P/1 – Rose, para começar eu quero que você me fale o seu nome completo, a cidade onde você nasceu e em qual data.
R –Sou Rosemary dos Santos, nasci em Campina Grande, na Paraíba, tenho 41 anos. Nasci em 24 de novembro de 1966.
P/1 – E qual o nome dos seus pais, Rose?
R – É Idelfonso Rodrigues dos Santos e Maria do Carmo Rodrigues dos Santos.
P/1 – E de onde eles são?
R – O meu pai é de Campina Grande, na Paraíba. E a minha mãe é de Pernambuco, no Recife.
P/1 – E como eles se encontraram? Você sabe?
R – Não tenho muito essa referência, não. Esse capítulo da história eu não tenho. A minha mãe não fala muito sobre isso, não sei porquê. Não sei se é porque a criação dela... Uma criação em que essa parte romântica não é muito importante. E eu não tenho esse histórico, não.
P/1 – E o que eles fazem, ou faziam?
R – Bom, o meu pai era caminhoneiro e a minha mãe era doméstica. Eles vieram para o Rio de Janeiro, eu era pequenininha, tinha meses. Dois meses depois meu pai morreu em um acidente de caminhão e a minha mãe foi quem nos criou, sozinha, eu e meu irmão.
P/1 – E quando você morava com a sua mãe, aqui no Rio, eram só vocês três?
R – Éramos só nós três.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Eu conheci minha avó materna, ela esteve aqui no Rio de Janeiro há uns dez anos. Só fui conhecê-la depois, quase depois de 30 anos. Nos correspondemos por carta, por telefone. Mas os outros avós, não.
P/1 – E como foi esse encontro, de conhecer a avó?
R – Foi maravilhoso, porque a expectativa que eu tinha, apesar do meu referencial não ter lembrança da cidade onde eu nasci, de família... Mas a minha avó, eu tinha uma expectativa muito grande de saber como ela era pessoalmente, de abraçá-la. Tinha algumas fotos e a voz. A voz da minha avó era uma voz de avó, e eu queria conhecê-la, abraçá-la. Foi muito bom.
P/1 – Você lembra do dia, como foi, o que aconteceu?
R –...
Continuar leituraP/1 – Rose, para começar eu quero que você me fale o seu nome completo, a cidade onde você nasceu e em qual data.
R –Sou Rosemary dos Santos, nasci em Campina Grande, na Paraíba, tenho 41 anos. Nasci em 24 de novembro de 1966.
P/1 – E qual o nome dos seus pais, Rose?
R – É Idelfonso Rodrigues dos Santos e Maria do Carmo Rodrigues dos Santos.
P/1 – E de onde eles são?
R – O meu pai é de Campina Grande, na Paraíba. E a minha mãe é de Pernambuco, no Recife.
P/1 – E como eles se encontraram? Você sabe?
R – Não tenho muito essa referência, não. Esse capítulo da história eu não tenho. A minha mãe não fala muito sobre isso, não sei porquê. Não sei se é porque a criação dela... Uma criação em que essa parte romântica não é muito importante. E eu não tenho esse histórico, não.
P/1 – E o que eles fazem, ou faziam?
R – Bom, o meu pai era caminhoneiro e a minha mãe era doméstica. Eles vieram para o Rio de Janeiro, eu era pequenininha, tinha meses. Dois meses depois meu pai morreu em um acidente de caminhão e a minha mãe foi quem nos criou, sozinha, eu e meu irmão.
P/1 – E quando você morava com a sua mãe, aqui no Rio, eram só vocês três?
R – Éramos só nós três.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Eu conheci minha avó materna, ela esteve aqui no Rio de Janeiro há uns dez anos. Só fui conhecê-la depois, quase depois de 30 anos. Nos correspondemos por carta, por telefone. Mas os outros avós, não.
P/1 – E como foi esse encontro, de conhecer a avó?
R – Foi maravilhoso, porque a expectativa que eu tinha, apesar do meu referencial não ter lembrança da cidade onde eu nasci, de família... Mas a minha avó, eu tinha uma expectativa muito grande de saber como ela era pessoalmente, de abraçá-la. Tinha algumas fotos e a voz. A voz da minha avó era uma voz de avó, e eu queria conhecê-la, abraçá-la. Foi muito bom.
P/1 – Você lembra do dia, como foi, o que aconteceu?
R – Lembro do dia. Estava chovendo bastante, eu lembro que eu senti um cheiro de avó, eu falo isso, às vezes, para minha filha. Ela veio de ônibus, era uma viagem muito demorada, demorava três dias. E eu lembro que a minha mãe... Eu já era adulta, mas a expectativa que eu tinha era muito grande de vê-la. Estava chovendo muito, e quando ela chegou no portão, ela era baixinha, eu sabia que era ela, mesmo a diferença que ela estava das fotos, ela estava diferente, bem debilitada, bem idosa. E eu abracei e chorei, como se todo aquele referencial meu de vida estivesse presente ali na minha avó, tudo aquilo que eu perdi de infância, pois vim de uma infância difícil, por não ter tido vínculos familiares. O meu vínculo familiar durante muito tempo na minha vida foi somente a minha mãe e o meu irmão. Eu não tinha um tio, uma tia, um primo, eu não tive esse vínculo familiar.
P/1 – Como ela se chama?
R – É Maria das Dores também, o mesmo nome da minha mãe.
P/1 – Ela ficou aqui durante um tempo?
R – Ela ficou um mês aqui e depois voltou para o Nordeste, porque a questão do clima, a vida lá é diferente daqui. Ela morava na roça, uma pessoa que tem outros costumes, não se adaptou muito aqui e voltou. Ela faleceu tem quatro anos.
P/1 – O que vocês faziam nesse tempo que ela ficou aqui? Ela te contou a história da família?
R – Ela me contou muitas histórias, de coisas que eu só conheci pelo que ela contava. De como foi a infância da minha mãe, por exemplo. De como é trabalhar na roça, a questão alimentar. Eu aprendi muita coisa do Nordeste com a minha avó pelo que ela contava. Por exemplo, as comidas. Ela tinha um ritmo de vida desacelerado, ela dormia muito cedo, ela fumava cachimbo. Eu adoro cachimbo por causa da minha avó, mesmo já estando com quase 30 anos. E ela contava muito essas histórias: da minha mãe pequena, da roça, de boi... E eu acho que eu tenho uma relação muito grande com a questão rural, de mato, acho que é por causa disso.
P/1 – Você lembra de alguma história que ela te contou que te marcou?
R – Tem. Ela me contou uma história da minha mãe, que eles andavam muito. No Nordeste eles andam muito, as casas são distantes umas das outras. Ela conta que um dia, de noite, ela levou a minha mãe na casa de um tio, e era muito longe, muito longe, eles andaram muito. Ela deixou a minha mãe lá e voltou da casa do meu tio. E a minha mãe sentiu muita falta dela, chorou muito. A minha mãe pulou a janela e fugiu para voltar pra casa e se perdeu na roça. Dormiu na roça, no mato, não conseguiu chegar em casa. No outro dia de manhã, chegaram os vaqueiros com a minha mãe, e a minha mãe começou a contar as histórias que de viu lobisomem, de que viu não sei o quê. Isso era motivo de riso em todo mundo, porque a minha mãe começou a contar histórias assim. Imaginou a história, dormiu na roça.
P/1 – O que você aprendeu a fazer de comida com a sua avó?
R – Olha, eu não sou muito boa cozinheira, não. Eu gostava muito do que ela cozinhava. O cheiro das comidas do Nordeste são diferentes, o paladar é diferente. Carne de cabrito, por exemplo, uma coisa que a gente não costuma comer aqui. O feijão é diferente, ela trouxe o feijão de lá. Trouxe uma manteiga que é na garrafa, uma manteiga que é engarrafada, o queijo... Mas o que eu aprendi mesmo com a minha avó foi a questão dos laços familiares, porque ela trouxe com ela todos os meus parentes, toda a minha família veio junto na figura da minha avó. Eu comecei a imaginar como eram os meus tios, como foi aquela vida, como era aquele lugar que eu não conheci. E a figura dela foi como se eu tivesse revivido uma infância que eu não tive através daquilo que ela contava. Ela trouxe umas peças de roupa, porque no Nordeste as roupas não eram prontas − agora deve ter mudado muito −, então as pessoas costuravam, pegavam tecidos e faziam na máquina. Ela fez um vestidinho para mim que eu não esqueço até hoje, um vestidinho quadriculado que eu tenho guardado até hoje. Ela costurou no meu corpo, tirava a medida. Aquilo, para mim, era uma coisa muito diferente, da costureira medir a roupa, a peça de roupa, no teu corpo e sair perfeito, numa máquina simples, bem legal.
P/1 – E na sua infância aqui no Rio, você lembra da sua casa, como era?
R – Olha, minha infância não foi uma infância muito interessante, porque eu amadureci muito rápido. Quando eu vim para cá, pro Rio, eu era muito pequena, minha mãe era empregada doméstica e a gente tinha uma vida muito difícil. Algumas cenas que eu lembro muito: Quando eu fui pra escola a primeira vez, que eu fui sozinha, não tive a mãe pra acompanhar na escola. Eu e o meu irmão, nós tínhamos uma camisa só de escola, então meu irmão estudava de manhã e eu estudava à tarde. Quando um chegava, tirava a camisa do corpo e dava pro outro poder ir pra escola, porque naquela época vendia-se uniforme escolar. E o que eu tenho de muita lembranças são as dificuldades da minha mãe: De sair cedo de casa, enfrentar ônibus. Chegava em casa meia-noite, trabalhava numa casa de família. A gente se virava muito sozinhos, eu e o meu irmão, a gente, desde pequenininho aprendeu. Eu não tenho muita lembrança de como foi esse período até eu ficar com seis, sete anos, que foi quando eu comecei a perceber mais o mundo ao meu redor. Tanto é que eu não tenho nenhuma foto minha de infância, nem do meu irmão, porque a gente não tinha como ter uma máquina de tirar retrato. E tem uma coisa muito importante que eu gosto de frisar, é que minha mãe dizia assim pra mim: “Vai pra escola e nunca faça com que eu tenha que ir lá ouvir nenhuma reclamação de vocês. Eu só quero ver os resultados, eu quero que vocês sejam os melhores pra que vocês não sofram o que eu estou sofrendo.” E eu sempre fui assim, a melhor aluna, o meu irmão o melhor aluno. Eu participava de todas as atividades da escola. Mas, foi uma infância muito, muito, muito difícil, muito difícil mesmo.
P/2 – Vocês ficavam mais sozinhos em casa?
R – Sozinhos.
P/2 – Você e o seu irmão?
R – Eu e o meu irmão.
P/2 – E tinha alguém que cuidava de vocês?
