Entrevista de Maria do Carmo Pereira da Silva
Entrevistada por Bruna Oliveira e Luíza Gallo
São Paulo, 01/10/2021
Projeto: Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Realizada por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: PCSH_HV1045
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Dona Carminha, pra começar, por favor, eu queria que você falasse seu nome completo.
R – Meu nome é Maria do Carmo Pereira da Silva.
P/1 – E onde a senhora nasceu?
R – Nasci em Pedras de Fogo, na Paraíba.
P/1 – E em que data?
R – 1950.
P/1 – Você sabe o dia?
R – O dia não me lembro, me lembro só a data, que era dia 14/07/1950, mês sete.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – É Severino Adelino da Silva. O nome da minha mãe é Josefa Maria da Conceição.
P/1 – E o que é que eles faziam?
R – Eles trabalhavam na roça. Eles plantavam, colhiam pra comer, faziam isso.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Ah, meu pai era um senhor legal, um senhor trabalhador. A minha mãe trabalhava, plantava verdura: coentro, cebolinha, vendia na feira. A gente ia pra feira distante, a pé. A minha mãe era uma senhora guerreira, trabalhadeira. Ela morreu com 82 anos e meu pai com 100 anos.
P/1 – E a senhora sabe como eles se conheceram?
R – Não, não me lembro. Eu não me lembro. Sei que foi tudo lá no sítio mesmo, na roça mesmo, tudo lá no sítio, na roça.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho. Três irmãos e uma irmã.
P/1 – E como era a sua relação com eles?
R – Estão tudo bem, graças a Deus. Eles estão tudo bem. Eles estão tudo lá na Paraíba, lá no norte. Só tem um aqui em São Paulo, o caçula, que vende coco verde lá no Mercadão.
P/1 – E quando era pequeno, como que era?
R – Tudo legal, tudo pequeno, tudo trabalhador da roça. O meu pai os botava pra limpar capim e mato na roça, plantar: mandioca, batata-doce, feijão verde de rama, pra gente comer mesmo.
P/1 – E quando a senhora,...
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Entrevistada por Bruna Oliveira e Luíza Gallo
São Paulo, 01/10/2021
Projeto: Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Realizada por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: PCSH_HV1045
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Dona Carminha, pra começar, por favor, eu queria que você falasse seu nome completo.
R – Meu nome é Maria do Carmo Pereira da Silva.
P/1 – E onde a senhora nasceu?
R – Nasci em Pedras de Fogo, na Paraíba.
P/1 – E em que data?
R – 1950.
P/1 – Você sabe o dia?
R – O dia não me lembro, me lembro só a data, que era dia 14/07/1950, mês sete.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – É Severino Adelino da Silva. O nome da minha mãe é Josefa Maria da Conceição.
P/1 – E o que é que eles faziam?
R – Eles trabalhavam na roça. Eles plantavam, colhiam pra comer, faziam isso.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Ah, meu pai era um senhor legal, um senhor trabalhador. A minha mãe trabalhava, plantava verdura: coentro, cebolinha, vendia na feira. A gente ia pra feira distante, a pé. A minha mãe era uma senhora guerreira, trabalhadeira. Ela morreu com 82 anos e meu pai com 100 anos.
P/1 – E a senhora sabe como eles se conheceram?
R – Não, não me lembro. Eu não me lembro. Sei que foi tudo lá no sítio mesmo, na roça mesmo, tudo lá no sítio, na roça.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho. Três irmãos e uma irmã.
P/1 – E como era a sua relação com eles?
R – Estão tudo bem, graças a Deus. Eles estão tudo bem. Eles estão tudo lá na Paraíba, lá no norte. Só tem um aqui em São Paulo, o caçula, que vende coco verde lá no Mercadão.
P/1 – E quando era pequeno, como que era?
R – Tudo legal, tudo pequeno, tudo trabalhador da roça. O meu pai os botava pra limpar capim e mato na roça, plantar: mandioca, batata-doce, feijão verde de rama, pra gente comer mesmo.
P/1 – E quando a senhora, assim... ó, vamos combinar: vamos fechar os olhos e daí, quando a senhora pensa na primeira lembrança da sua vida, o que é que vem à sua cabeça?
R – Da minha vida? Ah, minha filha: sofrimento. Sofri muito pra criar meus filhos. Eu fiquei viúva muito nova, atrás do meu marido. Eu estava com ele, ia fazer 30 anos de vida e eu tinha 20 anos. Aí, me lembro de tudo isso. Ele foi morto nos meus braços. O rapaz atirou nele, ele muito bêbado, porque ele bebia, num bar, dormindo, debruçado, assim, na mesa, o rapaz veio numa bicicleta e atirou na cabeça dele. Dois tiros. Em 1981. Sou viúva desde 1981. Em 1987, vim pra São Paulo com meus filhos, trabalhar, criar, educar, dar estudo, que eu não tive estudo. Aí, eles todos sabem ler e escrever. Tenho um neto que vai fazer 33 anos, que é Rafael. Tenho duas netas e o resto tudo neto, tudo homem. E tenho um bisneto, vai fazer seis anos, primeiro bisneto. Um aninho e quatro meses e o outro com um aninho e seis meses. A minha vida é essa.
P/1 – Dona Carminha, voltando lá na infância ainda, um pouquinho, depois a gente vai perguntar mais pra frente, tá bom?
R – Tá bom, minha filha.
P/1 – Quando a senhora era pequenininha, tinha cheiros, comidas, costumes, festa de família, o que a senhora lembra?
R – Olha, a gente não tinha festa, porque os pais não deixavam a gente ir pra festa. Porque nem eu, nem a minha mãe, meu pai, nós não íamos à festa. Mas, assim, tinha cheiro de comida gostosa, que a minha mãe fazia, a gente se sentia bem, a gente comia bem, meu pai e minha mãe cuidavam muito da gente. Só não davam estudo, porque não tinha condições de dar estudo. E todos fomos criados na roça. E meu pai, naquele tempo, ele também não tinha estudo, a minha mãe também não tinha. E foi assim, a gente viveu a vida desse jeito. Mas tudo bem, eu era nova, jovem, curtia bastante em casa mesmo, o trabalho, a minha mãe e o meu pai.
P/1 – E o que a senhora gostava de comer?
R – Ah, de tudo. O meu pai comprava aquele cabrito ou chama bode, no norte. Ele matava e comia a carne, buchada, eu adorava. A galinha-de-capoeira, aquelas galinhas, a minha mãe batia o sangue, a gente comia, era gostoso demais. Aí fui criada comendo mandioca, que o povo chama macaxeira, aqui é mandioca. Plantava, nossa! Feijão verde, que aqui chama feijão de rama, com maxixe, quiabo, aquele molho de pimenta bem arretado. Eu amo pimenta, adoro pimenta. E como bastante pimenta. Mas uma infância boa, com saúde. Porque hoje a gente só está tudo doente, mas se Deus quiser, está tudo bem.
P/1 – E a senhora sabe a história de quando você nasceu, como que foi?
R – Minha mãe teve vinte e um filhos. Eu tive uma irmã que já faleceu, que tinha vinte e dois. Eu não me lembro bem, não. Porque, naquela época, a minha mãe teve filho e aí morreu, só se criaram nove. Ela sempre tinha os filhos em casa, não existia hospital, maternidade, naquela época, não existiam esses remédios pra evitar, não existia televisão. Aí, tudo isso só em casa do meu pai mesmo e da minha mãe. Mas tive uma infância boa, graças a Deus. Muito bem.
P/1 – E a casa era cheia?
R – Era cheia de criança, cheia de irmãos e irmãs. Minha mãe teve vinte e um filhos e os nove, são tudo legais, os homens e as mulheres.
P/1 – E a senhora sabe o nome, como foi escolhido o nome da senhora?
R – A minha mãe sempre... eu não sei falar porque a minha mãe escolheu o meu nome, Maria do Carmo. Agora, eu tive sete filhas mulheres, eu botei tudo nome... cinco, eu botei tudo o nome de Maria. E ela diz que escolhia, teve a minha irmã, teve Leonila, teve Maria, teve eu, que é Maria do Carmo, teve Severina. Ela só teve quatro filhas mulheres.
P/1 – E o resto era tudo homem?
R – O resto era tudo homem. Era isso.
P/1 – E quando a senhora era pequenininha, você lembra da sua casa?
R – Me lembro. Era no norte [Nordeste], numa casinha velha de taipa, coberta de palha de coqueiro. Porque não existia, nessa época, não existia telha, não existia aquelas coisas assim. Existia folha de cana, o olho da cana, a gente cobria, fazia. Não existia banheiro. Eram aqueles “rodeadozinhos” de folha de cana e um pauzinho atravessado, pra gente fazer as “precisão” ali. Porque não existia, era uma casinha velha de taipa. O meu pai ia pra mata, cortava as madeiras e enfiava os barrinhos, pra gente morar ali dentro. Não tinha água, não tinha luz. A luz era de candeeiro, aqueles candeeirinhos velhos. Comprava aquele gás de botar no candeeiro, aquele gás óleo, que o povo chama “gás óleo”. A vida da gente era essa, não existia luz, força, não existia nada. Tudo em uma casinha velha de taipa.
P/1 – E cabia todo mundo?
R – Cabia todo mundo. E a gente não tinha cama. A minha mãe fazia aquela caminha de vara e jogava aqueles paninhos no meio. Ou ela pegava aquele saco de açúcar. Eu me lembro da minha infância, tudinho. Ela pegava aquele saco, porque tinha aquele sacão de açúcar, que vendia nos mercados, nas coisas, ela fazia: costurava, botava umas coisinhas, aí amarrava com a cordinha, pra gente dormir ali dentro daquele saquinho, daquele paninho feito um modelinho de uma rede, assim. Aí, não tinha cama, não existia aquela rede boa, não tinha nada, só isso. Pra gente não dormir no chão, minha mãe mais meu pai chegavam, faziam aquelas camas com aquelas varas, jogava aqueles panos em cima, aqueles 'olhinhos' de coqueiro, pra ficar mole, pra não aparecer as madeiras. Forrava com os paninhos, que ela costurava. Tinha aquele saco de açúcar, de farinha de trigo, ela lavava, costurava e fazia os cobertores, para a gente cobrir. A gente não usava... hoje em dia é mordomia, hoje tem tudo que é bom, mas antes não existiam essas coisas. Minha infância era essa: casinha velha de taipa.
P/1 – E onde que ficava?
