Entrevista de Marcos Ronaldo Santos de Lima
Entrevistado por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 19/10/2021
Projeto Porto e Cidade - BTP/Ultracargo
Entrevista número: PCSH_HV1090
Realizado por: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Então, Marcos, pra começar, eu gostaria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Marcos Ronaldo Santos de Lima, nascido em 21 de dezembro de 1969, nascido em São Paulo, criado em Santos.
P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R - Israel Alves de Lima e Alba Santos de Lima.
P/1 - E o que eles faziam?
R - Meu pai era motorista, também, e minha mãe do lar.
P/1 – Ele era motorista do quê?
R – Ele foi motorista de caminhão de lixo e foi motorista de ônibus também, da Cspc, que é antiga, não tem mais.
P/1 - E como você descreveria seu pai e sua mãe?
R - Meu pai e minha mãe? Meu pai é um pouco mais difícil, mas a minha mãe é fácil. Meu pai era um baixinho, capoeirista. Era ogã também, do candomblé. E, coitado, apanhava da minha mãe. Minha mãe era a Rochelle, era a própria Rochelle, (risos) não tem definição melhor pra ela.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Foi no candomblé. Ele se apaixonou por ela, só que ela era casada e aí ela acabou se separando, por N motivos e os dois resolveram ficar juntos, apesar da negativa do avô, do pai dela, não queria, mas eles ficaram juntos.
P/1 - E você teve, tem irmãos?
R - Tenho. A minha mãe teve dezesseis filhos e criou dez. Aí, você quer saber tudo, né? Eu posso ir contando tudo? Então está bom. Eu tenho quatro irmãos mais velhos. O mais velho, Cláudio, era estivador. Ele que incentivou bastante a gente a ir pro cais. Depois veio o Paulinho... não, Cristina e o Paulinho. Aí Cláudio era de um pai, Cristina e Paulinho de outro e veio a Cecília. E eles todos têm um ano ou dois de diferença, um pro outro. Eu e a Cecília são dez...
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Entrevistado por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 19/10/2021
Projeto Porto e Cidade - BTP/Ultracargo
Entrevista número: PCSH_HV1090
Realizado por: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Então, Marcos, pra começar, eu gostaria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Marcos Ronaldo Santos de Lima, nascido em 21 de dezembro de 1969, nascido em São Paulo, criado em Santos.
P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R - Israel Alves de Lima e Alba Santos de Lima.
P/1 - E o que eles faziam?
R - Meu pai era motorista, também, e minha mãe do lar.
P/1 – Ele era motorista do quê?
R – Ele foi motorista de caminhão de lixo e foi motorista de ônibus também, da Cspc, que é antiga, não tem mais.
P/1 - E como você descreveria seu pai e sua mãe?
R - Meu pai e minha mãe? Meu pai é um pouco mais difícil, mas a minha mãe é fácil. Meu pai era um baixinho, capoeirista. Era ogã também, do candomblé. E, coitado, apanhava da minha mãe. Minha mãe era a Rochelle, era a própria Rochelle, (risos) não tem definição melhor pra ela.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Foi no candomblé. Ele se apaixonou por ela, só que ela era casada e aí ela acabou se separando, por N motivos e os dois resolveram ficar juntos, apesar da negativa do avô, do pai dela, não queria, mas eles ficaram juntos.
P/1 - E você teve, tem irmãos?
R - Tenho. A minha mãe teve dezesseis filhos e criou dez. Aí, você quer saber tudo, né? Eu posso ir contando tudo? Então está bom. Eu tenho quatro irmãos mais velhos. O mais velho, Cláudio, era estivador. Ele que incentivou bastante a gente a ir pro cais. Depois veio o Paulinho... não, Cristina e o Paulinho. Aí Cláudio era de um pai, Cristina e Paulinho de outro e veio a Cecília. E eles todos têm um ano ou dois de diferença, um pro outro. Eu e a Cecília são dez anos de diferença e ela foi casada com esse cara durante dez anos, teve seis filhos e os seis morreram. Ou nasceram mortos, ou sobreviveram por poucos meses e vieram a falecer. Eu acredito que provavelmente era incompatibilidade sanguínea, mas ela não quis fazer exame, ela quis fazer um Carnaval. Aí ela saiu, num Carnaval, sem ele e engravidou de mim (risos). E aí ela pegou e o chutou, falou: “Quer saber? Se eu fiz isso, é porque eu não te gosto mais”. E aí foi quando ela começou a namorar com meu pai, que me registrou. Eu só soube que ele não era meu pai depois que ele morreu. Sempre me tratou super bem, foi tudo sempre muito tranquilo entre a gente. E aí (risos) ao invés dela fazer exames, ela fez a própria experiência dela e eu vinguei. E depois de mim ela teve mais cinco filhos, desse casamento que ela teve com Israel, que é o meu pai. E aí…
P/1 - Como que era?
R - Como que era? Louco, né? Você imagina, década de setenta, oitenta, uma mulher solteira, porque ela acabou se separando do Israel e ela, solteira, viúva, porque faleceu. Sofreu um assalto, ele trabalhava na linha trinta, no Orquidário. E ali era muito escuro, muito perigoso e o rapaz foi assaltá-lo, ele reagiu, o rapaz o matou. A gente morava em São Paulo, na época. E ela criou todos os seis filhos sozinha, praticamente sozinha. Uma guerreira, hoje eu a tenho como uma guerreira. Do jeito que deu, aos trancos e barrancos, levando todo mundo ali, a ferro e fogo. Muito ferro (risos). E acho que ela conseguiu o objetivo dela, graças a Deus.
P/1 - E como era na infância, em relação aos seus irmãos e como é hoje?
R - Na infância era bem melhor, acho que ela era o elo, ela que unia todo mundo, ela deixava todo mundo firme e forte. Ela cometeu alguns erros, mas, na situação em que ela se encontrava, ela fez o melhor. E nós nos damos super bem, éramos muito unidos. Depois, com a adolescência e a fase adulta é que fomos nos separando. E aí um pouco depois da morte dela a gente voltou a ser mais unidos. Hoje um ajuda o outro, se visita. Quando a gente se encontra, dá um bom samba, é bem legal.
(06:09) P/1 - Você sabe a história dos seus avós? Você chegou a conhecê-los?
R - Não, muito pouco. Só minha avó, minha avó materna. Aí, tudo que eu sei dela, é que ela era… trabalhou muitos anos - a minha mãe era filha única - numa casa de uma família e, num determinado momento lá da vida deles, eles resolveram se mudar, acho que até pra outra cidade. E ela achou que iria com eles e fez mala, fez tudo e eles deram tchau pra ela e a deixaram na porta da casa, lá. E ela ficou - minha mãe contava - dois dias, acho, sentada na porta, sem rumo. Alguém viu, a reconheceu, avisou minha mãe, a minha mãe foi buscá-la. E ela já não estava mais muito bem, ela tinha acho que 68, 65 anos, não me lembro. E ela… a gente morava em Santos, na Constituição. E ela veio pra ficar com a gente, mas acho que ficou dois anos só, dois anos, três anos, bem pouco tempo. Foi o único contato direto que eu tive com ela, Dona Inocência. E aí ela faleceu. E eu não sei nem, na verdade, eu não sei do quê. Porque naquela época criança não se metia em conversa de adulto. E aí eu não sei te dizer qual foi a causa mortis, mas que ela já estava bem velhinha, mesmo. E aí meus avós paternos, não conheci nenhum, só o pai do meu pai. Era ‘seu’ João. Inclusive, meu irmão mais novo leva o nome por causa do avô. Ele... não sei nada dele, profissão… só sei que morava lá num bairro em São Paulo e acho que não era do candomblé, ele não gostava. Inclusive, não gostava da minha mãe. O contato com essa parte da família eu não tive nenhum. Aí a gente fala sempre que o começo da família foi minha mãe. Tudo que a gente sabe, de lá pra cá, a gente sabe tudo, da vida de todo mundo. Ela não tinha irmãos, mas o que tinha de sobrinho, em São Paulo, era ‘brincadeira’. Tia Alba daqui, tia Alba de lá, tia Alba, tia Alba. E aí virou... tem um monte de primos em São Paulo, por conta disto. Alguns a gente até hoje têm contato, mas a maioria não.
P/1 - Em que bairro você nasceu e morava, aqui em São Paulo?
R - Eu nasci no Ipiranga. Depois que eu tenho lembranças, eu já morava no Itapema. Aí depois fui pra São Paulo. Eu ficava assim, ó: morava um tempo em São Paulo, um tempo em Santos. E que eu tenho mais lembranças é do Marapé, que lá nós moramos mais tempo, nós moramos lá por onze anos. E lá que eu fiz minha adolescência, pré-adolescência, início da vida adulta, morando no Marapé.
P/1 - E quando você era pequeno tinha algum costume de família, seja comida, algum hábito…
R - (Risos). Filha, a gente tem tempo? Porque tem muita coisa, nossa! Hoje eu gosto de cozinhar, sou médio na cozinha. E tudo eu aprendi com a minha mãe. E ela gostava de ensinar a gente. Ela falava, principalmente pros meninos: “Não, vocês têm que aprender pra não depender de mulher. Então vocês saibam fazer arroz, saibam fazer comida”. E aí eu ficava ali com ela, perto, ajudando, se virando. E aprendi muita coisa com ela, com relação à comida. Mas a maior parte mesmo, que a gente tem lembrança, é numa mesa. Ela fazia de tudo: lasanha, rabada, mocotó, peixe assado… e era sempre festa, era bem gostoso. Na época a gente não dava tanta importância assim, mas isso aí era uma coisa muito forte. Eu até tentei fazer isso com a minha família, mas eu não consigo. Tudo que eu consigo é elas dizerem: “Nossa, o cheiro está bom”. Pegam o prato, vão pro quarto, vai pra sala, senta no sofá. Na época, não, a gente sentava na mesa. Ficava uma bagunça organizada bem gostosa, isso foi o que mais fez falta. Quando a gente se separou, o que mais fazia falta era isso. Por exemplo: Natal. Natal era sagrado em casa. Ceia era meia-noite e ninguém saía pra rua. Depois, na adolescência, começamos, conseguimos, conseguimos o Ano Novo pra gente, o Ano Novo pra ir pra rua, pra ficar com os amigos e tudo mais. Mas 90% do tempo era em casa. Era em casa. Eu só fui pra rua brincar com dez anos de idade. Como tinha bastante irmão, então não fazia tanta falta assim. A gente brincava em casa, do jeito que dava ali, era bem bacana. Acho que isso que uniu bastante a gente.
P/1 - E você frequentava o candomblé quando você era pequeno?
R - Bastante. Eu lembro, eu tenho lembrança, eu com menos de dez anos, com meu avô, que é o avô Agnaldo e eu mandando em tudo, minha mãe dizendo que eu mandava em tudo. Ele falava: “Então é você que manda aqui, na minha casa?” Eu falava que era eu e tal. Só que não era uma coisa que eu queria, era uma coisa que eu fui levado. E quando chegou na adolescência eu tinha vergonha, eu não queria. Eu queria estar em outro lugar, com outras pessoas, fazendo outras coisas. E eu fui me afastando. Me afastei bastante disso daí. Só que toda vez que eu tinha problema, quem resolvia era ela. Diversos: doença, dor de coração, dor de corno, dor de tudo quem resolvia era ela. Era tudo no colo da mãe. E aí, então, eu ficava confortável com isso. Só que ela morreu. E aí depois que ela morreu, senti muita falta disso, muita. E aí eu não confiava em ninguém. Então eu demorei muito, demorei muito pra me achar, pra achar um lugar que eu pudesse ficar. Porque aí eu vi que eu não era obrigado a fazer tudo, eu vi que eu não era obrigado a participar do que eu não quisesse. Então eu trato meu orixá da maneira que eu aprendi, da maneira que eu me sinto confortável, sem obrigação nenhuma. A minha religiosidade eu trato dessa forma. Acredito em Deus, pra caramba. Se tiver que ir pra igreja, eu vou. De vez em quando me dá na pleura, levanto cedo e vou na missa. Me dá uma saudade, eu vou. Eu lido bem com isso, sou bem tranquilo com relação a isso. Mas já tive bastante problema por… eu aprendi, tardiamente, que o orixá não penaliza ninguém, não te castiga. Ele só deixa de te proteger se você não cumprir com as suas obrigações. Depois que eu aprendi isso, foi bem mais tranquilo. Aí eu passei a ter mais respeito do que medo, isso é muito importante.
P/1 - E você sabe por que foi escolhido Marcos como seu nome? Como foi essa escolha?
R - Cara, é muito complicado isso aí. Vamos lá! Em casa nós tínhamos, vou dar do mais velho pro mais novo: Cláudio Luiz, Paulo Roberto, Maria Cristina, Maria Cecília, Marcos Ronaldo, Maria Luiza, João Fábio, Cléber Alessandro, Cátia Cilene e Gabriela, ela ficou, era Marília Gabriela, ficou só Gabriela. Todo mundo com dois nomes. Aí eu falava que minha mãe era fã de fotonovela. Meio que tinha umas revistas e eram esses nomes aí, nomes duplos, nomes compostos. E ela foi nessa linha aí (risos). Em casa eu mantive essa tradição aí. É bem bacana: Maria Eduarda, Taís Mainara, Lavine Maíra. Todo mundo com dois nomes e dois sobrenomes, Santos de Lima. Eu não quis nem saber. Nossa, elas ficavam muito bravas (risos). Mas aí eu falo assim ó, elas são as _________ de sangue puro. Porque elas são as únicas netas da minha mãe que são Santos de Lima. Todos os outros netos da minha mãe têm Silva, têm Machado, têm outros nomes. Mas “Santos de Lima”, as legítimas, são só as minhas (risos). E aí ela fez isso e nós também. Aí em casa eu fiz questão de todo mundo com “M”. É Marcos, Mariângela, Maria, Maíra e Mainara. Tudo com “M”, só pra ficar bonito e elas odeiam porque, quando eu esqueço o nome delas, eu chamo: “Ô Má, vem cá”. Aí a mais velha fala: “Olha, ele nem lembra quem ele está chamando, é assim mesmo, ele faz de propósito” (risos). Isso é bem legal, é uma tradição que a gente tem também, em casa (risos), sacanear. Fui sacaneado, sacaneia também. Mas vê, a Eduarda, por exemplo, quase se chamou Maria Natalina, porque ela ameaçou nascer no Natal. Aí eu falei pra ela: “Nasce, que você vai ver se eu não ponho o teu nome de Maria Natalina”. Porque Maria já seria. Aí eu falei: “Você vai ser Maria Natalina”. Aí ela segurou até o dia dezoito (risos). Foi bem legal isso aí. E lá em casa a gente brinca muito. Só um não tem apelido, que é o João. Os outros todos têm apelido. Todo mundo. Uns bem estranhos, a começar pelo meu.
P/1 - Qual é o seu?
R - Kamã. K, a, m, a, til. Kamã. Aí diz que, quando eu era pequeno, eu tinha uma… ganhei do meu avô, meu padrinho, uma caixa cheia de carrinhos Karmann-ghia. E eu brincava com eles pra cima e pra baixo, não deixava ninguém pegar, era uma briga. “Ah, lá vem o Karmann-ghia”. Karmann-ghia, Karmann, Kamã (risos). Todo mundo falava e eu já conto, essa é a história verdadeira, mas, às vezes, quando eu não quero contar essa eu conto que meu pai era grego, isso era um nome de descendente de grego. Era nórdico. Eu invento, quando eu não tô a fim de falar essa história, eu conto qualquer outra. Mas é, pouca gente me conhece por Marcos. E aí, pra piorar, na escola eu era Marcos. Quando eu fui pro quartel, Ronaldo. Então, hoje, eu reencontro com meus amigos do quartel, é Ronaldo. E aí, às vezes, me chama e eu não atendo (risos). Complicado atender: “Ronaldo, quem é Ronaldo, estão chamando quem? Ah é, sou eu, desculpa aí”. Essa é a vantagem de você ter vários nomes, você pode escolher o que você quiser.
P/1 - E você lembra da rua que você passou a infância, como era?
R - Ah, várias, várias. Eu morei no Parque da Saúde, em São Paulo. Eu adoro ali, era perto da minha tia e eu adorava aquilo ali, eu adorava. Foi a melhor fase da infância, ali. A gente brincava de carrinho de rolimã, mãe da rua. Brincadeiras que o meu primo inventava. Hoje eu sei que ele inventava, porque eu nunca vi ninguém brincar daquilo. Ele pegava uma cinta, dava uma charada. E aí quem acertasse segurava a cinta e batia nos outros. E, quando ninguém acertava, ele batia em todo mundo, saía todo mundo correndo. E a gente… ele era muito… peguei muito isso dele, de judiar das crianças, eu adoro judiar de criança. Eu tenho um neto de dez anos que ele só quer saber de brincar de luta. Eu tô, eu quero dormir, eu não consigo, porque ele fecha a janela, sobe na cama e o coro come. Aí ele traz os amigos dele também, pra eu bater nos amigos dele. Aí eu tenho que bater neles, me defender, tentar não machucar ninguém, mas sempre alguém sai chorando, acaba a brincadeira com alguém chorando. Mas tudo eu aprendi com a minha família, meu primo Téio, o nome dele era Téio. E lá era carrinho de rolimã, mão ralada. A gente fazia carrinho de rolimã com pedra. A gente usava pedra ao invés de um martelo. Pra furar, pra fazer, não tinha furadeira. Era bater, uma coisa bem arcaica. Pipa, a gente ia buscar o bambu pra fazer as varetas, pra fazer a pipa. Hoje eu vejo, os garotos compram a pipa por cinquenta centavos, um real. Aí eu… todas as vezes que eu tento: “Vamos empinar pipa? Vamos fazer”. Ah, não, não, fazer não, fazer eu não quero”. A minha infância foi bem agitada, foi bem movimentada. Com relação a brincadeiras, todas elas. Todas elas que você possa imaginar. Fora as que eram inventadas. Era bem legal, bem gostoso.
P/1 - E como vocês foram pra Santos? Como foi?