R – Tem uma pessoa, até escrevi uma crônica sobre ela, a Dona Maria, que era uma senhora, viúva que morava ao lado da nossa casa. Eu tenho uma lembrança muito dela, que é aquela pessoa que olhava, que brigava, que de vez em quando ia lá. Era essa pessoa que estava sempre. E minha mãe fala muito dela, que foi uma pessoa que ela conheceu aqui no Rio de Janeiro e que a apoiou muito, dava muita ajuda, conversava muito. Então deve ter sido aquela pessoa que foi amiga, que vinha olhar... É interessante, tem algumas coisas que eu não lembro, não sei se eu descartei da minha mente. Tem alguns momentos não, que são marcantes, como a questão da escola, do dormir. Nós tínhamos um sofá-cama preto rasgado, e era lá que nós dormíamos, e dentro dele ficavam nossos livros, porque a gente não tinha onde guardar os livros. Nós tínhamos muitos livros antigos e tal. Eu lembro que para ir para a escola tinha que um acordar para fechar o sofá para poder pegar os livros, porque um estudava de manhã. Eu lembrava sempre disso: Eu tinha que levantar para pegar os livros para poder ir pra escola.
P/1 – E eram livros que eram de onde? Sua mãe lia bastante?
R – A minha mãe não tinha muito estudo, ela sabia ler e escrever. Mas ela gostava de livros, de sentar do lado e ver os deveres, ela acompanhava sempre que podia. Mas ela é uma pessoa muito articulada, dava idéias sobre alguma coisa, algum trabalho escolar... Então, na minha casa, livro foi uma coisa que sempre teve, mesmo com toda a pobreza. A gente escrevia na parede, eu lembro muito disso, de rabiscos na parede, de recados na parede que a gente deixava, às vezes, um pro outro. E, apesar de eu ser mais nova, eu era a que tomava conta de tudo, a organizada, que me preocupava com as coisas. Tem um momento muito interessante, que nós nunca tínhamos comido margarina, eu lembro que quando a minha mãe comprou um pote de margarina, não lembro qual era a marca, eu li o rótulo e a minha mãe falou para mim: “Você sabe ler! O que está escrito aqui?” Começou a perguntar pela casa. A gente forrava jornal no chão − antigamente tinha essa mania de encerar a casa e forrar jornal no chão − E eu li o jornal todo, e foi assim que ela descobriu que eu sabia ler. Um momento que eu nunca me esqueci.
P/1 – E essa coisa de escrever na parede, eram você e o seu irmão só ou a sua mãe participava?
R – Não, a minha mãe brigava (risos). Geralmente ela reclamava, mas nós tínhamos esse prazer da leitura. Tinha uma vizinha nossa que tinha televisão, nós não tínhamos televisão, e a música do Sítio do Pica-pau Amarelo a gente ouvia sempre, todo dia às cinco horas. Então, a gente corria e ia para a casa da vizinha e ficava, da janela, assistindo o Sítio do Pica-pau Amarelo, ficava imaginando os personagens. E nós brincávamos de Sítio do Pica-pau Amarelo em casa, eu e meu irmão. A gente botava a roupa da minha mãe, pegava a vassoura, imaginava o Sítio. A gente tinha uma relação muito grande com leitura. Eu ganhei um livro do Monteiro Lobato, eu ficava querendo ler para saber como a gente podia inventar aquelas histórias ali. Bem legal isso.
P/1 – Do que mais você e o seu irmão brincavam?
R – Nós não tínhamos brinquedo, então tampas de talco, vidrinhos de Vick Vaporub; a gente brincava de casinha, tampinhas de garrafa, maços de cigarro, a gente fazia dinheiro com maços de cigarro. A gente brincava muito com material reciclado (risos). Mas a gente tinha uma vida, apesar de tudo, feliz, dentro das possibilidades. Não tinha aquela vontade de querer ter nada. Aquilo que a gente tinha, naquele momento, bastava, só a presença da minha mãe que eu sentia muita falta, dela estar ali, de eu ter que ir pra escola sozinha, de eu ter que comer. A gente se virava com comida, a gente fazia, às vezes, comida, mesmo pequena. Lembro muito bem disso, eu me queimei, eu tenho uma marca aqui de uma queimadura que foi água quente que caiu. Mas a gente tinha uma infância normal, de brincar.
P/1 – Vocês saiam na rua, brincavam na rua?
R – A minha mãe não deixava muito que a gente ficasse na rua. Apesar dela ser sempre ausente, ela aconselhava o que podia e o que não podia fazer. A gente não era muito de viver na rua, a não ser quando a gente fugia para a casa da Dona Helena para assistir televisão na janela. E eu lembro que eu pedia até para ela comprar uma televisão, ela dizia: “Não tenho condições, não dá. Não tenho como.” Eu ouvia muito rádio, por isso que até hoje eu gosto muito de rádio.
P/1 – Você escutava música?
R – Muito. Naquela época tinha a Rádio Mundial. Ouvia muito noticiário. A gente encenava radionovela, eu e meu irmão. Antigamente tinha muita radionovela, acho que ainda tem. E a gente encenava, eu era a mocinha e ele era o outro. A gente encenava aqueles dramalhões de novela, eu amava aquilo. Era radinho de pilha, na época. Na época a gente não tinha dinheiro, então eu escutava aquilo. A gente ensaiava uma rádio, fingia que era locutor, eu lembro como se fosse hoje. O meu irmão fazia o personagem e eu a mulher, e a gente batia latinha para dar o áudio do rádio. Eu lembro muito bem disso.
P/1 – Você se lembra de alguma história específica que vocês encenaram?
R – Tinha uma novela, aquelas novelas eram sempre muito dramalhões, a mocinha sofria muito. Teve uma vez que a gente estava encenando e o pessoal começou a chegar na porta de casa achando que estava acontecendo alguma coisa, porque a gente começou a vivenciar aquilo tão fortemente... Eu com uma roupa da minha mãe, com vassoura na mão, a gente fazia a sonoplastia. Depois a minha mãe chegou e contaram para ela, e ela bateu na gente: “O que vocês estão fazendo aqui?” E tinha uma novela, acho que todo dia às 13 horas, se não me engano, ela começava, e no outro dia ela continuava. Não sei se eram às 12 horas... Era um momento em que a gente se encontrava, eu e meu irmão, da escola, e a gente ouvia aquela radionovela.
P/1 – Tinha outras crianças ali na vizinhança?
R – Engraçado que eu estava escrevendo alguma coisa sobre alguns amigos e algumas coisas, e eu não tenho nenhum referencial de amigo da minha infância. Assim: “Ah, meu melhor amigo.” O meu irmão era o meu melhor amigo. Não lembro de ninguém que tenha... Só depois, na adolescência, com 17 anos, que eu tive alguns amigos. Mas nessa idade, de seis pra doze anos não tem ninguém que tenha feito parte daquela... Como nós vivíamos sozinhos no quitinete, o nosso mundinho era aquele mundinho ali mesmo, até porque a gente não tinha muito conhecimento.
P/1 – Como chama seu irmão?
R – Luís Carlos.
P/1 – E o que você gostava de comer naquela época? Sua mãe fazia alguma coisa especial?
R – Eu gostava de comer tudo aquilo que eu não podia (risos). Eu adorava ficar na padaria olhando sonho, sorvete, esses bolos pullman. Quando eu ia dormir, eu dizia assim para mim: “Um dia, quando eu trabalhar, meu primeiro salário vai ser comprar um bolo, colocar sorvete em cima e comer tudo sozinha.” Então eu sonhava com isso; picolé, essas coisas, porque a gente não podia. Sorvete nem pensar, fui tomar sorvete acho que tinha dez, doze anos, primeiro sorvete. E o que a gente comia era o normal: arroz; feijão; ovo, quase sempre; carne, de vez em quando, quando era dia de pagamento da minha mãe. Mas eu sonhava com coisas e sentia cheiro das coisas que eu imaginava comer, era muito engraçado isso. Quando eu ia para casa da Dona Helena assistir televisão, tinha aquelas propagandas de iogurte, essas coisas. Eu imaginava o gosto que teria aquilo, mas nunca tive, na minha infância, nada que eu tivesse comido e que fosse parte de uma refeição de uma criança de hoje em dia, por exemplo. Sempre aquilo básico, que desse para ela comprar.
P/1 – E o que fazia parte do que você comia?
R – Arroz, feijão, legumes. Ela tinha essa questão de comer folha, até porque ela veio do Nordeste. Comer inhame, jiló, abobrinha. Então essas coisas tinham que fazer parte do cardápio. Salada. A gente tinha que comer isso.
P/1 – E você gostava?
R – Eu gostava e levei isso para a minha vida até hoje. Essa questão da alimentação, de comer aquilo que é mais saudável, do que é necessário. De vez em quando eu chuto o balde e como umas besteiras, mas eu aprendi isso com ela.
P/1 – E Rose, nessa situação de você e seu irmão ficarem sozinhos, você lembra de algum dia que te marcou? Alguma coisa que aconteceu por causa disso? Vocês tinham medo de ficar sozinhos?
R – Eu tinha. Eu era super protetora. Meu irmão era maior que eu, ele é dois anos mais velho que eu, mas eu era aquele tipo que batia nos outros se mexesse com ele. Como ele era um menino que varria a casa, cuidava da casa, chamavam ele de ‘bichinha’, mexiam com ele nesse aspecto da masculinidade. E aquilo me deixava possessa. Então eu brigava com os meninos, eu era o homem. Era o inverso, eu era aquela brigona. Eu lembro que uma vez nós fomos para a escola, tinha uma festa e nós fomos juntos. Eu ia representar uma menina chamada Maria Chiquinha, não esqueço dessa peça também. E um garoto mexeu com ele. Eu, toda arrumada, bonitinha, de Maria Chiquinha, com o vestido de chita para poder encenar esse teatrinho na escola. Um garoto mexeu com ele, não sei o que falou. Eu tirei a roupa toda, tirei os cachinhos, corri atrás do garoto e bati no garoto, chutei o garoto inteiro, em defesa do meu irmão. E eu lembro que nós ficamos de castigo, o nosso castigo era aquele: atrás da porta, de joelho no milho. Eu passei por tudo isso. A minha mãe não batia na gente não, mas castigava. Batia na mão, deixava de joelho, umas coisas bem...
P/1 – E aonde era a sua casa?
R – É um bairro no interior de Caxias, é um bairro mais para dentro. Era uma quitinetezinha com dois cômodos. Eu já passei lá, fotografei. Todas as vezes que eu passo lá, lembro de tudo que eu vivi ali.
P/1 – Tinha comércio perto?
R – Tinha uma padaria na esquina, que eu amava aquela padaria. Aquele cheiro de pão... Nossa mãe!
P/1 – Você ia lá para ver?
R – Para ver, olhar para a vitrine, olhar os sabores de picolé...
P/1 – Alguma vez, teve alguma história nessa padaria que aconteceu com você?
R – Não que eu lembre. Eu gostava muito de ler as coisas. Eu lembro que na padaria passava muito ônibus, ainda passam muitos ônibus ali. Então eu ficava lendo o nome dos ônibus e ficava contando quantos daquele ônibus passavam, que horas passavam... Como a padaria era perto da minha casa, eu sentava na calçada e ficava olhando: “Esse ônibus aqui passou tal hora, vamos ver mais ou menos.” Eu ficava contando os segundos na cabeça, loucura. De quanto tempo passava um, passava outro, qual a empresa. Até hoje eu tenho essa mania (risos). Olhar placa de carros, letras e números. Os números sempre fizeram parte da minha vida.