R – Lá no lado, lá por onde a gente morava mesmo, do lado da Paraíba, que eu nasci em sítio. Quando eu nasci, eu nasci já na rua, mas era aquela rua que tem lá ainda. Tem lá na Paraíba. E tem Pedras de Fogo em Pernambuco, né? Também Pedras de Fogo. Aqui é Pernambuco e aqui é Paraíba. Aí, existe Pedras de Fogo, que é dos prefeitos, que é do Pernambuco e da Paraíba. Dois hospitais. Justamente, porque esse ano eu estou indo ver a minha irmã que está doente, que tem problema de câncer, que está nos ossos. Aí, eu vou lá agora em novembro, se Deus quiser, em novembro, dezembro, eu vou lá, passar o Natal e o ‘Ano’ com ela. Só tem ela, porque as duas já faleceram, as duas mais velhas. Eu sou a caçula das mulheres. Minha infância é essa, minha filha.
P/1 – E tinha brincadeira?
R – Ó, a brincadeira, sabe a brincadeira que a gente fazia? Meu pai plantava milho, a gente pegava essa espiga de milho e fazia aqueles bonequinhos, aquelas bonequinhas, pra gente brincar. Dizia que eram bonequinhos. Ou, assim: pegava e costurava, a minha mãe ensinava a gente a costurar roupinha, fazia aquelas bonequinhas com as espigas, aquelas bonequinhas de milho. Na maniva, a gente pegava, furava o buraquinho, pegava a coisinha do coqueiro, fazia os bracinhos e as mãos. Não existia boneca naquela época, para a gente comprar. Se existisse, meu pai e minha mãe não tinham condição de dar pra gente, brinquedo nenhum. A gente fazia isso, lá.
P/1 – Mas gostava de brincar de boneca?
R – Ai, brinquei muito.
P/1 – É?
R – Brinquei. Brinquei muito. _______ a minha mãe tudinho. A gente brincava com essas coisinhas. A gente chegava lá, as vizinhas lá, as filhas das vizinhas da minha mãe e do meu pai, já a gente morava em sítio, assim, distante. No final de semana, no sábado e no domingo, aí, ia ver as menininhas, tudo garotinha, tudo pequenininha, ia tudo brincar de bonequinha. A gente fazia aquelas bonecas. Ou assim, pegava o barro, amassava, amassava, amassava e fazia aquelas panelinhas de barro, fazia pra brincar com as bonecas. Minha vida era essa, quando era jovem.
P/1 – E ajudava na roça?
R – Ajudava. Ô, meu pai saía, meu pai dizia, pra cada um, meu pai falava: “Ó, Carminha, você limpa esse lado aqui”, minha outra irmã, minha irmã, às vezes, ele fazia o palco e a rachadinha pequenininha e a gente ia limpar o mato, pra gente carpir os matinhos, limpar, apanhar feijão, colher feijão, plantar rama de batata-doce. Plantar feijão, milho, pra quando chegasse o mês de julho, a gente comer assado na fogueira. Minha mãe fazia pamonha. Minha mãe sabia fazer as pamonhas, pra gente comer.
P/1 – E o que a senhora gostava de fazer, naquela época?
R – Ah, ajudava minha mãe, fazia tudo. Eu sei fazer pamonha, eu sei fazer bolo de milho-verde, sei fazer bolo de tudo. Minha mãe fazia. A gente ficava lá ajudando, fazia de tudo. Fazia comida lá, minha mãe saía, ela ia pro rio, com trouxinha de roupa na cabeça e ia pros córregos lavar roupa. Lá nos córregos cheios de pedras, a gente ficava o dia todinho lá nas pedras, lavando as roupas e estendendo ________ e a gente vinha pra casa, com a roupa toda lavadinha. A minha mãe fazia aquele sabão de bola, ainda eu me lembro bem, aquele sabão caseiro, que eram aquelas bolonas. Aí ia pro rio, lavar roupa. E água, a gente botava o pote na cabeça e ia buscar bem distante, nos córregos, nas cacimbas, pra beber, pra comer, que não existia água encanada, aí a gente ia buscar e trazia. Minha mãe guardava aqueles potes de barro que eles compravam antigamente, porque não existia alumínio, o que existia era panela de barro. A gente cozinhava em panela de barro. Minha mãe cozinhava naquelas panelonas de barro, com aquela lenha, que a gente ia buscar na mata. Me perdi na mata uma vez, fui buscar lenha, fiquei perdida. Eu era pequenininha, juntei meu irmão e a minha irmã e fui buscar a lenha pra cozinhar, num lugar chamado Tabuleiro, lá nas matas. Aí, me deu vontade de beber água, eu fiquei com sede e falei assim pra minha irmã e meu irmão: “Eu vou em casa beber água”. Aí ele falou: “Não vai, não porque, se você for, você se perde”. Eu digo: “Eita. Perco não, porque eu sei”. Eu era pequenininha, dos seis anos pros sete. Eu digo: “Não me perco não, porque eu sei onde é a casa”. O quê! Eu me perdi, em vez de entrar no caminho de casa, entrei no outro caminho. Fiquei o dia todinho perdida dentro do mato, chorando com a cordinha e um paninho na mão. E chorando. Aí, veio, apareceu, mandada por Deus, uma senhora num cavalo, com um rapazinho e me viu lá chorando na beira da estrada: “Minha filha, o que você está fazendo?” “Moça, eu estou perdida. Eu estou morrendo de sede. E eu não sei onde é a minha casa”. Aí ele falou assim: “Como é o nome da sua mãe?” Eu digo: “O nome da minha mãe é Josefa. O povo a chama de Nazinha” “E o nome de seu pai?” Eu digo: “É Severino. O povo chama de Severino ______”. Não, ele conhecia o meu pai, disse assim: “Bom, monta aqui”. Ela botou eu, cansada, em cima do animal e levou pra casa dela. Eu só chorava. Ela me dava comida, eu não queria comer, porque eu queria meu pai e a minha mãe. Eu falava: “Não, eu quero ir –me embora, eu quero a minha mãe” “E o que você está fazendo aqui?”. Eu digo: “Meu irmão, minha irmã ficou aí, foi buscar lenha e eu, deu sede, disse que vinha pra casa. E ele disse: ‘Você não vai não, porque você não sabe o caminho’. E eu falei, insisti que sabia o caminho de casa, mas não estou, eu estou perdida. Não sei onde eu estou, moça”. Ela disse: “Monta aqui, eu vou levar você”. Aí, ficou o dia todinho, eu chorando, chorando. No outro dia, ela disse: “Qual o nome do seu pai?”. Eu digo: “Meu pai é Severino” “E a sua mãe?”, eu digo: “É Nazinha”. Aí, ela foi procurando saber e minha mãe procurando nos matos todinho, mais meu pai e os vizinhos e não me achavam. Aí, quando foi no outro dia, às dez horas - ainda me lembro, pequenininha, ainda me lembro - da manhã, aí ela foi procurar, aí achou a casa de meu pai. Era um sítio muito distante um pro outro, ela montou no animal, no cavalo e foi procurar a minha família, porque ela queria me criar, eu digo: “Não, não quero ir com a senhora” “Eu compro boneca pra você, brinquedo” “Eu não quero. Eu quero a minha mãe e meu pai”. Aí, ela falou assim: “Pois vou procurar, você chorando direto, você não quer comer. Estou vendo você ficar doente e eu não cuidar de você”. Aí ela perguntou meu nome, eu disse que o meu nome era Carminha, era Maria do Carmo, o povo me chamava de Carminha. Aí, ela foi e achou o meu pai e minha mãe. E o meu pai foi me buscar. Eu fiquei perdida dentro do mato.
P/1 – E a senhora lembra como que a senhora se sentiu, quando se perdeu?
R – Ave Maria, foi a maior tristeza do mundo, porque eu ficava triste, chorando. E quando meu pai foi me buscar, foi a maior alegria que eu senti dentro do meu coração, porque eu fui pra perto do meu pai e da minha mãe. Aí, janta. A minha mãe me abraçou e eu abracei chorando tudinho, porque eu era a caçula, só tinha eu de pequena. Aí a minha mãe ficou: “Nossa. Deus, meu Deus! Pedi muito a Deus”. E agradeceu a Deus a mulher ter me achado. Porque, já pensou? Podia acontecer tanta coisa, os bichos terem me comido dentro no mato, sem eu saber, enquanto eu andava e não achava o caminho de casa, perdida. Mas tudo foi prometido por Deus, por essa mulher me achar. Esse animal, a mulher, cheio de lenha. O cavalinho estava cheio de lenha. Ele me botou assim. Era tão longe, que ele me botou, porque eu não conseguia mais andar, cansada, chorando na estrada.
P/1 – E como é que foi crescendo?
R – Fui crescendo. E fui ficando... eu ia pra feira com a minha mãe. A minha mãe plantava coisas, cebola e eu ia vender com ela, na feira. E fui crescendo, crescendo. Depois, meu pai saiu do sítio, ficou cansado, não quis saber mais do sítio e alugou uma casa nesse lugar, na rua chamada Itambé, da Paraíba, ali em Pedras de Fogo. E fiquei-me lá, fui ficando moça, crescendo. E fui arrumar namorado. Aí foi, me casei. Casei não, me ajuntei. Não sou casada, me ajuntei. Aí, eu fazia doze anos, tinha treze anos. Tive oito filhos. Aí mataram o meu marido. Aí, eu fiquei lá tudinho. Eu tinha uma casinha lá, de taipa lá. Ainda, até hoje está lá essa casinha, lá no norte. Aí, sabe o que aconteceu? Eu fui, disse: “Eu vou”, que esse dinheirinho era muito pouco, naquela época era pouco, com os meus filhos pequenos, tudinho. A minha primeira filha tinha onze anos, a primeira filha, tive oito filhos e a primeira filha tinha onze. Aí, eu falei: “Não”, eu vim embora, me mudei para São Paulo. Eu tinha um irmão aqui em São Miguel, aí eu vim. Cheguei aqui, não quis ficar na casa do meu irmão. Aqui era tudo barraco, tudo favela, tudo favela, barraco. Aí cheguei aqui, aluguei um barraquinho, botei os meus filhos e fui procurar emprego. Arrumei emprego de fazer limpeza, trabalhei na rodoviária, carpindo mato, plantando grama, que eu sei fazer tudo. Aí, limpava mato. E subia no caminhão com chapéu de ______, ainda tenho a foto em casa. Descarregava o carro de gramado, pra plantar ali debaixo da rodoviária. E trabalhava. Quando era de tardezinha, quatro horas, cinco horas, vinha pra casa. Saía de manhã, vinha pra casa. Deixava os meus filhos com a minha filha mais velha, os pequenos. E ia. Deixava tudinho com a barriguinha cheia, deixava trocadinho de roupa. Aí, de manhã, eu vinha, almoçava em casa, deixava, dava tudinho. Aí, quando chovia aqui, minha filha, enchia isso tudo de água. Os bichinhos, eu chegava, os meninos estavam todos cheio de água, nadando dentro do barraco, tudo cheio de água, todos gritando, me chamando. Eu corria, quando batia chuva: “Carminha, corre, que está enchendo, a favela está enchendo de água”. Eu corria. Teve uma época que ficou água por aqui, olha, do córrego, da cheia. Foi. Aí foi o tempo que tiraram as barracas, a maioria, que começaram a construir os prédios. Aí fizeram um alojamento aqui em cima, aqui nesse morro era alojamento. Nossa, pegou muito fogo aí, nessa época de favela. Oxi, eu saía só com a roupa do couro e com o documento dos meus filhos, na rua. E ficavam os barracos lá, queimava tudo. Tinha vezes que, antes do fogo queimar, vinham os bombeiros, vinham as pessoas, apagavam o fogo. Aí depois a gente voltava. Sofri muito aqui nessa favela, pra criar os meus filhos. Mas não desisti. Dei estudo aos meus filhos. Meus filhos estudaram. E até hoje estamos morando aqui.