R - Qual das vezes? É difícil. Mas, vamos lá, vou contar, vou tentar fazer uma cronologia aqui. Eu era, eu tinha acho que seis anos, cinco pra seis anos quando eu morei em Itapema. Antes disso eu morei na Silva Jardim. Eu me lembro da Silva Jardim porque eu tive dois acidentes graves lá. Um foi… tinha pallets no chão, porque o corredor enchia e aí eu tropecei e quebrei o braço. E ninguém ia levar criança no hospital, pra quê? “Não, pega as ripas da janela, põe no braço, enfaixa e pronto, está tranquilo”. E a outra, minha irmã tinha mania de me rodar e eu não gostava, eu odiava aquilo. E ela vinha me rodar e a cachorra grudou em mim, no meio das minhas pernas. E ela rodou eu e a cachorra e me rasgou. Aí, sim, aí teve que levar a criança no hospital. Dali nós fomos pro Itapema. Eu era pequeno, mas eu lembro bem porque, jogando taco com meus irmãos mais velhos, o pessoal da rua, eu fui… não estava brincando, eu fui me intrometer na brincadeira. E o meu irmão virou o taco pra bater na bola, mas antes bateu na minha testa. Tenho a marca até hoje. Pegou aqui, abriu. E aí a minha mãe, com toda a sabedoria dela, botou uma borra de café, um bife em cima e mandou eu dormir (risos). Quando eu lembro disso... (risos) “Vai dormir”. Fui dormir. Aí, dali, nós fomos pra São Paulo, Guaianases. Também lembro porque tinha um quintal grande, que a gente brincava muito e eu machuquei a cabeça no carrinho de rolimã. Fiz uma curva muito doida e bati a cabeça na quina das calhas. Guaianases. Aí, dali… Guaianases, Guaianases… nós fomos pra Santos de novo, mas eu não lembro aonde agora. Aí, depois, São Paulo, na Casa Verde… não. São Paulo de novo, no Centro. Aí depois, Santos. Aí eu vim, aí eu já tinha mais, já era mais velho, já… foi quando a Gabriela nasceu, a caçula. A minha mãe tinha 43 anos, eu acho, uma trompa só, que o médico falou que ela não engravidaria mais e ela engravidou. Aí, ali foi em se… isso foi em 1977, foi quando eu fui pra escola, aí, ali eu lembro bem. Então eu já tinha dez anos quando eu comecei a ir pra rua e tal. Aí dali nós mudamos pra Treze de Maio, ainda em Santos. Aí ficamos ali por uns dois ou três anos, se não me engano. Aí fomos pra São Paulo, lá pro Parque da Saúde, uma situação bem estranha também, problemas de família. Aí de lá nós fomos pra Casa Verde, Casa Verde Alta, lá também teve uns perrengues bravos. Da Casa Verde, aí foi quando meu pai morreu, ele faleceu, a gente morava lá, quando ele faleceu. Aí, dali… Casa Verde Alta… eu fui pra Lavapés, perto da Liberdade. E aí, dali, da Liberdade, nós voltamos pra Santos. Brás Cubas, aí da Brás Cubas nós mudamos pro Marapé. Aí ficamos onze anos no Marapé, o maior tempo em uma casa.
P/1 - Você sabe por que havia tantas mudanças?
R - Problemas financeiros, problemas financeiros. Como eu te falei, ela separou do meu pai. Quando ela se separou, a gente morava na Treze de Maio. E aí ela separou do meu pai, foi pra São Paulo e ela arrumou um namorado lá e os meus irmãos não aceitaram esse, porque o Cláudio era… trabalhava no cais. O Paulinho era vigilante da guarda… guarda noturno de Santos, que era ali na Conselheiro Neves. E a Cecília tinha… estava grávida do filho mais velho dela, o Sandro, que é meu afilhado. E aí eles falaram que não iam cuidar das crianças, que os filhos não eram dele. Botaram a gente num caminhão de mudança e levaram a gente pra São Paulo e largaram na porta da casa dela. Ela morava num quarto e cozinha com um cara. Tipo assim: ela estava começando um novo relacionamento. E aí foi um perrengue, foi bravo, foi punk. A gente saiu de um apartamento com dois quartos, sala, cozinha, banheiro. Eu me sentia classe média baixa, pra ir morar num quarto e cozinha, numa bagunça, num perrengue. E dali foram tempos difíceis, bem difíceis, bem difíceis mesmo. Mas levamos, né?
(25:24) P/1 - Como foi vir pra Santos pela primeira vez? Você era pequeno, mas você tem alguma lembrança de Santos?
R - Assim, dessas mudanças todas, eu não entendia nada, eu não tenho tanta lembrança, só de coisas pontuais. Mas quando eu tomei consciência mesmo foi desta vez que nós viemos. Eu tinha dez anos, eu completei dez anos. E aí, ele… não, dez não, é… dez anos. Não, não, nove anos, nove anos. E aí, ela… aí eu já entendia mais as coisas. E começava a perguntar, questionar. E a gente não tinha muito esse direito não, de perguntar nada, nem de botar o dedo na cara e falar: “O que está havendo?” Não tinha, não. A gente aceitava. Só que ela viu que eu já estava maiorzinho e que eu já… eu fui pra praia sem permissão. Isso me causou sérios problemas. De castigo, tal. O couro comeu. E a minha irmã foi pra Salvador, a Cristina, e não voltou, ela ficou muito zangada, ela tinha uma proximidade muito grande com ela. E ela foi pra passar um Carnaval e voltou só quatro anos depois, com um filho. Bem doido, a família, a família não era… ela era tão maluca que, em 1977, ela já usava as roupas da Carla Perez, em 1977. Era um inferno sair com ela. Ir pra praia com ela, não queria, não gostava, eu odiava ir pra praia com ela por causa disso. Ela era bonitona, grandona, tal. Era muito ruim, muito. E aí tinha uns conflitos. Meu irmão, o mais velho também, também era do candomblé e ele era, tinha um cargo. E às vezes isso subia à cabeça e eles brigavam muito, muito. Aí ficavam sem se falar, aí só voltavam a se falar no Dia das Mães, Natal, Ano Novo não, na Páscoa, essas coisas assim que, mesmo sem se falar, ele ia em casa, ele dava presente, falava com todo mundo e tal, mas não falava com ela. Era muito engraçado isso. E ela bebia, viu? Bebia, bebia bem. E, quando ela bebia, ela ficava valente, coitado do meu pai, ele apanhava pra cacete (risos). Ele apanhava muito. E essa parte aí foi bem complicada na nossa vida. Hoje, acho que é a Malu, a Maria Luiza, ela tem, guarda mágoas até hoje desse período aí, que foi… ela não aceitou. Eu, pra mim, tudo era festa. Mas pra ela não, ela cobrava porque o padrão de vida caiu e não tinha mais o meu pai. E minha mãe ‘se virava nos doze’. E ela conseguia muita coisa, fazia muita coisa. E eu tenho um problema, que é, vamos supor: ela sempre deu presente pra todo mundo. Todo mundo foi no aniversário, ganhava presente. Meu aniversário é 21 de dezembro, então se tornou muito pesado pra ela me dar um presente bom no dia do meu aniversário e depois tem o Natal. Aí ela falava: “Ó, vou te dar no Natal, você vai ganhar o melhor presente” (risos). Eu achava isso maravilhoso. Tive brinquedos, essas coisas, nossa! Por isso que eu me achava rico, porque eu tinha de tudo, tudo que lançava eu tinha. Meu próximo presente seria um ferrorama... não, o ferrorama eu já tinha. Seria um autorama. Aí, mas a casa caiu e não teve, isso aí ficou pra depois. E isso aí me marcou muito: o fato dela sempre cumprir a palavra, ela falava: “Ó, não tem. Vocês vão pra praia, vão. Não tem sorvete, não me peça, não faz eu passar vergonha”. Estilo Rochelle, mesmo. E aí a gente obedecia. Queria mais era estar na praia. E aí essa parte foi legal, bem legal. Quando...
P/1 - Como era essa parte de ir pra praia? Vocês visitavam o Centro, como era?
R - Não, não. Eu tenho a… não sei se a minha irmã, que ela que guarda as relíquias de família. Mas foto no leão eu tenho. Foto nas bandeiras lá, tenho. Então quando a gente ia, era uma festa. Era… a gente não ia muito, mas sempre que ia, era um evento. A preocupação dela, eu hoje, eu… se eu não tiver cem reais, eu não levo uma criança na praia, não vou na praia. Aí eu fico imaginando, ela não tinha e ela levava seis (risos). Não estava nem aí, a Ana Costa eu conheço de cabo a rabo, porque de tanto ir… quando morava na Treze de Maio, a gente pegava a Ana Costa ali e ia embora. Sabia que ia sair na praia e ia embora, estava nem aí. E brincava, catava conchinha. Não, eles chamam de vôngole. Ó, prato chique! Você vai comer um prato de vôngole hoje, você paga uma baba, oitenta reais. A gente comia com arroz (risos). Pegava lá na praia: “Não, vamos pegar isso aqui. Calma, você vai ver”. Fazia lá em casa com arroz, nossa, era uma maravilha! Então a gente se virava muito, nesse aspecto aí. Em São Paulo não tinha muito disso. Não tinha praia. Divertimento era perto ali do bairro, então não tinha essas saídas. Tanto é que as festas eram do candomblé. Quando tinha os toques, que a gente ia quando tinha os toques, aí que a gente ia se divertir. A gente ia pra se divertir, não estava nem aí com religião, não estava nem aí com nada. Aí eu ia lá, fazia um ‘agazinho’ no atabaque, tocava um pouquinho, saía. Aí assim foi.
P/1 – E você lembra a primeira vez que você entendeu, em Santos, que a cidade tinha um porto, a primeira lembrança? É que seu irmão trabalhou lá.
R - É, só disso que eu lembro, ele… eu ia muito na rampa do mercado, na catraia. Foi ali que eu aprendi a nadar. Minha mãe mandou eu ir no mercado comprar peixe (risos). Eu vi os meninos pulando ali, eu fiquei parado lá acho que horas. Aí meu irmão foi me buscar. “O que você está fazendo aqui, seu doido?” E eu perdi a noção do tempo, vendo as crianças brincar. Aí a primeira oportunidade que eu tive, eu corri pra lá e eles pulavam ali, aquela água limpa, maravilhosa, cristalina, eles pulavam ali e aí eu fui, pulei, mas ninguém me avisou que não dava pé (risos). Eu quase me afoguei. Veio um cara catraieiro, me tirou. E aí me deixou na margem lá, eu respirei e aí eu fui de novo. Falei: “Não, eu vou de novo”. Aí fui, aí vi como eles se comportavam, se mexendo, pra não afundar, fiz também e aprendi. E aí fiquei. Então a gente atravessava só por brincadeira, por diversão. Subia na catraia e ia pro outro lado, depois voltava. E quando a gente passa ali, atravessa pelo cais, que é o lugar que eu trabalho hoje, que a gente passava ali, tinha umas escadas e os estivadores subiam por ali, pra ir pro armazém dezenove, pra ir pro quinze. Era mais perto do que ir até o final e depois ter que andar tudo. E eu via aquilo, achava da hora, os achava ‘007’. Porque eles iam com a catraia andando, o cara diminuía e eles se penduravam na escada e subiam. Aí meu irmão fez eu pegar uma vez, assim: “Tem que ser rápido, vamos, vamos, vamos, vamos!” Nossa, aventura. Achava aquilo o máximo. Aí, hoje, você fala: “Nossa, se uma criança fizer isso, acho que cai o mundo”. Mas naquela época não tinha isso não, era bem mais à vontade. E ele era pirata do cais. Ele roubava as coisas no navio, tudo, tudo, tudo. Ele chegava em casa com bacalhau. Teve uma vez, ele chegou, era época, frio, ele com uma jaquetona, aí ele: “Tranca a porta, tranca a porta!” Aí eu tranquei. Aí ele abriu a jaqueta e começou a tirar um monte de coisa. Eram chaveiros que não tinha aqui. A gente chamava de gato, aqueles que você engata assim. Um monte, um monte, um monte. Falei: “Meu Deus, o que…”. E levava pra escola. Aí eu achava aquilo encantador. Mas não era, aquilo era crime. Ele chegou a ir preso. Ficou cinco anos preso aí, no primeiro distrito, que era presídio. Na parte de cima era presídio.
34:46 - 35:09
Esses chaveiros eram dourados, bonitos. E eu não sabia nem que era um chaveiro. Eu peguei uns quatro, cinco, levei pra escola. Aí ficava desfilando com aquilo, não sabia nem o que era. E aí eu… ele, às vezes, estava contando, eu fingia que estava dormindo, ou estava do lado, assim e ele não percebia e ele contava as coisas que acontecia. Eu achava aquilo o máximo. “Não, porque a gente vinha com a… e sobe pela corda”. Eu ficava: “Meu Deus, que daora!” Mas eu não tinha uma… quando eu entrei, que ele me levou uma vez lá no costado, onde o navio fica. Eu falei: “O que é isso?” Enorme, gigantesco, não tinha noção. Achava um barco grande. Não, não era. Era assustador. Era grande demais. E aí teve uma vez, eu falava que eu ia, que um dia iria pilotar aquilo ali. E aí ele pegou e levou, me levou num barco da Marinha, que era biblioteca. Ainda existe esse barco. E aí era… eu falei: “Ah, finalmente”. Não era tão grande, mas eu ia entrar em um (risos). Foi menos de vinte minutos pra eu começar a passar mal, ficar verde e vomitar (risos). A minha mãe ficou muito brava, ela ficou numa fila enorme e, quando entrei, comecei a passar mal com o balanço e tive que sair. Aí ela: “Você vai ser marinheiro coisa nenhuma, Deus me livre, que vergonha!” Aí lá fui eu, pra casa, frustradão. Deixa eu ver, dessa época, assim, do cais mesmo, é isso. Ah e aí teve uma vez que ele me levou, eu acho que ele ia cobrar alguém e ele tinha que ficar comigo e ele me pegou e me levou. Acho que eu tinha uns dez anos, dez, doze anos. E lá tinha… hoje são containers de lanche, uma lancheria é um container. Mas, na época, não era, era umas casinhas. E ele falava assim: “Não, nós agora vamos comer peru com ovo”. Era mortadela com ovo. E bem, aquele bagulho bem gorduroso, bem… eu achei aquilo uma… eu me achava. Eu usava as roupas dele, ele tinha umas roupas estilosas, umas calças grossas, umas jaquetas, touca… aí os caras olhavam assim: “Olha, o que é isso aí? É mini estivador?” (risos) Que eu sempre fui... ele era grandão, ele era muito grande, acho que tinha 1,95 ele tinha. Mas, na adolescência, eu já era um pouco mais comprido, então eu colocava, dobrava, não estava nem aí. Usava as… eu calçava quarenta, as botas dele eram 43, eu calçava pra sair na rua, pra mostrar pros meus amigos que eu ia ser estivador. Só que depois eu desencanei disso. Mais velho eu desencanei de ser estivador. E muitos dos meus amigos, todos eles falavam: “Eu vou ser estivador. Não, eu vou trabalhar na estiva. Não, eu vou ser carteira preta. Não...”. A maioria deles, todo mundo: “Não, vou ser estivador”. Ele… Eu trabalhei no Camps e eles tomavam conta de carro na Praça Mauá. E eu ia, no sábado, tomar conta de carro na Praça Mauá. E eles: “Não, tu não pode vir aqui, tu trabalha, tu tem emprego, tu não pode vir aqui roubar o nosso trabalho” “Não, eu vou, sim”. Aí lá a gente ficava falando sobre isso. Aí, às vezes, a gente via os barcos, navios passando e tal: “Não, um dia eu vou estar ali, eu vou estar lá e tal”. Hoje, vamos supor, 30% concretizaram isso, sendo estivadores. Trabalham… uns trabalham no Ogmo, outros trabalham em empresas que prestam serviço lá. Poucos viraram, que nem, eu sou motorista de caminhão, mas opero máquinas também, empilhadeira, pá carregadeira, tudo essas coisas. Poucos conseguiram fazer isso. Mas a maioria mesmo ficou como estivador, como ensacador, essas coisas, fazendo carga. Estivando. Mas era bem legal, bem bacana mesmo.
P/1 - Voltando um pouquinho no tempo ainda, aí depois a gente vai passando…
R - Tá, tá bom.
P/1 - ... mas voltando um pouquinho, qual é a primeira lembrança que você tem da escola?