P/1 – E você me falou que se lembra do primeiro dia que foi para a escola.
R – Lembro.
P/1 – Como foi? Conta pra gente.
R – Não foi o dia mais emocionante da minha vida, engraçado isso. Porque a escola era, para mim, como se fosse... Eu tinha medo do que eu ia encontrar por lá. Por ser muito pobre, eu não tinha o melhor uniforme, não estava vestida direitinho. Eu fui sozinha a primeira vez para a escola. Primeiro dia de aula eu fui sozinha, minha mãe me ensinou o caminho e eu fui sozinha. Quando eu cheguei na escola eu tive uma decepção muito grande. Primeiro que eu tinha uma expectativa de escola imaginada, de rádio, de televisão, então eu achava que era um prédio maravilhoso, todo iluminado, parecido com um teatro, tinha uma idéia que escola era aquilo. E o primeiro dia de aula meu... Eu sempre fui, como é que se diz, muito articulada, aprendi a ler muito cedo. Quando eu cheguei na escola, eu ainda falava... Como a minha mãe tinha um sotaque muito nordestino, a gente acaba convivendo e aprendendo aquele sotaque também, e a professora... Eu cheguei na escola perdida, tinha sete anos. Todo mundo formou, geralmente formava, cantava o hino. Eu não sabia onde ficar, e a primeira fila que eu vi eu entrei e fiquei na fila. Era uma turma acho que de terceira série. Fiquei lá parada na fila. A diretora, que eu não lembro o nome dela agora, mandou todo mundo entrar para a sala e eu fui seguindo todo mundo antes de entrar. Eu cheguei na sala de terceira série e sentei. As pessoas me vendo, porque quando as aulas começaram, eu não fui no primeiro dia de aula da escola, era primeiro dia de aula para mim, as aulas já tinham começado. Então, aquela turma já se conhecia. Eu sentei e a Dona Maria de Lourdes − me lembro da minha primeira professora, que eu nunca mais vou me esquecer, ela dava aula pra terceira série − falou assim: “O que você está fazendo aqui? Você é aluna daqui?” E eu com medo do mundo. “Não, mas você é aluna nova? Você é de que série?” Eu não conseguia explicar direito, e eu fiquei estudando naquele dia na terceira série. Ela chegou para a diretora e falou: “Mas essa menina tem condições de estar aqui. Ela é muito boa aluna, ela sabe, ela copiou tudo, ela sabe ler.” Eu entrei na terceira série, continuei estudando na terceira série e não fiz primeira. Eu não tenho boletim de primeira e segunda série, eu entrei na terceira série, já, maior barato. E a Dona Maria de Lourdes foi muito marcante na minha vida, ela me deu muitas oportunidades de ser diferente das outras pessoas. Acho que ela percebeu alguma coisa em mim que ninguém tinha percebido, porque eu me achava muito comum, como todo mundo. Ela dizia: “Olha essa garota, gente! Ela sabe ler muito bem! Como ela consegue ler tão bem?” E eu lembro que teve uma festa e chamaram a minha mãe. Minha mãe não pôde ir, e ela foi como se fosse a minha mãe. Ela se aposentou, nos encontramos depois que eu me formei professora, nos encontramos muitos anos depois. Ela já velha, eu escrevi uma crônica para ela e ela falou: “Rosemary, eu sabia que você ia ser professora! Eu nunca te esqueci!” Eu falei: “Eu também, eu nunca te esqueci.” Ela era aquele espelho de mulher que eu queria ser, eu olhava para a roupa, para o sapato, para o cabelo... Eu dizia: “Poxa, eu quero ser como ela.” Ela era aquele referencial de mulher. Engraçado, a minha mãe era o referencial de pessoa que eu queria ser no caráter, na formação, aqueles valores que ela passava pra mim eram muito importantes, que eu trago até hoje. Mas a Dona Maria de Lourdes era aquela pessoa, como mulher, que trabalhou, que falava. Aquilo, pra mim, as aulas dela eu bebia.
P/1 – Como ela era fisicamente?
R – Ela era morena, alta, tinha o cabelo liso, os olhos verdes; bonita demais, muito bonita. E ela tinha um namorado, esse namorado era escondido o namoro deles, e eu descobri. Eu chegava na escola muito cedo por causa da comida, a escola dava merenda, eu chegava para almoçar. Teve um dia, eu não sei se ele era casado ou se tinha algum lance passional, quando eu vi ela com ele no carro, ela ficou apavorada. Me chamou no canto e falou: “Você nunca viu isso, tá Rosemary? Você não pode contar isso pra ninguém.” Eu não esqueço, eu: “Não, professora”. Guardei aquele segredo como se eu fosse muito importante por ter guardado aquele segredo, daquele caso de amor, porque tinha algo escondido ali que eu nunca consegui descobrir o que era.
P/1 – E os colegas? Porque aí você começou a conviver com outras crianças.
R – É. Ah, foi uma relação muito boa. Eu peguei piolho na escola e minha mãe cortou meu cabelo curtinho, eu fiquei igual a um homenzinho, porque piolho é uma praga, e eu tinha o cabelo grandão. Eu fui rejeitada inicialmente, o cabelo ficou curto e sabiam que era por causa dos piolhos. E interessante que a vontade de me destacar como aluna é que fez com que... Eu me sentia muito excluída por ser muito mais pobre que os outros, ter o cabelo pelado e ter sempre material mais pobre. Eu usava Gilette para fazer a ponta de lápis, eu reaproveitava o lápis que o meu irmão usava, eu economizava o máximo possível na ponta para não gastar muito. Eu tentava me sobressair em outro aspecto: eu era a que tirava dez em tudo, aquela que sabia ajudar a professora, que varria a sala. Eu tentava sempre me destacar em outros aspectos para esconder um pouco aqueles aspectos financeiros.
P/1 – Qual a disciplina que você gostava mais?
R – Português, Literatura muito, muito. Eu gostava muito de ler, aliás gosto muito ler.
P/1 – E tinha algum lugar, na escola, que era o seu canto? Que você se sentia bem e gostava de ficar?
R – A cozinha (risos). A merenda eu adorava, eu gostava do cheiro das merendeiras, gostava do cheiro das comidas, das panelas. Eu sempre fui muito ligada à questão do cheiro, e eu observo muito: as merendeiras, os corpos, os cotovelos. Eu ficava olhando. Quando eu era criança, eu sempre tive essa mania de observar as pessoas pelos traços, pelas mãos. Eu lembro muito das mãos da minha mãe, dos ombros. Tem um poema do Drummond que fala que “os ombros suportam o mundo.”, e quando eu lia esse poema do Drummond, eu lembrava da minha mãe, porque eu sempre a via com os ombros como se tivesse carregando o mundo nas costas. Ela chegava do trabalho, parecia que estava tudo muito pesado para ela. Então quando eu lia esse poema, eu falava: “Pô, é a minha mãe. Drummond lembrou da minha mãe.” Essa questão do corpo, isso sempre foi muito marcante em mim.
P/1 – Você lembra de alguma merendeira específica?
R – Lembro. Dona Maria, uma senhora bonachona, gorda, muito gordona, ela tinha os braços muito flácidos e os cotovelos muito ásperos. Mas eu gostava demais dela, ela tinha um... Ela abraçava a gente, os peitos caíam na nossa cara. Ela tinha aquele cheiro de comida, mas um cheiro bom. De vez em quando ela me abraçava, porque ela era gordona, e ela usava aqueles... Antigamente usava uma touca furadinha, não sei se vocês lembram disso, mas no meu tempo era assim, chegam a lembrar uma touca.
P/1 – Uma rede?
R – Uma rede! Ela usava uma rede na cabeça, e eu gostava de botar a mão e sentir aquilo, porque era diferente para mim, aquilo. Dona Maria foi fundamental para mim nessa questão do negro. Ela falava assim: “booobooo” [barulho imitando fala com resmungo]. Eu adorava aquilo. Ela contava da comida, como é que fazia isso, mostrava. De vez em quando eu entrava na cozinha... Elas gostavam muito de mim na escola, eu ficava perto dela e observava. Os pés grandes, cinzentos. Eu lembro muito bem disso, isso ficou muito marcado na minha infância.
P/1 – E o que ela fazia de comida?
R – Hoje em dia as cozinhas são mais modernas. Na época que eu estudava as cozinhas eram mais brutas. Eu lembro que ela fazia sopa e ela separava as cascas, depois triturava aquilo, mexia com a mão e levava para casa, pras galinhas. Eu lembro daquilo que ela misturava. Eu lembro que um dia eu fiz isso em casa (risos). Eu descasquei os legumes e comecei a mexer para sentir aquilo, porque ela sentia tanto prazer em fazer aquilo... Eu comecei a mexer aquelas cascas. Hoje, de vez em quando, eu lembro dela, do cheiro dela, do jeito dela falar, bonachão, bruta.
P/1 – Ela te contava história?
R – Eu sentia que ela gostava de mim. Eu não sei se é porque eu era intrujona, eu sentia que ela tinha uma afeição diferente por mim. Eu perguntava tudo para ela, aquelas colheres grandes, eu adorava aquilo. Ela suava muito, ficava suada, pegava o pano e passava, aquele mesmo pano de prato que fazia merenda! Ela se secava, o corpo, as mãos. Eu sentia o cheiro do pano, que não era um cheiro ruim de suor, era um cheiro de gente, um cheiro diferente, bem interessante.
P/1 – E você ficou nessa escola até quando?
R – Eu fiquei até a quarta série. Depois a escola ficou muito ruim, o prédio era muito rude, muito rudimentar a escola, muito precária. Nós fomos para uma outra escola, que é essa escola que eu trabalho hoje. Na quinta série eu fui pra lá, fiquei até a oitava.
P/2 – Nessa primeira você estudava com seu irmão?
R – Estudava com meu irmão.
P/2 – Ele ia de manhã, você ia à tarde?
R – Isso. Um ano foi assim, no outro foi inverso. Minha mãe sempre procurava colocar assim até pela questão de dividir material, camisa, sapato... Já fui muito com boca de sapo para a escola. Minha mãe passava cola no sapato para colar a sola, passava cola branca, não dava, costurava... Era assim, uma coisa horrível. Roupa remendada.
P/1 – E o que vocês faziam nas férias escolares, você e o seu irmão?
R – Eu não gostava muito. Interessante que depois que eu conheci a escola, a escola passou a ser o meu mundo. Eu vivia em função da escola e eu não gostava das férias, porque eu sabia que eu não estaria mais ali. Eu criei muitos vínculos na escola, com a merendeira, com o porteiro, essas pessoas eram muito importantes para mim. Engraçado que até hoje eu tenho uma relação muito boa com essas pessoas que não são os professores nem os diretores, mas que são o porteiro, a merendeira, o pessoal da secretaria. Eu chegava cedo na escola, porque a refeição era servida sempre antes de entrar, então eu comia tudo o que eu podia comer naquele horário (risos). Eu conversava muito com a merendeira, o porteiro já me conhecia. Eu tinha um vínculo muito, muito, muito grande. A escola foi muito importante na minha vida, ela foi o espaço em que eu descobri outras pessoas, em que as pessoas acreditaram muito em mim. Não tive nenhum professor que não tenha me valorizado como pessoa, e isso foi muito importante na minha vida.
