim de fazer e ao mesmo tempo ele dispensou todos os artistas que ele tinha contratado ali naquele momento em que ele me contratou. Eu fiquei meio injuriada com aquilo e pedi dispensa da gravadora e fiquei um tempo sem gravar e gravei um disco na Itália chamado Passarinho Urbano, quando eu tinha ido para a Itália em 1975 com o Vinícius e fiz uma temporada na Europa com ele, Itália, França e tal, então o produtor dele que era o Sergio Bardotti e eu gravei um disco de músicas censuradas, só de músicas censuradas, autores que estavam sendo censurados no Brasil naquele momento. Então, tem o Bituca, tem o Chico, tem Maurício Tapajós, tem o próprio Vinícius com Carlos Lira, tem Caetano, tem Edu, está todo mundo lá e esse disco saiu em 1976 na Itália e é um disco de praticamente voz e violão. Depois disso, eu fui para os Estados Unidos e fiz aquele disco com Claus Ogerman em 1977, que não chegou a ser lançado e voltei para o Brasil com a mala cheia de músicas e comecei a mostrar e as pessoas começaram a gravar. Foi ficando bom, foi ficando interessante ver as minhas músicas em tantas vozes bacanas. Aí a EMI me chamou para que eu gravasse um novo projeto lá, então eu fiz o disco Feminina. Fui convidada para participar do festival MPB 80 da Globo. Eu não tinha nenhuma música inédita para colocar no festival, só tinha uma que era Claraena, que era música do Maurício e letra minha, uma música muito singela, simplesinha, uma cantiga de ninar, mas era o que eu tinha e coloquei no festival. A música explodiu nacionalmente e virou um superssucesso e acabou que a gente vendeu disco à beça e foi muito bom. E com isso, o Feminina virou um disco meio marco na minha carreira porque tinha essa temática feminina, todas as músicas desse disco têm um discurso muito feminino e ao mesmo tempo era um disco com a minha cara, um disco em que eu tomei as rédeas do meu trabalho. Fiz tudo ali, fiz os arranjos de base, toquei violão em todas as faixas, fiz quase todas as letras que quando não são minhas, são da Ana Terra, minha parceira em duas músicas nesse disco. Enfim, foi um disco em que eu tive muito controle do meu próprio trabalho e aí pra mim foi um negócio sensacional, que aí eu vi: “Eu posso fazer tudo isso, eu posso ser dona realmente do trabalho e fazer do meu jeito, com a minha cara, com a minha cabeça”. Então, esse disco foi muito importante pra mim e foi um disco muito bem sucedido comercialmente. O seguinte também, que foi o Água e Luz que também fez muito sucesso. E depois disso eu tive um pequeno arranca rabo com a gravadora e resolvi fazer um disco independente, que foi o Tardes Cariocas, e essa atitude me custou um pouco caro, porque aí você fica meio visada como pessoa encrenqueira, e na época isso aconteceu um pouco comigo e foi um pouco difícil, passei um tempo no mercado da música independente e fora do mercadão, o que me dificultou um pouco a carreira, mas, por outro lado, impediu que eu fosse pressionada a fazer coisas que eu não queria. Porque estava em um momento de transição, estava surgindo o rock brasileiro e as pessoas querendo purificar a MPB então eu não ia estar afim de fazer isso, isso não ia dar certo comigo e não era o caminho que eu queria. Por outro lado, na época eu fiz discos como Tardes Cariocas que foram discos que depois viraram cult no exterior e foram discos independentes que tiveram uma carreira própria e foram legais. Aí começa a pintar convite para fazer coisa no exterior, na Europa, no Japão. Em 1985 eu fui ao Japão pela primeira vez e foi o início de uma relação de trabalho que frutifica até hoje, já são vinte anos indo praticamente todos anos pra lá, direto, às vezes até duas vezes por ano, fazendo show lá direto e gravando discos para o mercado japonês. Aí pintou no início dos anos noventa uma outra vertente, que foram os Djs que descobriram o meu trabalho a partir do disco Feminina também e começaram a tocar na pista, e isso me trouxe um público jovem incrível na Europa, garotada, garotada mesmo, pelo lado do swing, a coisa rítmica que a minha música tem, que é a carioquice da minha música mesmo do samba e das coisas mais rítmicas. Então, o trabalho foi abrindo muito para esse lado, foi ficando legal e continua legal até hoje.