R - A escola. Eu estudei no Malaquias, que é, agora, outro nome. Nem tem mais escola lá. Sete de Setembro com a Senador Feijó. Agora, é de ensino médio. Pô, foi bem legal, cara, foi muito bom. Eu me dei bem porque, quando eu entrei na escola, eu já sabia fazer o a, e, i, o, u e escrever meu nome. E eles… quando entrou lá, fazia ondinha, fazia… eu falei: “O que é isso aí?” Aí ela, a professora viu meu tamanho, falou: “Ah, tu é repetente”. Eu falei: “O que é isso? Não sei nem o que é, devo ser”. Aí ela falou assim: “Você sabe fazer o a, e, i, o u?”. Falei: “Sei”. Ela deu pra eu fazer, eu fui fazendo. E, inclusive, era a cartilha, “Caminho Suave”. Até vi uma matéria a respeito dessa cartilha, que a gente usou muito. E eu sempre fui muito adiantado. Rapidinho eu pegava tudo e tal. E aí eu tinha tempo de bagunçar, então eu era muito bagunceiro. Muito bagunceiro, fazia a traquinagem dentro da sala de aula, mas se a professora me ameaçasse levar pra diretoria, eu ficava quieto na hora. Por quê? A minha mãe falou: “Se eu tiver que vir aqui, (risos) não vai ser bom pra você”. Então nunca que eu queria que ela, eu nunca… meus irmãos apanharam bastante. Eu também apanhei, mas eu me livrava de apanhar por ver os meus irmãos errando e não fazer a mesma coisa: “Isso aqui eu não vou fazer, porque ‘o couro vai cantar’”. Então, na escola, sempre me dei super bem. Aí o que aconteceu? Fui da primeira à quarta série sem repetir nenhum ano, fui tudo bonitinho, passei pra quinta. Foi quando nós saímos da Treze de Maio e mudamos pra São Paulo. Aí lá a gente não parou. Ficamos trocando de escola, de bairro. E os bairros lá são muito distantes uns dos outros. E isso me prejudicou bastante. Então eu perdi uns três anos do ensino por causa disso. Isso me prejudicou quando eu voltei pra Santos, pra Brás Cubas, que era na mesma quadra da escola. E quando eu cheguei lá, todos os meus amigos que ainda estavam lá, já estavam na oitava série. Estavam bem adiantados. E ninguém entendeu nada. “Mas como? Você era…”. Vai, eu era o “top cinco”. Sempre tirava as notas boas, estava sempre ali, no bolinho dos que eram bons na escola. E aí ninguém entendeu nada. Eu falei: “Ah, não é que eu repeti, eu não ia pra escola, ficava numa escola dois meses, depois mudava pra outra, não me adaptava, mudava já pra outra, aí eu fui esculhambando, largando um pouco de mão isso aí”. E isso foi o que me prejudicou bastante. Aí, essa aí, por isso que minha mãe ficava muito… ela sentiu isso. Ela viu que um pouco da culpa era dela, por não… por a gente não ter essa estabilidade de uma moradia fixa, de um lugar fixo pra ficar. E… mas sempre, na escola, sempre me destaquei, sempre fui bem, sempre gostei da escola. Matemática eu era bom, Português muito bom. Matemática, pra mim, estava bom até tirarem os números e colocarem as letras. Aí ficou complicado. Aí eu já… foi meio pesado. Mas, enquanto não… nunca tirei nota vermelha, nunca. Me orgulho disso. As meninas, eu sempre as cobrei de estudar bastante, falei: “Vocês podem ser o que vocês quiserem na vida de vocês, mas vai ter o ensino médio lá, completinho, que aí você: ‘Ah, quero fazer faculdade tal”, parte dali. Você não precisa correr atrás de um prejuízo, que nem eu tive que correr, isso é mais complicado, você perde muito tempo”. E aí você não tem mais a mesma cabeça. Depois, quando eu voltei a estudar, foi horrível. Eu não tinha mais saco pra estar em sala de aula. Minha cabeça era outra. E aí foi complicado pra caramba. Terminar os estudos, pra mim, foi muito complicado. Mas eu tive a necessidade, pra poder crescer profissionalmente, pra poder fazer as coisas que eu precisava fazer pra… hoje eu ainda penso em fazer faculdade. Agora que eu vou ficar livre das minhas filhas, elas vão… aí eu, acho que eu, quem sabe, né? Eu torço muito, eu rezo… está casada. Tem uns dois anos de atraso, mas que a Eduarda não me ouça. Mas, aí eu, talvez, eu até faça uma faculdade aí. Mas em matéria de escola, sempre fui bom.
P/1 - E tinha alguma professora ou algum professor que foi marcante na sua história?
R – Nossa! Até hoje eu me lembro da minha primeira professora, do primeiro ano. Até hoje. Dona Denise. Aí no segundo e terceiro foi Maria de Lurdes. A quarta série foi um arraso, que entrou uma professora doida lá, Dona Geni, bem na época da música, bem na época da música. Quando eu li aquilo, eu comecei a rir e todo mundo: “O que foi, o que foi?” Eu falei: “O que foi, vocês vão ver quando chegar na classe”. E ela foi lá na lousa e escreveu: “Meu nome é Geni”. Aí, alguém gritou: “Joga pedra na Geni”. Ela virou e jogou o apagador. Falei: “Essa é a professora, a melhor professora do mundo”. Tanto é que ela, depois, virou diretora da escola. Depois, quando eu voltei a estudar lá no Malaquias, ela era diretora. Muito, uma pessoa muito bem-conceituada. Aí teve uma professora, na quinta série, de Matemática, que eu me apaixonei por ela. A mulher era linda, uma loira linda, maravilhosa. Agora, nas séries mais altas, eu não tive professor... vamos supor: acho que você quer saber é na adolescência, né? Entrando pra fase adulta, o professor, ele tem uma… como é que eu vou dizer? Influência muito maior sobre o aluno, que não é mais uma criança. Então ele começa a moldar aquele aluno pra ser um homem, pra ser uma pessoa boa, de bem. Aí alguns adolescentes se apegam ao professor. Não, eu não tive. Eu, quando vim concluir os estudos, eu já era um adulto, então ninguém me influenciou, nenhum professor me influenciou. Mas na infância, só boas coisas, só tive bons professores.
(46:25) P/1 - E como seguiu a sua formação, depois que você voltou pra Santos?
R - É, então. Aí eu fiquei… vieram muitos sentimentos. Principalmente o de vergonha, porque eu já era mais velho, estava numa classe que não era compatível, sexta série. Não era compatível. Eu já tinha idade pra trabalhar e aí eu mudei do… dali da Brás Cubas, para o Marapé e no Marapé entrei numa escola que era horrível, o Colégio Brás Cubas. Ele era muito ruim, era muita bagunça. Não me adaptei. Aí comecei a ir muito pra praia, surfar. Comecei a ter problemas pra arrumar emprego. Entrei no Camps, consegui entrar no Camps e não fiquei muito tempo. Acho que eu fiquei um ano só, no Camps. Aí saí, não quis mais voltar e comecei a pular, ‘fazer bico’ aqui, ‘bico’ ali. E aí veio, com dezessete, a fase do quartel. “Ah, ninguém vai pegar”. Nossa, eu me apeguei tanto nisso. “Ah, ninguém vai registrar, porque tem dezessete anos, vai pro quartel”. O que meu irmão fez? Arrumou pra eu carregar saco, no cais. Aí foi a primeira vez, primeiro trabalho meu no cais, com dezessete anos, carregando saco de café, sessenta quilos. E ele falou assim, ó: “Se você rachar, eu racho você no meio”. Eu nem entendi o que era. É quando a pessoa, o cara não aguenta o trabalho. A pessoa vai pra um trabalho, tem que carregar quinhentos sacos de… aí quando chega em trezentos, o cara pede arrego: “Não, não aguento mais, vou embora”. E não recebia. Não recebia. E aí eu lembro, o primeiro emprego que ele pegou, fez eu… eu carreguei, carreguei, a carreta não acabava nunca, um monte de cara. E eles perturbam. Os novatos são perturbados. Era chinelo, calção, sem camisa. Botava uma bola. Alguns ainda fazem isso, pegam uma bola e a dobra e põe na cabeça e não fura a fila, não, fica no teu lugar na fila, não vai ficando pra trás, não. E eles ficavam te apertando. E eu só lembrava disso: “Se eu rachar, ele vai me matar, se eu rachar, ele vai me matar”. Entrou três pra fazer esse trabalho, novatos. Os dois não aguentaram. Teve um que teve um problema sério, que ele estava de correntinha e o saco foi nas costas dele e deixou o pescoço dele em carne viva, ele foi embora. “E aí, você vai rachar?” Aí que eu entendi o que meu irmão tinha falado. “E aí, vai rachar também?” “Não, não, eu não vou rachar nada”. E tome. Fui embora. Lembro que o trabalho foi ali no quinze e eu fui embora pro Marapé a pé, porque eu não conseguia tirar a camisa pra tomar banho e eu não ia entrar no ônibus todo sujo. Fui a pé. Peguei a João Pessoa toda, túnel, Santa Casa, Canal Um, fui pra casa, porque eu não aguentava tirar a camisa (risos). E vários trabalhos, não era… não… pegou um, mas como era, chamava de gato, era uns caras que pegavam os trabalhadores avulsos e mandavam lá. Aí, como eu passei no teste, ele me levou pra parede. E, naquela época, a parede era assim: tinha os carteiras, os aposentados primeiro, pegavam os melhores trabalhos. Depois os carteiras pretas, eles levantavam lá… na verdade, o cara ia pra pegar os trabalhadores, já iam com várias na mão. Aí eles pegavam mais cinco, seis. Aí depois iam os senhas, que era quem tinha uma carteirinha. E, por último, o pior dos trabalhos que tinha era pros carteiras brancas, você levantava a carteira de trabalho e aí pegava. Eu cheguei a pegar alguns. E aí você tinha que fazer um número de horas na carteira de trabalho pra ter direito à senha. Aí depois de três mil horas de senha, pra ter direito à carteira preta. Então era bem difícil. E dava pra fazer na raça, mas era muito difícil. Porque, quando tinha bastante trabalho, tudo bem. E quando não tinha? Chegava, você ia cinco, seis vezes e não conseguia nada. Pegava primeiro os caras mais graduados lá. E aí aquilo era complicado. E aí eu consegui pegar alguns, ainda. Depois, já mais velho, eu vim com dublê. Na minha época, era dublê que chamava. Alguém que tinha carteirinha, mas o cara tinha um emprego e ele dava a carteira pra que eu fosse trabalhar no lugar dele. Eu ficava com o dinheiro e ele ficava com a contribuição. Trabalhei bastante, vi coisas, ali, terríveis. E era bem difícil, era bem complicado. Você tinha que manter o nível, manter o foco e ficar… e o meu irmão, apesar de ser pirata, sempre me instruiu de maneira lúdica, de maneira bem: “Não faça nada disso, que eu arrebento sua cabeça. Não, eu vou falar pra mãe”. Ele falava assim, que era pra eu ficar longe das coisas que ele fazia, bem longe. E aí ele falava: “Ó…”. Ele arrumava o trabalho e os caras olhavam assim - todo mundo o conhecia - pra ele: “Não, não, meu irmão é limpinho, pode…”. E ele falava: “Não me faz passar vergonha, hein!” Aí eu ia lá e trabalhava direitinho. E isso foi até, até os dezoito. Aí quando eu voltei, eu trabalhei na loja, na Tropical Aquarium, a loja de peixe, ali da João Pessoa. Trabalhei um tempo ali. Depois trabalhei numa loja de móveis que tinha na Praça Mauá. Também trabalhei acho que um ano, um ano e pouco, depois na fábrica de transformadores. Aí, isso tudo antes de casar, antes de conhecer a ngela, minha esposa. E aí foi… essa parte aí era punk também. Porque a minha mãe cobrava. Ninguém ficava dormindo em casa até tarde. Oito horas ninguém na cama. “Vai levantar, vai procurar emprego”. E, na minha época, a gente tinha que sair pra procurar emprego. Quando a minha filha... fala: “Vai procurar emprego” “Acabei de fazer uma entrevista” “Mas você não saiu nem de casa”, está com roupa só daqui pra cima. “Acabei de fazer uma entrevista agora, de emprego”. Falo: “Nossa, minha mãe tinha... ela ia ter uma síncope” (risos). Você enviar um currículo por e-mail, pelo WhatsApp, nossa, não! Aí ela dava um dinheiro só, uma condução só. E eu escolhia, ou eu ia de ônibus, ou voltava de ônibus. E passava de loja em loja, deixava o currículo. Ou então, eu conheço todos os números dos meus documentos, de tanto preencher ficha. Ia na Mazzini, todas elas, que tinha ali no Centro. A gente ia lá, tu sentava e preenchia ficha deles. Tu não entregava currículo, você preenchia a ficha deles. Então pra não tirar o documento toda hora, eu gravei o número de tudo. E ela punha a gente pra... eu, o João, a Malu, todo mundo. “Vão procurar emprego, aqui vocês não vão ficar coçando, não”. Tome procurar emprego. Aí, às vezes achava, às vezes não procurava tanto. E ela falava, ela tinha, conhecia muita gente no Centro, “Ah, eu vi o seu filho lá, estava, nossa, ‘mó’ bonitinho, entregando currículo, perguntando pra todo mundo”. Aí ela: “Ah, que bom! Pensa que eu não tô de olho em vocês? Eu tô aqui, mas eu tô de…”. Na época não tinha o WhatsApp pra caguetar a gente. Mas tinham as vizinhas, as tias, tinha todo mundo que ‘entregava’. Ah, esse negócio de pegar bolota, trólebus, se pendurar no trólebus, nossa! Fui visto, quando eu cheguei em casa, ela já estava me esperando. “Que conversa é essa de…” (risos). Eu falava: “Meu Deus, a notícia chega primeiro que eu”. Era terrível, era foda, era complicado… era assim.
P/1 - Com quantos anos?
R - Pode falar. Pode perguntar.
P/1 - Pode falar.
R - Não, isso aí… não, então, é que a gente aprontava um monte. Então ela tinha que estar em cima, pra não perder de vista.
P/1 - E com quantos anos foi essa experiência, esse primeiro trabalho no cais, no porto?
R - Eu tinha dezessete, dezessete anos. E é complicado, porque eu faço aniversário em dezembro. Então é o ano inteiro de... (risos), tem isso. E ali eu trabalhei, não fiz muitos trabalhos ali, não. Eu só… aí, ali, era tudo, era ‘bico’. Não tinha aquela preocupação, não tinha muita responsabilidade. Aí, eu só vim trabalhar mesmo, com carteira assinada e tudo mais em 1994, 1995, numa empresa que não existe mais, a Estinave. Era na São Francisco. Ali que eu pude subir em navio, eles forneciam empilhadeiras e exaustores. Porque a empilhadeira a gás, no porão do navio, ele tinha que ter um exaustor pra não estar acumulando muito gás lá e a minha função era engatá-los, pro guincho colocar no navio. Aí desengatar, pro cara trabalhar, depois fazer o engate e o desengate, no costado.
P/1 - E com dezessete anos, um pouco antes, durante a sua juventude, como foi passar a juventude em Santos?
R - Ah, muito bom, adoro Santos. Santos é a minha cidade. Eu adoro. Teve um período, nessa fase ainda, que eu, quando morei na Lavapés, eu trabalhei meio período numa… não é editora… é… caraca… que faz os blocos de nota fiscal, de... caralho, como é o nome?
(57:06) P/1 – Gráfica?
R - Gráfica. Uma gráfica em São Paulo. E aí o cara era superamigo da minha mãe, por isso que ele arrumou esse emprego pra mim. E ele gostou muito de mim, só que a gente saiu de lá, mudou. E aí ele falou que estava precisando de alguém pra fazer um trabalho pra ele num domingo, só dia de sábado e domingo, quando a gráfica estava fechada. Aí ele: “Pô, tenho que fazer acho que…”. Se eu não me engano, era coisa pra político. E era por fora, então ele não podia chamar o pessoal que trabalhava lá. “Você não quer vir?”. Eu falei: “Pô, vou”. E aí eu fui e aí trabalhava sábado e domingo, aí ficava a semana inteira, depois sábado e domingo de novo, ele quis uma terceira vez, aí eu falei: “Não”. E eu comecei a passar mal, não sei o que estava acontecendo, estômago, dor de cabeça. Aí ele: “Não, segura, segura”. Eu segurei, até ele me levou no médico. Tomei um soro, melhorei, consegui esperar mais uma semana, mas eu ficava no apartamento da namorada dele e ela trabalhava o dia inteiro. Eu não tinha o que fazer, era horrível, não tinha nada pra fazer, só a televisão pra assistir. E aí aquilo estava me… eu estava agoniado, angustiado. E eu vim embora. Quando eu vim embora, foi uma das primeiras vezes que eu vim de van, de lá pra cá. E, na hora que começou a descer a serra, que tem a descompressão, a minha cabeça… tem que abrir bem a boca pra… e aí eu senti, eu consegui sentir o cheiro da maresia. Era isso. Era o cheiro… Santos tem um cheiro característico. A gente que mora aqui não percebe, mas sai daqui pra você ver. Fica um tempo, dias fora, pra você ver. Eu senti muita falta daquilo. Eu senti o cheiro do mar na serra. “Você está louco” “Não tô”. E parecia que aquilo estava me renovando, me energizando, minha bateria voltando. Eu falei: “Nossa Senhora!” Aí eu desci na rodoviária, peguei o ônibus e fui pra praia. Fui pra praia, dei um mergulho e falei: “Tô em casa. Tô em casa”. E nunca mais eu quis isso, sair. Só agora, depois de velho, viajando, trabalhando com o caminhão e tal. Mas, quando eu tenho... eu fiquei em Suzano um tempo. Sabe que eu fiz? Fui pra peixaria, fiquei lá na peixaria. “O senhor quer alguma coisa?” “Não, não quero nada, não”. Ficava só andando ali, sentindo... (risos). Parece coisa de maluco, mas é. E ali eu falei: “Não, essa é a minha cidade, o meu local”. Gosto de São Paulo, adoro visitar, lá é bem agitado, tem de um tudo. Adoro subir a serra à noite, descer, mas morar, não. Nunca mais eu moro em São Paulo, nunca mais eu largo minha Santos. Adoro. Inclusive, eu vou fazer uma tatuagem, vou cobrir essa, fazendo a tatuagem do canal, de como era. Eu falo que é o símbolo de Santos. É minha cidade, adoro tudo, tudo aqui, tudo, tudo. Com exceção dos bailes funks, lá na ZN, o resto eu gosto muito. Futebol na praia, sabe? Campeonatos que tinha. Hoje tem bem pouco, mas tinha muito campeonato. Eu era ‘rato de praia’. Eu não falo com muito orgulho, mas é um registro que eu tenho que fazer: naquela época, dos dezoito, dezenove, eu não tenho nenhum registro em novembro, dezembro, janeiro e fevereiro. Só depois eu fui olhar isso. Olhando minha carteira profissional, as carteiras, porque eu tive três. Então eu olho assim, eu falo: “Pô, mas cadê, não tem registro”. Não, era verão, eu só queria saber de ir pra praia. Praia e bola, praia, praia. E eu tinha cabelo, muito cabelo e eles viviam com a ponta queimada, porque eu não saía da praia. Era muito bom, areia, ficava o dia inteiro na praia. Então eu gostava muito de jogar bola na praia. Nunca fui bom de bola, mas sempre joguei muita bola. Muito. Tudo, tudo. Sonrisal, jacaré. Ô, até hoje eu tenho… as meninas dão risada… eu tenho uma pranchinha assim, que você põe na mão e tchuc, thuc, tchuc, tchuc. Adoro, adoro. Tô nem aí. Pessoal: “Tu é velho, tu não tem o…” “O quê?” Às vezes é o que me salva, o que me desestressa mais. Hoje em dia é baralho e praia, baralho e praia. Aí…
P/1 - E você teve…
R - Pode falar.
