CTG - Imigração Chinesa
Depoimento de In Hsieh
São Paulo, 3/10/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1124
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:29) P/1 – Boa tarde, In, tudo bem?
R – Boa tarde, Genivaldo! Tudo bem, e você?
(00:35) P/1 – Tudo ótimo! Vamos começar, então, com a pergunta mais básica: gostaria que você me dissesse seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R – Perfeito. Meu nome é In Hsieh. Na verdade, é o nome que eu costumo usar, mas meu nome completo é In Chi Hsieh, é o nome do meio. Nascido em dez de março de 1975, atualmente morando em São Paulo.
(01:03) P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai, o nome dele é Chi Eai e o nome da minha mãe é Yuen Ei Yuen.
(01:15) P/1 – Você tem irmãos, In?
R – Não dos meus pais. Tenho meio irmãos.
(01:24) P/1 – Certo. E qual a atividade dos seus pais?
R – Atualmente já são aposentados. Meus pais são separados, cresci basicamente com a minha mãe. Meu pai biológico tem um restaurante, mas meu padrasto e minha mãe são, basicamente, aposentados atualmente.
(01:46) P/1 – Então, vamos começar a falar um pouco sobre a sua infância. Você se lembra da infância que você passou em Curitiba, quais eram as suas brincadeiras prediletas, como era a casa onde você morava?
R – Na verdade, eu só nasci em Curitiba. Saí de lá muito pequeno, em função, também, da própria separação dos meus pais. A gente morou em vários lugares diferentes durante a minha infância, passei uma boa parte desse tempo em Foz do Iguaçu. A minha mãe foi trabalhar lá, a gente tinha parentes, ainda temos parentes na cidade e principalmente do outro lado da fronteira do Paraguai, na época era a cidade de Presidente Stroessner e atualmente, Ciudad del Este. Passei, então, em cidades diferentes.
Acho que até, se não...
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Depoimento de In Hsieh
São Paulo, 3/10/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1124
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:29) P/1 – Boa tarde, In, tudo bem?
R – Boa tarde, Genivaldo! Tudo bem, e você?
(00:35) P/1 – Tudo ótimo! Vamos começar, então, com a pergunta mais básica: gostaria que você me dissesse seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R – Perfeito. Meu nome é In Hsieh. Na verdade, é o nome que eu costumo usar, mas meu nome completo é In Chi Hsieh, é o nome do meio. Nascido em dez de março de 1975, atualmente morando em São Paulo.
(01:03) P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai, o nome dele é Chi Eai e o nome da minha mãe é Yuen Ei Yuen.
(01:15) P/1 – Você tem irmãos, In?
R – Não dos meus pais. Tenho meio irmãos.
(01:24) P/1 – Certo. E qual a atividade dos seus pais?
R – Atualmente já são aposentados. Meus pais são separados, cresci basicamente com a minha mãe. Meu pai biológico tem um restaurante, mas meu padrasto e minha mãe são, basicamente, aposentados atualmente.
(01:46) P/1 – Então, vamos começar a falar um pouco sobre a sua infância. Você se lembra da infância que você passou em Curitiba, quais eram as suas brincadeiras prediletas, como era a casa onde você morava?
R – Na verdade, eu só nasci em Curitiba. Saí de lá muito pequeno, em função, também, da própria separação dos meus pais. A gente morou em vários lugares diferentes durante a minha infância, passei uma boa parte desse tempo em Foz do Iguaçu. A minha mãe foi trabalhar lá, a gente tinha parentes, ainda temos parentes na cidade e principalmente do outro lado da fronteira do Paraguai, na época era a cidade de Presidente Stroessner e atualmente, Ciudad del Este. Passei, então, em cidades diferentes.
Acho que até, se não me engano, os sete anos de idade, eu morei lá em Foz e depois passei dois anos em Taiwan, morando lá também, em função do trabalho da minha mãe e família. Daí voltei pra Foz do Iguaçu, depois vim pra São Paulo, já na adolescência.