P- Você gravou um disco com o Toninho no Japão?
R- A gente gravou na verdade em Nova York, mas foi para uma gravadora japonesa. Esse disco foi um impulso na verdade, porque de todos os meus casamentos, casamentos mesmo, com maridos de verdade, eu fui casada com o Clube da Esquina através da pessoa do Nelsinho, depois casei e sou casada até hoje com a Tropicália de certa forma através do Tutty, mas musicalmente o meu casamento com o Toninho é um grande casamento (risos) mesmo, é um casamento musical e que dá muito certo porque a gente tem uma compreensão musical do universo um do outro, muito grande. A gente passa anos sem se encontrar, sem se falar e a gente se encontra e já aconteceu da gente se cruzar na Dinamarca, em Viena ou não sei onde e: “Vamos tocar?”. Aí não ensaia, não precisa, já está ensaiado desde que se conheceu em 1967, não tem mesmo necessidade de ensaio, a gente tem um entendimento musical muito, muito grande mesmo. E aí o que aconteceu foi que eu convidei o Toninho para ser special guest em um show que eu fui fazer de uma temporada no Japão. O Tom tinha morrido recentemente e nós todos estávamos muito mexidos com isso. E na volta do Japão a gente parou em Nova York e vinha com a gente o Kazuo Yoshida, um produtor japonês que já trabalhou comigo em outros discos e ele sugeriu: “Vamos fazer um disco? Vocês querem gravar um disco?”. Aí a gente falou: “Tá, vamos fazer um disco de violão e voz só com músicas do Tom”. Aí a gente alugou um estúdio. Em uma noite a gente gravou o disco todo, eu e o Toninho, pá, direto, no pau, fizemos em uma seção dez músicas. Depois o Yoshida veio ao Brasil e gravou mais duas faixas porque a gravadora queria ouvir a voz do Toninho cantando, então a gente fez uma faixa para o Toninho cantar, eles também queriam ouvir meu violão um pouco mais, porque era só o Toninho tocando, então a gente gravou também comigo tocando violão e foi assim que a gente fez. No mais, a argamassa, o grosso do disco foi feito em uma noite, dez faixas direto e muito na emoção, sem ensaio, tem música em que você vê que a gente não combinou nada, como ia acabar, como começam do jeito que saiu, ficou uma jam session e o nome do disco é Sem Você e é dedicado ao Tom.
P- Como é seu processo de criação?
R- Meu parceiro principal é meu violão, ele é quem me dá tudo, me dá todas as ideias, me sugere coisas, eu nunca fico na mão, ele está sempre ali, eu pego e sempre aparece alguma coisa. Então, basicamente, as pessoas falam de mim assim: “A cantora Joyce, a cantora e compositora Joyce”, eu acho que eu sou um músico e o músico comanda a cantora que é o instrumento do músico. Então, na verdade é o violão que manda em mim, ele é que me diz o que eu tenho que fazer, quando eu vou compor, quando eu estou compondo as minhas músicas, geralmente é a música que sai primeiro, depois eu trabalho letra. Às vezes algum parceiro me manda a letra, por exemplo, Paulo César Pinheiro, a gente tem muitas músicas e muitas delas foram letras que ele me mandou e que eu musiquei. Eu tenho parcerias com Maurício Maestro, com Edu Lobo, com Marcos Valle, com João Donato, em que eles me deram músicas e eu letra. Mas a coisa rola comigo mesma, quando eu estou sozinha em casa, que eu vou compor, que eu pego um violão e que ele me dá uma ideias, aí uma música sai, aí a comunicação é direta com as divindades do som. E os deuses da música estão sempre ali para quebrar um galho pra mim, então é comunicação com o além direta assim. Letra não, letra dá um trabalho, é uma coisa que você trabalha, corta, muda vírgula, muda palavra, tira palavra do lugar. “Não, essa daqui não soou legal, eu não quero dizer bem isso, é aquilo outro.” Música é muito mais fácil de fazer do que letra.