P/1 - Eu ia te perguntar: você teve que servir o Exército?
R - Sim.
P/1 - Como foi?
R - Punk. Servi na Praia Grande. Mano, é uma vida de louco, você quer saber? (risos). Quer? Lá eles pegaram 110, 115, ficaram com cem. E eu era voluntário. A minha mãe falou: “Você é voluntário”. Aí eu: “Tá bom”. E engraçado, cinco irmãos, só eu servi. Dois, os dois mais velhos não serviram e os dois mais novos também não serviram. Só eu. E quando eu fui fazer a apresentação, foi na Portuguesa. E lá já… o negócio já começou torto lá. Porque eu cheguei lá às seis e meia da manhã e só saí de lá às quatro horas da tarde. E aí: “Não, vocês vão…”. Aí eu falei: “Por que me mandaram pra Praia Grande”. Tinha o BC aqui na época, tinha o BC, hoje é Bio. Aí: “Não, você vai pra Praia Grande”. Aí fui pra Praia Grande. A primeira semana, primeiro dia, eles colocaram a gente lá e falaram: “Ó, cortem os cabelos, hein!” Falei: “Não, faz isso, não” “Não quero ninguém cabeludo aqui não, não sei o quê”. Aí eu fiquei com raiva e passei a máquina um no cabelo. Meu cabelo era enorme. Eu puxava assim, vinha aqui. Cacheado, enorme. Parecia o Rafa, da Malhação. Aí eu fui, meti com raiva, passei a máquina. Mano, foi a melhor coisa que eu fiz. Todo mundo que estava, que voltou pra lá no outro dia cabeludo, eles passaram a navalha... passaram a máquina, só um passe, ou aqui, ou assim, do jeito que eles queriam e agora vai. E ficaram o dia inteiro daquele jeito. Aí fizeram uma seleção lá, pra tirar os inaptos e eu fiquei. Minha mãe falou que lá eu ia tirar minha habilitação, não tirou nada, que lá eu ia aprender a atirar, tive pouca… lá, o que a gente aprendeu foi a enrolar no trabalho e faxinar o quartel. Eles só queriam os soldados lá pra isso. E dei muito trabalho lá, fiquei muito detido, porque eu era respondão, aí eu me dava mal. Quando… não sei se você assistiu Tropa de Elite. Sabe aquela cena do strategi, estratégia? Aquilo lá acontece de verdade, cara. Dez horas da noite, você acordou às quatro da manhã, você está morrendo de sono, eles estão dando instrução que você não está ouvindo. E quem dormia ia pra cachoeira. Meu apelido virou Cachoeira, porque ou eu estava dormindo, ou eu estava rindo dos outros. Aí tinha uma calha quebrada, chovendo, a água… “Tá dormindo, vai lá, acorda, vai pra cachoeira”. Aí lá ia eu pra cachoeira. Aí tinha time de futebol. Aí os armamentos, nossa, eram da hora. Falei: “Nossa, agora vou pegar o fuzil, vou atirar”. Primeira coisa de tiro, quando foi lá pra verificar se você acertou, quantos você acertou, no meu não tinha nenhum. Falei: “Não, fiz tudo certinho, como não acertei nem na… não, não é possível, não é possível”. Aí o tenente: “Vai, já começa a pagar os cangurus aí”. Eu falei: “Meu Deus do céu!” Estou lá, aí ele vai pro cara do lado, aí ele vem: “Levanta, vem aqui!”. No do cara tinha oito. Ou seja: ao invés de mirar no meu, eu mirei no do vizinho (risos). “E agora, como eu vou saber qual é o seu tiro aqui?” Aí eu falei: “O meu é esse aqui”. Aí tivemos que fazer, repetia. Foi, tinha, tem umas histórias interessantes. Eu fiz parte da banda. Tinha lá a banda do Capitão Galileu. Como eu era de escola de samba, tocava instrumento, falei: “Pô, vou pra banda”. A banda era bem light, era bem… então eu tocava caixa na banda, era muito engraçado. E esse Capitão Galileu era um ex-combatente, esteve na Segunda Guerra e ele ficou meio surdo, porque lá é canhão. E ele ficava muito próximo, muito tiro de canhão, ele ficou surdo e já tinha oitenta e poucos anos, na época. E ele era capitão e ele era louco da cabeça. E aí ele levava a gente pro Centro da Praia Grande lá, lá no centrão lá, na Nove de Abril (risos). E ele gritava: “Estamos sob ataque aéreo, abriga, abriga!” (risos) E os caras que moravam na Praia Grande, se cobriam, pra não serem reconhecidos. Eu não morava lá, eu não ligava, tocava o horror. Eu: “Capitão, está vindo ataque inimigo!” E aí ele gritava, dava tiro. Os caras ligaram pro Exército e mandou o caminhão ir lá, buscar a gente: “Vem, que tem um louco aqui, (risos) dando tiro no Centro da cidade”. Também fiz parte de um pelotão especial, da Forpe, que era bem bacana, porque mexia com outros armamentos, lança-granadas, uma arma ponto cinquenta. Então a gente fazia vários acampamentos. O sargento era meio louco também, acordava a gente de madrugada e botava a gente em forma. Consegui andar de helicóptero. Teve um helicóptero lá levando um figurão e ele conseguiu que a gente embarcasse nesse helicóptero e subisse o morro e jogava a gente lá, quase me machuquei, quase quebrei o tornozelo, mas voltamos todo mundo feliz e tal, foi bem bacana. E agora, há pouco tempo, uns cinco, quatro anos atrás, a gente se reencontrou, esse negócio de Facebook, eles criaram um grupo e, dos cem, a gente conseguiu achar setenta e poucos. Aí descobrimos que alguns morreram, aí nem todo mundo se deu bem, teve uns que entraram pro mundo da droga, entraram pro mundo do crime. Mas a maioria está lá, firme e forte e a gente tem um grupo bem bacana. Se reúne, faz camisa, faz uniforme, faz viagem. A Eduarda é parte, faz parte lá do grupo. É bem legal, bem bacana. Sai de tudo lá naquele grupo, desde ajuda, doação de sangue, ajuda pra salvar cachorro que foi atropelado na rua, faz vaquinha pra comprar presente de casamento. Teve um rapaz que casou, a gente deu uma geladeira de mil e quinhentos reais, na época, uns três anos atrás. Tudo, tudo, tudo que você pode imaginar, naquele grupo tem. Aí tem cara que é dono de loja de moto. “Pra eu comprar uma moto aqui, eu não ganho o meu, tiro mil reais de cada um. Tragam a moto, que eu dou uma pras sobrinhas”. É legal porque tratam as esposas de cunhadas e os nossos filhos e filhas de sobrinho e sobrinha. É bem bacana, bem bacana. Aí, agora, ficou muito melhor, a gente é muito mais próximo, muito mais amigos. E, assim, eu tinha uma visão de um acontecimento e ali estavam vários outros e eles tinham outras visões. Quando a gente se reúne, começa a contar coisas que aconteceram dentro do quartel e coisas que eu não tinha visto, que outros viram. ‘Pagação’, é… quando a gente foi obrigado a correr, ficar correndo no pátio, até encontrar um que tinha desaparecido e o cara estava dormindo embaixo da cama. Comer grilo. Num dos acampamentos, na trilha do Xixová, eu caí e quase fui parar na ribanceira, fui parar no… machuquei o coiso, meus dedos atrofiaram, cheio de espinhos…. tive uma experiência horrível com o dentista de lá. O que mais? Era doido, era doido, muita coisa, muita coisa aconteceu ali. Mas foi gostoso. Na época eu não gostei. Mas, hoje, vendo tudo que eu passei ali, tudo que eles ensinaram, porque o que eu queria era aprender a atirar, aprender a dirigir. Eu até quis, na época, seguir carreira lá e tal. E aí eu não via respaldo deles, eu achava que eles eram, deixavam a gente muito largado. Mas hoje eu entendo o que eles ensinaram pra gente: a serem mais retos, a prestarem atenção nas coisas, a ser mais companheiro, a não ver uma pessoa em dificuldade e deixar. Eu não consigo, hoje, ver um amigo estar… minha mulher até fala: “Você se intromete muito na vida dos outros. Você quer ajudar todo mundo”. Mas não é, se eu não fizer aquilo, eu não durmo. Se eu: “Marcos, tô vendendo isso aqui” “Não, não sei, eu não quero comprar, não, mas espera aí que eu vou ver se tem alguém que compra”. Eu fico ali, vendendo aquela coisa que a pessoa precisa vender, porque precisa do dinheiro. Aí alguém quer, mas não tem dinheiro. Aí eu vou lá e pago pra poder aquela pessoa depois me dar o dinheiro. Mas isso não é muito legal. Você acaba arrumando um monte de confusão desnecessária. Mas isso eu acho que eu peguei de lá, de você não ver alguém em dificuldade e deixar, é muito triste isso. Aí foi bem…isso também, a fase que eu passei lá me ajudou a ser mais responsável no trabalho. Eu era bem largado, eu não estava nem aí com nada, eu ia embora do trabalho: “Quer saber, não quero trabalhar, não”. Ia embora, largava lá, não voltava pra receber, nem nada. Só ia embora, não estava nem aí. Mas depois do Exército, não. Eu comecei a dar mais valor, eu comecei a ser mais responsável, comecei a não ser tão doido. Eu xingava. Eu tinha medo da minha mãe, do resto eu não tinha. Ah, policial vinha: “Ah, que eu vou te bater”. Eu: “Vai bater, vai bater o quê! Você não bate que nem minha mãe (risos). Você não sabe bater, minha mãe que sabe bater”. Aí, agora, falava assim: “Ah, eu vou falar com a sua mãe” “Não, espera aí, não, não vai, não. O que tem que fazer, pra tu não ir, não vai, não”. Então, mas aí foi onde melhorou. E com o nascimento da minha filha mais velha, também. Aí foi que…
P/1 - Foi nessa época?
R - Não, um pouquinho depois. Mas foi nessa época que a coisa engrossou. Quando ela nasceu eu tinha 24. Aí, então, já tinha saído há quatro anos e tal, mas nessa época o caldo engrossou, mesmo. E aí acho que foi que eu fui moldado do jeito que eu sou hoje: chato, cobro, fico em cima, mas de boa, assim. Eu acho que eu tenho uma boa comunicação, então fica tudo muito mais fácil. Por exemplo: se eu chego lá no trabalho com a cara virada, eles já sabem: “Ih, não está bom, nem fala com ele, ih!” Eu não consigo disfarçar, eu não consigo mudar. Não tô bem, você vai saber na hora que você bater o olho em mim. Isso daí me atrapalha. Chego em casa bravo: “O que foi, o que está pegando?” “Não, nada”. “Nada o quê? Fala aí, pode ir falando”. E não para, até eu abrir a minha boca pra falar. E às vezes eu não quero falar, ou não quero falar naquela hora, mas eu sou muito transparente. Se uma coisa me incomoda, você vai saber. Se alguma coisa me incomoda, você vai saber.
P/1 - Eu ia te perguntar como foi, assim: primeiro você foi trabalhar lá no cais, aí você trabalhou um pouco, que você contou, lá. Aí, desse tempo que você foi trabalhar… tipo: você parou de trabalhar lá, até 1994, o que você fez, como foi a sua trajetória profissional?
R - Ah, eu, tudo em ‘bico’. Trabalhei na feira por bastante tempo. Aí, ali não, eu ainda não dirigia. Aí um amigo meu comprou uma barraca de feira e me chamou pra trabalhar com ele. Aí eu trabalhei um período com ele, ali. Depois… isso foi 1990... espera aí, a Maíra é de 1991. Aí eu fui trabalhar num bar, eu era… na copa, num bar que tinha na Rua da Paz. A Rua da Paz era uma rua bem movimentada, com esses negócios de barzinhos e tal, já naquela época. Aí eu trabalhei, eu entreguei sacolinha na praia, pras pessoas fazerem o lixinho. Trabalhei na CET, quando a CET veio pra Santos. Que, na época, eles só queriam saber dos horários dos ônibus. Então a gente visitava todos os pontos finais, pra ver a saída dos ônibus, quanto tempo eles levavam, quanto tempo eles levavam pra voltar. Foi logo quando começou, quando implantaram o terminal. Aí a gente ficava ali no terminal também, anotando e tal. E aí eles já pediram pra ser… como se fala? Pra manobrar o ônibus. “Ah, vai ter que ter habilitação agora, tal”. E eu não tinha. Aí eu não fiquei. Em 1994 eu fui trabalhar nessa empresa do cais, que é a Estinave. Entrei como ajudante. Aí era na Cosipa. Fazia o mesmo trabalho que fazia aqui, só que lá na área da Cosipa, no porto da Cosipa. Lá tem um mini porto, então a gente atuava lá. E ali eu fiquei por um ano. E o que acontecia? Nosso container, nossa base era bem próxima e às vezes você tinha que colocar… soltava a empilhadeira e aí o cara queria que tirasse a empilhadeira dali, pro caminhão encostar e ele puxar as chapas de aço. Então tinha que tirar a empilhadeira dali e às vezes não tinha operador. Mas eu era, sempre fui muito curioso, eu ficava vendo como os caras faziam. Aí eu falei assim: “Eu vou tirar. Espera aí, é só apertar aqui, aqui, aqui”. E saía arrastando a patola, tudo errado. Mas tirei, pro caminhão poder ir. Aí o cara falou assim: “Mas…”. E o cara olhou e viu a marca no chão. Aí ele olhou pra minha cara e falou assim: “Marcos, você tirou a empilhadeira” “Ah, o cara mandou tirar, que senão eles iam mandar multa, que não sei o quê”. Aí ele: “Tá bom, mas quando tu fizer isso, levanta…”. Aí eu falei: “Onde é que levanta?” Aí ele mostrou. Ah, pronto, pra que ele fez aquilo? Aí fiquei, comecei a mexer. E lá, quando chove, quando chovia, não abria o porão do navio, não tinha operação. Então os operadores, todo mundo ficava dentro do container, jogando baralho e eu ficava lá fora, treinando. E aí vinha uma carreta de madeira, tinha que descarregar essa carreta, que com essas madeiras que a gente separava as placas, pra empilhadeira poder pegar. E aí eles mandavam eu ir: “Ah, vai lá, Marcos, descarrega lá”. Os motoristas queriam a morte, porque os caras faziam em vinte minutos, eu fazia em uma hora (risos). Fui aprendendo, fui aprendendo. Aí essa empresa saiu, perdeu o contrato, não conseguiu renovação. E veio uma outra empresa. E o cara que era meu chefe de turno passou a ser gerente de turno, dos turnos. Ele ficou sendo responsável pelos três turnos que tinha. E ele perguntou: “Marcos, quer ser operador de empilhadeira, quer ficar como operador de empilhadeira?” Falei: “Lógico!” “Então, vai tirar habilitação”. Precisava ter. Justo quando foi a minha vez, tinha que ter habilitação. Lá tinha caras, os melhores operadores que tinha lá eram analfabetos, não sabiam nem ler, nem escrever. Mas os caras, em operação, eram os melhores. E lá tinha cinquenta operadores, na época. E aí teve que mandar mais de trinta embora. Aí falou: “Você quer ficar?” Falei: “Quero” “Vai tirar tua habilitação”. Eu tirei minha habilitação em vinte dias. Corri. Aí o meu compadre me emprestou o dinheiro, deu um cheque lá. 190 reais eu paguei, na época. E aí eu tirei minha habilitação e entrei como operador de empilhadeira. Nossa, eu me achei… na época, o salário-mínimo era 175 reais. O salário do operador de empilhadeira era 360. Nossa, fiquei rico. E aí, nisso, a gente… eu já morava com a… fui morar com a ngela, que ela já estava grávida da segunda, nós fomos morar juntos. E aí foi quando a gente começou a crescer, a melhorar. Ali eu fiquei nessa empresa três meses, aí a mulher aqui me chamou pra trabalhar aqui em Santos, da mesma empresa que eu era, como ajudante. Ela falou: “Abriu vaga, você quer?” Eu morava na João Pessoa, falei: “Claro que eu quero”. Aí vim pra cá, aí fiquei um ano. Aí tive um problema na coluna, fiz uma cirurgia de hérnia de disco. Aí quando eu voltei, ela não me quis mais, porque as empilhadeiras eram velhas e eram muito… não tinha… hoje a gente opera, tudo muito… tem amortecedor no banco, você regula, tem até massageador, tem de tudo. Mas naquela época, o banco era duro que nem um toco de madeira. Aí ela falou: “Vai dar problema, você não pode mais operar”. E aí foi onde ela me mandou embora, em 1996. Ela me mandou embora e eu estava desgostoso já também, não queria mais. Aí fiquei um tempo desempregado. Aí lembro que foi no jornal da Tribuna, um anúncio, precisando de… como ela colocou? Aplicador. Falei: “Aplicador? Aplicador de quê?” Não entendi nada e fui lá. Aí, quando vi, era aplicador de veneno, pra matar barata, fazer dedetização nas casas, nos comércios. Aí eu fui, fiz a entrevista, passei, me dei bem. Fiquei três anos, trabalhei com ela três anos, até 2000. Aí em 2000 saí de lá. Estava fazendo ‘bico’ de segurança, encontrei uma amiga do tempo de escola e ela estava vindo de uma festa, ela trabalhava em bufê. Ela fazia os salgados, os doces e tudo. E ela pegou e falou: “Pô, tu está trabalhando aqui pra ganhar quinze reais a