P/1 – Dona Carminha, vou voltar um pouco, que a senhora emendou e foi. Vamos voltar um pouquinho.
R – Tá bom.
P/1 – Mas daí a gente vai voltando depois, voltando pro começo. Para o fim. (risos)
R – Eu sei. Tá bom.
P/1 – Você falou que você ia com a sua mãe, lá na feira.
R – É. Aham.
P/1 – Pra vender.
R – Uhum.
P/1 – Como é que era lá?
R – A feira?
P/1 – É.
R – É uma feira muito grande lá, enorme. Vendia. A minha mãe saía, a gente chegava, a minha mãe botava o ‘balaiozinho’ assim, no chão. Tinha coentro, cebola, quiabo, que ela plantava e vendia. Depois que terminava, a gente vinha embora pra casa. Quando terminava a feira, a minha mãe comprava as coisinhas, as misturas, os negócios aí, pra dar de comer pra gente. Chegar em casa e poder comer. E ia pra casa. Aí, chegava em casa, a gente ia começar, a minha mãe começava, fazia aqueles ________ . Ia plantar de novo. Aí quando estava tudo grandinho, a gente voltava pra vender na feira, pra comprar aqueles tecidos pra fazer roupa pra gente, porque antigamente não tinha costureira. Aí ela mesmo cortava com a tesoura, eu me lembro de tudo isso. Ela cortava, pegava a agulha, franzia tudinho, assim, bem franzidinho. E aí fazia aquele saiote pra gente. Pegava, fazia aquele casaquinho com as manguinhas aqui, porque as meninas, hoje, andam, desfazendo, tudo peladas, né? Aí, ela fazia. Ficava na maior alegria, aqueles paninhos chamados chita. No norte chamava chita, aqueles paninhos miudinhos. Ela fazia. Nossa, a gente ficava na maior alegria do mundo, toda bonitona, com aquela roupa que a minha mãe fazia. Porque ela fazia em casa, costurava, ela mesma, porque não pagava costureira, porque não tinha condição de pagar, entendeu? Mas a minha infância foi tudo bem, graças a Deus.
P/1 – E a senhora tinha quantos anos, quando ia acompanhá-la?
R – Ah, tinha uns dez anos. Eu estava com dez anos, onze anos. Já vinha pra rua, a gente andava a pé, porque tinha dez anos para onze, eu já a acompanhava. Minha outra irmã ficava em casa com os meninos, a que mora lá no norte [Nordeste] e eu ia pra feira, com ela, porque a gente saía bem cedinho. Quatro horas da manhã, a gente levantava e saía caminhando, pra ir pra feira, porque era um pouco distante. Aí saía pra vender, pra ir pra feira, logo de manhã. Quando eram onze horas, dez horas, onze horas, não tinha mais nada. Ela comprava as coisas, comprava as comidas, as carnes, as misturas e o açúcar, café. E aí levava pra casa, porque o feijão e a batata e a macaxeira, que é como chama no norte, macaxeira já tinha, porque o meu pai mesmo plantava. A gente só comprava, só o açúcar, café, sal, sabão, o negócio do gás, pra botar no candeeiro, o gás óleo, assim.
P/1 – E criava bicho, naquela época?
R – Criava, minha mãe criava bode, cabra de leite, pra gente comer. E não comprava leite em pó, não, minha filha, a gente foi criado no leite da cabra, da vaca. A minha mãe dava de comer. A gente não comia esse leite, não. Porque a minha mãe criava. Era de manhãzinha, levantava, amarrava o bode, o cabrito, sustentava, tirava o leite, cozinhava e dava pra gente comer. A gente comia com fubá, com farinha. Porque a gente não tinha, naquela época não tinha pão, não existia pão pra gente, porque era caro. Porque a gente comprava pão só quando ia na feira, na segunda-feira. A feira lá era na segunda-feira. Aí, a minha mãe trazia o pacotinho de pão, pra gente comer quando ela chegasse, que era na terça-feira, no caso. Mas na semana era fubá e farinha e macaxeira, batata. Tudo isso. E feijão.
P/1 – E a senhora gostava?
R – Ave Maria, até hoje eu como, até hoje eu amo minha fubá. Eu como tudo: batata, Ave Maria, farinha. Eu como tudo, graças a Deus. Feijão, tudo as coisas do norte, carne tudo, peixe, tudo que vier, eu como, a mesma coisa, graças a Deus.
(24:16) P/1 – E nessa época, a senhora ia pra escola?
R – Nada. Que nada! A minha mãe não botava a gente na escola, nem meu pai, não. Aqui na roça, ninguém fez estudo de nada. Olha, a minha mãe teve vinte e um filhos, criou-se nove, mas tudo analfabeto. De homem e mulher, nenhum sabe ler, nem escrever, nem fazer o nome. Um ainda sabe fazer uns nomes, nem escrever, não sabem nada, tudo analfabeto. E tudo trabalha.
P/1 – E como foi, a senhora foi crescendo, aí você falou que conheceu o seu marido. Quantos anos a senhora tinha?
R – Quando eu o conheci? Eu estava com dezessete anos e ele com dezoito. Eu estive com ele treze anos.
P/1 – E como foi que você conheceu?
R – Olha, eu fui pra uma festa. Lá existiam aquelas festas, a gente ia, assim. Eu era solteira, aí eu fui pra festa, com uma colega minha, chamada Maria. Cheguei lá na festa e encontrei esse rapaz, foi a primeira vez e a primeira vez, ele me levou. Eu fugi com ele no mesmo dia, você acredita? Na noite que eu o conheci, comecei lá a beber guaraná, conversar com ele, ficar com ele lá, tudinho. Aí, ele foi e falou assim: “Você tem coragem de morar comigo hoje? Eu levo você”. Eu digo: “Oxi, que eu vou morar pra você? Eu não conheço você, não sei quem é a sua família. Nem você me conhece, a minha família”, “Não, mas eu gostei muito de você. Eu vivo criado com a avó. Avó. Eu tive mãe, mas minha mãe me deixou com a minha avó. A minha mãe mora no Recife, em Pernambuco, no Recife e eu vivo com a avó na casinha de taipa, de palha lá, casinha de palha”. Quando chovia, a chuva vinha do céu, já estavam aquelas “pingueiras” molhando dentro de casa. Aí, eu falei: “Não. Ah, se eu for, se for morar mais eu, quer me levar, pra morar comigo, você tem que falar com o meu pai e com a minha mãe”. Aí disse: “Não. Eu vou falar com o seu pai e com a sua mãe”. Aí, isso foi numa segunda-feira, eu lembro que dia foi, a festa foi no domingo à noite. Na segunda-feira de manhã ele foi, chegou lá e falou pro meu pai e pra minha mãe que gostou muito de mim e ia me levar. Aí, me levou. E fiquei com ele até essa data, só separei por morte, quando mataram o meu marido, quando o mataram. Aí tive oito filhos dele, com ele. Nunca me casei, não. Levou e eu fiquei ainda até nessa data.
P/1 – E como era o nome dele?
R – O nome dele era Osvaldo, mas chamavam ele de Nivaldo, que é o avô dos meninos.
P/1 – E como foi, a senhora se juntou com ele e daí foi tendo os filhos?
R – Foi.
P/1 – É?
R – Eu, com dezoito anos, tive a primeira filha, com dezoito anos. Ele era mais velho do que eu, um ano. Eu tinha dezessete, ele tinha dezoito. Aí, quando eu fiz dezoito anos, eu engravidei da primeira filha. É aquela que eu mostrei pra você, a Maria da Penha, ela tem cinquenta e um anos. A minha primeira filha tem 51 anos.
P/1 – E como foi ser mãe?
R – Ah, minha filha, não gostei bem não, mas foi o jeito. (risos) Eu me operei logo. Quis logo me operar, porque já estava com oito filhos. Assim, quando o mataram, eu tinha sete filhos, eu tive seis de tempo e um aborto de três meses. Aí eu digo que é filho, porque é aborto. Só que, quando o mataram, eu estava com dois meses de gravidez. Aí, ele falou assim, quando era vivo: “Olha, Carminha, eu vou mandar, pagar para operar você, porque já basta um monte de filhos. Você já teve, com esse, oito filhos. Quando for uma mulher, você opera”. Eu disse: “Tá bom”. Aí eu fiquei com aquilo na minha cabeça. Quando o mataram, eu não abortei, nem nada, o mataram em 1981. Quando foi em 1982, em janeiro, dia dezoito de janeiro, eu fiz uma cesárea e uma ligação. Eu paguei, eu vendi uma geladeira que eu tinha. Ele tinha deixado uma geladeira vermelha, nessa época. Eu me lembro tudinho, vermelha. Fui em Goiana lá, pro lado de Pernambuco, falei com o médico, tratei com o médico, pra me operar, fazer uma cesárea e uma ligação. Aí fiquei fazendo o tratamento com ele. Ele fez o pré-natal. Aí, ele falou: “Quando você estiver sofrendo alguma dorzinha, você venha aqui, que eu lhe opero”. Quando eu comecei a sentir uma dorzinha, fui pra lá, ele foi e me operou. Fez cesárea. Com dezoito dias, a menina faleceu, depois de operada, faleceu. Também não quis mais filhos, não. Fiquei nova ainda, viúva nova, trinta e poucos anos. Aí, não tive mais filhos e pronto, só tive esses, mesmo.
P/1 – E como foi esse momento? Como foi perder o seu marido?