Em cada lugar que eu morei tinha ambientes diferentes. Em Foz do Iguaçu morei muito tempo em sítio, um lugar muito distante, afastado do centro da cidade, então eram muito brincadeiras ligadas ao campo, aos animais e muito mais sozinho, porque era um sítio muito isolado e eu sou filho único, então não tinha muito contato com outras crianças, enfim, era mais com os adultos. E depois, quando eu fui pra Taiwan, já morava num bairro super central, com muita gente, mas lá tinha uma característica curiosa porque, apesar de ser descendente chinês, eu me sentia muito estrangeiro lá, porque eu não tinha nascido [ali]. Falava pouco chinês quando eu fui pra lá, não sabia escrever, obviamente, tive que aprender. Eu falava outro dialeto quando morava aqui no Brasil, tive que aprender mandarim, a escrever e tinha pouco contato com outras famílias, então basicamente minhas brincadeiras eram ligadas a ir ao parque. A própria escola era aberta pros alunos frequentarem, pro público em geral frequentar, então eu me lembro muito de brincar, andar de patins, brincar de bola na escola, mas não tanto com outras crianças. Datas comemorativas também era muito marcante pra mim, principalmente momentos onde a gente soltava fogos de artifícios, uma coisa que agora não é tão correta, mas eu gostava muito, quando eu era menor. Então, basicamente, foi muito mais isolado porque os lugares onde eu morei ou eram muito afastados, não tinha muito contato com outras pessoas, ou tinha culturas diferentes.
Esse aspecto, quando eu morei em Taiwan, o contato... Tinha um primo um pouco distante, a gente tinha contato, então quando a gente se encontrava, a gente desenhava, brincava, mas também não era muito frequente. Eu diria que não tenho tantas lembranças, porque não foram tantos momentos com outras pessoas. Eram muito mais coisas próprias, introspectivas. Enfim, acho que um pouco mais isolado do resto das crianças.
(05:22) P/1 – E a sua vida escolar, você começou aqui, ainda, em Foz do Iguaçu, no Brasil?
R – Sim. Eu comecei aqui em Foz do Iguaçu, frequentando a escola do lado brasileiro. Eu tinha muitos amigos que estudavam do lado do Paraguai, mas a minha mãe sempre fez questão que eu aprendesse português porque, de qualquer forma, eu tinha nascido aqui no Brasil, então tinha que crescer com a cultura e aprendendo o idioma. Eu estudei aqui no Brasil, no início, mas em casa eu sempre falei mais mandarim do que português, então isso foi um aspecto muito interessante na minha formação, muito importante.
Quando eu fui pra Taiwan foi o primeiro choque, porque o sistema escolar é completamente diferente. Quando eu fui pra lá eu mal falava mandarim, eu falava outro idioma, que era o da minha avó, que é parecido com mandarim, mas não é totalmente igual e obviamente não escrevia nada, então tive que aprender a me adequar a um sistema de ensino muito mais rigoroso.
Na época, uma das coisas que mais me marcaram na minha vida [foi que] ainda existia castigo físico e, apesar de eu ter um certo privilégio por ser estrangeiro, então os professores ‘pegavam um pouco mais leve’ comigo, era uma regra, não era uma coisa de cada professor. Abaixo de determinada nota, por exemplo, você tomava um castigo físico. Normalmente eram palmadas com bambu na mão e outras partes do corpo; aconteceu comigo duas vezes. Por causa desse privilégio, eu via muito outros colegas que iam mal na escola, tendo pior desempenho, apanhando. E lá era muito mais rigoroso, a gente passava...
Eu tinha sete, oito anos. Nesses dois anos que eu passei lá em Taiwan começava a aula super cedo. Normalmente ia até a tarde, no meio da tarde, mesmo [no] sábado tinha aulas, então era um nível muito mais rígido e eu também precisava correr atrás, porque basicamente eu não escrevia e falava pouco e então, pra mim foi um pouco... Um pouco não, bem mais difícil, mas tive a vantagem dos professores terem me dado muita atenção, fazerem aulas particulares pra mim fora do horário. Enfim, eu tive essa vantagem.
Depois, quando eu voltei pro Brasil, voltei primeiro pra São Paulo. Fiquei um ano e pouco antes de ir pra Foz do Iguaçu de novo e [aqui] é um sistema muito mais relaxado, pelo menos na época. Naquela idade que eu estava era mais fácil, então, pra mim foi, de novo, um choque, porque tive que me adaptar a um sistema mais difícil, depois voltei, foi mais rigoroso. Eu sei que fiquei super relaxado, até relapso em muitas coisas, mas entendendo que precisava - pra poder me sair bem, enfim, pra poder performar bem na escola – criar uma disciplina em que eu já estava imerso anteriormente. Então, foi até no período da escola e de certa forma no colégio também, eu tive um pouco dessa - um pouco, não, acho que bastante – base que foi criada quando eu tinha sete, oito anos, lá em Taiwan.