noite? Não, vai trabalhar de garçom. Arruma um paletó branco, que tu vai trabalhar de garçom”. Aí eu fui. Na primeira noite eu não tinha nem lugar de colocar dinheiro, de tanto dinheiro que eu ganhei. Aí eu falei: “Não, quero essa vida pra mim”. Aí fui, aí o cara gostou de mim, porque eu era bração. Carregava caixa, fazia de tudo. Aí ele: “Não, quero esse menino no próximo trabalho”. E nisso eu fui indo, fui ganhando nome. E teve um trabalho que nós fizemos no Caiçara Clube, onde eu trabalhei que nem todo mundo, só que nos vinte minutos, 25 minutos de servir o jantar, todo mundo ganhou 120 reais e eu ganhei oitenta, porque eu não sabia servir à francesa. Falei: “Não, vou aprender. Onde que eu aprendo, onde tem um curso?” Corri atrás. Aí eu fiz o curso, fiz o curso de barman e comecei a trabalhar com isso. Então, pô, ganhava muito dinheiro. Eu fiquei nessa por dezessete anos. Trabalhei em tudo quanto foi lugar. Quase todos os bufês de Santos eu trabalhei. E eu sempre fui festeiro. E, pra mim, o pessoal falava: “Nossa, você trabalha sábado, trabalha domingo, trabalha feriado, tu não está nem aí”. Não, porque eu me divertia nas festas, parecia que eu era convidado. Eu não estava nem aí. Tinha lugar que, se permitisse, a gente dançava e tudo. Os garçons faziam passinho e tudo, (risos) no salão. Era bem bacana, bem legal, eu me divertia. Aí aprendi bastante coisa de cozinha, aí fui trabalhar num bufê fino, no Four Seasons, da… que era da… era, acho que era, acho que não trabalha mais, mas a dona do Colégio Carmo, Dona Renata Gaia. Aprendi muito com ela, muito, muito, muito. Eu tenho um certo requinte culinário, que eu aprendi com ela. Haddock, salmão, camembert, brie. Tudo que você falar de... eu ou conheço, ou já estive perto. Vinhos, eu aprendi muito sobre vinhos. E me especializei mesmo. Todo mundo… meu grande careca, o pessoal dava risada: “Mas tu parece…” - quando eu punha a gravata borboleta - “juiz de luta livre, cara!” (risos). Era ‘mó’ engraçado. “Nossa, ele é tão grande, mas ele é tão delicado, tão gentil, tão cortês e tal”. Foi uma época muito boa, aprendi muita coisa, muita coisa mesmo, que eu levo pra vida. Mas também cansei. Eu vi que eu cheguei num ponto onde eu não tinha mais pra onde crescer e já não estava mais dando tanto dinheiro assim, não tinha mais tanto trabalho assim. E um amigo, encontrei com um amigo, ele falou: “Nego…”. Falei: E aí, está trabalhando onde?” “Ah, eu trabalho na Santos Brasil e tal. Pô, tu não tem habilitação D?”, porque aí eu tirei, quando eu fui renovar minha habilitação pela primeira vez, eu já troquei de letra pra D, que pode dirigir ônibus e caminhão. E ele: “Pô, vai lá, cara, os caras estão pegando a laço” “Mas está assim?”. Ele falou: “Tá. Sabe por quê? Porque entraram as empresas e elas não permitem, não querem bagunça”. O cais sempre, na minha época, era muita bagunça, muito largado. Os caras iam trabalhar bêbado, os caras bebiam no trabalho, usavam droga e aí começou a não ser mais assim, começou a ter etilômetro nas portarias, começou a ter crachá pra entrar. Não tinha crachá pra entrar. Os caras peitavam os seguranças e entravam, ia pro costado, subiam no navio. Hoje não, tem um crachá certo, tem um crachá que você vai até o costado, você não entra no navio. Tem um crachá que você pode entrar no navio, tem o crachá que você pode ir na baía, nos atracados. Então começou a ficar muito mais profissional. Aí veio o Ogmo, o Ogmo tinha toda a intenção de ser bom. Mas os péssimos administradores bagunçaram com tudo. Hoje o Ogmo é muito marginalizado. Com razão. E aí ele pegou e falou: “Ó, vem cá, eu me lembro de você, tudo, mas eu tenho que te perguntar, lá eles vão fazer toxicológico e vão pedir antecedentes criminais, tudo bem?” Eu falei: “Tudo bem” “Então tu tem que ir, porque eles estão pegando, porque não ficam, os caras não querem, eles fumam maconha, aí não passa no teste toxicológico, aí...”. Aí eu falei: “Mas está assim, mesmo?”. Ele falou: “Está”. Só que as grandes empresas não te contratam direto, você tem que passar por uma terceirizada antes. E aí teve essa daí, eu vi o anúncio, fui lá, fiz a entrevista, passei. E, quando eu fui pra lá, pra fazer a integração, nunca tinha escutado falar nisso, foi quando eu tive o choque de realidade. Preocupação com segurança, EPI. Na época, o máximo que um estivador tinha era a luva que ele trazia no bolso, só. Lá não, hoje em dia. Andava de chinelo, andava de camiseta regata, andava do jeito que queria. Hoje não. Hoje modernizou demais, hoje tem procedimentos, tem… não tem mais aquela cobrança que tinha antigamente, que assim, ó: produção acima de tudo. Era produção, você tem que produzir. Produz. Não, agora é segurança acima de tudo. Tem lá um lema, um grito de guerra, que é... toda manhã tem um DDS, que é a Discussão Diária sobre Segurança e no final todo mundo fala e o término é justamente esse: “Se não for seguro, não faça”. Então eles dão e, assim, são chatos, cobram. E, se você fizer qualquer besteira, você é tirado do terminal. E eles já falam: quando você tem uma recusa de terminal, dificilmente você volta pra outro terminal, porque eles vão puxar a ficha e vão querer saber por que que você saiu daquele terminal. E fica... são poucos. Não são tantos assim. E parece incrível, os supervisores, os encarregados, eles são muito conhecidos uns dos outros e aí pega bastante. E aí eu fui vendo, fui gostando, aí fui fazendo cursos. Eu tinha, eu era operador de empilhadeira, aí eles pedem: “Ah, tu tem que ter….” - como é que se fala? - “experiência em carteira” “Eu tenho” “Ah, mas tu tem o curso?” “Puta, eu não tenho”. Aí eu fui, fiz o curso, aí vi que está tudo diferente. As empilhadeiras que eu trabalhava eram umas dinossauras, velhas, acabadas, trongas. Hoje não, ela é toda... possui cabine com ar-condicionado, você regula o banco, você tem sensor de ré, você tem luz… câmera de ré. Uma série de coisas que facilitam e muito o trabalho. Então, hoje, por exemplo: turno de seis horas. Eu nunca tinha trabalhado em turno de seis horas. Trabalho até uma da tarde, então tenho todo o tempo do mundo pra fazer o que eu quiser. Inclusive, até ter outro emprego. Se preocupam com a segurança, se preocupam com a saúde. Diz assim ó... que nem, nunca que um encarregado ia falar isso pra mim: “Olha, se você não estiver bem, você avisa tua equipe. Olha, você não pode estar no armazém, descarregando sozinho. Tem que ter alguém lá, nem que for, que se você passar mal, é essa pessoa que vai correr e pedir socorro”. Então você sente a preocupação com o trabalhador, coisa que não tinha antigamente. E isso aí me trouxe, falei: “Pô, legal!” E eu fui me envolvendo cada vez mais e só agora eu me dei conta disso, através desse teu projeto, que, pô, meu irmão trabalhou lá muito tempo. Ele tinha carteira preta, ele quis que eu tivesse, que eu seguisse isso daí, eu não quis na época. Não me interessei, não achei interessante, não queria isso pra mim, foi um erro terrível. Hoje, as pessoas que trabalham lá que têm a minha idade, estão se aposentando, já. O cara com 55 já vai se aposentar. E, pô, o cara tem um salário de três mil reais, quatro mil reais e ele tira seis, sete mil reais. Hoje, se eu tivesse um salário desse, eu estava como? Bonito. Mas aí eu não culpo ninguém, culpo a mim mesmo. Mas eu gostei, gostei bastante e agora na pandemia também teve uma característica bem interessante que lá não parou, na verdade cresceu. Eles tiraram todos os senhores que tinham lá, sessenta anos, 55, sessenta anos, os mantiveram em casa, tantos os da Rumo, quanto das terceirizadas e pagando salário integral. Fizeram questão. E contrataram um monte de gente. Aí eu lembro que, nos primeiros meses, eles contrataram acho que uns trinta, quarenta. Aí avisou que era temporário e tal, mas na hora de dispensar, dispensaram a metade, outra metade ficou, estão lá até hoje. E, assim: sai um, entra dois, sai dois, entra dois, sai três, entra dois. Está sempre renovando e aumentando. E aquilo lá ficou chapado de caminhão. Eu não tinha noção, porque eu, com seis horas, eu só era o que eu via ali. Mas quando os caras estavam saindo de turno, eles falavam: “Ah, eu fiz 120 caminhões hoje”, que é a descarga. O caminhão vai, descarga na moega, vai pra esteira. Aí, às vezes, cai. O meu trabalho é pegar esses montes que ficam, pra depois jogar no armazém de volta. E quando o cara falou, eu falei: “Espera aí, 120 o quê? Essa semana?” Ele falou: “Não, hoje”. Falei: “Não, cara, você não…” “Pô, meu, tô te falando, fica olhando”. Antigamente, os caminhões entravam e ficavam afastados uns dos outros, até chegar a vez deles descarregarem. Hoje fica assim: um atrás, coladinho no outro, aquela fila imensa e a fila está lá na alfândega e os caminhões tudo… e, hoje em dia, eles não ficam mais como ficavam antes, dois, três dias parados lá, sendo assaltados, sem ter o que comer, sem ter onde tomar banho, tal. Não. Hoje eles vêm, através do WhatsApp: “Ó, caminhão placa tal, cheguei”. Aí eles já os colocam lá na fila, não tem... ninguém fura fila. Antigamente saía briga, facada, paulada, tudo, porque tinha um espertinho querendo furar a fila. Hoje em dia não tem nada disso. Tudo computadorizado, eles sabem de tudo, medem tudo. Muito bom, muito bom mesmo. Outro nível.
P/1 - E você trabalhou lá no começo, né? Aquela pequena experiência que você teve. Aí depois, nos anos noventa, 1994, 1996. E depois agora. Qual é a principal transformação que você percebe, de tudo isso que você falou, o que…?
R - Logística e estrutura. Logística e estrutura. Isso fez com que o cais, pelo menos ali, no setor que eu tô, tá? Que é entre o quinze e o 21, são três ruas ali, Copersucar e Rumo que dominam. Mas a gente consegue ver como que se comporta, por conta da… a perimetral é pro trânsito urbano e a rua do meio é pros caminhões que vão fazer as descargas lá. Então você percebe isso, você consegue ver um caminhão, em uma semana, você consegue ver o mesmo caminhão três vezes. Ou seja, o cara descarregou, voltou lá, carregou, voltou. Antes não, você via o caminhoneiro uma vez, você ia ver no ano seguinte, ou na próxima safra, porque era bem complicada a vida deles e hoje está muito mais fácil. Eles vêm com família, às vezes. Já peguei vários caminhões lá que está esposa, criança. Por conta disto, eles terem feito os acessos. O viaduto, onde você não depende mais da movimentação do trem. Então você só vai por cima, aí lá você pega ou a perimetral ou a rua do meio. Então os caminhões pesados vão pra cá, o trânsito flui bem, não tem mais engarrafamento, não tem mais aquele tormento todo que tinha. Eles reformaram vários armazéns, eles ficaram maiores, com uma capacidade maior. Todos eles ficaram com esteira, ou seja, o cara joga o… descarrega ali, duas, três horas depois esse produto está dentro do porão do navio, através das esteiras. Então o processo que eles criaram ali, que eu… no meu tempo não tinha essas esteiras, era bem diferente. E aí eu começo a observar e com o tempo eu fui aprendendo pra onde ia cada uma e coisa e tal. Então percebi isso, essa mudança, essa estrutura, essa logística que foi criada fez com que o porto, que o cais movimentasse melhor, muito mais rápido, muito mais prático, muito menos cansativo pra trabalhador, no geral, todos eles, tanto o motorista, ficou mais fácil até pra guarda portuária, porque todas as empresas têm segurança lá, a G8. Eles cuidam de que ninguém entre nos armazéns, o acesso é muito controlado por eles. Facilitou a vida da guarda portuária, que só faz as rondas e pequenas intervenções. Antigamente eles trocavam tiro lá, era bem complicado, era bem maluco mesmo, por isso que eu não queria, achava muito perigoso. E hoje, não. Hoje, aí, a gente ainda lida, que é bem difícil de sanar isso, mas ainda lida muito com morador de rua. Por quê? O cais é de acesso livre, só tem restrição no costado, então as pessoas transitam muito por ali. Eles tomaram várias providências, tipo: fechar, botar tranca nas portas de acesso às torres, porque disse que uma moradora de rua invadiu o armazém de açúcar e subiu na torre de açúcar e comeu açúcar. Aí, então, hoje não, hoje eles fecham tudo, tudo muito mais controlado. E os banheiros também são de livre acesso, então os moradores de rua usam o banheiro pra tomar banho e muitas das vezes eles estão bêbados, estão drogados e aí causa algum tumulto, mas muita coisa, muito pontual e que a G8 resolve rápido. E como eles têm monitoramento de câmera, logo a guarda portuária fica sabendo e já vem uma viatura, é sempre muito rápido, tudo que... esses tipos de problemas que costuma ter, é super-rápido. E 90% das vezes não acaba em prisão, muito menos em agressão ao morador de rua. Eles têm muito cuidado com isso, de orientar, de… se o cara está muito... só se o cara estiver muito alterado, aí eles algemam, levam lá pra uma sala, o deixa se acalmar e logo libera. Não leva pra delegacia, não ficha, não faz nada. Então eles mesmos acabam se comportando melhor. Eles mesmos acabam controlando os outros, que estão mais exaltados. Então essa parte foi sensacional. Eu senti bastante, eu comento às vezes, tem no DDS, eles: “Ah, fala alguma coisa aí, Marcos”. Aí eu sempre toco nesse assunto aí, pra eles darem bastante valor, porque está muito bom, nesse sentido. E me causou um certo orgulho, quando você vê: “Ah, o agro é pop”. Aí, pô, tô na ponta final ali, do agro, de você colocar o produto dentro do navio pra embarcar. Então, caraca, de uma forma indireta, eu tô lá, fazendo parte desse processo, dessa engrenagem. É bem gostoso, é bem gratificante isso, um certo orgulho.
P/1 – Quais produtos eles colocam?
R - Açúcar, soja e milho. Lá só esses três que a gente trabalha. Aí do lado tem a Copersucar. A Copersucar é só açúcar.
P/1 - Você é vinculado a alguma empresa?
R - A atual é tecnologia e limpeza. O que acontece? O meu caminhão é um caminhão que suga produto, tem uma mangueira de quatro polegadas, de quinze metros. Aí o caminhão jogou lá, cai no armazém e um elevador a puxa e lá em cima ele joga na esteira e a esteira faz com que role até o porão do navio. Só que, muitas vezes... ela é enorme, ela tem, sei lá, quilômetro. E ela é grande, grossa, tal. Mas ela pende pra um lado e aquele produto acaba caindo, até eles irem lá e regulá-la de volta, forma umas montanhas de três, quatro metros cúbicos. Aí lá dentro do porão, você não pode deixá-lo acumular, porque senão apodrece o de baixo e tal. Então todos os dias a gente visita esses locais, que sempre são os mesmos e aí os meninos descem com esse mangote, eu ligo o caminhão, ligo o aparelho e ele suga tudo aquele que caiu e aí quando enche o caminhão, eu vou até o armazém, despejo no armazém de novo pra ele ser embarcado como deveria. E aí eles fazem o controle, eu tenho que controlar quanto… não peso, mas quantos caminhões eu… meu caminhão cabe 23, não… um de quinze e um de 23 metros cúbicos. Então: “Ah, o caminhão…”, eu tenho que colocar se está cheio, metade, um quarto. Faço um relatório dizendo quanto que eu peguei ali. E aí depois eles fazem o balanço pra dizer: “Ó, o trabalho da...”, nós somos da equipe de conservação, aí sai um laudo lá, dizendo: “Ó, a conservação recuperou trinta toneladas de produtos que seriam perdidos. Aí a gente ganha lá uma pontuação, tudo. É bem bacana, é bem legal.
P/1 - Eu queria perguntar qual foi o momento mais desafiador dessa trajetória, principalmente no porto, se você consegue me explicar.