R – Ó, minha filha, foi tristeza. Eu estava dormindo com as crianças em casa e ele estava bebendo, tinha saído. Ele tinha um carro velho, naquela época, porque ele arrumava carro, ajeitava. Ele estava com o carro velho e saiu pra beber. Acho que ele foi e discutiu com um rapaz. Ele tinha um conhecido lá, nascido e criado lá, em Pedras de Fogo. Ele conheceu um filho de fazendeiro, que era o que fazia serviço junto no carro do pai dele. E esse rapaz estava na praça com a namorada. Aí, no acontecimento, ele, muito bêbado, o carro velho dele estancou, não tinha mais, acabou a gasolina. Ele foi e botou a mão no ombro dele e da moça que estava com ele, num banco de uma praça, perto de uma igreja. Aí, falou, pediu para dar uma força pra empurrar o carro, pra tirar da rua, pra encostar. O rapaz falou que não ia empurrar o carro, em frente da moça, filho de fazendeiro, filho de rico e ele era fraco, pobre, né? Ele foi e começou a xingá-lo com aquelas palavras que eu não posso falar. Aí, mandou assim que era filho de papai, não ajuda os pobres: “Eu conheci o seu pai” e eu sei que ele não gostou. E sabe o que ele fez? Botou a moça em casa. Pegou a bicicleta do pai dele, da mãe dele, botou um revólver na cinta, do pai dele, que era fazendeiro, porque esse povo todo tem arma e foi atrás do meu marido. Ele em vez de vir pra casa, ele não foi, ele subiu pra um lugar que chamava antigamente zona, né? Aí, chegou lá, pediu uma cerveja, lá no bar da mulher. Ele estava tão bêbado, que quando a mulher foi buscar a cerveja, abrir a geladeira pra botar pra ele, ele ali mesmo se debruçou e ficou dormindo. Aí o cara foi, passou assim na rua e viu ele debruçado assim. Com a arma, na porta do bar, deu dois tiros. Quando ele tomou o susto, caiu com os pés pro lado de dentro e a cabeça pro lado de fora. Aí, o socorreram, levaram pra ambulância, levaram para Recife, quando chegou no caminho, ele faleceu. Ele faleceu nos meus braços. Vieram me acordar. Eu corri desesperada, só de camisola. Ainda: “Não, não, vista a roupa que o seu marido está no hospital, mas não está morto, não”. Mas ele já estava nas últimas, né? Aí, levaram pro Recife, pro Hospital da Restauração, quando chegou na metade do caminho, ele faleceu. Ave Maria, ele pegava a minha mão e dizia o nome do cara que tinha atirado nele: “Foi Feu, foi Feu que me atirou. Atirou n’eu. Atirou n’eu”. Aí depois, ele estava com um menino, esse que morreu aqui, tinha nove anos, aí ele contou tudinho. O menino contou tudinho, que ele tinha batido a mão no ombro da namorada dele e ele achou ruim. O que aconteceu foi isso aí. Morreu novo. Uma besteirinha, só. Por causa de umas palavras. Antigamente ninguém... agora é festa, né? Agora todo mundo pode dizer as coisas, que fica nisso mesmo, não acontece muita coisa. Mas de primeiro, a mãe não podia ser xingada, nem o pai, nada disso, os caras matavam. Aí o negócio de morte, é isso.
P/1 – E quantos anos a senhora tinha, nessa época?
R – Ele estava com trinta e três anos. Ele ia fazer trinta e três anos. E eu estava, que eu era mais nova, eu estava com trinta e dois. Não, trinta e um, que ele tinha, até. Trinta e um. Eu estava com trinta e um anos. Eu fiquei, com trinta e um anos, viúva. Ele ia fazer no mês de julho, junho, no dia dezenove, ele veio a fazer trinta e três anos, morreu antes de completar.
P/1 – E, nessa época, a senhora trabalhava? Ou só cuidava...
R – Não, não trabalhava, só cuidava dos filhos. Ele que trabalhava. Eu vim trabalhar depois, em 1988, que eu vim pra São Paulo, para criar os meus filhos sem ele. E eu só vim porque ele não estava vivo, tinha falecido.
P/1 – E no que ele trabalhava, antes de falecer?
R – Ele? Arrumava carro. Ele arrumava os carros dos conhecidos lá. E trabalhava na prefeitura, ganhava um salário-mínimo da prefeitura. Aí eu me aposentei pelo salário-mínimo, pensionista, fiquei com a pensão dele, com um salário-mínimo. Mas graças a Deus, eu agradeço muito a Deus, eu ter esse dinheirinho pra comer e dar de comer pros meus filhos. Agora não, que os meus filhos estão todos maiores, todos trabalham. Aí fica pra eu comer, mesmo, graças a Deus.
P/1 – E quem contou pra senhora, quando ele morreu? Quem foi chamar?
R – O que tinha acontecido?
P/1 – É.
R – O vizinho da minha casa que estava com ele, o rapaz, me contou tudinho. Ele me acordou, bateu na porta, ia dar onze horas da noite. Aí, ele me chamou: “Carminha” “O que é?”. Aí eu falei: “O que é, quem é?” Ele disse: “É Clóvis”. Eu digo: “O que é, Clóvis?” Ele disse assim: “Abre aqui a porta”. Eu disse: “Tu trouxeste o Nivaldo?”, eu o chamava de Nivaldo. Era Osvaldo, mas o apelido dele era Nivaldo. Ele disse: “Não, Carminha. Não trouxe, não. Abre aqui a porta”. Eu digo: “O que foi que aconteceu? Por que tu não trouxeste?” Ele: “Não, ele está bêbado”. Ele não quis me dar o susto, que eu estava grávida, com dois meses. “Não, Carminha, não, não. Ele está lá em cima. Eu fui chamá-lo, ele não quis, não. Mas tu veste a roupa, pra tu ir lá chamar e buscá-lo?”. Ele não quis me dar o susto. Quando chegou no caminho, ele falou, né? Eu fui com ele, caminhando, chegou um fusquinha e me botou no fusquinha e me levou pro hospital. Chegou lá, ele falou: “Não, ele levou o tiro e foi o Alfeu que bateu nele”. Aí contou a história pra mim. Aí eu fui pro Recife, com ele. Ele morreu no caminho, faleceu. Ele descobriu, antes de morrer ele falou pra mim: “Carminha, eu vou morrer. Eu não vou escapar. Mas quem atirou em mim foi o Alfeu”. Aí, naquilo, apertou a minha mão e como botava muito sangue, aí foi quando, chegou na porta do hospital lá, no Hospital do Recife, aí eles pegaram a maca, ele já estava falecido. Aí eu voltei. Aí, ligou pro prefeito, o prefeito mandou buscar o corpo dele, pra ser enterrado lá onde ele...
P/1 – Como que foi se deparar, assim, com a morte do seu companheiro e começar a criar os seus filhos, sozinha?
R – Ô, minha filha, foi sofrimento. Terrível, né? Porque, criar filho sem pai, pra educar, fazer tudo por eles, eu fui a mãe e o pai deles. Aí foi, foi indo. Até hoje os meus filhos falam: “Olha, eu não conheci o meu pai. Não tive o amor do meu pai, mas eu tive a minha mãe, que foi o meu pai e a minha mãe”. Até o Dia dos Pais, eles vão e me dão presente, assim: “Toma, mãe, que a senhora é a minha mãe e o meu pai”. Eles consideram. A maioria dos meus filhos são amorosos demais comigo. Até aquele cavalão lá, o Rafael, quando eu chego perto: “Cuidado”, ele: “Ô, minha avó, eu lhe amo”. Mas eu, graças a Deus, soube criar os meus filhos. Em nome de Jesus, eu soube criar. Aí, quando chega o Dia dos Pais, aí chega a minha filha: “Toma, mãe”. Eu digo: “Oxente, minha filha, eu não sou...” “Não. Mas a senhora é meu pai, que a gente tem o amor”. Aquela menina que agora está com quarenta e um anos, ficou com um ano e nove meses, ela não soube o que foi o amor de pai. Aí ela diz assim: “O amor de pai é minha mãe”. (choro) Desculpa.
(36:46) P/1 – Dona Carminha, e como foi a decisão de vir pra cá?
R – Sabe uma coisa? Porque foi assim: eu botei na cabeça. Eu já tinha um irmão aqui em São Miguel. Ele morava aqui, já faleceu. Aí eu falava, assim, sempre: “Eu ainda vou conhecer São Paulo”. O povo falava em São Paulo, né? Que tinha emprego, tinha trabalho. Naquela época, todo mundo trabalhava, né? Tanto analfabeto, quanto quem sabia ler. Portanto, era quem soubesse trabalhar. E quem era do norte [Nordeste], eles já adoravam as pessoas, porque as pessoas, as mulheres, são pessoas trabalhadeiras e “respeitadeiras” e não gostam de pegar nada dos outros. Aí eu cheguei, eu vim no meu irmão. Cheguei, falei. O meu irmão disse assim: “Tá bom”. Aí que eu falei: “Eu não vou ficar na casa de irmão, com os filhos”. Com quatro filhos. Sabe de uma coisa? Aí eu passei na rodoviária e vi essa favela aqui. Eu pensei: “Eu vou naquela favela, arrumar uma casa ali pra eu morar com os meus filhos, porque eu não vou ficar na casa da família”. Aí quando eu cheguei aqui, meio desconfiada, sem conhecer nada, vim vindo, vim caminhando. Teve um rapaz, que tinha uns barracos que ele alugava, chamado Mineiro, ele já faleceu. Aí na avenida, ali, no bloco vinte e seis, pro vinte e quatro. Aí eu falei assim: “Moço, me indicaram que o senhor aluga barraco pras pessoas”. Ele falou: “Alugo, Dona Maria”. Aí eu falei: “O senhor não pode alugar um pra mim, não? Porque eu vim do norte, eu tenho filho. Queria ficar aqui, porque eu não tenho condição de pagar o aluguel de casa grande, assim, casa boa. E o barraquinho dá pra eu pagar porque é mais barato. E eu ganho só um salário-mínimo” - nessa época, o salário-mínimo, você sabe - “E eu estou procurando trabalho. Eu vou trabalhar. E eu fiz a ficha, agora. E eu vou esperar o homem me chamar”. Aí ele disse assim, tal, aí foi, ele disse: “Tem um barraquinho ali pra senhora. Vamos lá ver se serve pra senhora”. Aí eu olhei. Meio todo cheio de tábua, cheio de rato, cheio d’água, passava o córrego aí. O córrego de baixo, passava por trás. Eu digo: “Tá bom. O senhor me aluga?”. Aí foi, eu disse: “Pronto. Eu vou vir, viu? Pode deixar. Pode me dar a chave que, quando eu receber a minha pensão, aí quando eu receber o meu dinheiro, eu trago o seu aluguel.” Aí eu nem lembro que foi essa época. Foi em 1981. Não sei nem se foi. Naquela época, o dinheiro parecia que era vinte, ou trinta reais. Naquela época, em 1981. “Tá bom”. Aí peguei a chave. Isso foi no sábado. Quando foi no domingo, eu vim embora com os meus filhos. Tudinho. Eu vim só com a roupa do corpo e as trouxinhas nas caixas, pronto. Cheguei, me enfiei aí. Fui no conhecimento. Um me arrumou um fogão. Eu recebi o dinheiro, comprei um bujãozinho. E fui e fiz. Arrumei uma caminha velha lá e forrava, botava o colchãozinho de solteiro em cima e dormimos aí, filha. Fui vivendo, até quando Deus quis, eu comprei minhas coisinhas tudo. Aí foi a época que saiu a favela. Começou o alojamento. Fomos pro alojamento, fomos cadastrados. Aí se cadastrou para pagar o aluguel. O homem, a mulher, nem homem não podia ter um monte de barraco, só tinha direito a um apartamento, cada um, então ele foi e deixou pra gente. Aí foi, cadastrou os nomes. Pronto, fomos pro alojamento, do alojamento fomos pro apartamento. Primeiro construiu na avenida, depois construíram atrás. Faz vinte e cinco anos que estão aí os apartamentos. Mas aqui é bom demais para morar, minha filha, é no centro da cidade. Aí tudo é bom demais. Só que tem gente aqui que não dá valor, né? Não sabe o que é uma moradia. Fazer o quê?