P/1 – E quando você mudou de escola, como foi deixar essas pessoas?
R – Essas pessoas foram comigo, cada uma delas projetou em mim alguma coisa que foi importante na minha vida. Dona Maria, lá na cozinha, não sei, alguma coisa dela ficou em mim. De vez em quando eu sou a Dona Maria, de vez em quando me pego lembrando dela. O Porteiro, Seu Jorge, que eu não esqueço até hoje, era aquela pessoa que me olhava, porque eu chegava cedo, tomava conta de mim, porque a minha mãe pedia, por eu ser pequena. Eu sempre fui magérrima, eu era... Agora eu estou gorda, eu era muito magra, muito raquiticazinha. Essas pessoas fizeram parte da minha vida de uma tal forma que todas elas se completam no que eu sou, cada uma de uma forma. Quando eu mudei de escola eu já estava maior, uma adolescente muito levada, muito bagunceira, que é a escola que eu trabalho agora. Então já mudou um pouco, a minha mãe conheceu uma pessoa e a minha vida começou a mudar um pouco, tomar uma outra forma. Ela conheceu o meu padrasto e a gente mudou pra uma casinha maior. Aí, a minha história muda, ela toma uma outra forma.
P/1 – Como era essa nova casa? Como foi essa mudança?
R – Era melhor que a outra. Meu padrasto tinha seis filhos e foram viver, de repente... Era somente eu e meu irmão, e foram viver oito, dez pessoas juntas, eu estranhei um pouco, não gostei. A relação com o meu padrasto era uma relação muito fria. É engraçado que a presença masculina na minha vida, o referencial, é o meu irmão, é uma coisa muito de equidade, eu não tenho aquela questão superior dizendo: “Não, não faça!” Eu sempre tive muita autonomia para fazer as coisas. Minha mãe que era mais repressora. Mas eu comecei a trabalhar cedo, com 13 anos eu comecei a trabalhar em padaria. Fugi de casa algumas vezes (risos). Fugi de casa duas vezes por essa questão de morar com pessoas que não eram da minha família, eu não sei. Eu queria ter liberdade, eu sempre fui assim, eu queria sempre ter muita liberdade, eu sonhava muito. Eu sempre fui muito sonhadora, imaginava o mundo cor-de-rosa que eu podia construir, aquelas histórias da radionovela, sempre vivi um personagem. Então a minha mãe parou de trabalhar, foi morar com ele, eu comecei a trabalhar. Estudava à noite nessa escola e trabalhava durante o dia. E eu comecei a ter uma certa vida diferente do que eu tinha antes. Não melhor, nem pior, mas diferente do que era antes.
P/1 – E Rose, você falou que fugiu de casa. Foi pra onde?
R – Fui morar com uma amiga, uma senhora viúva, o nome dela era Lilian. Foi um dos momentos difíceis da minha vida, porque eu abri mão da minha mãe, do meu irmão, e fui embora, arrumei a roupa e fui embora. Eu acho que o adolescente passa por essa fase, meus filhos passaram por essa fase também, de achar que o mundo é horrível, que tudo é ruim, escuro, que tem uma nuvem negra na tua cabeça. E fugi, arrumei as coisas e fui embora. Minha mãe ficou louca, desesperada. Aí falei com ela: “Olha, a partir de hoje eu sou dona do meu nariz, eu quero viver a minha vida.” Eu tinha 13 anos, não entendia nada da vida. Bom, três dias depois (risos) eu voltei com a mochilinha nas costas e falei: “Ah, mãe, eu não sou dona do meu nariz, o meu nariz é teu. Vou recomeçar tudo de novo.” (risos). Interessante que ela criou em mim uma personalidade muito autônoma, ela foi responsável por isso, eu gostava muito de decidir sobre a minha vida, mesmo tendo 12, 13 anos. E a adolescência é muito difícil, cara, é uma fase que você está... A minha adolescência foi muito sofrida porque eu era muito sentimentalista, eu vivi... Eu acho que eu ainda sou assim, eu vivo tudo muito intensamente: se eu amo, eu amo muito; se eu odeio, eu odeio muito; tudo o que eu quero, eu quero muito. Eu sou dos extremos, e quando você é adolescente, esses extremos multiplicam por dez, então você imagina... Me apaixonei perdidamente por um homem com 13 anos. Eu amava os atores da novela, me apaixonava pelos atores, pelos locutores, eu amava demais, aquela coisa da adolescência. E a minha mãe veio de uma educação em que amar muito era uma coisa... Nossa! Que fugia aos padrões. Ela achava que esse meu lado romântico demais era uma coisa ruim. Existia muito conflito, por exemplo, de sair à noite ou de fazer coisas que ela fala que aquilo não era legal, aquela criação que ela teve, toda. Mas esses conflitos foram muito importantes para a minha formação, eu acho que a adolescência é necessária na vida da gente, é um mal que tem, que a gente tem que passar.
P/1 – E esse seu primeiro amor aos 13 anos?
R – O meu primeiro amor foi um menino chamado Sérgio, que morava na minha rua. Ele era lindo de morrer e eu era magrela, muito feia. Ele era o que eu bebia e o que eu comia todos os dias. Eu lembro que eu passava 50 vezes na frente da casa dele, o tempo inteiro. Eu acho que eu era magra de tanto andar em frente a casa dele o tempo todo. Eu ouvia muitas músicas, naquela época as músicas eram outras, eu chorava, eu escrevia poemas imensos, eu fazia trocadilho com o nome dele, eu fazia favores pra mãe dele só pra poder ficar perto. Ele nem me olhava, ele devia ter quase uns 30 anos, 20 e poucos anos. Eu era uma pirralha. Muito interessante que uns 15 anos depois nós nos encontramos e ele falou: “Você sabe que eu tinha uma quedinha por você?” “Ai, que filho da mãe! Sofri tanto e você...” “Você era muito engraçadinha”. Eu: “Ai meu Deus...” Foi um amor de uns quatro anos, aquele amor platônico, mas só eu amava, sonhava com ele. Quando a mãe dele ia na minha casa, eu ficava olhando pra ela e via a imagem dele refletido nela, essas coisas. Foi meu primeiro amor.
P/1 – E nessa época você também começou a trabalhar?
R – Comecei a trabalhar no balcão de uma padaria e estudava à noite.
P/1 – E aí, muitas histórias nesse balcão?
R – Tantas histórias... Primeiro tem o cheiro de pão, eu comia pão igual uma louca, o cheiro de pão. É interessante porque as pessoas que iam na padaria, aquelas pessoas também fizeram parte da minha história, porque elas acabaram... Engraçado como elas contam histórias no balcão de uma padaria. Sempre tem um que tem uma história: aquele que está ali porque brigou com a mulher; aquele que está ali para comprar pão porque... Eu adorava ouvir aquelas histórias. E teve um rapaz que se apaixonou por mim, eu não lembro o nome dele, ele me deu um perfume que eu nunca mais esqueci o cheiro daquele perfume, não sei qual é o nome, perfume barato.Todos os dias de manhã ele ia à padaria, comprava pão e dizia que me amava. Nossa, aquilo pra mim era maravilhoso! Todo dia ele comprava pão e dizia que me amava. Até um dia que ele me deu esse perfume, antigamente tinha perfume da Avon, que eram mais antigas, nas revistas mais antigas. Toda vez que eu sinto aquele cheiro, daquele perfume, eu lembro dele. Ele contava as histórias, que morava com a mãe, que a mãe era doente e ele que cuidava da mãe dele. Tinham muitas histórias que passavam por aquele balcão ali, que eu nunca mais esqueci.
P/1 – Você lembra de outras? Outras pessoas?
R – Foram tantas. Eu sempre fui muito curiosa, eu registrava em pedacinhos de papel: “Do Natal...” Para eu lembrar. Eu sempre tive mania de registrar tudo, de lembrar quem era a pessoa. Eu recontava a história daquela pessoa para outra pessoa. Teve um lance que aconteceu que tinha uma senhora que ia lá que era viúva, e tinha um outro senhor que era viúvo. Ele tinha extraído um dente e começou a conversar comigo, que esse dente deu problema, que ele teve que ir pro hospital. Eu adorava ouvir aquilo. Eu contei para ela dele e dele para ela e marquei um encontro dos dois na padaria. Eles se encontraram lá, mas... Conversaram e tal, eu fiquei arrasada com aquilo: “Meu Deus do céu! Tentei tanto para ver se conseguia fazer com que os dois ficassem juntos.” Um tempo depois, passando na padaria − que ainda está alegre ali, é uma padaria muito conhecida, perto de uma fábrica de cimento que tem lá −, vi os dois. Vi os dois namorando, ou se estavam juntos, estavam próximos um do outro. Eu falei: “Gente, será que eu consegui fazer com que aqueles dois se juntassem?”
P/1 – E como você arrumou esse emprego na padaria?
R – Um conhecido da minha mãe tinha outro conhecido que era dono da padaria e que precisava de uma menina que pudesse trabalhar no balcão.
P/1 – Você falou que nessa época você era levada.
R – Eu fui muito levada, aliás, eu sou muito levada (risos).
P/1 – Na escola também?
R – Na escola eu era CDF [crânio de ferro – estudioso], aquela que tirava dez em tudo, mas de vez em quando aprontava. Eu era sonsa, aquele tipo que fazia aquele montão de bagunça, e quando a professora chegava eu sentava e ficava lá quietinha. Aprontava muita, fazia muita arte, tipo assim: Apagar o quadro com a vassoura, ficar na porta da sala tomando conta enquanto os outros faziam bagunça... Eu era muito bagunceira. Eu estou lendo um livro agora, que o título do livro é: “Fomos maus alunos”, é o Rubem Alves e o Gilberto Dimenstein que escreveram, eles contam como eram terríveis na escola. Eu era assim, muito levada, briguenta, brigava mesmo; discutia, argumentava com tudo, mas as notas eram sempre maravilhosas (risos). Então a minha mãe nunca foi chamada na escola por causa disso, porque eles aliviavam a minha barra. A oradora era eu, quem levantava a bandeira sempre era eu, era a queridinha da escola, mas de vez em quando eles puxavam a minha orelha.
P/1 – O que é, você apagava a lousa com a vassoura? Mas como era isso?
R – Com a vassoura. Eu ia no corredor para fazer bagunça. Quer dizer, é aquela coisa de transgredir as regras, eu sempre fui muito transgressora. Se me dissessem assim: “Está vendo aquela porta? Você não entra.” Pronto, aquilo pra mim, era assim: “Eu tenho que descobrir o que está depois daquela porta.” Eu tinha que entrar para saber o que tinha ali.Tinha uma inspetora chamada Dona Marli, ela era o cão de ruim, era muito ruim, aquele tipo de inspetora linha dura, aquilo para mim era um desafio. Tinha uma vassoura no canto do corredor e alguém falou pra mim assim: “Eu duvido você ir lá, pegar aquela vassoura e apagar o quadro com ela.” Pronto, pra quê, Dona Marli deu uma cochilada, eu fui lá, peguei a vassoura, apaguei o quadro com a vassoura. Ela chegou na hora, foi um estardalhaço: “Falta de respeito! De consideração!” Aquelas coisas que eu falo hoje pros meus alunos. Eu aprontava, levantava a bunda pra turma e fazia “nham nham nham”. Não é “nham nham nham”, mas fazia assim, subia na cadeira, todas as coisas que uma criança normal faz, eu fiz, com exceção que eu tirava nota boa (risos).