R - Eu quero, ainda, fazer um outro curso pra shiploader, que é o cara que está ali, embarcando o produto. Isso aí, além de ser dispendioso e complicado e tudo mais, eu provavelmente vou deparar com escada. E eu não sou bom em escada. E aí isso aí vai, não sei se eu vou conseguir, por isso que eu não fiz o curso ainda. Eu quero fazer uns testes. São… é bem alto, deve ser acho que uns trinta metros de altura. Tem o acesso pelo elevador, mas quando não tiver o elevador, tem que subir pela escada. E a escada faz aquele ziguezague assim e eu já tentei uma vez e eu não achei muito legal, não. Ficou meio tenso lá, pra mim. Então esse é meu maior desafio, superar isso, pra estar lá no emprego que é melhor, você vai ganhar… a remuneração é bem melhor e o trabalho é bem menor. Aí isso é uma coisa que eu ainda quero, é um desafio que eu ainda tô me preparando, me estruturando pra isso. E eu lembro que, quando eu cheguei lá na escola, eu falei assim: “Eu quero fazer shiploader” “Ai, tá legal, você tem RTG?” “O que é isso?” “Não, RTG são as plataformas tal, que até é bem fácil, você iça o container, põe no caminhão, o caminhão leva”. É pra tirar do lugar onde ele está armazenado e mandar pro costado, pra ir pro navio. E ah, falei: “Não, não tenho” “Ah, tá, então você vai ter que fazer isso” “Não, então está bom, vou fazer isso” “Mas você tem o operador de empilhadeira de grande porte?” Eu falei: “Não” “Ah, então, você tem que ter o de grande porte”. O de grande porte eu nunca tinha trabalhado com ela. Ela é diferente. Eu trabalhava com as empilhadeiras que são patolas. Você pega, levanta, leva, desce, tal. Essa não, você iça o container, você vem nela e pega. Aí é joystick, é coisa fina, olhei, falei: “Nooossaaaaa! Não, vou fazer”. Aí peguei, fiz. Aí agora o próximo vai ser o RTG. Aí eu tenho que fazer uma… só que, o que eu tenho que fazer? Fiz esse, paguei. Só que surgiu uma oportunidade, está pra sair aí pra pá carregadeira e eu não tinha. Aí eu fui, fiz o curso de pá carregadeira, que em pá carregadeira eu vou ganhar mais e vou poder pagar o curso de RTG. Aí fazendo o curso de RTG, eu tenho que ir pra lá, pegar uma prática de um ano, mais ou menos, pra depois tentar o outro. Então ainda tenho esse desafio aí. Acho que essa é a parte mais desafiadora. O que eu já fiz, o que eu já passei, ‘da hora’. (risos) Exemplo: às vezes, eu comento, eu tô trabalhando… lá eu sou, na conservação, o mais velho que tem lá. Não de trabalho, não… tem, o nosso encarregado, quinze anos lá na Rumo. Mas de idade, eu sou o mais velho, mais velho. E eu tô trabalhando com jovens, dezenove, vinte anos, começando uma carreira. Muitos é o primeiro emprego. Então eu tô ali, ó, puta, os orientando: “Não faz besteira não, moleque”. E eles, por ser o primeiro emprego, alguns deles lá ganham mais que eu, porque eles fazem bastante hora extra. Então eles acabam ganhando mais do que eu. E eu fico lá no pé deles, tipo um paizão mesmo: “Não, vai, para de sair. Ó, tu fica saindo, quando que tu gasta na balada? Cem, 150 reais? Pô, guarda esse dinheiro, vai...”, fiz um tirar habilitação. Aí eles trocaram de empresa, foram mandado embora e pegaram uma bolada. “Ah, vou fazer isso” “Você não fazer nada, você vai fazer, vai tirar tua habilitação” “Não” “Vai tirar tua habilitação, tu vai ficar batendo papo o resto da vida? Não vai, não” e tal, ‘mó’ legal. Eles não sabem fazer conta, eles não sabem escrever, tem que fazer os relatórios. Aí eu que tenho…: “Ô, Marcos, escreve”. Pô, está lá no rodapé da porta, do lado direito. “Não, mas como é que escreve isso?” “Escreve”. Aí ele fala: “Ih, lá vem o cara, caralho, tu é chatão”. Careca. “Careca, tu é muito chato” “Ah, faz lá”. Depois passa a brincadeira, aí vem no sério: “Marcos, Marcos, não, é sério agora, vamos fazer aqui, como eu faço aqui, aqui assim, assim?” Aí eu falando: “Pô, como é que eu vou fazer com a minha letra? Você que tem que fazer com a sua letra”. Aí eu os oriento bastante. Isso daí me dá uma satisfação pessoal muito grande, independente do valor do salário, tudo mais, que meu salário não é muito bom, mas em contrapartida, eu também não trabalho. Se eu falar assim: “Ah, eu tô cansado, porque eu trabalhei demais”, mentira. Só quando eu faço doze horas. Doze horas é um pouco mais puxado. Mas, no geral, é muito tranquilo, muito tranquilo. E eu trabalho com dois ajudantes. Então eu tenho, meu trabalho é subir lá, mais movimentar o caminhão, ligar o equipamento, sanar um problema ali ou outro, mas, no geral, trabalho físico, braçal, não tem. Não tenho idade mais pra isso também. Surgiu lá uma oportunidade, na Rumo. Paga melhor, é uma empresa multinacional, que te dá todo o respaldo, tudo. Só que pra bater vagão, não dá mais pra mim, não. Falei: “Não, essa eu passo” “Vai passar, negão?” Falei: “Vou passar. Põe outro aí, um jovem”. Não tem, você não precisa fazer muita coisa, mas toda vez são seis vagões que você tem que ir lá, dar marretada, bater. Os caras saem de lá como? Estragado. Pra mim não dá, não. Falei: “Não, vou passar essa daí”. Eu quero de pá carregadeira. Aí, pá carregadeira, entrando na Rumo, meu salário vai triplicar, aí eu vou ter mais cobre e tudo mais. Eu vou indo, eu sou tinhoso, devagarinho eu consigo.
P/1 - Marcos, me conta alguma história marcante do seu trabalho, seja de algum sufoco ou alguma história engraçada.
R - Desse trabalho?
P/1 – Que você lembra. É, é.
R - Sufoco, sufoco… sufoco foi quando pegou fogo lá, mas eu estava longe. Eu vi o sufoco do pessoal que estava mais próximo lá. O que acontece? O milho, o pó de milho, eu não sei te dizer o porquê, acho que deve ser por causa do óleo dele, é inflamável. Então se a coisa fica ali, girando e esquenta e faz o pó, ele fica assim ó puffffff e pega fogo, como se fosse um gás e você acender algum isqueiro. E aí teve uma hora que pegou fogo e começou a pingar, estourou, tipo pipoca e veio aquele cheiro horrível e o milho caía, mas caía em chamas. E aí todo mundo gritando, correndo. Aí chamou o bombeiro. Tem as mangueiras lá, tem todo o procedimento e a gente não podia chegar perto, ficamos de longe. Mas eu vi o desespero de quem estava perto, que tinha que operar ali, que tinha que seguir os procedimentos pra sanar aquilo lá. Isso aí foi bem, foi um caso preocupante.
Mas tem umas histórias engraçadas, do cara que... eu desço do caminhão pra operar o sistema lá e descarregar e o cara falou assim: “Ah, pô, eu vou dirigir”. E ele engatou o caminhão e foi pra cima do monte de milho. A sorte é que era um monte de milho, então ele deu… invadiu um pouco e patinou e eu corri, o tirei de lá. Aí, a cara dele foi muito engraçada, porque ele ficou cheio de milho e, quando abriu a porta, que... (risos) foi engraçado porque ele estava apavorado, desesperado. E aí eu catei, entrei e consegui engatar a ré. E aí os meninos vinham com a pá e tiravam pra eu poder passar, sair. Aí eu falei: “Agora...” - por sorte não tinha nenhum encarregado no armazém - “... você vai limpar o caminhão todinho, vai limpar”. E ele com a cara de assustado, de bonachão, foi muito… ele dirige, ele tem habilitação, mas de carro. Eu falei assim: “Não mexe enquanto eu estiver mexendo lá, porque senão tu vai arrastar produto”. Dito e feito. Ah, mana, mas eu ria, eu ria da cara dele. Aí ele: "Para de rir, meu, para de rir”. Eu falei: “Para de rir? Eu tinha que filmar a tua cara”. Mas foi punkzinho assim, mas foi engraçado. Aí, então, as coisas mais ativas não são muito agradáveis. Teve um rapaz que perdeu, decepou um dedo. E ele estava fazendo o que não devia. Tem placas lá de ferro e era pra ser sempre em dois, pra colocá-las do lado, aí eles fazem a limpeza embaixo da esteira e depois colocar as placas de volta no lugar, elas são de encaixe. E ele quis pegar sozinho. E, mesmo de luva, a placa de oito milímetros, mais ou menos, ele a colocou longe e a jogou, mas a luva grudou e foi, pegou bem na pontinha, assim, na metade da unha dele, com dedo, com músculo, com tudo. Foi. Aí eu escutei só o grito, não estava próximo, eu fico mais no caminhão. E aí eu escutei o grito e aí o pessoal ficou apavorado, eu falei: “Primeiramente para, porque tem câmera em todo lugar. Se o pessoal da segurança ver você correndo, eles já logo mandam alguém lá pra ver o que está acontecendo”. E eu não sabia o que era, eu falei: “Primeiro para, o que aconteceu?” Aí, quando ele tirou a luva, estava cheio de sangue. Aí eu falei: “Vamos pro…”. Aí o botei no caminhão e o levei pro pronto-socorro, lá tem um ambulatório. E lá no ambulatório, o cara olhou: “Tem que ir pra Santa Casa e tal”, limpou, tudo. E aí depois teve auditoria, teve investigação. E aí eles questionaram por que eu o levei e não esperei o socorro chegar. Aí eu falei: “Porque ele estava apavorado, porque ele estava sangrando e porque foi no dedo dele. Não foi na perna, não foi na coluna, não foi nada, foi no dedo, na ponta do dedo dele”. Então eu tinha que tirá-lo dali, porque ele estava trazendo pânico pra todo mundo. E aí foi… me saí bem aí, nessa daí. Quase que roda todo mundo. Porque também tem essa: quando acontece alguma coisa grave lá, eles: “Olha, por que você não avisou? Por que você não fez isso? Por que…”, todo mundo está na rua, eles mandam todo mundo embora. É complicado, por isso que a gente, eles conversam e falam: “Ó, faz certinho. Viu o companheiro, ó... quando você vê alguém fazendo alguma coisa errada, o corrige, orienta”. Por quê? A câmera está pegando, ele passou por você sem o capacete, você não fez nada, ali na frente caiu um parafuso na cabeça dele, aí eles vão te culpar também: “Pô, você viu o cara sem capacete e não tomou uma providência?” Eles cobram muito sobre isso daí. Aí o resto é baboseira de um monte de homem junto, né? Tem um monte de coisa engraçada lá, mas que acontece todo dia (risos). Um sacaneando o outro, um perturbando a vida do outro, escondendo as coisas do outro. É terrível. Lá… a quinta série impera ali, independente da…
P/1 - (risos) E quais foram os maiores aprendizados nesse período no porto, mas também na sua trajetória profissional?
R - Ó, vou falar em partes com você. Vou do início, vai. Depois que eu comecei a ter responsabilidade, isso veio junto com o nascimento da minha filha mais velha, eu comecei a ter uma visão diferente de trabalho. A respeitar os outros, a respeitar quem está ali na linha de frente, quem está comandando. Respeitar. E, às vezes, mesmo não concordando, respeitava. Depois, quando eu fui pra Estinave, em que eu deixei de ser ajudante. Até então eu não tinha essa visão de que eu podia melhorar, de que eu podia ganhar mais. Aprendi que quanto menos você trabalha, mais você ganha. Então eu comecei a me preocupar mais com isso, nesse período aí. No período em que eu fiquei, que eu trabalhei mais com a dedetização, eu tive mais contato com o público. Eu conversava com clientes, eu ia em casas, em mansões, casas extremamente chiques. Apartamentos na praia. Coisa papa fina mesmo. E eu conseguia lidar bem com isso, sabe? Eu me expressava bem, conversava com todo mundo, do porteiro ao dono da casa, com o segurança, com todo mundo. Aí quando eu fui pra parte de garçom, eu acho que eu lapidei melhor, eu fiquei melhor, com relação a ter traquejo com as pessoas. Sempre me destaquei no trabalho de garçom com isso. Tom baixo, falar bem com as pessoas, perguntar, responder, nunca deixar a pessoa sem uma resposta. Fiz vários cursos, eu tenho um curso de Aprendendo a Empreender do Sebrae, que me deu técnicas, me deu compreensão dos patrões. Eu comecei a ver o trabalho pelo ponto de vista do patrão. E, no cais, agora, o lance da segurança, do quão importante é você ir trabalhar e voltar. Mais importante do que trabalhar é voltar pra casa inteiro, direitinho, fazer a tua parte. Isso daí me deu boa visão, boa visão mesmo, uma visão geral. Eu nunca mais olho uma coisa por uma única perspectiva, nunca mais. Sempre olhando dessa forma: vendo os lados, vendo quem colocou aquilo ali, porque que colocaram esse aparelho aqui. Eu fico imaginando: “Pô, o cara tem um aparelho ali, nossa, que fantástico, pra que serve, onde que… pô, olha o que ele não batalhou pra comprar”. Eu sei o que é caro. Você pega nele, é pesado, é caro. Você pega um brinquedo, ele é levinho, tudo de plástico, 1,99. Agora pega o original, pra você ver se ele não é pesadinho, com coisa robusta e tal. Você pega uma visão diferenciada e aí você fala: “Ó, esse aí merece respeito. Esse aqui alugou uma sala, o equipamento é top, eles estão se preocupando”. É isso, você ter a preocupação. Você vai fazer uma entrevista de emprego, você fazer a barba, cortar o cabelo, estar alinhado. Então você está preocupado com aquilo. “Ah, ó, o cara se preocupou, ele veio sabendo”. Quando eu vim pra cá, eu sabia mais ou menos o que ia rolar, eu não sabia o tanto. Você falou: “Conta sua vida”. Ela falou: “Ah, meu Deus do céu, a gente não vai sair hoje de lá”. (risos) Que eu conto mesmo, se deixar, eu vou falando. Mas eu procurei também, tu viu que eu paro de vez em quando pra ouvir você, pra saber o que você quer, pra você ir lapidando o que você quer, o que você precisa. Mas isso tudo foi a duras penas, nem sempre foi assim. E eu brigo muito quando eu acho que eu tô certo e eu sempre tô certo, cara, eu brigo pra caramba. Mentira, eu sempre sei… eu ouço, eu paro. Muitas das vezes eu sou impulsivo e falo pra caramba. Aí, depois, eu paro, eu respiro. E, se tiver que pedir desculpas, eu peço cem vezes. Já perdi, na época de garçom, eu cheguei a ser maitre, que era quem comandava tudo. E eu já cheguei a perder um excelente funcionário por explodir com ele no momento errado, da forma errada, da pior forma possível. Me arrependi amargamente e trago isso pra mim. Então até lá, eu falo pros meninos: “Ó, às vezes eu vou gritar, vou xingar, me sacode, me traz de volta que dá aquela pleura lá, mas ó, me dá uma sacudida que eu volto”. Porque, às vezes, eu perco a linha por falar demais. Meu sangue ferve e dá a cegueira, mas hoje eu sou muito mais controlado, eu perco muito menos a razão, quando eu fico quieto. Então eu deixo passar. Aí, pô, você vai falar: “Não, vou falar amanhã”. Eu vou pegar a Eduarda, vou massacrá-la. Não, amanhã. Aí, quando chega o amanhã, está mais brando. Então eu já falo diferente, com outro tom. Ela absorve melhor. Aí a gente vai tateando. Porque ela é folgada também, pra caramba. Ela acha que sou eu e ela não é. Ela acha que é bonito que nem eu e ela não é. Então eu levo sempre muito isso pra minha vida e pros meus. Eu tenho três filhas. Aí todo mundo fala: “Pô, mas tu não queria ter um menino?” “Não, eu já tenho um monte de menino, já crio um monte, então não, não preciso disso, sou feliz, satisfeito com as minhas meninas”. E é isso. É isso aí.
P/1 - Me conta como você conheceu a ngela.
R - Caraca, a ngela (risos). A ngela eu conheci… quando eu a conheci, foi numa festa na casa dela, que a casa dela era grande e ela era muito amiga do aniversariante. Eles lá, a família dela emprestou a casa pra gente fazer uma festa. E a gente era muito bagunceiro, bagunceiro, bagunceiro, bagunceiro, bagunceiro. E ela estava lá. Aí no dia eu estava pra sair com uma menina lá e ela estava a fim de um amigo meu e ele não ‘se tocava’. Naquela época, tinha dezessete anos, pra dezoito, que logo em seguida eu fiz aniversário, em janeiro eu já comecei a namorar com ela, em janeiro eu já fui pro quartel... fevereiro. Aí ela pegou e falou: “Ó...”. Falei assim: “Acorda, caraca, a menina quer ficar contigo” “Você é muito intrometido” “Ah, tô tentando te ajudar e você ainda fica de marra? Dá licença”. Pá, primeiro impacto: “Odeio esse cara. Nossa, esse cara é muito folgado!” Aí nós fomos pra um baile e a volta demorava pra caramba o ônibus, o baile era no Humaitá. Aí ela estava… eu a tinha visto no baile, ia dançar com ela, mas ela estava dançando com o cara, eu esqueci. Aí eu olhei, falei: “Ah, baixinha”. Aí eu comecei a mexer com ela, perturbá-la: “Ah, você é muito sem graça, que não sei o quê”. E ela estava sentada com uma mulher e eu estava sentado no banco unitário. Aí eu falei: “Tia, troca de lugar comigo?” Aí ela: “Não, tia, não tô...”. A mulher trocou, a mulher viu e trocou. Aí, quando ela trocou, eu deitei no colo dela e fiquei ali. Ela: “Você é muito folgado, tu nem me conhece, já deita no meu colo?” Eu falei: “Vou dar um cochilo, quando chegar, tu me acorda”. Aí ela ficou fazendo cafuné em mim, aí já era (risos). E ela, graças a Deus, eu tinha dezoito e ela tinha dezesseis. E aí o Racionais tem uma música, “Estilo Cachorro” e ele fala: “Segunda, Marcela; terça, Raíssa, Daniela...”. E no domingo? Domingo é a ngela, dezessete. É matinê, dezesseis, o nome é ngela. Ah, mano, eu canto até pra Eduarda. Eu falei: “Pô, o cara fez uma letra se inspirando na gente”, ela dá risada. E aí a gente namorou um tempo, eu fui pro quartel, eu não parava, não ficava lá, ficava mais no quartel do que em casa. E aí a gente acabou desmanchando, voltamos. Aí, ela tinha dezesseis, ela ficou grávida com vinte. Quando ela tinha vinte anos eu sofri um acidente de moto, estava no hospital, todo quebrado, todo arrebentado e ela falou: “Ah, e por falar nisso, eu tô grávida”. Aí eu estava com a boca estourada, falei: “O quê? Tá grávida?” “Tô, tô grávida”. Aí, pronto, ficamos. E aí ela... mas a gente só namorava. Até então não morava junto. Aí veio a Mainara, aí engravidou da Mainara, na época em que a gente trabalhava na Rua da Paz, em 1992, ela nasceu em 1993. E aí falei: “Não, agora… errar é humano, mas persistir, não”. Aí fomos morar juntos e, entre idas e vindas, entre barracos, entre pedradas e solavancos, a gente está junto aí, até hoje, 33 anos, a Maiara…
P/1 - Como foi se tornar pai das três meninas?