P/1 – Quando a senhora decidiu vir pra cá, você veio direto, com as crianças?
R – Vim direto com as crianças. Direto. Não deixei lá pra ir buscar, não. Eu vim direto, estou falando, eu passei só uns dois dias na casa do meu irmão, com os meus filhos, em São Miguel. Aí fui procurar trabalho aqui na rodoviária, já achei serviço aqui e já vim direto. E fui pegá-los em São Miguel e vim morar aqui. Não os deixei, não. Vim direto pra cá.
P/1 – E como foi a viagem?
R – Foi boa. Porque, naquela época, as crianças não pagavam. Quem pagava eram só os adultos. Três dias, porque são três dias com duas noites. Tudo era ( muita amizade, onde as pessoas me ajudavam com as crianças. Dava comida, lanche, pra gente comer. E pronto. Comprava marmitex nas paradas, comida e comia entre a gente. Eu não tinha mais criancinha de leite, porque a minha filha já estava com sete anos. A Cláudia veio pra aqui com sete anos. Aí está tudo bem, graças a Deus.
P/1 – Foi de ônibus?
R – Foi de ônibus. Viemos de ônibus.
P/1 – Melhor, né?
R – É. Aqueles ônibus velhos, antigos. Agora não. Porque agora é chique os ônibus, né? Eram antigos, aqueles ônibus velhos. Mas viemos de ônibus.
P/1 – Foram três dias?
R – Três dias, com duas noites. E se eu for agora, também são três dias, com duas noites. Se eu sair, vamos supor, hoje, só chego no domingo, lá. São três dias, de onde eu moro, na Paraíba. De ônibus, né? De avião é rápido, né? (risos)
P/1 – E como foi a primeira impressão, quando chegou aqui em São Paulo?
R – Ô, minha filha, me deu um desespero. Um desespero muito grande, porque a gente é acostumada, criada lá nas terras da gente. Já vim velha pra cá com essas crianças. Aí eu vi essas crianças, eu disse: “Meu Deus, será que vai dar certo, meu Deus? Será, meu Jesus, que eu não vou sofrer aqui, com essas crianças?” Mas Deus foi tão maravilhoso, que eu não sofri, não. Todo mundo me deu apoio. E hoje - até hoje eu moro aqui - todo mundo, graças a Deus, me respeita. Ave Maria, me conhece demais, eu, aqui. Posso chegar a hora que eu quiser, aqui. Todo mundo, graças a Deus, de homem e mulher, me respeita. Todo mundo gosta de mim, graças a Deus, meu Deus. Porque eu sei entrar e sei sair, não me envolvo com a vida de ninguém. Cada um que cuide de si, que Deus cuida de todos.
P/1 – E como foi começar a morar aqui?
R – Ah, foi bom, porque tudo era pertinho. A rodoviária ali. Quando eu queria ir embora, eu ia a pé. Aí o shopping, o Carrefour, o metrô, tudo perto. Antigamente, não... o Carandiru, ali, você lembra? Quando mataram aquele monte de gente ali no Carandiru, eu estava aqui, morando aqui, tudo. Teve aquela saga aí no Carandiru, né? Mas foi bom. Gostei. Me acostumei rápido aqui, mais meus filhos. Meus filhos todinhos moram aqui. Nunca saí daqui pra canto nenhum, não. Tudo é criado, tudo aqui.
P/1 – Foi em 1987.
R – Foi. 1987. Viemos pra São Paulo em 1987. Eu me lembro como se fosse hoje. E era um mês, foi até uma data no mês de agosto. Ih, era um frio! Que os lábios da gente, chega ficavam tudo rachado. A gente tinha que usar aquelas banhas, aquela banha nos lábios dos meninos, aquele batom, pra não rachar, dar ferida. Foi. Aí meu irmão falava assim: “Ai, meu Deus, como é que está a minha irmã? Morando lá, sem cobertor”. Aí foi, mandou me chamar. Foi na loja, comprou uns cobertores de lã, para enrolar eu e os meus filhos, de casal. Comprou uns três cobertores e disse: “Toma. Se enrola. Se agasalha, pra você estar dormindo”. Foi.
P/1 – Aqui era mais frio que lá, né?
R – É. Ô. Lá no norte [Nordeste] não tem frio, não. Lá é quente. Lá é calor. Na Paraíba e Pernambuco é quente pra caramba. Não faz frio lá, não. E aqui, em 1987, aqui fazia um frio de... nossa! Agora o frio é melhor, agora é pouco. Não é como antigamente, mais não. Faz frio, ó e já está esquentando, né? (risos)
R – E como era o barraco que a senhora morava?
P/1 – Era de tábua. Só um cômodo, só. Só era um cômodo. Ali era, tudo ali ficava, não tinha divisão de nada. Era de tábua. Tudo de tábua. Pisinho passado cimento, em preto, embaixo, somente. Às vezes, quando chovia, aí dava cheia, ficavam todos encolhidinhos em cima da cama, pra não ficar molhado. Porque a água passava por baixo do barraquinho. Mas, graças a Deus, agora Deus deu a obra pra gente.
P/1 – E a senhora voltava bastante pra Pedras de Fogo, ou não?
R – Não. Eu passei um tempo sem voltar. Eu voltei agora, pra passear. Depois que eu fiquei, agora que os meus filhos estão todos grandes. O ano passado eu fui, passei Natal e ‘Ano’. E esse ano eu vou de novo. Sempre eu vou. Vou ali na rodoviária, compro a passagem, às vezes, eu pago menos da metade. E viajo, né? Porque quem é aposentado tem direito a um desconto. Só de ônibus. Porque em avião, não. Aí sempre eu viajo.
P/2 – Dona Carminha, como foi começar a procurar emprego?
R – Ô, minha filha, porque foi assim: eu estava só com aquele "salarinho", eu pensei: “Não vai dar”. Porque eu estava pagando aluguel e tendo que comprar comida pros meus filhos. Eu falei: “Sabe de uma coisa? Eu vou procurar". Aí saía. Sem saber ler, mesmo. E aí eu perguntava pros moços: “Moço, sabe dizer onde que está pegando alguém pra limpeza?” Aí eles falavam: “Olha, vai ali”, eles indicavam, eu ia. Chegava lá, batia palma, falava, né? “Estou com os meus documentos”. Aí eles falavam: “Tá bom. Hoje a senhora não vem, não, não está preparando ficha. Amanhã, a senhora vem, que a gente faz a ficha, conversa com a senhora”. Aí eu vinha falar e eles perguntavam onde eu morava, de onde eu vinha, quantos filhos eu tinha, se eu sabia ler, se eu sabia escrever. Eu digo: “Não. Como uma entrevista que eu estou dando aqui, a você”. Aí eles falaram: “Quando for amanhã, você venha pra cá, que a gente dá a resposta”. Eu dizia que ia, porque antigamente, não existia esse negócio de currículo e leitura. Aí, quando no outro dia, eu digo: “E aí, moço? Como é?”. Ele disse: “Depois tu vem, ó, ele vai dar o uniforme pra senhora e a senhora vai trabalhar”. Aí eu ia trabalhar. Quando passava tempo, eu trabalhava. Quando aquelas empresas contratavam. Quando terminava o contrato, ele dizia assim: “Olha, Dona Maria, a gente vai pagar os seus tempos e a senhora arruma outro, porque já terminou o contrato”. Trabalhei muito por aí, nas limpezas.
P/1 – Na limpeza?
R – É. Tem dez anos de registro na minha carteira. Dez anos.
P/1 – E pra que lado a senhora trabalhava?
R – Eu trabalhava mais por aqui.
P/1 – É?
R – É. Trabalhava mais por aqui. Não trabalhava muito longe, não. Trabalhava por aqui por perto, sabe? Em limpeza. Antigamente, tinha muita procura, precisava das pessoas de limpeza. Trabalhei no pronto-socorro. Porque, nessa época, a empresa chamava Brasilita. Eu trabalhei muito aí no pronto-socorro, de limpeza. Era ______ .
P/1 – Como é que fazia, pra cuidar dos filhos?
R – Eu deixava a menina. Eu cuidava. Levantava de manhã, dava café, tudinho. Porque aquela hora de eu ir pro serviço, deixava todos com a barriguinha cheia. Deixava a comidinha pronta, porque eu fazia tudo à noite. Lavava a roupa à noite. Aí eu deixava a menina para cuidar dos menores, eu digo: “Fica aí”. E quando era pra ir pra escola, vinha pra botá-los na escola, mandava a mais velha, assim: “Leva os seus irmãos pra escola. Vista. Dê um banho”. Aí levava, que eles sempre estudaram aqui pertinho, né? Estudavam aí, estudavam ali no Ruy Barbosa. Aí eles iam. De pé mesmo, caminhando, com os vizinhos maiores, os meninos das vizinhas, dos barracos, que moravam aí, da favela. Aí, pronto. Foi tudo estudando. Estudando. Trabalhando e estudando.
P/1 – E me conta como é que foi o fogo. Quando aconteceu a primeira vez, aí na Zaki Narchi, a senhora já estava aqui?
R – Estava, minha filha. Uhhh! Minha filha, eu acho que o povo, povo muito doido, louco, de bebida, usando, emendava o fio, não tinha energia. Naquela época, ninguém tinha, botava luz, eram aquelas velas. Aí a vela, acho que caía e pegava fogo, quando dava fé e via, era um horror de fogo. Aí falavam: “Fogo! Fogo! Fogo!”, gritando. A gente todinha corria, pegava os filhos, as crianças, deixava tudo. Pegava os documentos e descia. Vinha tudo pra avenida. Enchia essa avenida de gente. Porque o fogo ia pegando por aí, nos barracos e a gente na avenida, aqui, nessa rua aqui. Quando não era essa aqui, era aquela de trás, entendeu? Pronto. Quando descia, o fogo já estava alto, o povo gritando. Às vezes, era de noite, a gente acordava com os gritos. Às vezes, era de dia, porque de dia, a gente estava. Aí, quando eu estava trabalhando, aí passava na televisão, passavam as coisas pra avisar. E corriam me avisar. Aí a vizinha já tirava os meus filhos, já corria com eles pra fora. Graças a Deus, nunca queimou meus filhos, não. Nenhum, graças a Deus. Porque, às vezes, queimava as coisas. O povo chegava, dava doação, um ajudava, outro ajudava. Tinha que construir tudo de novo. E aí tocava a vida pra frente. Viver a vida pra frente. Porque aqui tem muitas pessoas boas, do coração bom, aí.