E, por fim, eu vim fazer o colégio em São Paulo, entendendo que eu precisava de um nível de educação um pouco mais alto do que tive em Foz, pra poder entrar em faculdades melhores. Tive que vir pra São Paulo, pra um dos melhores colégios da cidade e foi quando, de novo, talvez, tive um novo choque, por ter saído de uma cidade do interior do Paraná, pra vir pra São Paulo estudar. Também era um ambiente completamente diferente, onde eu não conhecia ninguém, então tive algumas mudanças na minha vida escolar, acho que bem significativas, Genivaldo.
(09:41) P/1 – E nesse período, In, você tinha algum sonho de: “Quando eu crescer, eu quero ser tal coisa”? Você já tinha esse tipo de ideia?
R – Eu acho que na infância tinha, mas nem me lembro muito claramente do que era. Até os quinze anos de idade, talvez, eu não tinha uma referência paterna, não tinha um homem. Meu padrasto só veio quando eu já tinha quinze anos de idade, então talvez tenha faltado um pouco isso.
Um aspecto também importante: quando você é filho de imigrantes, normalmente você tem menos acesso à informação, porque os seus pais têm mais dificuldade de comunicação. Minha mãe veio [para o Brasil] com dezoito anos, já praticamente adulta; ela fala português, mas não tão fluentemente. Ela sempre fez muitos trabalhos de comércio, empresária também, então não são necessariamente setores onde tinha muito contato com outras informações, principalmente com a formação escolar. Eu acho que esse aspecto, me limitava um pouco, então eu olhava muito mais pra o que ela estava fazendo, depois, quando estava um pouco mais velho.
Em termos do que eu queria ser quando crescer, eu acho que muito cedo eu falei: “Eu quero fazer o que os meus pais fazem: ser empresário, ser empreendedor, ter o próprio negócio”. Até porque também enxergava isso como uma oportunidade de liberdade financeira, de ter autonomia nas coisas e honestamente eu não lembro… Acho que eu devo ter pensado, em algum momento, ser alguma profissão dessas que as crianças querem sempre, mas eu não tinha muita referência, né? Não tinha, por exemplo, tios ou primos ou coisa do gênero, que era alguma coisa que eu poderia me espelhar, pra ser a minha referência: “Olha, eu quero ser igual fulano de tal”, além dos meus pais, né? E eles também não tinham muita informação, pra falar: “Olha, você tem que ser isso ou aquilo, ou esse caminho é interessante”. Então, família, pelo menos… Eu conheço relativamente bem o que acontece na comunidade chinesa, acabou se restringindo muito por causa desse aspecto: no início, quando eles vêm não enxergam ou não têm muita informação de outras opções de carreira, de trabalho, do que quer ser quando crescer e acaba também indo muito pros tradicionais, que são as áreas mais seguras.
Desde o início eu sabia que eu não ia querer ser médico ou engenheiro ou advogado, que acho que são as três principais profissões. Provavelmente devo ter pensado em ser... Aliás, pensando bem agora - acho que quando a gente começa a falar sempre lembra, traz as coisas, né? - acho que cheguei a querer ser piloto de avião em algum momento e aí foi engraçado, porque eu pensava que já tinha miopia quando era pequeno, então eu não ia conseguir pilotar avião e, enfim, também não ia conseguir entrar na Força Aérea, porque tinha um pouco de problema de visão. Então, acho que rapidamente eu me desfiz desse sonho, pelo menos.
(13:00) P/1 – E você sabe por que sua mãe veio morar no Brasil?
R – Eles vieram por uma necessidade. Sobrevivência, basicamente. Minha mãe nasceu numa cidade pequena, de uma província no norte da China. Acho que com três, quatro anos ela se mudou pra Hong Kong e ela basicamente cresceu lá, ficou até os dezoito anos.