P/1 – Tinha algum colega que te acompanhava nessas...
R – Teve uma amiga minha, a Cláudia, que foi uma pessoa que marcou muito na minha vida. Acho que foi a única amiga que eu tive, realmente. Ela era minha companheira nas artimanhas, de mentir, de contar uma mentirinha para poder fazer alguma coisa. Eu sempre gostei muito de escrever, e a escrita me traía, porque eu escrevia as artimanhas que eu ia fazer, eu tinha uma agenda que minha mãe, quando queria descobrir alguma coisa, ia lá e lia a minha agenda. Aí, acabou, né, “cara”? Pô, descobria tudo. E a mãe da Cláudia não gostava de mim, dizia que eu era muito persuasiva, que eu levava a Cláudia para o mau caminho, essas coisas que a mãe diz: “Eu não quero você com fulano!” Mas não adiantava nada, a nossa relação era muito estreita, era um amor muito grande que uma tinha pela outra. De vez em quando, uma se dava mal por causa da outra, tipo assim: A Cláudia namorava, era mais velha que eu. Eu era a que ficava do lado, ela namorando e eu do lado (risos), esperando ela beijar, esperando ela namorar e eu ali do lado, tomando conta. De vez em quando eu apanhava por causa da Cláudia ou a Cláudia apanhava por minha causa. Até hoje a gente tem uma relação bem bacana. Ela casou, tem filhos. Eu tenho um boneco que ela me deu, ela tem boneca que eu dei pra ela... Amizade bem legal.
P/1 – E você ficou nessa escola até se formar no Ensino Médio?
R – Não, fiquei até a oitava série, depois fiz Formação de Professores no Instituto de Educação. Optei por ser professora porque eu era apaixonada por aula. Depois eu fiz duas pós-graduações, estou fazendo Mestrado agora. E é isso.
P/2 – E você se lembra de algum professor dessa escola?
R – De Formação de Professores?
P/2 – Não, da segunda até a oitava.
R – Olha, tem um professor de Matemática que me marcou bastante. Eu era muito ruim em Matemática, então eu estudava para passar em Matemática. Ah, preciso de sete, tirava sete pra poder passar. E ele tinha uma característica muito interessante, porque ele chegava na sala de aula e trazia Mozart, Beethoven e colocava lá. Ele era estrábico. Ele dizia: “Escutem.” Eu pensava: “O que isso tem a ver com Matemática?” A gente ouvia aquelas músicas clássicas, escutava e depois ele colocava um pensamento no quadro que eu não esqueço até hoje: “Nenhum homem pode ser realmente feliz enquanto não se universificar, sintonizando a sua vida com o mundo, no mundo de Deus, com o Deus no mundo.” Nunca mais eu esqueci disso. Ele começou a mostrar que para você aprender Matemática você precisa estar sensível pra isso, estar aberto pra isso, e a música é um caminho, é uma porta. Claro que eu não entendia Mozart, nem Beethoven, eu só ouvia a melodia. Ele começou a fazer com que eu percebesse a Matemática de uma outra forma, não com medo, não com repulsa, mas de uma coisa que é necessária. Ele dava exemplos, perguntas: “Onde você encontra Matemática? Na feira.” Ele dava uns exemplos de coisas práticas que fizeram com que eu visse a Matemática de uma outra forma. Foi aí que eu comecei a aprender Matemática, e é por isso que eu comecei a ver que existe Matemática na música, nas notas musicais. Ele foi uma pessoa muito importante na minha vida. Nós nos encontramos depois disso, eu como professora. Ele também faz parte de mim, tem um pouco dele em mim.
P/1 – E quando você foi ficando um pouco mais velha, final da oitava série, comecinho da Formação de Professores, o que você gostava de fazer?
R – Eu sempre escrevi muito. Eu tenho umas cem crônicas escritas, sempre gostei muito de escrever. E música. A questão da imagem, do som, foi sempre muito presente na minha vida. E de pessoas, eu gosto muito de pessoas, eu gosto de observar as pessoas, de querer ser como elas são, de viver aquela vida. Eu tenho uma mania horrível, eu vejo uma pessoa e falo: “Eu queria viver aquela vida para saber o que ela sente, que momentos ela vive.” Eu sempre escrevi muito. Na minha fase de Normalista, eu escrevi um livro que foi editado, um livrinho simples de Formação de Professores. O meu estágio foi um desastre, porque quando eu fiz estágio numa escola pública... Na Formação de Professor você aprende tudo aquilo que você não deve fazer na escola. Você aprende que a escola é maravilhosa, que os alunos são lindos e saudáveis. Tudo aquilo que você aprende no Curso de Formação de Professores é tudo aquilo que você não vê numa escola normal. Quando eu fui fazer estágio, eu fui achando que eu ia encontrar uma escola maravilhosa, como foi dito na Formação de Professores. Eu não imaginava que seria a escola que eu estudei que eu iria encontrar lá. Eu me deparei com umas situações bem diferentes. Eu tirei uma nota péssima no primeiro estágio, quase fui reprovada. A professora disse que eu não soube... Um aluno pediu pra ir ao banheiro, eu parei a aula e pedi que ele levantasse e fosse ao banheiro. E ela disse que eu nunca, nunca poderia parar a aula para deixar que a criança fosse ao banheiro. Eu disse para ela que nenhuma aula era mais importante do que uma criança que quer fazer xixi e ir ao banheiro, ela faria na sala. Quase eu fui reprovada e argumentei, entrei com recurso, porque eu era muito brigona. Pelo meu ponto de vista, o mais importante seria a criança ir ao banheiro. Depois eu fiz outros estágios e fui bem. Eu acho que o Curso de Formação de Professores não ensina você a ser professora. Ele ensina você a ser qualquer pessoa, menos professor. Acho que só mesmo a prática, no dia-a-dia é que te dá a experiência. Mas é muito bom ser professora.
P/1 – Como você decidiu ser professora?
R – Foi uma escolha própria. Pelo referencial da Dona Maria de Lourdes, pela escola ser aquilo que eu vivia, a minha vida, de eu gostar daquele espaço, daqueles cheiros, daquelas pessoas ali. Eu sempre gostei muito de ensinar alguém a fazer alguma coisa. Eu adorava bula de remédio, manual de instrução. Eu sempre gostei dessa coisa de estar lendo sobre como fazer alguma coisa, isso foi muito decisivo.
P/1 – Rose, você gostava de escrever o quê?
R – Situações do dia-a-dia. Eu sempre gostei de registrar algum fato que eu visse interessante no dia-a-dia. Por exemplo, ele bebendo água, ali, agora, eu gostava de descrever como era aquela situação, como é que ele era, sob o meu ponto de vista. Era sempre uma percepção minha sobre aquele fato. Eu sempre gostei de registrar isso em rascunhos, em agenda. Sobre alguém, como eu achava que fosse aquela pessoa, descrever a pessoa. Algumas poesias também, já escrevi muitas poesias. Eu gostava muito de ler, eu tinha uma loucura por livro, fanatismo por livro. Eu li Machado de Assis, Carlos Drummond, mesmo sem ter nenhum referencial sobre eles, simplesmente eu lia a obra e eu vivia alguns personagens interessantes. Eu vivia o personagem e sentia as dores do personagem. Eu li um livro, uma vez, que eu não lembro qual o autor agora, em que a personagem sentia muitas dores, ela estava doente, no estágio terminal. E eu comecei a vivenciar aquele personagem. Eu deitava, eu viajava com o personagem, como se eu fosse aquela pessoa, muito bacana isso. Depois eu fiz uma oficina de Literatura e um professor lá disse que quando você realmente entra na obra, você acaba vivenciando aquilo, como se aquilo fosse possível, como se você vivesse realmente naquela época, naquele momento ali. Bem bacana isso.
P/1 – Você lembra de algum poema que você escreveu?
R – Eu escrevi um pro meu filho quando ele nasceu, eu não lembro dele todo. Ele estava dormindo, eu achei lindo aquele momento, parece que parou o tempo. Eu peguei um bloquinho e escrevi um poema para ele. Ele guarda até hoje, tem 14 anos. Fala como é bonito ele estar dormindo ali, como é significante aquela presença de uma pessoa que não sabe o que é a vida, quais são as dores da vida, quais são as dores dos homens, as pessoas... Mas que está ali e que tem uma importância muito grande no mundo, no meu mundo. Eu fiz uma poesia pra ele. Ele nem é o meu primeiro filho, eu tive uma menina antes. Eu escrevo assim, geralmente quando eu estou triste ou ansiosa, eu nunca escrevo quando estou feliz, nunca. Era bom que eu não escrevesse nunca, porque eu ia estar feliz sempre.
P/1 – E como foi o nascimento do seu filho?
R – Olha, o da minha filha foi primeiro. Foi marcante demais, tocava uma música de fundo, a música era aquela do Roberto Carlos “Eu e ela...” Não é muito do meu repertório, mas estava tocando exatamente quando ela nasceu. Eu lembro que eu chorava muito, fiquei muito emocionada, muito, muito, muito. Comecei a falar um monte de coisas para ela, eu estava meio anestesiada, comecei a falar de como ela era importante para mim, para o mundo, umas coisas meio loucas, porque de vez em quando eu fico variando. Ela era feia demais quando nasceu (risos), muito feia, eu falo para ela isso: “Você, quando nasceu, era muito feia, mas você tinha uma luz tão forte que me invadiu quando você nasceu, que fez um outro sentido para minha vida.” Porque a minha vida teve sentidos diferentes em cada momento, ela teve uma arrebentação diferente. Quando ela nasceu, eu fui de fato mulher. Eu não sabia qual era o sexo, quando o médico falou: “É uma menina.”, é como se fosse uma retrospectiva da minha vida; minha mãe; minha avó; Dona Maria de Lourdes; as mulheres que passaram pela minha vida, que foram muito mais marcantes que as figuras masculinas. A gente tem uma relação muito bonita, a gente se beija na boca até hoje, a gente conversa muito próxima uma da outra, dá conselho, fala sacanagem. É muito legal a nossa relação, muito boa.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu tinha 19 anos.
P/2 – Você já estava na Escola Normal?
R – Eu estava na faculdade.
P/2 – E como foi entrar na faculdade?