P/1 – Mas já pegou fogo no barraco?
R – Pegou.
P/1 – No seu?
R – Pegou.
P/1 – É?
R – Pegou. Pegou fogo. Depois, a gente voltava, construía, às vezes, um barraco de madeira, de tábua, construía forro. Aí fazia de novo. Aí arrumava a privada. Eu ainda tenho a cicatriz aqui. Quer ver? Deixa eu ver. Olha aqui, ó. Isso aqui foi, olha aí, está vendo? Isso aqui foi um corte de um pedaço de uma privada que caiu em cima do meu braço e eu levei o corte. Está vendo? Aí fui parar no pronto-socorro. Eu tenho essa cicatriz faz tempo, isso. Um pedaço aqui da louça que caiu, cortou. Levei sete pontos.
P/1 – Nossa!
R – Foi. Cuidando lá, fazendo os barracos. E a água, minha filha, quando dava cheia aqui, entupia tudo. Enchia essa rua aqui. Era tudo cheio d’água, essa rua aqui. Ixi, nossa Senhora! Era muita água. A água costuma passar por aqui empurrando os carros, os moleques.. Oxi, todo mundo ia pra cima, pra um lugar seco e deixava. Subia as coisas que davam pra subir. Pegava os documentos dos meninos e saía. Depois, quando a água baixava, a gente voltava para limpar o barraco, quando parava de chover.
P/1 – Então, às vezes, perdia pro fogo, às vezes, pra água.
R – E para água. É. Porque dava muita enchente. Não tinha tubulação antigamente. Naquela época era tudo rua com córrego, era à vontade. Agora deixou de ter enchente por aqui, depois que construíram.
P/1 – E como foi criar as crianças aqui?
R – Ai, eu gostei, acostumei. Gosto que, graças a Deus, todo mundo respeita os meus filhos. Eles são pessoas que não fazem mal pra ninguém, graças a Deus. Todo mundo gosta deles. Todos trabalham. Não vivem de bagunça. Eles não vivem de balada. A minha filha, eu criei a minha filha aqui, ó. Eu não a deixava ir em balada; ela não bebia; ela não fumava cigarro; ela não vestia roupinha, essas coisas. Era do meu jeito, que eu fui criada no norte [Nordeste]. Eu criei os meus filhos assim. Até hoje. Elas estão todas velhas, quando elas falavam, eu digo: “Epa, fala baixo, que eu sou a sua mãe”. Aí ela fica calada, baixinho. Graças a Deus, eu soube criar os meus filhos. Como mãe e pai, eu criei os meus filhos bem, graças a Deus. Não tem o que falar, nem meus netos. Os meus netos, até hoje eu falo: “Olha, respeite a sua avó, hein? Você sabe como a sua avó é”. Ele: “Tá bom, vó. Tá bom. Tá bom”. Pronto. Aí fica calado. Tem um que faz agora, agora no dia catorze, vai fazer - o da Penha, o caçula dela - dezoito anos. Está na fase de Exército, ele. E os outros estão, todos têm suas mulheres, estão casados, têm família.
P/2 – E como funcionavam as doações?
R – Aqui?
P/2 – É. Essa ajuda coletiva, quando tinha incêndio ou enchente.
R – Vinha, chegavam as pessoas mais velhas, aqui. Cuidavam e davam pra gente roupa, calçado, cesta básica. Vinha coisa, móvel usado, fogão, geladeira usada, cama. Eles davam pra quem estava precisando, dos barraquinhos. Mas eles doavam pra todo mundo.
P/2 – Sempre teve aqui, doação?
R – Teve. Teve incêndio aqui, enchente, eles ajudaram bastante. As pessoas sempre ajudaram bastante. Não vou dizer que não ajuda. Ajudaram. E até hoje, você sabe. Que tem ainda que fica doando, comida, né? Aqui. Porque as mulheres aqui têm tudo preguiça, não querem nem trabalhar, fazer uma comidinha pra comer. (risos) Eu falo. Elas ficam: “Ai, Carminha, não sou desse jeito, não”. Eu digo: “Não é?” Aí pronto. Mas toda vida teve doação. Toda vida. As pessoas nunca passaram apuro, não, porque eles ajudavam bastante, mas foi um negócio. Naquela época todo mundo vinha. Aí apareceu carro, tinha fogão usado. Cama, colchão, a prefeitura mandava colchão pras pessoas. Colchão. Aqueles colchões de solteiro. Aqueles colchões deles. A prefeitura também ajudava bastante. Ajudava. Doação, bastante.
(53:55) P/2 – E, Dona Carminha, você lembra da construção dos prédios? O dia que você recebeu a chave?
R – Me lembro, me lembro. Antes disso, a assistente social da prefeitura pegou todos os nomes das pessoas, cadastrou todo mundo. Quando era dia de vir, eles vinham e avisavam. E quando terminavam, esse aqui que era um bloco, era de bloco em bloco. Terminou, aí vem um morador. Aí, pra ninguém invadir, ele ia e chamava pelo nome daquelas pessoas que estavam inscritas e entregavam a chave. Era a maior alegria de todo mundo, vir pros seus apartamentos. É. O último foi esse de trás, na avenida. Quem pegou na avenida, pegou. Quem não pegou, pegou pra trás. Eu peguei pra trás. Porque foram as últimas que foram cadastradas. A primeira que foi cadastrada, pegou a avenida. A prefeitura chamava pelo nome. Aí entregava a chave. A prefeitura vinha e entregava a chave pro povo. Era tudo bonito.
(54:56) P/1 – Tudo novinho.
R – É. Tudo limpinho. Tudo novinho. Entregava e as pessoas cuidavam. Só que tem uma coisa: só que eles não davam rebocado, não, né? As pessoas que... só dava nos tijolos. Tudo limpinho, tudo arrumadinho. Aí, a pessoa que mandava fazer, passar massa corrida, né? Quem quer tudo limpinho. Até hoje ainda tem bloco aí, apartamento que ninguém cuidou ainda, pessoa que não está nem aí. Ainda está do mesmo jeito da época da prefeitura, do prefeito, da prefeitura: tijolo.
P/1 – E a senhora lembra dos moradores se organizando, para conseguir?
R – Me lembro. Ihh, já morreram muitos, já. Os antigos já morreram. Faleceram, os mais velhos, sabe? Tem mais esses mais novatos. Porque faleceu e a família fica, passa pra família,. Ou muitos já venderam, passam pra frente. E já tem muita gente aqui, diferente. Aqui, aqueles mais velhos, antigos, muitos foram embora, muitos faleceram, já. São falecidos. Tem mais novatos, mais novos, esses jovens, agora. É.
P/1 – E como é a Zaki Narchi de quando a senhora chegou, até agora? Como é? Como são as pessoas? É diferente?
R – É. É um pouco diferente, porque agora são esses mais jovens. Porque antigamente, eram os mais velhos que a gente conhecia, tinha liberdade. Agora, a turma mais nova, tem uns que respeitam, uns não respeitam. Mas é a mesma, a Zaki Narchi ficou a mesma coisa. A mesma coisa. Não mudou nada. Só mudou as pessoas mais jovens que tem agora e aquelas mais velhos, antigos, já faleceram. E muitos não querem barulho, essas coisas. Porque antigamente não tinha, agora tem, em todo lugar, né? Esses “pancadão”, esses desmantelos. Antigamente não existiam essas barracas. Agora está tudo cheio. De barraca, de garagem, tudinho. Antigamente não era. Então, mudou isso. Mudou foi isso. Na realidade, foi isso. Antigamente não tinha. Estava todo mundo livre. Cada um certinho. Tinha os mais velhos. Teve muita gente que desgostou, vendeu, já foi embora. Passou pra frente e foi embora. Tem gente que alugou, porque não aguenta o barulho. Eu mesma não aguento. Eu não vou dizer que eu estou aguentando. Eu não aguento. Eu só sei dormir em paz, sossegada, não gosto de barulho, nem de luz acesa. Aí eu moro lá embaixo, num quartinho. E daí a menina paga o meu lá, me ajuda, eu pago o meu lá. Mas no dia que eu quiser voltar eu volto, né? Porque é meu. Mas está tudo bem. Mas é diferente.
P/1 – E se a senhora for pensar, assim, os principais acontecimentos, assim, daqui?
R – Como assim?
P/1 – Assim: o que aconteceu, que marcou a senhora, aqui?
R – Ah, o que marcou aqui, em mim, sabe o que foi? Até hoje me marca e não sai da minha mente? É meu filho que morreu. E pronto. Somente. Aí nunca esqueço, nunca sai, porque é uma lembrança pro resto da vida. Só isso. O que marcou foi isso. Porque hoje em dia ainda sinto a lembrança do meu filho. Foi em 1999 que o mataram. Aqui mesmo. Na época do alojamento. Em 1996. Em 1996 que meu filho morreu. Morreu, mataram. Aí é o que mais que não sai da minha mente, o que mais desgostei daqui é isso, entendeu? Mas o resto, não. Todo mundo gosta de mim, me considera, eu considero. Mas, graças a Deus, tudo bem.
P/2 – Como que foi, Dona Carminha, receber essa notícia?
R- Ô, minha filha, foi horrível, né? Porque eu estava dormindo, deitada. Foi entrada de ano novo. Quando terminou o ano velho, que entrou o ano novo, em 1996, aí vieram me acordar, me chamar, que ele tinha levado uma facada. Aí o socorreu pro pronto-socorro. Quando chegou lá, ele só suspirou, abriu a boca e fechou. Ele morreu, mesmo. Porque ele, quando falou que ia pra casa, na bicicleta, o cara foi no alojamento, que tinha um alojamento aí onde é a feira. Quando ele ia pra casa dele, que ele morava com a mulher e nós morávamos no alojamento, aí ele foi e passou com a bicicleta e empurrou. O cara estava muito louco de droga e de cachaça e estava armado com uma faca dessa de serra, tinha brigado com os povos daí, das drogas. Aí ele não sabia. Aí ele foi, empurrou: “Dá licença pra eu passar, pôr a bicicleta”. Aí o cara já estava muito endemoniado, aí deu a facada. E pensando que as meninas pensavam que ele tinha dado um soco nele, no peito dele. Mentira. Mas foi a faca. Aí entrou todo assim no peito, no coração dele. Aí ele foi, sentiu aquela dor, segurou, assim, no peito e gritou: “Socorro! Socorro! Fulano, “Ciço” me furou”, que ele conhecia. Aí disse: “Nada. Mentira. Você está brincando” “Não. Não. Está furado”, quando ela viu, ele só melou assim, a mãozinha, aí, daquilo botaram a cadeira nele. As meninas me contaram, as vizinhas lá do alojamento. Aí, naquilo, abriu a boca e fechou. Aí: “Corre! Corre!” O nome dele era Valdeci, mas o povo só conhecia por Baianinho, porque chega aqui e cada um bota o seu apelido. Aí disse: “Corre! Corre, que o Baianinho, que o “Ciço” furou o Baianinho. Furou o Baianinho. Leva pro pronto-socorro”. Quando chegou lá no pronto-socorro, ele já estava falecido. Quando eu cheguei lá, fui, corri mais minha filha, ele já estava morto. Foi. Foi em 1996. Aí eu perdi o pai dos meus filhos, lá no norte. E aqui, o meu filho. E a minha revolta e a minha raiva é só isso. E o meu desgosto, né? Mas também quem matou deve ter sumido, o diabo já ter levado.