R - Eu nem sabia que era menina. Eu a levei pra maternidade, a mulher falou: “Só precisa trazer isso, isso e isso. Tchau, pai”. Eu a peguei no colo, porque eu estava desesperado e aí, quando ela saiu da sala, aí ela: “Você é o Marcos? Ah, pega aqui a tua filha”. Peguei no colo, falei: “Minha nossa!”, toda suja ainda, tal. E aí: “Vai embora, vai pra casa, só volta às duas da tarde...” - isso era seis horas da manhã - “... no horário de visita, traz isso, isso e isso” “Tá bom”. Aí eu fui embora de ônibus. A gente morava no Marapé ainda. Falei: “Malandro, que pô, e agora? Ah, quando eu chegar em casa, vão perguntar se é menino ou menina. Caraca, é menino ou menina? Mano, meu Deus!” E (risos) pra lembrar que é menina, que a mulher falou: “Segura tua filha”. Eu não lembrava, eu estava muito louco. Aí: “É menina, é menina”. Aí beleza. Quando ela ficou grávida da Mainara, ela não suportava ouvir o som da minha voz, eu não usava perfume, ela dizia que meu cheiro estava de perfume e não queria nem me ver pintado de ouro. Aí tanto a minha mãe, quanto a minha sogra diziam: “É um menino que está te rejeitando, já”. Eu punha a mão na barriga, ela chutava. “Ah, é um menino” - e eu todo bobo - “Ah, é um menino, ah, é um menino”. Quando chegou na maternidade eu olhei e falei: “Eita, que moleque feio”. Aí ela: “Não, não é menino não, é menina”. Falei: “Não, está de brincadeira”. Tirei a foto. Aí quando foi a Eduarda, a Eduarda foi mais planejada, porque eu não queria ter cinquenta anos e um adolescente de quinze. Então eu falei: “Com 35 eu vou operar, depois de 35 eu não vou ter mais” “Ah, tu não quer tentar um menino?”. Eu falei: “Você que sabe, você que vai ficar grávida, não sou eu” “Ah, então vamos tentar, vamos tentar um menino”. Aí veio a Eduarda. Só que, ao contrário da Mainara, a gente fez o exame, eu quis saber o sexo. Aí falou: “Pai, é menina!”. Aí eu: “Puta que pariu, droga!” Aí, mas aí já é melhor, é diferente, você vai se acostumando com a ideia e tal. Aí ela falou: “Agora tu não vai mais operar”. Eu falei: “Está doida? Já está marcado”. Eu fiz a vasectomia, ela estava com o barrigão. Aí eu fui e fiz. Falei: “Não”. Se for o caso, se a gente estiver estabilizado, lá pra frente e eu achar que eu preciso ter um filho, eu adoto, tranquilo. Não, não, não, não, não. Mas mudou a minha vida. Inclusive, na época, teve um orixá, que eu quis saber o sexo, né? “Tu quer saber se é menino ou menina? Não dá pra ver, eu vejo isso nas estrelas” e estava um tempo nublado. Aí ele falou assim: “Mas não interessa, assim que essa criança chorar, sua vida vai mudar da água pro vinho”. E mudou onde tinha que mudar, justo onde tinha que mudar, mudou. Foi muito importante isso pra mim, eu sempre tive essa preocupação de não ser um pai canalha, porque na minha geração, a gente teve muitos que abandonaram, não quiseram saber, não registraram, não ajudaram, não fizeram nada. Aí eu falei: “Não, isso, comigo, nunca vai acontecer”. Só que ter essa postura também me levava a ser mais responsável, a ser mais preocupado e tudo mais e eu fui. Essa parte aí eu amadureci muito, muito, muito. Aí ela fala - a mais velha, a gente tem uma relação muito boa, é a minha filha mais bonita. Você vai ter a oportunidade de ver uma foto dela, você vai entender, que fala que sou eu de saia - que, se não fosse o nascimento dela, eu ia estar vestido de Teletubbies, vendendo algodão doce na praia, (risos) que eu que dei norte... ela que me deu norte pra vida. E um pouco disso é verdade. Foi muito bom, muito importante pro meu crescimento.
P/1 - Você tem netos, já? Você me falou que você tinha um neto, no começo. Como é essa história?
R - Sim, um neto. É um neto postiço. Nós moramos no 33, no apartamento 33. E embaixo, no 23, é uma amiga de infância da ngela. Deu essa coincidência da gente morar juntos, porque éramos do mesmo grupo habitacional, de moradia. E aí pegamos essa proximidade. E a filha dela, a do meio... - ela tem quatro, na verdade - foi morar lá, tinha dezesseis anos e engravidou. E aí nasceu o Enzo. E eu, quando ele nasceu, ficou aquela: “Ai, o menininho, não sei o quê”. Aí eu falei: “Gente, vocês não se apeguem a essa criança. Por quê? Essa menina é doida, ela é funkeira e ela vai arrumar outro filho e vai arrumar um marido e ela vai mudar, ela vai embora, vai levar a criança, vocês vão ficar tristes aí” “Não, não tem nada a ver, não sei que, não sei quê” “Ó, eu já vi esse filme”. Aí, a ngela ficava pegando-o, não sei quê. “Vem cá com a vovó, ai, a vovó, vem cá com a vovó”. E ele foi crescendo. E aí ela pegava assim: “Ó, se você… eu sou a vovó e ele é o vovô”. Aí eu falei: “Eu não sou vô de ninguém, tira esse moleque daqui. Esse moleque já está aqui em casa de novo?” E ele tinha meses, né? “Gente, para com isso”. Aí a minha filha do meio, a Mainara, o ganhou pra batizar. Falei: “Gente, tira esse menino daqui”. Aí o que ele fala primeiro? Vem, senta no meu colo, me aperta o nariz e fala “vovô”. Aí danou-se, aí… e, na época, ele assistia muito Peppa Pig. E ele pegou e me apelidou de “vovô Pig”, aí danou-se. Vovô Pig pra lá, vovô Pig pra cá. Uma vez eu fui buscá-lo na creche e eu não tinha registro lá, meu nome não estava no registro. E aí eu fui buscá-lo. Quando ele me viu, ele levantou e deu um grito: “Vovô Pig, vovô Pig”. Aí a mulher falou: “É o vô, vou entregar” e entregou. Aí, depois, ela: “Moço, vem aqui, não tem nome de homem aqui, só de mulher” - que era a Maíra, a Mainara, a ngela e a mãe e a vó, a Jeane - “Não tem nome de homem, o senhor é avô dele?” Falei: “Sou avô dele, eu já peguei, já era, agora já era” e ele se agarrando em mim, tudo. E aí já era, aí já foi: “Vovô, vovô”. E agora eu sou “vô Kamã” e pego no pé em tudo que… pense num vô de a a z, sou eu. Aí, agora, eu tô aqui contando essa história. Mas e quando tem que contar pros outros, que eles perguntam, né: “Qual das tuas filhas teve filho?” Aí a Mainara morou dois anos na Irlanda e aí eu falava que era da Mainara. “Ah, filho da Mainara” “Ah, ela foi pra Irlanda e deixou?” “Deixou”. Agora é a Maíra que está na Irlanda. Aí quando pergunta: “Filho da Maíra, está lá na Irlanda, deixou o menino aqui, pra…” “Pô, deixou o netinho pra tu criar!”. Eu falei: “É, é” (risos). É mais fácil. Mas é um amor ali. E nesse Dia dos Pais, cara, que agora eu não tenho mais Dia dos Pais, sou pai só pra pagar as contas. Que eu tenho, eu guardo. Esses negócios aqui, coisas que a Maíra me deu, na época de colégio. E, meu, o pai dele é um Zé Ruela. Posso falar “Zé Ruela”? Pode, né? É um Zé Ruela. E ele fez o desenho lá, não sei o que, fez um… e deu tudo pra mim. Fez o desenho, fez que nem eu, careca, com cavanhaque e falou: “Não, você que é meu pai”. Cara, aí desmonta, velho, aí não dá, né? Aí a ngela: “Fica aí, viu: ‘Não, tira esse menino daqui, que não sei o quê’” (risos). Aí não dá, né? Por mais que você seja bruto, ogro, nessa hora cai por terra. Tá lá, pendurado no guarda-roupa, até hoje, desde o Dia dos Pais. É muito, foi muito bonito, foi muito. Aí eu me sinto honrado, porque eu consegui o que eu queria, que eu dei um norte pra ele. Eu pego no pé dele, eu falo, eu o crio como um filho. E dou porrada e brigo com elas, quando elas, né… a Mainara, às vezes, não gosta do jeito… é incrível, ela não gosta do jeito que eu a criei e ela só recebe elogios por comportamento. Aí eu falei: “Como é que você adquiriu esse comportamento? Ah, brotou em você. Não, foi eu que te ensinei, desde que você aprendeu a falar, desde que você aprendeu a andar”. E aí ela veio com umas conversas, umas novidades que eu não gostei e eu retruquei com ela, aí eu falei assim: “Olha, do meu jeito sai você e do seu jeito, vai sair o quê? Você sabe qual é o resultado? Você não sabe. Então não é melhor fazer o que é certo, aqui, nessa receita que deu certo? Do que você inventar moda e não saber o que vai dar, que fruto que você vai colher, lá na frente?” Aí ela tomou um choquinho lá e, pelo menos não na minha frente, ela não faz mais isso. Mas é complicado, hoje em dia. No meu tempo, no tempo delas não tinha celular. O celular é melhor e a pior coisa que aconteceu na humanidade. Ele, mal-usado, é terrível, acaba com vidas. E a gente está vendo aí, programas… inclusive, eu tô até pra... preciso cobrar isso dele hoje, sobre o Death Note, O Livro da Morte, que eles ganharam. Se eu não me engano, eu o escutei falando uma coisa dessa daí. Hoje ele já, quando eu chegar, vai ser cobrado sobre isso daí. Então a gente fica em cima. Horários, videogame, tudo, tudo, tudo. Então, coitado, esse menino vai ser presidente do Brasil, porque ele sofre tanta pressão e a mãe dele me surpreendeu, porque ele tem dez anos, ele acabou de fazer dez anos e ela só tem ele. E ela é toda direitinha, eu achei que ela ia ser uma destrambelhada. Não, ela é toda direitinha. E ela… os únicos que o criam com rigidez sou eu e ela, porque a minha mulher, a outra avó dele, a madrinha, essa daí, só o mima, só o fragiliza. Eu não. “Ah, vô, quero chocolate” “Vá fazer” “Mas eu não alcanço” “Pega aí e faz”. Aí ele: “Então, eu não quero” “Então vai ficar sem”. Aí, daqui a pouco, ele fala: “Olha, se eu fizer bagunça aqui, eu não quero nem saber” “Se você fizer bagunça, você vai limpar”, só assim. E quando fala assim ó: “Ah, vou trabalhar, você vai ficar com seu vô” “Caramba, é sério isso?” (risos) “É sério”. Mas está aí, já, graças a Deus, eu tô colhendo frutos disso, porque ele é bem... ele tem preocupações, ele tem discernimento que eu nem sonhava em ter, na idade dele. Elas também são assim. Eu coloquei uma meta na minha vida, é a seguinte: a minha mãe, mesmo tendo tantos filhos, me deu muito mais do que ela teve. E deu pra todos os meus irmãos muito mais do que a minha vó deu pra ela, porque a minha vó não deu nada. E eu me coloquei essa obrigação de dar pras minhas filhas muito mais do que minha mãe me deu. E eu as obrigo a darem muito mais pros filhos do que eu dei, mesmo elas dizendo que não vão ter filhos. Aí dizem que querem ter cachorro. Sabe o que eu dei pra elas? Peixe. Adivinha o que aconteceu com os peixes? Não tem um pra contar história. “Você não consegue criar peixe, não vai criar um cachorro”. Porque o peixe você joga na privada e dá descarga, agora, o cachorro vai chorar, vai ser um inferno. Porque aí tem que ter o peixe, o cachorro e depois um filho. Dizem elas que não querem saber de filho. Então eu vou me contentando com o Enzo, tô legal. E é isso. Novo mundo, uma nova era e eu espero dar pra eles isso, uma base da antiga, pra que eles não se percam. Então eles vão passar pro próximo nível, mas conhecendo o anterior. Que essa nova geração, a geração Y, está passando, eles já estão num nível, sem ter base do anterior. Elas adoram música e aí eu falei pra elas: “Pergunta pra Beyoncé o que ela gosta, pergunta pra Beyoncé o que ela ouve, pergunta pra Beyoncé em que show ela vai, de quem ela vai. Dos meus ídolos, cara”. Você fala de Michael Jackson com a Beyoncé, ela endoida. Aí conhece tudo, conhece todos. Falei: “Então, está vendo?” A minha filha mais velha, quando foi trabalhar, se pegou cantando músicas que as meninas olharam assim: “Nossa, essa música?”. Ela: “Ah, meu pai me obrigava a ouvir”. São músicas boas, que podem passar cem anos que elas vão estar aí ainda, firmes e fortes. Mas sempre dei muita liberdade pra elas fazerem as escolhas delas. Sempre cobro e mostro, ou aponto, ou digo que não concordo, mas sempre apoiei as escolhas que elas fazem. “Ah, vou fazer faculdade” “Pô, vou te ajudar” “Ah, vou fazer faculdade de Cinema” “Vai pagar sozinha”. Hoje eu tô achando ‘mó’ legal, elas estão aí, pá. Dinheiro que é bom, a gente não vê, né? A gente vê projetos, projetos, projetos. Mas é o que elas quiseram fazer, não é? Então, vai lá. A Mainara até que está esbarrando aí num emprego dentro da prefeitura, na área dela. Pô, legal. Mas é o que eu falo: “Vocês vão ser o que vocês quiserem ser”. Agora, a base que elas têm, essa daí é muito boa e é graças à mãe e o pai delas. Uma base Rochelle de ser. Pancadaria, se precisar. Conversa, quando tem que ser. Briga. Puxão de orelha. Mas sabe que, na ‘hora h’, na hora que o calo aperta, sabe que tem colo, sabe que… então, eu me orgulho muito disso, muito, muito. Eu sempre quis me livrar delas, todas elas. Sempre quis que elas tivessem uma casa pra eu ir no domingo cozinhar pra elas, sabe? “Vamos onde hoje?” “Vamos pra casa da Maíra, vamos pra casada Mainara”. Elas nunca quiseram. A outra queria morar no apartamento em frente. Falei: “Não. Pra tua mãe lavar tua roupa? Não”. E aí: “Pô, mas você é louco, tu quer expulsar tuas filhas?” “Não, quero que elas vão morar sozinhas pra elas saberem que se elas largarem um copo em cima da mesa, dali a três dias ele vai estar no mesmo lugar, ninguém vai pegar. Quero que elas entendam e conquistem, pra darem valor ao que elas têm” “Ah, é Natal! É família” “É nada, só querem comer” “Pai, o que você vai fazer no Natal?”. Falei: “Não, não vou fazer nada. Vocês não querem montar uma árvore de Natal”. Só querem o… elas querem selecionar a tradição: “Não, do Natal eu quero peru, pernil. Eu quero salpicão. E aí, o que você vai fazer?” “Miojo. Vou pra casa de alguém”. Aí elas... falei: “Pô, comem, vão pra rua. Não quer… não tem tradição, não tem. Ah, não tem? Beleza, mas também não vão comer” (risos). Aí elas: “Opa, espera aí”. É um pacote, pô! Você tem que: “Não, eu quero isso aqui” “Quer? Tudo”. Tem que fazer isso. Olha, que nem, a gente era obrigado a dar benção pra mãe, benção pro pai, benção pro avô, benção pra tia. Lembrando que eu não tinha tia. Mas era: “Ah, tem que dar benção pra tia, dá benção pra…”. Eu nunca as obriguei a fazerem isso, nunca obriguei. A Maíra é tão antissocial, tão antissocial, que ela passou por cima de um cadáver, quando a gente morava na Capela. “Ô, não pode ir aí, não!” “Cala a boca, eu moro aqui”. Aí passou por cima, entrou. Quando ligou a televisão, está lá o beco: “Acharam um cadáver assim…”. Ela tirou a cara pra fora: “Ahhhh, eu passei por cima do cadáver!” Porque ela não olha pra ninguém, ela não fala com ninguém, ela não quer nada. Ela está feliz lá na Irlanda, povo frio, povo que não abraça, que não... ela: “Ah, é uma maravilha, ninguém fala com você. Se você não falar com ninguém, ninguém fala com você, eu gosto assim”. Deus me livre, é o oposto do pai (risos). Mas…
P/1 – E, Marcos, quais são seus maiores sonhos, hoje?