P- E você grava, ou escreve, como você faz para registrar?
R- Geralmente eu gravo. Eu tenho o meu gravadorzinho no estúdio, no meu escritório em casa, trabalho ali, faço as coisas ali, gravo e vou trabalhando. Eu agora, por exemplo, estou trabalhando em uma trilha de um filme de uma diretora espanhola. Eu fico trabalhando em cima do roteiro do filme que ela me deu, mas ainda não vi as imagens, na verdade ela está começando a filmar agora, então eu vou ter que ver as imagens pra mudar tudo. Mas eu trabalho muito sozinha, é um ofício muito solitário, eu nunca consegui trabalhar como o Vinícius. Vinícius de Moraes foi uma pessoa com quem eu trabalhei muito, viajei com ele, e a gente viajava de trem, e a gente ficava em hotel e ele me chamava: “Vem cá, vamos fazer um samba, vamos fazer uma música”. Eu tenho um pudor dessas coisas, eu não sei fazer isso, eu gosto de compor sozinha, mesmo quando eu componho com parceiros. Eu vou e faço a coisa, aí eu mostro depois para o parceiro quando eu acho que está bom: “Está bom assim? Gostou?”. Aí eu vou discutir, vamos ver: “É isso mesmo que você queria? Não é? É? Não é? Vamos mexer”. Mas essa coisa da festa de fazer música todo mundo junto, eu fico meio encabulada, eu gosto de compor sozinha.
P- Já aconteceu de você fazer música ou uma letra e ela ter tipo um endereço certo, de ser a cara de algum intérprete?
P- Muitas vezes. Quando eu fiz Da Cor Brasileira, eu tinha certeza que Bethânia iria gravar e não deu outra. E uma vez Bethânia se apaixonou por uma música minha que ela acabou não gravando e eu tinha certeza que a música não era dela, a música era da Gal, aí eu tive que passar por negociações, liguei para ela, perguntei: “Posso mostrar para a Gal?”, “Pode”. Aí eu mostrei pra Gal e a ela gravou, não deu outra. Mistérios era a cara do Bituca desde que o Maurício mostrou o primeiro esboço da melodia, quando ele estava começando a fazer, que aí depois a gente sentou junto e terminou a música. Desde o início, eu ouvi aquelas duas primeiras frases da música, a primeira parte da música, que é a parte que o Mauricio escreveu, eu sempre ouvia a voz do Bituca cantando aquilo, eu sabia que aquela música era para ele. E tem muito isso, quando eu fiz com a Ana, Essa Mulher e eu mostrei para a Elis com mais um monte de músicas, eu tinha um pressentimento com essa música e depois a Elis me ligou e falou: “Sabe como vai ser o nome do meu disco? Essa mulher”. Não deu outra, ela estava vivendo aquilo, a história que a música contava, era a história dela ali também, uma mulher tendo que ser artista, tendo que ser mãe, tendo que ser mulher, tendo que ser tudo ao mesmo tempo, aquela tripla jornada de trabalho da gente, então bateu com a letra da Ana, com a coisa toda que estava sendo dita ali. Então, às vezes isso acontece, mas às vezes também é imprevisível, às vezes você acha que a música é a cara de alguém e esse alguém não se comove com a música, ou se comove com outra que você pensava que não, que fulano ia gostar mais daquela, sei lá, é muito imprevisível.