P/1 – E daí ficaram os três filhos?
R – Aí só ficaram os três. Duas mulheres e um filho homem. Um tem quarenta e seis, fez agora em agosto, dia vinte e quatro, quarenta e seis. E uma de cinquenta e um. E a outra de quarenta e um. E eu criei um neto. O filho dele, eu criei, agora no dia catorze vai fazer trinta anos. Tem dois filhos: um menino de seis anos, vai fazer e um de um aninho e quatro meses. Pronto. Mas ele me chama de mãe, porque eu o criei novinho. Assim que ele nasceu, ele me deu. Ainda criei neto, né? Ainda criei neto.
P/1 – E como é que foi se tornar avó?
R – Ai, foi uma alegria, né? Eu tenho muito amor a ele. Nossa, eu sou louca por ele. Eu tenho amor a ele igual, as meninas falam: “Mamãe tem amor a ele mais do que da gente” “Não. Não, o meu amor é tudo igual”. Mas o dele é porque os outros já estavam todos crescidos, cada um casado. E ele era pequenininho, aí criei. Ele tem estudo, trabalha, tem dois filhos. Ele não mora aqui, não. Ele mora lá no Jova, de aluguel, lá. Ele paga aluguel lá no Jova Rural. Só mora aqui, só os três. O Rafael, aquele rapaz que veio aqui e eu.
P/1 – E, Dona Carminha, ontem o Rafael estava contando das vivências dele, aí, né? Da vida dele aí. Aí ele estava contando de quando a sua irmã morreu.
R – Foi.
P/1 – A senhora queria contar também? Ou não?
R – Do irmão? De qual? Dele?
P/1 – Da mãe do Batista.
R – A minha irmã?
P/1 – É.
R – É, minha filha, ela morreu no Rio de Janeiro. Ela tinha câncer. Ele falou?
P/1 – Falou.
R – Aí, no dia que ela faleceu, no dia três de novembro. Ele falou pra você? No dia três de novembro. Aí ela morreu, duas e meia da tarde. Aí viera avisar, né? A família ligou e veio avisar que ela tinha falecido, num hospital do Rio. Aí eu peguei, a gente foi, juntou eu e a minha sobrinha que morava na Vila Maria, a sobrinha dela e fomos lá para o Rio, buscar o corpo, porque o sonho dela era ser enterrada onde o marido dela estava, em João Pessoa, num lugar chamado Bayeux.Aí fomos lá, pegar o corpo dela, pra levar pra João Pessoa, pra Bayeux. Lá é João Pessoa, mas lá era um lugar chamado Bayeux. Aí quando o... o meu sobrinho estava na cadeia, ele falou pra você? Aí ele estava de saidinha. Só que ele passava o dia pra trabalhar e de noite ele recolhia lá no Franco da Rocha. Aí, nesse dia, ele foi falar com o delegado, o juiz, pra ele ver o corpo da mãe no Rio, pra mandar pra Bayeux. Só que a Justiça não autorizou. Aí ele queria ir. Aí entrou e eu falei assim: “Não vá, não, Batista. Você está de saidinha. Você está vindo em casa. Está vendendo na rua, porque você passa o dia trabalhando e já volta só pra recolher, pra dormir. Vá dormir, que a gente cuida do corpo da sua mãe, a gente leva pra João Pessoa, pra Bayeux”. Aí ele disse: “Tá bom, tia. A senhora cuida e diga quanto vai ser, que eu fico aqui pra resolver e já vou”. Cinco horas ele voltava pra Franco da Rocha, pra dormir lá , pra sair às cinco da manhã. Seis horas da manhã, pra ele voltar pra trabalhar. Aí ele disse: “Vá, tia”. Aí, quando ele ficou, quando foi a hora que ele estava resolvendo com os colegas dele, falando, chorando, que a mãe tinha falecido, que ele não ia poder ver a mãe, que o delegado não o deixou ir, falando tudinho. Aí ele foi, disse: “Eu já vou, que eu vou...”. Ele estava aí atrás, é essa rua aí, que é o bloco oito, que dobra, que vai por ali. Ele estava morando ali, com a esposa dele e a irmã dela, no bloco vinte e seis. Ele ia tomar banho, trocar de roupa, pra voltar, né? Pegar o metrô e ir pra Franco da Rocha, pegar o trem. Aí, quando ele vira e dobra, o cara já estava de tocaia, o matou pelas costas. Atirou nele, nas costas. Aí pronto. Foi duas e meia e ele, de cinco e meia da tarde, já ia pra Franco da Rocha. Ele tomava cinco horas pra chegar, sair, cinco e meia chegar lá. Aí foi e o mataram. Aí pronto, foi aquela agonia. Eu fui mais a minha sobrinha, resolver o corpo da mãe dele, que é minha irmã. Mandei pra João Pessoa e se enterrou lá. E fomos resolver aqui. Ele se enterrou aí no Cemitério da Cachoeirinha. Só que na hora que o botaram dentro da cova, aí na gaveta, digo, desculpa, na gaveta, aí a jogaram também na cova, lá em João Pessoa. Aquela época, eu paguei cinco mil e quinhentos, pra levar o corpo dela pra João Pessoa. Lá do Rio pra João Pessoa. Aí pronto, morreu-se, acabou-se, morreu inocente. Até hoje, agora, ninguém... dia três de novembro vai fazer onze anos que o mataram e a minha irmã morreu. É um sofrimento na minha vida. Só Deus, que me dá conforto e saúde. Só Ele, mais ninguém. Aí pronto. Até hoje. Ele fala, até hoje, ele gostava muito dele, criou ele, aqui. Ele falou pra você, que criou? Ele morou com a minha menina. Primo com primo. Foi. Só tinha ele. Ele deixou uma filha linda. Irmã dele. Ela é mãe, tem um menino que tem, o meu bisneto, um ano, parece que um ano e cinco meses, é o meu menino. É a Carol. Linda, a filha dele. Um dia eu a apresento, aqui, quando ela chegar aí na casa. Porque ela não mora aqui, ele mora lá perto do Brás, com o marido. Às vezes, ele vem na casa da mãe dela. Filha dele. Irmã dele por parte de pai e mãe.
P/1 – E os outros filhos da senhora, moram aqui?
R – Moram. Tudinho mora aqui.
P/1 – É?
R – É. Todos os três moram aqui. Ficaram aqui. Cresceram aqui. E estão morando aqui. Construíram família, tudo aqui. O Rafael nasceu aqui nos barracos. (risos) Nos barracos, na favela. Esse mesmo que eu criei foi nascido também, nem pra maternidade não foi, não. Ficou tudinho aqui no barraco. Foi. Muito tempo. Virgem Maria! Desde 1988, 1987, que eu estou aqui na Zaki Narchi.
P/1 – E o que a senhora mais gosta, de morar aqui?
R – Ah, eu gosto. Porque aqui é uma coisa que tudo é perto. A gente tem, acho que todo mundo tem um coração bom, dá as coisas pras pessoas. Ninguém é mal, doa as coisas. A gente de barriga cheia, no norte a gente precisa de tantas coisas, passando necessidade, de estudo difícil. Aqui tem tudo. Com tudo, o jeito que está com essa doença, meu Deus, mas ainda é mais fácil do que no norte, minha filha. Por isso que gosto daqui. Por causa dos filhos também. Só estou aqui mais por causa dos filhos, né? Porque, se nenhum estivesse aqui, eu também não estaria aqui, não. Porque o meu dinheirinho, a minha pensãozinha dava muito bem pra eu comer lá no norte. Eu pagava um ‘aluguelzinho’, se preciso, mas tenho uma casinha velha, lá. Uma casinha, graças a Deus. E dava pra eu comer. Agora, o meu filho: “Mãe, a senhora não vai lá. Porque a senhora mora sozinha. E sozinha, não tem nenhuma pessoa com a senhora. A gente está tudo aqui, trabalha, construímos a família da gente aqui. A gente não vai. Se a senhora for pra lá, se a senhora adoecer, como é que a gente vai cuidar da senhora, lá? E se a senhora adoecer aqui, a gente cuida da senhora aqui. A senhora tem que ficar aqui mesmo. Porque a gente não vai deixar os empregos da gente, o trabalho, os filhos da gente, pra ir pra lá com a senhora, pra comer da sua pensãozinha, só do seu salário-mínimo. E aqui, não. E a senhora aqui, dá pra senhora viver aqui. E a gente cuida da senhora. Porque a senhora está com 71 anos. (risos) Pra onde a senhora vai?” - eles falam - “Tem que ficar aqui. Quer passear? Vá. Passeie. Vá pra casa da sua irmã. Passa um mês, dois, aí, depois, a senhora volta”. Mas morar lá, eles não querem me deixar morar lá. É por causa disso. Por isso que eu me atenho a ficar aqui, por causa dos filhos. O que gosto daqui são os meus filhos, que estão aqui.
P/1 – E a relação com a vizinhança, como é?
R – Tudo bem, graças a Deus. Não tenho, todos me respeitam, eu respeito todo mundo. Eu gosto de todo mundo. Cada um, cada um, sabe? Cada um na sua casa. Oi, oi, oi, oi e pronto. Eu gosto das pessoas. Posso chegar qualquer hora. Todo mundo me ajuda. Eu ajudo as pessoas, precisando, estando ao meu alcance. Tudo bem, graças a Deus. Não tenho mal, ninguém, nada. Posso chegar, se for pro norte, chego qualquer hora, de madrugada, aqui, todo mundo me abraça: “E aí, chegou a Dona Carminha. Chegou a ‘véinha’. Chegou a ‘véia’”. Aí, pronto. Mas tudo bem, graças a Deus. Ninguém tem raiva, nem receio de mim, não. Graças a Deus, né? Que eu saiba. Quem vê cara, não vê coração. Mas que eu saiba, cara, pelo jeito, na vista, a gente conhece quem não gosta e quem gosta, não é, filha? Mas, graças a Deus, muitos anos, o povo me respeita, aqui. Eu respeito todo mundo. Xingo, quando tem que xingar. (risos) Não tem jeito, não, a Dona Carminha não tem jeito, não. Mas está bem, graças a Deus.