R – Olha, a faculdade me deu muitos referenciais teóricos. Eu fiz primeiro de Letras, porque eu gostava muito de Português e Literatura, e a faculdade me amadureceu muito, daquelas relações com aquelas pessoas. Mas ela não foi alguma coisa que tenha acrescentado muito na minha formação literária, não. Em termos de conhecimentos, eu acho, eu tenho uma certeza, aliás, de que eu sabia muito mais do que aquilo que a faculdade tinha para me oferecer. Eu acho que eu colaborei muito mais com a faculdade do que a faculdade colaborou comigo. Eu já tinha filhos. Eu fiz o concurso da Prefeitura, passei em primeiro lugar na Prefeitura de Caxias, depois fiz o segundo, passei também em primeiro lugar. Já trabalhava, já dava aula de primeira à quarta na prefeitura. Resolvi fazer a faculdade, já tinha a minha filha. Então a minha vida começou a ser uma vida mais madura, mais centrada, mais policiada. Era o meu primeiro casamento, eu me casei duas vezes. A minha relação com o meu marido foi muito conflituosa. Eu perdi a virgindade e engravidei, então foi assim, “pá”. Tudo na minha vida é assim, extremo. Perdi a virgindade e engravidei. Engravidei de uma pessoa que eu não conhecia! Foi um homem que eu amei extremamente, em dois meses eu perdi minha virgindade e engravidei. Em dois meses! Eu só vim a conhecê-lo durante esse período que nós vivemos juntos, que foi muito ruim para mim e muito bom também, porque a minha mãe me ensinou que mulher é de um marido só, que tinha que ser fiel o tempo inteiro, que tinha que amar aquele homem como se ele fosse o último homem do mundo (risos). E foi assim que eu fiz, eu rezei a cartilha da minha mãe. Eu fui fiel 13 anos com aquele homem que eu vi que não era o homem que eu amava. Então foi uma fase da minha vida muito difícil, porque eu fui casada com ele esse tempo todo e achava que eu tinha que ser casada com ele o tempo todo, que eu não podia ter outras expectativas em termos de conhecer outra pessoa, mesmo não o amando. A figura masculina na minha vida foi difícil.
P/1 – Como você o conheceu?
R – Numa festa, num baile, naquelas minhas loucuras de adolescente. Nós fomos numa festa, ele estava bêbado, eu também, e a gente começou a namorar, se beijar... Ficamos naquela noite namorando e por coincidência ele morava próximo à minha rua. Eu nem sabia disso. A gente começou um namoro escondido da minha mãe. Ele já tinha uma filha, era muito mais velho que eu, e a gente namorava escondido. Minha mãe não podia saber, porque minha mãe não gostava dele ou da família dele, alguma coisa assim. Eu engravidei dois meses depois, aquele calor, aquele fogo todo que a gente tem, eu fiquei grávida e eu cheguei para minha mãe e falei: “Olha, eu estou grávida.” E ela falou pra mim: “Filha minha engravidou, tem que casar, não tem jeito.” Nós fomos morar juntos e foi muito difícil para mim, porque eu tive que novamente ser uma mulher mais madura, não aproveitei muito a minha vida. Foram 13 anos muito difíceis para mim, porque a gente viveu momentos muito difíceis, e eu achando que tinha que viver ao lado dele esses 13 anos. Duro. Jamais pensar numa separação, porque minha mãe achava que isso era o fim do mundo. Ela acha até hoje, mas respeito também o pensamento dela.
P/1 – Onde vocês foram morar quando você casou?
R – Numa casa próxima à casa da minha mãe, que era da família dele. Uma casinha pequenininha também, um quintal que era da família dele.
P/1 – Teve festa?
R – Não, não teve festa (risos). Foi um tremendo velório. A minha mãe arrasada por eu estar grávida, eu também, porque para mim aquilo era uma coisa tão diferente, novo, eu tive tanto medo... Primeiro porque eu tive que cortar o cordão umbilical da minha mãe, bruscamente; segundo porque eu estava gerando uma pessoa de uma outra pessoa que não era a que eu idealizei nos meus contos de fada, nas minhas radionovelas, nos meus poemas. E eu tive que viver uma outra vida de repente. Foi numa questão de dias, eu já estava com três meses de gravidez. Foi um momento em que eu fiquei muito introspectiva, comecei a falar pouco, eu escrevia muito mais do que falava. Eu não tinha com quem me confidenciar, com quem falar. Eu falava muito sozinha, com a barriga, porque eu não tinha pessoas para poder dizer. Não é uma mágoa que eu tenho da minha mãe não, que eu fiquei magoada com ela, mas é uma coisa que me deixou muito... É como se eu estivesse à beira de um precipício e alguém viesse lá e me empurrasse, porque eu queria que ela estivesse naquele momento, dissesse: “Não, você fica aqui. Você errou mas vamos buscar outras alternativas.” Mas eu prefiro pensar que ela achou que fosse o melhor para mim, achando que sendo assim seria mais fácil. Mas foi muito mais difícil.
P/1 – E você lembra, falando agora sua vida profissional, da primeira vez que você entrou na sala de aula como professora?
R – Lembro. Foi uma turma de Jardim, eu estava cheia de desejos, preparei um arsenal de coisas para trabalhar, li vários livros, preparei um monte de joguinhos. Primeira coisa que aconteceu quando eu cheguei na sala, eles me jogaram no chão (risos). Veio aquele monte de criança correndo, eu fiquei louca. Era uma turma de Jardim, acho que tinha uns 16, 17 alunos. A primeira coisa que aconteceu, o primeiro momento foi esse: “Buuum.” Eu caí no chão, cheia de bolsas, de joguinhos, de não sei de quê. Eu sentei no chão e fiquei pensando: “O que eu vou fazer?” Preparei uma aula maravilhosa, com vários recursos e eu percebi que naquele momento o que eu tinha que fazer era sentar e contar uma história. Sentei todo mundo e contei uma história para eles, eu lembro que eu contei uma outra versão de Chapeuzinho Vermelho. Eles ficavam assim: “Essa história sua é mentira! Essa história sua não é verdade!” Eu inventei uma outra versão, porque eu não lembrava da versão original da Chapeuzinho Vermelho. Para eu sair daquela situação embaraçosa, primeiro dia de aula numa escola particular, precisava muito daquele emprego, eu tinha que fazer alguma coisa para eu me sair daquele ali, então contei uma outra versão que a Chapeuzinho Vermelho usava produtos diet pra emagrecer, porque ela era gorda. Inventei mil coisas, não esqueço disso. Que a avó da Chapeuzinho Vermelho era uma velha muito enjoada, que não sei o quê. Que na verdade o lobo, coitadinho do lobo, ele não tem nada a ver com essa história, o lobo era o pai dela, querendo dar um susto. E as crianças ficavam: “Não é!” Mas ficaram atentos, porque queriam rebater a minha história. Foi uma turminha muito boa, porque eu aprendi muita coisa com eles. Eu aprendi na marra, na porrada, porque tudo aquilo que eu levei para eles, nada foi usado. Porque, na verdade, foi com o dia-a-dia mesmo que eu fui aprendendo como trabalhar, a questão da linguagem... Eu era uma professora, acho que ainda sou, que sentava e rolava no chão, dava cambalhota, fazia gracinha, contava piada para as crianças. Eu acho que eles desaprenderam tudo comigo (risos). Tudo o que eles aprenderam em casa, desaprenderam comigo, porque eu era muito brincalhona.
P/1 – E nessa escola que você estudou e depois passou a ser professora? Como foi quando você entrou?
R – Foi um dia muito marcante na minha vida. Quando eu fiz a escolha para ir para o Olga, que é a escola que eu estou agora. Foi quando eu saí daquela escola de primeira à quarta série e entrei de quinta à oitava. Eu vivenciei muitas artes no Olga, mas foi um momento que... Ficaram muitas impressões em mim porque, eu era adolescente, estavam muito recentes aquelas coisas ainda. Quando eu pisei lá no Olga eu fiquei muito emocionada porque eu voltei. E quem foi meu professor, hoje é meu amigo, quem eu sentei na cadeira, hoje é meu amigo que conversa comigo do meu lado, que diz como eu era, coisas que eu não percebia, não tinha a percepção de como eu era, do que eu falava. É muito legal, porque eu tenho esse feedback sob um outro olhar, um olhar de quem olha, não um olhar de quem está sendo olhado. Tem um professor lá de Ciências que me conta, ele me chamava de “abelhinha”, porque eu só vivia assim: “Zuummmmm.” Porque eu falo demais, fofocava com um, fofocava com outro, e ele me falava: “Você tirava dez, mas você falava demais na sala de aula! Você não ficava sentada um minuto.” Ouvir isso é muito bom, porque eu escuto a minha história. Lá eu fui não como professora, lá eu sou coordenadora, então os professores de lá são subordinados a mim, é uma relação diferente. Não é que eu voltei por cima, mas a perspectiva do olhar é diferente. Hoje eu falo para eles como eles têm que fazer, é muito interessante isso. Eu olho para o meu professor, que me ensinou, me deu aula, e eu o vejo de um outro olhar hoje, que eu digo para eles como é que eles têm que proceder, de vez em quando eu chamo para conversar. É bem interessante isso, é como se fosse uma engrenagem.
P/1 – E o que mais você reencontrou nessa escola?
R – Em termos de quê, de pessoas?
P/1 – É, ou de espaços ou de cheiros...
R – É, cheiros... Nessa escola que eu comecei a namorar, a minha adolescência, então tem alguns espaços da escola que eu lembro, alguns murais, o piano antigo. Lá tem um piano enorme, muito velho e que ninguém toca. E eu ficava imaginando: “Por que um piano tão bonito, tão grande, e ninguém mexe nesse piano?” E a diretora era muito... A Dona Olga tem uma história, se você pesquisar na internet você vai encontrar. É a história de uma mulher sargentona. Essa sala que fica o piano ninguém podia chegar perto, porque era a Sala de Música, tinha um coral. Eu nunca pude participar do coral, porque eu era muito desafinada, eu sempre ficava de lado. Escolhiam e eu ficava, porque eu acabava com o coral. Eu entrava no coral, pronto, não tinha mais coral, porque a minha voz era horrível. Eu lembro que nós fomos namorar escondido na escola e essa sala do piano era a sala mais escondida. Então eu pensava o seguinte: “Como ninguém tocava o piano, aquele piano não funcionava, logo... Um piano lindo, enorme, está lá até hoje. O que aconteceu? Nós fomos namorar lá na sala do coral, eu encostei no piano e o piano é perto de uma sala que tem o sinal, as caixas de som. Gente, eu sentei e aquele barulho “ti-ri-ri-rim” de piano. Gente, nossa! Que desespero que eu fiquei, me ajeitando toda. Daqui a pouco eu escuto passos, a gente se enfia embaixo de um buraco que tem naquela sala ali. Nossa! Eu suava, desesperada. Outro dia eu estive na sala do piano e fiquei lembrando: “Meu Deus, o que eu aprontei aqui nessa sala.” A gente quer reformar, ajeitar o piano. Estou com um projeto, ver se a gente consegue botar aquele piano; tem que ajeitar, porque está velho, deve ter mais de 30 anos aquele piano.
P/2 – O pessoal continua a namorar lá ainda?
R – Eu não sei, eu nunca mais ouvi barulho nenhum (risos). Eu nunca mais ouvi “ti-ri-ri-rim”. Eu acho que agora não, porque agora, hoje, tem outros espaços melhores que a sala do piano. Antigamente era mais difícil. Hoje em dia está mais fácil namorar, antigamente era mais difícil. Hoje em dia namora em qualquer lugar.