P- Acontece de você ver músicas de outras pessoas e querer gravar?
R- Eu me apaixono por músicas às vezes. É assim, a compositora trabalha e, na verdade, a cantora se diverte enquanto a compositora trabalha, porque cantar para mim é uma coisa muito prazerosa, é uma coisa meio que nem comer, ou ir à praia nadar no mar, ou você acordar naquele dia lindo e falar: “Vou andar na lagoa”, ou namorar, ou qualquer coisa assim, é uma coisa prazerosa, é uma coisa gostosa, é bom cantar e adoro cantar, eu me divirto cantando pra caramba. E compor não, compor é um ofício, é um trabalho, é uma coisa que você coloca a sua alma ali naquilo, mas dá um trabalho desgraçado, dá muito mais trabalho do que qualquer coisa, é uma coisa muito louca. Então, às vezes eu me apaixono, e quando eu me apaixono... Por exemplo, no meu penúltimo disco, que é o Banda Maluca, tem uma música francesa que eu escutei uma gravação dos anos cinquenta da Blossom Dearie, de jazz dos anos cinquenta. Ela gravou em um francês pavoroso essa música que é uma valsa dos anos trinta e que quando ela gravou já era uma música obscura e depois ela ficou mais obscura ainda, oitenta anos depois. Eu não sosseguei enquanto eu não encontrei a letra correta e não gravei a música lá do meu jeito, mas eu fiquei em uma paixão com aquela música tão grande, que enquanto eu não gravei, eu não sosseguei. Eu acho que isso acontece muito, mesmo quando você ouve alguma coisa que bate assim e você fala: “Eu quero cantar isso aí” e você não sossegue enquanto você não consegue, é uma paixão mesmo.
P- Fala um pouco da carreira das tuas filhas.
R- Elas começaram pequenas na verdade. Eu tenho três filhas e mais uma filha biônica, são a Clara e a Ana que são filhas do meu casamento com Nelson Angelo, a Mariana que é a minha filha com o Tutty, que nasceu em 1979 e quando eu casei com o Tutty, ele já tinha uma filha do primeiro casamento dele que é a Kadi, que eu digo que é a minha filha biônica. Kadi é K-A-D-I, ninguém nunca entende esse nome, é um nome meio estranho mesmo que ele inventou para ela, mas enfim, são essas quatro meninas. E a Clara e a Ana que são as duas mais velhas, sempre foram muito ligadas em música, sempre gostaram de cantar, cantaram em discos de todo mundo, o primeiro disco de que elas participaram foi um disco do Egberto e depois disso começou muita gente a chamar, porque chamou atenção essas crianças tão afinadas. Elas tinham uma amiguinha que era a Maria Bravo, filha do Zé Rodrix e da Lizzie Bravo que também era muito afinada, então as três eram muito chamadas para coro infantil, desde Balão Mágico, até Dona Ivone Lara, Gonzaguinha, o próprio Bituca, elas chegaram a participar de um festival com ele lá em Minas cantando Coração Civil. Enfim, elas sempre curtiram muito e iam comigo, também na gravação de Clareana, tem uma risadinhas e elas cantam a música no fim, as duas eram dois passarinhos. A Clara sempre teve muita vontade de fazer música, de ir para o palco, ela estudou balé a nível profissional mesmo, ela foi para a França, estudou canto com a Christiane Legrand, enfim, ela se preparou para isso, a vida toda dela foi muito voltada pra isso. A Ana tentou fugir muito disso aí, fez faculdade de Nutrição, se formou como nutricionista, chegou a trabalhar como nutricionista, mas chegou uma hora que não deu e ela chutou o balde e resolveu ser cantora. Então as duas tem discos, a Clara usa o nome de Clara Moreno que é o nome do padrasto na verdade, não é por nada não, mas é porque ela gosta da combinação e do paradoxo de uma pessoa se chamar Clara e Moreno ao mesmo tempo, que é superlegal. Então a Clara tem três ou quatro discos, sendo que o primeiro foi feito aqui no Brasil, dois no Japão e o terceiro que é esse último dela, que chama Morena Bossa Nova, que saiu primeiro aqui e depois no Japão. Ela mexe muito com música eletrônica, mas ele gosta muito de jazz, ela tem um gosto musical bastante eclético e eu acho que o próximo projeto dela vai para um lado mais acústico, mas ela, desde o primeiro disco, mexe muito com música eletrônica e nas horas vagas ela também trabalha como Dj lá em São Paulo, onde ela mora. A Ana é bem diferente, está no terceiro disco, o último, o mais recente chama-se Samba Sincopado, ela é muito acústica, da bossa nova, gosta da música mineira também, tem esse lado meio Clube da Esquina na vida dela, que ela gosta e gosta muito de samba. Esse último disco dela, ela gravou sambas da carreira da Nara, só sambas e cantou com Élton Medeiros, então ela tem um caminho mais para esse lado assim, do samba mesmo.