R - Caraca, você falou bem na hora que eu pensei. O meu sonho é um sítio pra fazer o que eu quiser no sítio. Ter o quarto do pelado, plantar, ter galinha. Eu acordo cedo, cara. A minha mulher quer a morte. E ela falou: “Eu não vou, tu vai sozinho” “Ah, vai sim”. Comprar um sítio. Aí lá onde eu quero, tem pomar pra levar as crianças, fazê-los subir na árvore. Igual: no Ano Novo a gente passou nesse sítio aí, é muito maravilhoso. Eles pegaram, pescaram, pegaram fruta na árvore. Tem um riozinho perto. Tem lago, piscina, churrasqueira, fogão a lenha, geladeira pra cerveja. Cara, tem tudo. Meu sonho, hoje, meu sonho de consumo é esse, é ter um sítio. Produzir, ter uma porca pra me dar bastante porco pra eu fazer linguiça. Galinha, pra ter ovo e de vez em quando torcer o pescoço de uma. Uma horta com o básico. Meu, já era. Já era. Acordar cedo, fazer tudo que eu tenho que fazer e ficar de perna pro ar, jogar videogame. Elas falam: “Tu vai ver, quando tu ficar velho, eu vou te colocar num asilo” “Se não tiver ar-condicionado e nem Playstation, nem coloca, que eu fujo. Chego na tua porta, pelado ainda, dou uma de doido” (risos). Eu as ameaço, desde sempre. Aí eu falo: “Pô, meu videogame, tô feliz da vida, felizão”. E cuidar das crianças… está com problema com seu filho? O deixa uma semana comigo. Quando ele voltar, você vai ver como ele volta. O meu sobrinho ficou um tempo comigo, o mais velho, que é meu afilhado. E eu ensinei pra ele, cara. Quando ele voltou pra casa dele, ele perguntou pra mãe dele se ela queria que ele lavasse a louça. Eu ensinei pra ele que o leite não brotava da geladeira. Eu ensinei pra ele isso aí. Ele comia pão adoidado e bebia leite adoidado. Eu falei: “Agora, tu vai poder comer o que você quiser e beber o quanto de leite que você quer, você que vai comprar. E não deixa faltar pras minhas filhas, não”. Estalou o ‘zóião’. O pus pra trabalhar na feira, com aquele mesmo amigo meu, que tinha barraca ainda, quebraram o braço dele, fizeram ele buscar a chave da feira. Sacaneei. Aí ele: “Não faz isso”. Falei: “Pode fazer. O sacaneia, eu fui sacaneado também”. Pegar pedra de amolar balança. “Mas o que é isso? Isso é maldade” Falei: “Não, deixa esperto”. Fala isso pra ele hoje, pra tu ver se ele não faz a cara feia. Tem que ensinar como? Na prática. Dando um pouco de rua. As crianças precisam disso, de comer fruta do pé, de buscar, de comer de um tudo. O meu neto, você pode dar chocolate pra ele, se for verde, ele não come. Ele não come. “Não, isso é verde, não”. Que associa verde a legumes, verdura e ele não come. Direto a gente tem problema com ele, porque se alimenta mal pra caramba. Agora, põe Miojo pra ver se ele não come. Aí elas não deixam. Eu também não sou muito fã desse negócio de obrigar a criança a comer. Eu o obrigo a comer de que forma? O deixo com fome. “Ah, eu vou tomar um Danone” “Só depois que você almoçar”. Aí eu ponho a comida… eu não ponho a comida dele, eu o faço pôr. “Você colocou, não colocou? A quantidade que você vai comer. Agora você só levanta daí quando você comer”. Aí ele fica bravo, mas come. Aí: “Ai, nossa, ele bateu um pratão”. Lógico, tem que deixá-lo com fome. Agora ficam dando besteira pra ele comer, não vai comer, quando chegar na hora da comida mesmo. Procuro tirar isso dele. Agora que ele vai se tornar um adolescente, ele gosta de jogar bola, ele gosta de brincar, ele vai ter muita fome, vai gastar muita energia, ele vai ter muita fome. Aí eu falei: “Vocês vão ver só, ele vai comer até as panelas. Aí vocês vão mandá-lo parar de comer”. Mas eu quero isso pros meus amigos levarem os filhos e eu dar educação pra eles, que eles não têm. “Ô, controle é de adulto, não é de criança, não” “Mas eu vou assistir” “Vai assistir nada”. E tiro. “Olha, ele é ‘mó’ folgado. Esse careca aí é ‘mó’ folgado”. Mas na hora de brincar de lutinha, é comigo. “Pô, tio, vamos brincar?” “Não, tu é malcriado, vai ficar aí, assistindo todo mundo brincar e tu não vai” “Pô”. O moleque até chorou. Aí depois eu fui lá: “Vem cá, vamos brincar um pouco”. Porque eu sou dessa opinião, a gente tem que ensiná-los, não tem que fazer o que eles querem, tem que fazer o que é necessário. E, às vezes, é necessário dar um castigo, às vezes é necessário ser ríspido, ser grosseiro. Deixa chorar, uma hora para, tenha paciência, deixa chorar. Aí depois que acabar de chorar, explica pra ele porque ele ficou chorando, ajuda, pô, cara. Criança testa seu limite, testa. Você fala: “Não põe a mão aí”. Ele vai pôr o dedo lá, olhando pra você. E a hora que ele colocar a mão, se não acontecer nada, perdeu. A hora que ele colocou, o Enzo, queria colocar o dedo na tomada, acho que ele tinha um ano e pouquinho, dei-lhe uma tapa: “Não põe o dedo aí, não! Quer que eu te mostre como é tomar um choque?” Nunca mais ele pôs. E quando ele vê alguém: “Ô, põe a mão aí, não, tu é doido? Dá ruim se colocar o dedo aí”. É isso. E hoje o meu sonho é esse: cuidar de criança e cuidar do meu sítio, vai demorar.
P/1 – A gente está chegando no fim, mas eu ainda tenho algumas, umas três perguntas…
R - Pode fazer.
P/1 - Eu queria saber: você, pensando em toda a sua trajetória no porto, nesses momentos, e também na sua trajetória inteira, profissional, o que o porto representa na sua história, qual é a importância dele na sua vida?
R - Olha, vou falar pra você: os dois primeiros períodos foram curtos, mas foram bastante importantes. Hoje tem uma importância muito maior. Hoje eu não me vejo, por exemplo, vai, eu saí dessa empresa: “Ah, vou voltar a trabalhar como garçom”. Não, eu me vejo trabalhando no porto, eu me vejo dirigindo caminhão, eu me vejo operando máquina, ele se incorporou a mim. Hoje eu nem tenho tanto conhecimento, eu só conheço o cais do 39 ao quinze, mas eu só me vejo fazendo isso hoje. Agora eu devo ter o que aí, ainda, uns quinze anos de vida profissional? Vão ser todos no cais, com certeza. E as experiências que eu tive na vida, eu acho que me qualificam pra me manter lá, até num cargo de chefia, sendo líder de equipe, eu penso muito nisso porque, é óbvio, eu sei que ali é onde está o melhor rendimento, está nessa parte aí. Quero fazer shiploader, que eu vou me sentir bem fazendo isso, vai ser ápice, eu vou falar: “Puts!” Mas depois disso - eu sei que talvez eu não fique por muito tempo - eu quero ser um líder de equipe. Estar comandando uma equipe, sabendo, passando por todas as trajetórias. Meu encarregado da empresa, não da Rumo, o da empresa, ele… eu respeito muito. Ele deve ter uns 35 anos, mas eu respeito muito ele, porque ele foi ajudante, ele passou por todas as etapas. Não tem como você ‘dar um nó’ nele, que a gente chama de ‘dar nó’ quando a gente enrola no trabalho. Não tem como você ‘dar um nó’ nele, ele sabe, ele sabe que o tempo daquele produto é de vinte a trinta minutos. Então se tu leva quarenta, tem alguma coisa errada. E aí você, a nossa… nosso diálogo é franco: “Ó, não dá, não. Ó, esse produto está molhado. Ó, tem isso, isso, isso e isso”. Aí ele sabe. Aí os outros, quando vão querer ‘dar nó’ nele, ele: “Aí, Marcos querendo me ‘dar nó’, pensa que eu nasci ontem. Ô, vai lá, Marcos, resolve lá pra mim, que eu sei que dá pra fazer”. Aí eu vou lá, resolvo e tal. A gente diverge muito por causa das horas extras, que não são muito justas, então eu evito fazer e tal, só quando ele pede. Então ele só… quando ele pede pra mim, é porque ele está no fundo do poço. Aí eu vou lá e faço, depois eu jogo na cara dele. Mas se um dia tivesse que... ele falou já, comentou... ele pretende um outro cargo, ele falou que vai me deixar no lugar dele. Eu falei: “Nessa empresa? Nem a pau!” Eu quero a Rumo, eu quero trabalhar na Rumo. Na Rumo, na DP World, na Santos Brasil, num cargo bom na Santos Brasil, muito bom, muito bem remunerado, pra eu poder chegar ao meu sonho de ter o sítio, preciso juntar dinheiro. Aí eu tô, ando fazendo uns investimentos malucos aí, estou fazendo linguiça, vendendo algumas coisas, pra tentar juntar um dinheirinho, fazer um ‘pé de meia’ aí, pra comprar, pra dar uma entrada boa. E daqui... esse é um projetinho pra cinco anos, ficar bem em cima ali, um projetinho pra cinco anos. Mas sim, sempre lá. Ali, de preferência naquele trecho, que é o que eu conheço bem, eu conheço todos os buracos. No cais tem muito buraco. Eu conheço cada um deles que, quando chove, forma poça. E o pó, fuligem da soja ou do açúcar encobre e aí, às vezes você não percebe, acaba pisando, afunda o pé, torce. A gente já conhece todos os buracos. “Ó, vamos por aqui. Não, vamos sair. Ali é poça, sai pra lá”. E isso é muito bom, isso é bem gostoso. O dia não fica maçante. “Ah, caraca, tem…”. Não, não. Aí eu vou lá, eu levanto cedo e vou. Quando eu tô no horário da tarde é mais complicado, porque eu levanto cedo. E aí quando dá nove horas eu já quero fazer o almoço, eu já quero almoçar dez e meia, já quero me livrar logo daquilo pra ir trabalhar. Aí até a hora de vir embora, é legal. Então, hoje, eu não fico como antigamente, às vezes fazia parada em bar, pra beber, ou: “Ah, vamos no…” “Não, vou pra casa, que amanhã tem mais um dia aí”. Aí, com esse meu amigo aí, esse meu parceiro de trabalho hoje em dia, se a gente quiser três dias, a gente consegue. Eu trabalho três dias durante doze horas e depois ele trabalha três dias durante… aí eu consigo viajar, consigo fazer um esqueminha bacana, participar de viagens com o grupo do quartel. Então, bem amplo isso daí, isso reenergiza a gente. Isso aí eu comecei a dar mais valor também, a você ter uma qualidade de vida melhor, uma qualidade de folga melhor. Você está de folga, mas estar realmente de folga, senão fica preocupado com uma série de coisas aí. E eu me vejo lá. Velhinho, mandando em todo mundo naquela… eu falo: “Capacete branco”. O capacete branco, símbolo da Cipa e mandando em todo mundo. E os caras olhando assim: “Lá vem o velho. Se liga, se liga, o velhinho está chegando, se enquadra, se enquadra!” Sargento, eles me chamam também de sargento Pincel: “Sargento Pincel está vindo aí, se enquadra, que é foda” (risos). Isso é o que eu espero pra esses próximos quinze anos.
P/1 – Marcos... pode falar.
R - Você sempre me interrompe quando eu já interrompi. Já finalizei, finalizei (risos).
P/1 – (risos) Eu queria saber se você queria deixar alguma mensagem ou contar alguma coisa que eu não tenha perguntado, que você acha que é importante, sobre a sua história.
R - Mensagem.
P/1 - Mas, principalmente, uma mensagem.
R - Eu queria, sim. Acho que é a primeira vez que eu vou fazer isso, vai ser interessante. Queria deixar uma mensagem para os jovens. Eu queria que eles ouvissem mais. Ouvir, mas não é escutar. Escutar, só quem é surdo não escuta. Eu digo de ouvir, mesmo: “O que aquela pessoa está… qual é a mensagem que aquele mais velho está tentando me passar?” E eu acho que vai ser muito bom pra eles, pra que eles tenham… hoje, eles têm muito mais oportunidades do que eu tive com quinze, dezesseis, dezessete anos. Hoje tem Menor Aprendiz. No meu tempo era o Camps. Eu sou do tempo do Severino, que ainda está lá, que é um monumento do Camps. E ele me ensinou bastante coisa. Ordem unida, que eu cheguei no quartel sabendo, eu aprendi no Camps. Então, vamos respeitar, vamos respeitar as histórias. Vamos respeitar a caminhada daquelas pessoas mais velhas. Sempre do…. óbvio, eu aprendo muito com os mais novos. Não só a título de tecnologia, mas, às vezes, a gente não pode se achar, porque: “Ah, eu tenho cinquenta anos, eu sei de tudo”. Não, não sei, não. Já fui enquadrado pelo meu neto. Ele já veio: “Pô, vô, não faz isso, não, você está errado, assim, assim, assim”. Em outros tempos ficava sem dente. “Tá retrucando com adulto?”. Não, hoje não. Eu olho assim e falo: “Caraca, filho da mãe!” Tá, tá, tá bom. E aí eu paro pra pensar e falo: “Olha, o que ele falou, está coberto de razão”. Então a gente vai um aprender com o outro, é fato. Mas os mais velhos, eles têm uma caminhada, você não precisa passar pelas pedras pontiagudas pra trilhar o seu caminho: “Ó, você vai passar pelas pedras, mas escolha aquelas pedras ali, elas são arredondadas, elas são pedras rio. Não vai nesse pedrisco aqui, não, que você vai se machucar”. Aí: “Pô, será, é isso mesmo? Não, vamos lá”. Porque eu falo pra Mainara: uma criança, você vê uma… tem o filme da Malévola, onde a menina bebezinha está andando e está indo pro penhasco. Ela não sabe! Ela está indo. Mas o adulto tem aquela visão que a Malévola tinha: “Tu vai cair ali”. Você vai deixar? Não, você vai falar, você vai orientar: “Vai pra lá, sai daí, esse caminho não é o certo”. Então eu queria isso, essa mensagem que eu queria deixar para os jovens: ouçam seus mais velhos, seus pais, seus tios. Mesmo que seja torto porque, por exemplo, meu irmão, ele era torto, mas ele não admitia que nenhum dos irmãos dele fosse. Ele fumava maconha, ele praticava pirataria. Isso não era certo. E ele fez questão de ensinar pra gente que aquilo não era certo. E ai da gente, se ele soubesse, se ele imaginasse que a gente estava nessa. Uma vez a minha mãe, como eu ficava muito na rua, eu voltava pra casa comendo as panelas. E ela intuiu que eu estaria fumando maconha. O mandou falar comigo. E tu acha que foi o quê? “Senta aí, que a gente vai conversar?”. Falou: “Escuta aqui, está fumando maconha por quê?” Falei: “Não, mas eu não tô fumando maconha” “Não, a mãe achou uma maconha aqui no tanque”. O cara estava fumando, a polícia veio, ele jogou a maconha pro muro e ficou lá no tanque e a minha mãe achou de manhã. Aí quando ele… o cara ouviu, a sorte que ele ouviu, chamou o meu irmão. Aí o meu irmão: “Não, agora eu tô resolvendo um assunto de família” “Não, mas você tem que vir aqui e me ouvir. Não, olha, não fuma, não e tal. Aconteceu assim e assim e assim”. Ele até brigou com o cara lá. Eu falei: “O quê? Esse negão vai me engolir, velho! Ele vai me matar”. E, graças a Deus, eu nunca pus nem a mão nisso aí, não é minha praia. Mas ele sempre e todos, tá? Aí eu tenho os outros dois, o mais novo, o caçula, o Zuza, fuma, já fumou maconha também, já… mas ele teve pouco convívio com o mais velho e ele não deixou, não, ele não deixava. Então a gente… eu sempre tive essa criação, de respeitar e escutar o que o mais velho está falando. É essa mensagem que eu tenho. Eu acho que eles vão se tornar adultos melhores, porque eles vão ganhar um know-how que não se aprende na escola. Pode ver, ó, tem escola de dança que ensina samba. Agora, quem aprendeu samba numa escola, lá com o Carlinho de Jesus, que samba direitinho? Tem, não. Você aprende em casa, sambando com a mãe, sambando com a irmã, com o irmão, entendeu? Ali, vendo, pega aqui do lado. A Eduarda eu pego sempre pra dançar. Mas é dura! Nem parece que é minha filha. Mas aprendeu, ali em casa. É com os mais velhos que a gente aprende esse tipo de coisa, que nos dá satisfação. No final, no frigir dos ovos, eles vão sentar e falar assim: “Caraca, aquele careca filho da mãe estava certo, é verdade”. Eu já sei. Ó, eu tive essa graça, de ouvir isso: “Valeu, cara. Obrigado. O que você falou estava certo”. Isso é muito bom. Eu me alimento muito disso. E eu acho que os jovens me escutam. Então, hoje, eu tô conseguindo passar isso acho que pra um número maior de jovens. Espero que eu consiga.
P/1 - Pra terminar, o que você achou de ter contado, compartilhado um pouco da sua história? Um recorte, nunca é a totalidade do que aconteceu na sua vida, mas é um resgate das suas memórias. O que você achou de ter participado hoje?
R - Muito gostoso, muito tranquilo. Confesso que eu não esperava isso. Eu esperava uma coisa mais técnica, mais: “Corta. Não, ó, espera aí”. Não, você me deixou à vontade, eu falei tudo que eu quis. Eu entendi, consegui captar o que você queria de mim e fui soltando. Me senti super à vontade. Eu espero fazer isso de novo, mas, na próxima vez, eu quero um conforto maior pra equipe técnica, que eles estão aqui como? Tortos, acabados, tadinhos. Porque eu tô confortável, então, eu fiquei confortável sob todos os aspectos. Tanto de poder me expressar, como também de ser muito bem acolhido. E, cara, eu quero esse material depois, eu vou usar muito esse material, porque foi denso, teve uma densidade que eu não esperei que tivesse, eu gostei muito. Acho que foi uma terapia (risos). Eu não preciso pagar terapia mais, (risos) está feita, já. Quer mais?
P/1 - Muito obrigada...
R - Tá bom, tá ótimo.
P/1 - Muito obrigada, você foi… muito legal mesmo, de verdade, poder conhecer você. E com certeza você vai ter acesso a esse material, a gente vai liberar o certificado depois, que você tem…
R - Olha, mais um certificado, adoro. Sou colecionador de certificados. Muito legal.
P/1 - E vão ter os produtos, que a… o mini doc, a exposição virtual. Então vai estar em todo lugar, vai ser muito chique, muito legal (risos). Então eu agradeço muito a oportunidade.
R - Eu que agradeço a oportunidade.
P/1 - Agradeço também o pessoal aí. Obrigada! (risos)
R - Guerreiros, guerreiros, hein.
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