P/1 – E descobriram vocês lá?
R – Não descobriram, graças a Deus. Conseguimos descer. E eu ouvia as histórias: “Você viu? Tinha alguém lá” “Será que era rato?” “Não, não pode ter sido.” Era eu que estava lá namorando (risos).
P/1 – Rose, você, como professora, que tipo de recurso você costuma usar? Como você prepara as suas aulas?
R – Hoje eu uso o computador, trabalho com tecnologia na escola, eu coordeno projetos voltados para Tecnologia. Há uma retrospectiva muito grande, porque no meu tempo a gente usava... No meu tempo, bem velha (risos), a gente usava o caderno, quadro negro, dificilmente uma TV, um rádio. Passaram-se dez anos a TV entrou na escola. Nossa! Era aula com televisão. Rádio, então, era uma coisa... A Rádio-Escola. Hoje em dia acho que o computador é o referencial da aula, da escola do futuro. Eu acredito que não vão ter mais escolas que usem mais o quadro negro ou o caderno, acho que vai ser mesmo o computador, quadro interativo. A gente já vê isso nas escolas de hoje. Mas nada substitui a figura do professor, nada substitui a relação humana. Podem existir cursos à distância, comunidades virtuais, Orkut, o que for, mas essa relação do outro é que faz você aprender. Quando você lê uma obra, quando você discute a obra e fala da obra é que você aprende. Acho que isso não vai passar nunca. Isso eu levo comigo, na escola e eu falo sempre pro professor.
P/1 – Quando você era aluna já usavam TV?
R – Na minha infância não, da primeira à quarta-série, não. O quadro de giz era o recurso principal, livros e cadernos. O livro é insubstituível, muda a forma de você ler, você lia no livro, agora você lê na tela, mas a leitura é insubstituível, você lê num Ipod, de outras formas. Acho que o livro nunca vai ser substituído não, somente como as formas que ele é apresentado. Agora, a questão mais discutível hoje na escola é essa, desses novos recursos: Vai substituir professor? Vai criar distância entre as pessoas? Eu acho que as relações vão mudar. Eu costumo falar para os professores: “Antes a gente ria, hoje a gente usa emoticon para sorrir.” O sorriso está ali, mas com uma outra configuração, uma imagem, por exemplo. Mas não deixa de ser um sorriso. Claro que não tem o toque, não tem essas coisas todas, mas é o preço que a gente paga.
P/1 – Você estava contando sobre usar outros recursos e sair da sala de aula para dar aula.
R – Isso. Quando a gente vivencia a experiência, acho que a gente aprende mais. Se eu falar com você assim: “Olha, o sal é composto dessa fórmula química e tal.” Mas se você provar alguma coisa salgada, é como se você pudesse experimentar aquilo, vivenciar aquilo. Eu lembro de uma aula que eu queria falar sobre animais que vivem em sociedade. Como que a gente podia fazer isso? Fiquei pensando: “Como é que eu vou mostrar pro aluno que existem animais que vivem em sociedade?” Fomos para o pátio e lá fomos ver as formigas, eu mostrei para eles: “Olha só como uma colabora com a outra. A folha. Como elas se comunicam...” Tiveram alunos, depois, que lembravam disso o tempo inteiro, eu falava e ele fazia o feedback “das formigas!” Tem uma forma de você ensinar que realmente o aluno aprende. As coisas que mais ficaram marcadas, para mim, foram as coisas que eu vivenciei na escola, não as que eu decorei. Eu não consigo saber, por exemplo, hoje, quais são os rios do Egito, não consigo lembrar! Mas, consigo lembrar quando eu fui ao Museu, quando eu vivenciei uma receita, algum momento que eu dancei ou alguma aula, a aula de Matemática, por exemplo, que eu ouvia. Essas coisas ficaram muito mais marcantes para mim, eu acho que eu aprendi realmente, do que aquilo que eu somente decorei. Eu acho que a escola tinha que ser assim, um ambiente mais prazeroso para você poder vivenciar mais aquilo. Existem muitos relatos de projetos de escola que trabalham capoeira, por exemplo. O corporal, o lúdico, os jogos... São as escolas que os alunos gostam mais.
P/1 – E como você virou a responsável pelo Laboratório de Informática do “Tô no Mundo”?
R – Quando eu fui para o Olga já existia essa laboratório lá, que era do Proinfo, não era “Tô no Mundo” ainda, que tinha 15 máquinas velhas. Eu sempre gostei muito de tecnologia, tudo que fosse voltado à questão de tecnologia era a minha paixão. Sempre gostei muito de saber. Começou com rádio, na infância, com TV. E aí a escola foi roubada, teve um assalto na escola e eles levaram todas as máquinas, roubaram tudo. Eu trabalhava com esse laboratório do Proinfo, que eram máquinas antigas que não tinham internet. Eu fiz experiência, comecei a levar grupos de alunos para lá para usar os computadores. Eu quase sem saber nada de internet, computador, eles muito menos. A gente foi aprendendo junto. Levava os alunos lá e fazia desenhos no Paint, uns recursos bem primários. E nós fomos roubados, levaram os computadores da escola. O que eu fiz? Eu fiz um projeto para Oi, eu comecei a buscar parcerias. “Ai, meu Deus, onde será que eu consigo uma parceria, alguém que doe computadores pra gente?” O que aconteceu? Os alunos adoravam aquele laboratório de informática, que não tinha nada, só computadores sem nada, mas eles adoravam, ficavam o dia inteiro se deixasse. Quando fomos roubados ficou um vazio na minha vida e na vida deles. Aí eu fiz um projeto, mandei para a Oi Futuro, que era o “Projeto Telemar Educação”, na época, era um projeto que dava computadores conectados à internet. Bom, nós conseguimos dez computadores conectados à internet e uma janela de possibilidades se abriu, porque a gente tinha internet, a gente tinha o mundo. A gente começou a desenvolver projetos na escola usando tecnologia e internet. Nós começamos com um grupo de alunos, a realizar algumas atividades, entrar em blog. Eu comecei a estudar mais sobre tecnologia; eu tinha feito duas pós, nenhuma voltada para tecnologia. Eu ingressei no Mestrado. Falei: “Eu quero estudar mais sobre esse outro ambiente de aprendizagem.” Porque é outra escola, é diferente da escola que eu vivenciei, porque o ambiente de aprendizagem com a internet é como se fosse uma outra escola, é um outro pensar sobre Educação. Você consegue aprender num ambiente que é virtual, não um ambiente que você pode tocar e estar ali, mas você pode sorrir pelo computador, você pode chorar, você pode trocar ideias. As ideias estão ali e isso é fantástico. Eu sou apaixonada por tecnologia. Foi assim que a gente começou com o projeto do “Oi Futuro”.
P/1 – E como você usa a internet para ensinar? Você tem algum exemplo?
R – Tenho muitos exemplos. Nós fomos premiadas com um projeto, e nós tínhamos um valão atrás da escola. Esse valão, quando enchia, ele enchia tudo: enchia a escola, as ruas ao redor, enchia tudo. E nós começamos a pensar de que forma a tecnologia poderia ajudar a melhorar aquela comunidade ao redor. O que adiantava ter computadores na escola, mas tinha um valão que enchia quando chovia? Então eu comecei a pensar o seguinte: “De que forma nós podemos usar o computador a favor dessa comunidade?” Nós criamos um projeto, o seguinte: Nós fomos lá, fotografamos o valão cheio de lixo. Tinha garrafa pet, saco plástico... Fotografamos, junto com um grupo de 15 alunos. Fomos para o laboratório, pesquisamos sobre materiais reciclados, sobre enchente, sobre valão, pesquisamos tudo o que a gente tinha de material. Fiz um ofício à prefeitura, mandei a prefeitura pedir a limpeza do valão, primeiramente. Começamos a pesquisar na internet como usar aqueles recursos que estavam jogados no valão pela comunidade, em fonte de renda. Criamos oficina de material reciclado, convidamos algumas mães que moravam ali ao redor, quem sabia usar garrafa pet para fazer flor, fazer não sei o quê, quem sabia usar... Tudo aquilo que tinha naquele lixo que a gente fotografou a gente tentou reaproveitar para fazer algum tipo de material. Criamos um blog, e nesse blog a gente ia registrando todo o processo: como foi, qual foi o problema que a gente detectou, como a gente conseguiu a participação dessa comunidade na escola, como o computador influenciou. Por exemplo, a questão do blog, do registro, das fotos passando para o computador. Pesquisamos recicloteca; envolvemos outros professores; fizemos uma oficina de modelagem de papel, de como fazer papel com o material que estava jogado lá. Depois fizemos prospectos e imprimimos, convidando a comunidade a não jogar mais lixo naquele valão. Descobrimos que aquele valão vinha de um outro valão de uma outra cidade, que muitos lixos não eram nosso, vinham de outro lugar. Então, esse é um exemplo de como a tecnologia favoreceu, porque através da tecnologia a gente conseguiu pesquisar formas de solucionar aquele problema. Porque como é que a gente ia conseguir isso, por exemplo, em um material impresso que estaria defasado, por exemplo? A internet tem essa possibilidade, você conseguir informações possíveis, novas, com recursos de áudios, de imagem, de vídeo. A gente assistiu muito vídeo falando sobre a questão do meio ambiente. E desse projeto surgiram outros, surgiram as oficinas de material reciclado, outras oficinas. A questão do blog, dos registros, o aluno pode desenvolver a sua escrita. Alguém escreve sempre para alguém ler. Quando eles vem escrever, eles escrevem como falam, eu dizia: “Olha, o que vocês escrevem, alguém vai ler. Ninguém escreve para ficar guardado.” Tem que escrever de uma forma que quem leia compreenda o que está escrito. Foi o primeiro, nós fomos premiados com esse projeto, nós ganhamos dez mil reais. Com esse dinheiro montamos a rádio-escola, que é a rádio que conta tudo o que está acontecendo na escola, todo o valão, alerta sobre a questão ambiental...
P/1 – E eu fiquei sabendo que você usou, falando em blog, o blog do “Memórias Brasileiras”, que é um dos projetos do Museu também, como recurso didático. Como foi essa experiência?