P- E você participa, opina?
R- Quando elas pedem, eu dou palpite, ajudo, se quiser, eu ajudo com certeza, mas elas têm os caminhos delas, são personalidades bem diferentes e de caminhos traçados bem particulares, bem pessoais, cada uma na sua.
P- A gente já está caminhando para o final. Tem alguma coisa que eu não tenha te perguntado e você gostaria de falar?
R- Não sei assim, que a gente possa contar sem a censura cortar depois (risos). Em termos de Clube da Esquina, que é o que você pergunta, eu acho que foi e ainda é uma referência musical para muita gente, é um momento brilhante, um dos muitos momentos brilhantes junto com a Tropicália, junto com essa segunda geração de Bossa Nova que tem Edu, Dori e Marcos Valle e com uma geração de novos sambistas. Eu acho que aconteceu tudo mais ou menos ao mesmo tempo numa época em que o Brasil estava vivendo uma ditadura militar, um momento muito forte, onde todo mundo ficou muito mexido e ao mesmo tempo é uma geração que vem dessa grande árvore musical que é Tom Jobim e a Bossa Nova. O Tom que por sua vez também vem dos sambistas dos anos trinta. Quer dizer, a música brasileira teve no século vinte muitos apogeus e o Clube da Esquina com certeza foi um deles.
P- O que você achou de ter dado esse depoimento?
R- Legal, lembrei de um monte de gente e de um monte de histórias, foi muito bom.
P- E sobre o projeto? O que você achou do Clube da Esquina se tornar um museu?
R- A palavra museu, eu tenho às vezes uma reserva, porque museu você pensa que é uma coisa que está fossilizada e não é, é uma coisa completamente viva e viva no mundo. Mas feita essa ressalva, eu acho como memória de um momento que ainda é um momento presente, inclusive, eu acho importante porque daqui a um tempo, quando a palavra museu estiver justificada, quando todos nós nos chamarmos saudade, como diria Nelson Cavaquinho (risos), a gente vai poder deixar essa memória para as futuras gerações e principalmente gerações de músicos e pessoas interessadas em cultura. Eu acho bacana, por exemplo, nos Estados Unidos, o jazz tem isso, a música norte-americana tem toda a memória quase completa, muito pouca coisa que faltou documentar e guardar e isso é superimportante porque as gerações vão se sucedendo e outras pessoas que vão chegando, porque se existe uma geração tão brilhante, modéstia à parte como a nossa, que foi e é uma geração com muito brilho, é preciso ter essa informação e essa memória para que próximas gerações possam ser igualmente e de preferência, mais brilhantes quanto a nossa, então tem que deixar esse registro.
P- Então eu queria te agradecer em nome da Associação do Amigos do Museu Clube da Esquina.
R- O prazer é todo meu.
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