Na verdade, ela tinha planos de ir pros Estados Unidos, não vir pro Brasil. Primeiro, quem veio pro Brasil, da família, foi meu tio. Ele veio conhecer, entender um pouquinho o que era o Brasil; isso era na década de 1960, então obviamente existiam poucas informações, pouquíssimo conhecimento, mas as condições de vida que eles tinham lá em Hong Kong eram muito ruins.
Quando a gente veio, na década de noventa, início dos anos 2000, a cidade de Hong Kong ou a própria China [já estava] com um grande desenvolvimento; no final da década de cinquenta, sessenta, era muito pobre. Basicamente as pessoas eram miseráveis. Eles estavam buscando opções de vida e contaram muito com a ajuda da igreja local, protestante, que buscavam ou conectavam com outras pessoas, em outros países onde eles tinham relacionamento, e um dos países era o Brasil. Então, eles acabaram vindo pra cá.
A família do meu pai biológico, honestamente não sei como eles vieram. Eles têm uma história um pouco diferente e meus pais se conheceram no Brasil. Mas meu pai biológico também era da China Continental, meu avô paterno foi militar durante o período da guerra com os comunistas e nacionalistas; eles acabaram perdendo a guerra, ele era oficial e acabou fugindo pra Taiwan. Ele ficou lá e de lá eles vieram pro Brasil. A motivação eu imagino que talvez seja um pouco também buscando uma qualidade de vida, um lugar pros filhos e pra família crescer, mas eu acho que uma condição um pouco melhor do que a minha mãe veio, mas eu não tenho muita certeza, porque eu nunca... Basicamente eu não tenho contato com a minha família paterna, então não tenho muita informação.
(15:33) P/1 – Certo. E, nesse período de São Paulo, que você estava fazendo ensino médio, você mudou de uma cidade pequena pra uma cidade maior, teve uma abertura de opções, de possibilidades, de absorver outros tipos de conhecimento. O que você gostava de fazer no seu tempo livre, nesse período que você estudava aqui, no ensino médio?
R – Quando eu não estava estudando... Na verdade, no início eu estudava muito, mas depois eu comecei a relaxar, porque eu conseguia entender qual era o meu ritmo de estudo, que eu poderia me sair bem, me sair o suficiente pra passar de ano, sem me matar de estudar. Eu gostava de fazer coisas normais, principalmente ir ao cinema, passear com os amigos. Ainda não podia sair muito sozinho, não tinha carro, obviamente não tinha como dirigir, então encontrava muito com os amigos do colégio, mas o que eu gostava muito era de computadores. Ainda não existia a internet, mas já jogava muito videogame. E principalmente nessa transição de videogame pra computador, então, eu era um fanático por jogos de computador, então passava muito tempo, quando não estava estudando… Provavelmente estava jogando, fazendo alguma coisa nisso.
Foi importante pra mim porque, de certa forma, definiu a minha carreira. Não sou formado na área de tecnologia, mas eu sempre trabalhei em empresas com bases tecnológicas, então isso foi muito importante pra mim. E acho que desde muito cedo, mesmo quando eu estava no ginásio, principalmente quando eu estava em Taiwan, lá já tinha acesso ao laboratório de informática, tinha computadores. Foi meu primeiro contato, fiquei fascinado com aquilo, mas eram jogos, então [era] fácil de gostar; pra uma criança é fácil de gostar de computador quando você vê jogos, né? Eu lembro que não era aberto pros alunos, só podia usar em determinados horários, mas no intervalo a gente pulava a janela da sala pra jogar, pra usar aquele negócio que a gente estava tentando entender o que era. Quando voltei a gente teve a oportunidade - e as condições de vida melhoraram extremamente – de comprar computador e aí, quando eu vim pra São Paulo também, as nossas condições financeiras eram muito melhores. O período anterior, quando a gente foi pra Foz do Iguaçu, quando a gente foi pra Taiwan, eram períodos financeiramente muito difíceis e essas mudanças todas foram muito em busca mesmo de condição de vida melhor. A gente não tinha estabilidade.
Basicamente, eu cresci… Acho que comparando com muitas pessoas que eu conheço, não foram tantas mudanças, mas mudei bastante quando eu era criança, até de escola mesmo. Quando estava em Foz do Iguaçu, estudei em duas, três escolas. Acho que somada toda a minha infância e adolescência, devo ter estudado, sei lá, em sete, oito escolas diferentes. E aí, nesse momento eu gostava - talvez, o computador também, antes da internet era uma atividade mais solitária – de ficar jogando, porque eu podia ficar concentrado, jogando sozinho. Fui entendendo os tipos de jogos que eu gosto: não é um jogo de corrida, de tiro, mas são outros jogos que são um pouco mais estratégicos e é engraçado, porque depois eu olho pro meu desenvolvimento de carreira e são muito ligados a isso.