P/1 – Mas xinga por quê?
R – Não. Porque quando eu estou nervosa, assim, eu digo as coisas. (risos) Aí as meninas: “Dona Carminha, vem cá” “Tsc, ah, vai! Não quero saber de tu! Me deixe. Ah, vai pra lá. Me deixa quieta”. (risos) É. Mas tudo bem, graças a Deus. A Dona Irene mesmo, pra você ver, eu e ela, às vezes, eu resmungo ali, não estou fazendo nada, fica eu e ela jogando um ‘baralhozinho’. Ela falou pra vocês? A gente joga um baralho, fica ali, coisando a mente. Mas ali, eu também estou alegre e ela é antiga. É tudo antigo. Aquela senhora, a Zezé. Dona Dione, o ‘seu’ Adão. Todos os mais velhos. Os outros velhos, alguns morreram ou foram embora.
P/1 – E antes, você acha que as pessoas, como eram, se ajudam mais os vizinhos?
R – É a mesma coisa.
P/1 – É a mesma?
R – É a mesma coisa. A mesma coisa. Todos ajudam, tudo. Se eu precisar de alguma coisa, eles me atendem. Precisando de mim, eu atendo também. Tudo a mesma coisa. Tudo, graças a Deus. Não mudou nada. É a mesma coisa.
P/2 – O que você menos gosta, daqui?
R – Ahn?
P/2 – O que você menos gosta, daqui?
R – Menos? A frieza. O frio. Odeio o frio. (risos) O tempo do frio, eu não sou ‘chegada’, não. Não gosto não, porque lá é quente. Porque lá no norte é quente. Eu desanimo, fico meio triste, fiquei meio toda doída, dor de cabeça, gripada. O que eu não gosto daqui é o frio. Aí, quando está calor, eu gosto. É.
P/1 – Dona Carminha, e pensando desde que a senhora chegou aqui, até hoje, a senhora, quando saía daqui e ia pra outros lugares, assim e falava que morava aqui, as pessoas falavam alguma coisa pra senhora? Ou nunca teve?
R – Não, não. Falava não. Perguntava se era bom, se era gostoso. Eu digo: “É. Graças a Deus, onde eu moro é sossegado. Não tem negócio de rinha, nem mal, não. Eu conheço todo mundo. E chego a hora que eu quero. E é gostoso onde eu moro. Só não gosto de lá, de São Paulo, o frio”, eu falo pra eles. “Mas a gente se agasalha, fica feito robô de roupa”. Pronto. É só o que falo pros outros. E as meninas, que tem gente do norte que tem maior vontade de vir morar em São Paulo, né? Que não tem condição de vir. Mas vontade, tem. Mas a época agora não é como antigamente. Agora, o desemprego é grande, né? Não tem. Agora é muita coisa, muita exigência, tem que ter muita leitura. Tem que ter muito... agora. Antes era bom demais, minha filha, pra trabalhar. Muito bom. Eu trabalhei muito. Mas depois disse: “Ah, aposentado não pode trabalhar. Pensionista não pode trabalhar mais, não, que tem que deixar vaga pra outro”. (risos) Eu não gosto disso aí, não. Porque eu ainda podia trabalhar. Porque eu, graças a Deus, gosto de trabalhar. Não tenho preguiça. Eu me “alevanto”, cinco horas da manhã eu estou acordada. Vou dormir a hora que eu for dormir, logo cedo eu estou acordada. Não tenho preguiça de movimentar o meu corpo, não, graças a Deus. Ando, passo o dia todinha, por lá, pra lá, pra cá. Como, encho a barriga. Faço as minhas coisinhas. “Mas mainha”, eu digo: “Graças a Deus, meu filho. Dê graças a Deus que a sua mãe está andando”. Era ruim se eu estivesse em cima de uma cama.
P/1 – E como é o seu dia a dia?
R – Bem, graças a Deus. Vai bem, graças a Deus. O meu dia é legal. Fico à vontade. Como a hora que eu quero. Chego a hora que eu quero. Ninguém esquenta a minha cabeça. Nem filho, nem marido, que eu não tenho. Vai bem. Quando eu digo: “Hoje eu vou pra tal lugar”, eu vou. Às vezes, eu pego o ônibus aí e vou pra Santana, por ali, passeio. Vou lá, compro um remédio na farmácia e venho pra casa. Pronto.
P/2 – Eu queria te perguntar uma coisa: você comentou do massacre do Carandiru. O que você lembra?
R – Ô, minha filha, eu me lembro dali, o povo gritando. Muitos gritos. E as pessoas... e quando tinha, eu me lembro quando tinha aquele negócio de fugitivo por dentro do rio. Chegava no barraco da gente, pedindo ajuda. Ele falava assim: “Não. Eu não vim fazer mal pra senhora, não. Eu quero uma ajuda, que a gente saiu fugindo. Eu queria uma roupa. Você me dá uma roupa? Porque a gente está todo molhado”. Ele saía de dentro daquela água, dessa água, desse córrego aí. Eu morava aqui. E a gente dava coisa a ele, dava a roupa, ele tomava banho, agradecia e ia embora. Eu me lembro de tudo isso. Eles não faziam mal pra gente. Eles pediam: “Olha, eu não faço mal pra senhora, só quero uma ajuda de uma roupa, de uma comida”. Se ele vinha com fome, eu fazia, dava e ele ia embora. Agradecia e ia-se embora. Ele falava que era fugitivo. E quando estava ali, eu via, Ave Maria, o sofrimento do povo morrendo ali, puxando ali. Eu trabalhava no pronto-socorro. Chegou muito corpo morto ali no pronto-socorro, muito ferido, ali, queimado. Muito ferido. Muito ferido baleado no pronto-socorro, quando eu trabalhava de limpeza. Eu me lembro de tudo isso.
P/2 – Você lembra de alguma história, assim, em algum momento, que você viu?
R – Assim, eu lembro que eles chegavam, pedindo ajuda. A gente, às vezes, ajudava. Às vezes, não, porque não era muito confiável. Mas era isso. Eu lembro só disso. Aí, quando estava aí, os cachorros matando o povo aí. Eu me lembro. Eu me lembro quando foi, que botaram explosão aí, que explodiu tudinho aí. Você lembra?
P/2 – Dava pra ouvir?
R – Dava. E saía aquele pufff, fumaceiro de barro, de terra, de cimento. Daqui a gente via tudo. Porque bum, depois saindo aquela fumaça, ia tudo pra ponte, ali, olhar. Dali em cima. Subia naquela pontinha ali e a gente ficava olhando-os coisando e descendo aquela fumaceira lá embaixo.
P/1 – E vinha todo o pó pra casa de vocês?
R – É. Vinha tudinho, porque o vento trazia o pó. Ali era tudo cheio de coisa da cadeia. Nossa! Ninguém dizia que aquilo ali ia ser derrubado. Ninguém pensava que ia ser explodido. Ainda tem mais coisa? Não?
P/1 – Falta pouquinho.
R – Você disse que era até três horas. Já vai dar quatro horas. (risos)
P/1 – Vixe! Não. Já vai acabar, já. Dona Carminha, eu queria saber o que a Zaki Narchi marcou na sua história?
R – O que marcou foi, eu vou falar: hoje, o que eu não tinha, agora eu tenho. Marcou muita coisa boa. Pra mim e pros meus filhos. Um cantinho de viver, de morar, de pagar pouquinho. Agora, não está pagando, por causa dessa doença, mas você paga cinquenta e sete. Quem é que paga um aluguel de cinquenta e sete [reais]? O que marcou é coisa boa, um cantinho para a gente estar dormindo, pondo a sua cabecinha no travesseiro, não devendo pra ninguém. Isso que marcou, tudo isso. Pra mim é isso. Essas coisas boas.
P/1 – E como é que foi a pandemia, aqui?
R – Ô, minha filha. Aqui, a mesma coisa, tudo parado. Porque a gente não podia estar fora…Tudo dentro de casa. Não podia estar junto, o que marcou foi isso. E tudo andando de máscara. Até hoje eu ando com a minha máscara. Eu estou vacinada, mas vou tomar outra de novo. E estou bem, graças a Deus. Não peguei nada, essa doença, nem os meus filhos. Minha neta pegou, a Carol, mas foi fraca, ela ficou boa, tomou remédio e ficou boa, não chegou a internar. Graças a Deus, meus filhos, nenhum pegou essa doença, não. Agradeço muito a Deus, porque foi ótimo pra gente.
P/1 – Dona Carminha, a senhora tem algum sonho?
R – Sonho? Tenho. Mas eu não sei, não. Só Deus sabe. O meu sonho sabe o que é? É morar num sítio, pra eu criar e plantar. Isso é o meu sonho. Ave Maria! Aí o meu neto diz: “Vó, um dia ainda, eu ficar rico, eu ainda compro um sítio para a senhora”. Porque eu gosto de plantar, criar. Nossa! Eu acho tão lindo um sítio cheio de animal, de galinha, de tudo aí. Ai, meu Deus do céu! Criar, plantar. Olha, eu sei fazer tudo: plantar verdura, rama, tudo, batata, feijão, mandioca. Sei fazer tudo. Fiz tudo. Eu gosto muito de trabalhar na enxada. Eu sei carpir o mato à vontade. Eu queria... é o sonho da minha vida. Se eu ficasse rica, o que eu queria era isso: comprar um sítio. Pra viver em paz num sítio, criar. Porque eu acho tão lindo amanhecer o dia, aqueles galos cantando, aqueles passarinhos cantando. É a coisa mais linda. Eu queria ter um pássaro, um canário em casa, pra ele cantar. (risos) É. Acho lindo. Acho bonito. O meu sonho era isso. Eu só queria isso, um sítio. Pra eu viver em paz, num sítio. Criar e plantar. Antes de morrer, se Deus me desse isso, realizasse esse sonho meu, eu queria isso.
P/1 – A gente está chegando no fim, mas antes de terminar, tem duas perguntas pra senhora. Primeiro, eu queria saber se a senhora queria contar alguma história que eu não perguntei, ou deixar alguma mensagem.
R – Não, minha filha. O que eu falei, que eu vou falar pra você, é que eu gostei muito da entrevista. Gostei bastante de vocês. E seja feliz. Que Deus dê muitos anos de vida a nós todos. É o que eu quero. O meu sonho é isso, é viver. E que Deus nos proteja todos.
P/1 – A senhora gostou de dar a entrevista?
R – Amei. Gostei demais. Adorei. Eu sou sincera. Quando eu digo que não, eu digo que não. Mas eu sou sincera.
P/1 – Então, eu queria agradecer, Dona Carminha. Foi muito bom. Eu adorei essa entrevista.
R – Obrigada.
P/1 – Eu vou pedir, agora, pra senhora autorizar, pelo vídeo, a imagem.
R – Uhm. Tá bom. Eu autorizo o uso da minha imagem. Pode botar pra frente.
[Fim da Entrevista]
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