R – Há uns quatro anos eu fui convidada a trabalhar com alunos jovens e adultos. Eu gosto muito de velho, eu tenho uma... Eu não sei por que, não sei se é algo de antepassado, mas eu gosto muito de gente velha. Lá na escola tinham umas turmas de jovens e adultos com pessoas de 30 a 70 anos para alfabetizar. Também ganhei um prêmio por esse projeto. Eu falei: “Vou. Vamos lá!” E eu trabalhei com alfabetização muito tempo, só que eu me deparei com uma clientela de gente muito velha, que não sabia ler nem escrever nada, gente com 70, 60 anos. Tem a Dona Terezinha, que tem 67 anos agora. Eu falei: “Bom, vamos fazer o seguinte. Eu vou tentar, ver se eu consigo, usando o computador, alfabetizar esses idosos.” Usando o computador como ferramenta principal, não o quadro, não o livro. Eu pensei: “Bom, como eu vou começar a alfabetizar... Normalmente se começa a alfabetizar usando a letra “A”, usando a ordem do alfabeto. Mas eu queria que eles usassem a internet, eu comecei a alfabetizar usando o “W”. Eu comecei pelo final do alfabeto para que eles começassem a aprender o que é “WWW” ponto. Depois comecei usando os sinais de pontuação, para que eles pudessem começar a acessar o blog, acessar a internet. Nós começamos, eu e mais uma professora, que era a professora de sala de aula, ela usava o tradicional “A”, e eu usava, duas vezes por semana, os recursos tecnológicos: vídeo, filmava eles falando, filmava de novo. Ensinava a passar mensagem de celular usando a escrita. Eu fiz um blog e comecei a ensinar como escrever usando o blog. Tinha a escrita no papel, depois passava para o computador, depois vice-versa, depois mudava. Isso era uma turma piloto. Não é que com seis meses eles estavam lendo e escrevendo tudo? Eles começaram a ler, entravam no site. Eles gostavam assim: site da Casa & Vídeo para ver propaganda de ferro de passar, de máquina de tirar retrato, porque eles adoram essas coisas que tenham a ver com a vida deles, de comprar, de economizar... Eu ensinava Matemática assim: “Olha só, essa máquina de lavar, por exemplo, está 699,00. Se eu dividir em cinco vezes, quanto dá?” Eles sabiam de cabeça, porque eles sabem viver, eles sabem ler o mundo, como diz Paulo Freire. Eles não sabem colocar isso de uma forma escrita, mas eles sabem se virar. Eles faziam a conta, eu dizia: “Vamos colocar isso no papel.,” No blog, tinha − ainda tem − os registros de como é aprender a escrever o nome, porque antigamente a gente escrevia o nome, a gente assinava o nome; eu acredito que daqui uns dez anos a gente vai digitar o nome, porque a escrita manual vai sendo substituída. Antigamente você escrevia com pena de ganso, depois com papiro, depois com o lápis, agora é com o teclado. Eu costumo até falar que eu teclo pelos cotovelos, falo pelos cotovelos (risos). E foi um projeto maravilhoso, tem depoimentos deles gravados. Só que, quando muda a política, muda prefeito, muda secretário, e o projeto não continuou, então nós entramos no Museu da Pessoa. Teve um dia que eu estava muito chateada e eu escrevi uma crônica que dizia sobre a minha vontade de desistir de ser professora, escrevi essa crônica no Museu da Pessoa. Eles viram o site, entraram lá e falaram um pouco sobre eles, sobre o blog. Nesse blog que nós fizemos, cada aluno tem o seu, tem uns relatos muito interessantes da vida deles. Uns relatos bem confusos, inicialmente, porque eles não conseguiam escrever muito bem, e uns relatos bem bacanas, falando um pouco da vida deles, que lá no Museu da Pessoa a gente cita. Eu não sei se tem, eu não vi, não busquei todos os registros não, mas acho que tem.
P/1 – Vocês chegaram a entrar no blog do projeto “Memórias Brasileiras”?
R – Nós chegamos a entrar no blog. Lemos algumas histórias, lemos algumas histórias dela, esqueci o nome dela...
P/1 – De quem? Da Winny?
R – É, Winny, porque teve uma parte do projeto que estava falando de Identidade Cultural, em que estava falando das histórias das pessoas, porque sempre fala assim: a história de uma cidade tal ou a história de um artista, mas nunca da pessoa comum. Eu dizia para eles o seguinte, como a história deles era importante para eles e para alguém perto deles e que, para mim, eles eram muito importantes, a história deles era muito importante, porque todas as histórias acabam formando uma história só, que é a história do povo brasileiro. E tem histórias lindas deles, eu adorava ouvir, porque eu gosto muito de ouvir histórias, principalmente de pessoas. Tem a Dona Terezinha, por exemplo, que ela, contando a história dela de vida, que ela, quando passava um ônibus, via símbolos e não letras... Ela não sabia ler. Eu mostrei a escrita japonesa para ela e ela disse que era isso que ela via quando ela via um ônibus. Eu não sei ler japonês, então se eu for no Japão, eu vou me sentir como ela se sentia aqui no Brasil. Ela conta isso. Eu li algumas histórias para ela lá do Museu da Pessoa, de algumas pessoas que lutaram tanto quanto ela ou de outras. Histórias de vida, de relacionamentos, e alguns deles choraram, eles eram − alguns já morreram − muito emotivos. Bem bacana.
P/1 – Legal. E como você achou o Museu da Pessoa?
R – Eu sempre fui muito curiosa, estava procurando museu e vi “Museu da Pessoa”. Eu falei: “Gente, que coisa interessante! Um museu que fala de pessoas!” Eu entrei, li várias histórias, achei aquilo fantástico. Em algumas histórias eu me vi. Uma coisa muito bacana é isso: você se vê em outras histórias. Eu acho que o ser humano, a história dele não é dele. Por exemplo, a minha história agora, não é mais minha, já é de vocês, porque vocês acabam vivenciando a minha história, eu recontando e eu vivenciei a tua história quando tu falou: “Eu senti o cheiro da minha professora.” Parece que você entra na história do outro. E quando eu li aquelas histórias, eu me senti parte daquelas histórias, como se aquelas histórias fossem quebra-cabeças que, montados, fariam uma história só, que é a história do povo brasileiro, que eu tenho um amor enorme por esse país. Eu li para eles algumas histórias e eles também, contando algumas histórias deles. Eu participo para outras pessoas também: “Gente, olha que coisa interessante! Um museu da pessoa.” À princípio eu achei que fosse um museu, como tem esse museu lá nos Estados Unidos, não sei onde, em que tem as pessoas, mas não tem a história. Uma coisa é eu contar a sua história, outra coisa é você contar a sua história, porque as impressões, os cheiros, isso só eu tenho, isso é meu, os detalhes de cor, isso você não vai ter. Se você contar essa história que eu estou contando pra você pra uma outra pessoa, você não vai ter tudo aquilo que está carregado comigo, que são as minhas emoções, os meus sentimentos. A pessoa, quando conta lá no Museu da Pessoa, ela conta e, engraçado, quando você lê, se você tiver uma percepção, você consegue perceber alguns detalhes de que foi ela que contou.
P/1 – E hoje em dia, você mora com quem?
R – Eu casei de novo (risos), consegui me libertar, soltar as amarras.
P/1 – Conta para a gente como foi isso (risos).
R – (risos). Ah, foi muito bom. Foi muito bom porque minha filha cresceu e eu tive outro filho, acidentalmente também. E eu comecei a pensar numa maneira de sair dessa situação toda que eu tinha. Eu já estava independente, já trabalhava em dois lugares, ganhava razoavelmente bem, dei uma casa para minha mãe. Eu comecei a pensar de uma outra forma: “Eu não tenho que viver essa vida, eu tenho que viver uma vida em que eu seja muito feliz e eu vou fazer essa escolha.” E um belo dia eu falei para ele: “Eu vou embora.” Ele não acreditou, porque eu sempre fui muito submissa, apesar de ler sobre grandes mulheres batalhadoras que eu achava o máximo, Joana d’Arc, era minha... Clarice Lispector, mulheres que eu admirava pela sua garra, por serem irreverentes. Mas eu tinha uma personalidade muito submissa, eu sempre dizia: “Sim, senhor” o tempo inteiro. Um belo dia eu falei: “Ó, estou indo embora.” − Isso tem dez anos − “Vou embora, eu quero viver uma outra vida, não quero ser infeliz, não quero te fazer infeliz.” Porque nós éramos muito infelizes, eu, ele e os filhos, porque a gente não vivia bem. Eu sofria muito, extremamente. Todo mundo sofria, quem estava ao nosso redor, ali. Por incrível que pareça, ele falou assim: “Está bom, se você quer assim.” Juntei tudo o que eu tinha... Já tinha alugado um lugar, já tinha pensado, planejado tudo seis meses antes, tipo aqueles filmes que a pessoa planeja tudo, meticulosamente. Planejei tudo: data, hora, local. Uma coisa bem, bem planejada. Eu me senti como um pássaro, o ar ficou mais puro, as pessoas ficaram com a pele mais brilhosa, o mundo ficou feliz, tudo ficou muito bom pra mim. Eu senti um pouco de medo também, porque eu vinha de uma situação em que eu era um pássaro na gaiola, e de repente o mundo todo estava ali para mim. Eu me senti muito livre, muito feliz, muito feliz. E eu comecei a viver, viajei com as crianças. Eu dizia: “Gente, eu estou livre! Finalmente eu estou livre, posso viver a minha vida.” Eu conheci essa pessoa, que tem um ano que a gente casou, agora em julho fez um ano que a gente casou no papel. Eu o conheci numa festa (risos). Todos os meus casos de amor aconteceram em festa, deve ter alguma coisa que explica isso? Todas as pessoas que eu amei, eu conheci numa festa. Eu acho que é um momento que a gente está muito desprendida de tudo e se abre. Eu o conheci numa festa, num momento que eu estava, querendo aproveitar tudo, parecia que o mundo ia acabar amanhã, eu queria viver tudo a cada momento, beber tudo, curtir, ir pra praia. Coisas que eu não fazia, não porque ele não deixava, mas porque eu achava que, por ser casada com ele, eu não poderia. Olha que coisa mais louca! Resquício daquela criação que eu tive. Eu conheci essa pessoa e a gente viveu um amor intenso, a gente vive um amor muito legal, muito mais leve, muito mais feliz. A gente estava lá no Cristo, ele me pediu em casamento e eu aceitei (risos). Tenho um neto, a minha filha casou, tenho um netinho, que é um homem que veio no momento que tudo se estabilizou, a minha vida parece que foi assim: Foi subindo chegou no máximo e depois ela se estabilizou. É o Levi, que é uma figura masculina na minha vida que entrou agora com toda a força. E é isso.
P/1 – Bacana. Rose, tem alguma coisa que passou pela sua cabeça que você queria contar, que você acha que ficou faltando, que você lembrou, mas que a gente ainda não falou?
R – Tem uma coisa que me fez muita falta, é a figura do meu pai. Essa figura, eu sempre idealizo uma pessoa que nunca existiu na minha vida, que é a figura do pai. Todas as vezes que eu escrevo, ele não está presente na minha escrita, porque eu não tenho referencial dele, ele fez muita falta na minha vida o tempo inteiro, eu queria ter tido ele comigo, para falar, para beijar, para abraçar. A figura do meu ex-marido, por exemplo, ela foi descartada da minha vida, porque eu não tinha referencial masculino na minha vida, por motivo do meu pai, e ele não foi um referencial que eu gostaria de ter tido. Então a figura do meu pai, para mim, fez muita falta, talvez por isso que eu tenha sido tão submissa. Eu queria muito ter tido ele perto de mim, muito, muito. Eu queria muito poder encontrá-lo um dia. Quem sabe? Mas é isso. Acabou.
P/1 – A gente quer agradecer, obrigada por contar pra gente tudo isso que você contou.
R – De nada. Foi bom, foi bem tranquilo.
P/1 – Foi bom? Que bom, porque para mim foi muito bom também (risos).
R – Ah, que bom! (risos).
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