Eu acho que depois eu tinha contato com amigos, essas coisas da escola e também todo mundo era nerd, praticamente, gostavam muito, então nossos intervalos eram muito ou jogando baralho, ou trocando jogos, dicas de jogos. Enfim, era muito voltado a isso.
(19:34) P/1 – E nesse período, o final do ensino médio, você já estava pensando em fazer Administração na faculdade, ou você demorou um pouco pra pensar nisso?
R – Acho que pra mim sempre foi muito claro. A partir do momento que eu vi a minha família começando a ter uma condição melhor de vida através do meio empresarial, empreendendo, montando negócio, foi muito natural pra mim pensar em montar negócio. Quando eu fui olhar as opções de cursos na universidade, eu falei: “Acho que Administração”.
Cheguei a cogitar outros cursos, algumas coisas que eu gosto muito; cheguei até a prestar vestibular pra História, mas eu pensava: “Poxa, o que eu vou fazer como historiador?” Principalmente porque eu gostava muito de estudar História e quando comecei a me aproximar um pouco da minha cultura chinesa, comecei a buscar muito isso e não tinha, então imaginava que, talvez, indo pra universidade, poderia me aprofundar. Naquela época tinha poucos livros sobre história chinesa, história da Ásia. Na escola a gente nem aprende isso, então eu queria muito buscar, mas quando comecei a pensar em termos de desenvolvimento profissional, não que ser professor seja ruim, mas eu não me via com capacidade pra fazer isso; talvez como pesquisador, mas no final eu achava que meu talento e minha direção seriam mais empresas e não necessariamente trabalhando pra outros, mas principalmente podendo montar os meus próprios negócios e esse foi o direcionamento que tomei.
Pra mim sempre foi muito natural, não teve um momento que virou a chave. Essa é uma coisa que eu acho que, pra mim foi, de certa forma, sorte. Acho que a gente pode usar essas palavras em alguns momentos, porque eu não tive muito drama pra poder escolher. Só teve um momento curioso, que eu até tentei ou cogitei prestar Arquitetura, mas naquela época eu fui fazer um curso opcional no colégio, que se chamava Linguagem Arquitetônica antigamente - eu não sei se tem ainda, nos vestibulares de Arquitetura você tinha que fazer uma prova adicional. Quando eu fui fazer esse curso na escola, nas primeiras aulas o professor pedia pra gente desenhar, era uma coisa mais introdutória e eu sempre desenhei muito mal. O professor chegou e falou assim: “Acho que essa área não é pra você, então tenta buscar alguma outra coisa”. Foi, ao mesmo tempo, um banho de água fria tremendo, porque eu cogitei, mas pra mim sempre foi muito claro que eu não ia conseguir seguir essas outras áreas, então não foi muito dramático, muito problemático pra mim.
(22:53) P/1 – E conta um pouco pra gente, então, como foi esse seu processo de vestibular, de entrada na faculdade.
R – Eu acabei decidindo por alguma... Eu não fiz muitos vestibulares, mas eu não entrei direto na primeira opção que eu queria. Saí do colégio, fui fazer o vestibular no final do ano, então prestei pra Fuvest, Faap, Mackenzie e na FGV, que era a opção que eu queria mais e eu não consegui passar. Passei seis meses em um cursinho e aí eu entrei no meio do ano.
Foi relativamente simples nesse aspecto, porque tinha muito direcionado qual era o curso que eu queria, a faculdade que eu queria. A questão, também, que eu precisava equacionar na época era mensalidade; minha família tinha condições de me ajudar e logo no início também eu comecei a trabalhar e ver as opções. Isso foi um pouco problemático, porque não entrei no melhor horário da faculdade; entrei no período da tarde, que é um período que muita gente trabalha, então eu não consegui equacionar no primeiro ano como trabalhar, ganhar dinheiro pra sustentar meus estudos e, enfim, conseguir estudar ao mesmo tempo, mas no início já fui buscar alguma coisa que fosse fácil e perto da universidade, pra poder me deslocar menos e tentar utilizar meu tempo, deslocamento, recursos, enfim. Tentei ser o mais direcionado possível.
Acho que isso também marca muito e é por isso que eu falei a questão lá no início, de jogos de estratégia, [de] você conseguir identificar e mapear muito bem as coisas. Depois, ao longo da minha carreira também, não tentava participar de muitos processos, então escolhia as coisas, entrava, fazia em profundidade, estudava, pesquisava pra fazer.
Entrar na faculdade foi... Não consegui entrar logo de cara, como eu falei, mas sabia o que eu queria, como tinha que fazer e passei seis meses fazendo esse cursinho. Acabei conseguindo passar, não no horário que eu gostaria e não necessariamente na melhor posição. Eu fiquei, se eu não me engano, na segunda chamada, agora nem lembro mais, ou seja, teve gente que desistiu pra eu poder entrar, mas eu sabia o que precisava fazer pra conseguir alcançar aquela vaga na universidade, então acho que foi fruto disso e eu tenho muita certeza que parte do que eu consegui foi em função dessa disciplina de estudos que eu tinha, que eu me matava de estudar dentro do limite que eu sabia que eu precisava, pra conseguir passar no vestibular.
(26:10) P/1 – E esse período da faculdade que você fez, como foi a sua rotina, no que você acha que você acabou evoluindo, crescendo, de acordo com esse curso?
R – No início, quando eu cheguei, eu percebi que eu precisava melhorar muito em aspectos comportamentais. É fácil enquanto você ainda é criança, adolescente; você está na escola, só tem que estudar. Você não precisa fazer outras coisas - obviamente, dentro das condições financeiras que a minha família conseguia me proporcionar; pouca gente, talvez, tenha condições disso, então eu podia me concentrar nos meus estudos. Mas quando você entra na faculdade, você já está mais voltado pra busca profissional, desenvolver, pensar.
No início da faculdade… Eu lembro [que] eu fiz isso durante muitos anos: um planejamento do que eu queria na minha vida profissional, dos tipos de coisas que eu precisava fazer, aprender, pra chegar no nível que eu gostaria, na posição que eu gostaria, nas condições que eu gostaria. Fiz uma planilha no Excel, pra cada ano eu colocava uma coisa que eu precisava aprender e algumas metas mais pra frente. Vamos supor - não foi o caso - que eu gostaria de atingir determinada posição de uma empresa e, pra chegar naquela posição, eu precisaria aprender mais certas disciplinas. Eu colocava, fazia um planejamento de tudo que eu precisava fazer, ao longo do tempo. Eu fiz esse planejamento logo no início, na faculdade, quase um plano de carreira, mas sabia... Não [era] rígido o bastante pra me amarrar, mas o suficiente pra me dar uma visão do que eu precisava fazer. Eu não segui isso muito à risca, mas eu fiz, olhava de tempos em tempos.
Isso me ajudou, na verdade, a [me] direcionar muito nesse setor de tecnologia. Por causa disso, por ter parado pra pensar, pra fazer esse desenho, eu percebi claramente que eu sempre iria trabalhar nesse setor; não seria um programador, mas alguém que faz negócios, que trabalha a gestão em empresas de tecnologia ou que vendem tecnologia.
No início, na faculdade, eu olhava muito pros meus colegas. Tinha pessoas de classe média e pessoas com nível familiar altíssimo. Fui percebendo que eu não estava nessas condições e precisava compensar a falta disso com outras coisas. E o que significa isso, na prática? Se você tem uma condição familiar e o seu relacionamento, sua família, seus pais trazem, as gerações mais velhas trazem, você vai ter mais acesso e mais, principalmente, network. Isso é uma coisa que eu não tinha, que eu percebia que eu era muito limitado à minha família. Minha família não é uma família que tinha conexões ou muito relacionamento em outras áreas, então eu percebi que eu precisava desenvolver isso. E outra coisa: eu sempre fui muito tímido, muito fechado pra aquela questão que eu comentei; o início da minha infância sempre foi muito isolado, até acho que é consequência tanto, talvez, do lado asiático, oriental, mas a gente também não pode, eu acho, generalizar.
Todo mundo acha que todos os asiáticos e orientais são tímidos. Talvez [seja verdade] quando eles estão fora do país, porque você não tem o mesmo nível de fluência e conexão que você tem no seu país de origem. É a mesma coisa que um brasileiro, que é uma das nacionalidades mais extrovertidas. Ele vai pra um país que não conhece, então ele também não vai estar no mesmo nível que está no seu próprio país. Mas, de qualquer forma, tem um pouco desse lado cultural e tem um lado pessoal também. Era muito tímido, então tinha dificuldade em me comunicar ao longo da escola. No período escolar inteiro, sempre era muito fechado e, quando eu estava na faculdade, eu percebi que aquilo não ia funcionar. Que, se eu mudasse, eu ia ficar muito atrás dos outros, então eu fui tentando me impor, evoluir mais.
Além, obviamente, do que estava aprendendo, na faculdade eu via que estava aprendendo mais, além do conteúdo propriamente dito. Era muito mais como se aprender a pensar, estruturar uma forma de raciocinar, coisa que você não tem antes na escola. Eu acho que você aprende muito conteúdo. Na faculdade você começa a conseguir pensar melhor em algumas coisas, então eu via na faculdade um lugar onde eu poderia fazer as conexões, as coisas que eu necessitaria, a base pro meu desenvolvimento profissional. Fui fazer muitos estágios, fui me conectar, tentei ser o mais ativo possível em atividades escolares: participei, tentei formar uma chapa pro grêmio estudantil, fui representante dos alunos na principal organização dentro da escola, que é como se fosse a direção - você tem os professores, a gestão, os funcionários e os alunos representantes; eu fui um dos representantes dos alunos. Pra mim eu tinha que me forçar fazer isso, não era uma coisa natural, então tinha que fazer campanha, enfim, me relacionar com as pessoas e isso foi incrível, porque me ajudou a treinar, me condicionar ao profissional que depois eu me desenvolvi.
Posso dizer, com muita tranquilidade, que na faculdade eu passei mais tempo me desenvolvendo pessoalmente do que em termos de conteúdo. Obviamente muitas coisas eu uso ainda, que é da área que eu trabalho, mas tudo que eu tenho em comportamento, em capacidade cognitiva, essas outras coisas, vieram desse período. E foi muito, acho, de ter observado meus outros colegas. Ninguém necessariamente chegou e falou: “In, você tem que fazer isso”, até porque ninguém na minha família tinha ido à universidade, ninguém sabia como era o ambiente, ninguém... Eu passei a minha vida estudantil inteira… Meus pais, minha avó, que praticamente me criou, não falava português, então ninguém conseguiu me ajudar na escola. Eu tive que sempre me virar, então quando eu entrei na faculdade foi a mesma coisa, mas não conteúdo. Eu acho que eu reforço, sempre penso muito e, apesar disso, tem muita gente que questiona: “Olha, você foi pra universidade e não aprendeu nada”. Foi, talvez, o período mais importante da minha base de formação. Se eu não tivesse feito isso, certamente não estaria onde eu estou.
(33:41) P/1 – E em relação às suas primeiras experiências profissionais, você falou que fez vários estágios. Conta um pouco pra gente como foram esses estágios e também uma curiosidade: quando você recebeu seu primeiro salário, você lembra de ter feito alguma coisa diferente com ele, do tipo: “Ah, eu não conseguia fazer isso, mas agora que eu tenho meu próprio salário eu vou comprar isso aqui pra mim”?
R – (risos) Na verdade, meu primeiro salário, de fato, que eu recebi foi muito antes, quando eu ainda estava lá em Foz do Iguaçu, era criança. Foi uma coisa de brincadeira, talvez, mas eu passei uma das férias trabalhando na loja de um tio da minha mãe e aí eu recebi o primeiro salário. E depois, quando eu estava um pouco mais velho, sempre trabalhei com a minha família, na infância, porque eles sempre tiveram loja, negócios, então eu sempre estive muito próximo disso. De fato, o primeiro salário que eu recebi foi lá, eu nem lembro exatamente quantos anos eu tinha. Devia ter, talvez, sei lá, seis anos, alguma coisa assim. Obviamente, não dá nem pra dizer que eu trabalhava, fazia alguma coisa, mas foi aquele momento que eu recebi um dinheiro por alguma coisa que eu fiz. E não era uma mesada, porque não era alguém que me dava dinheiro por ser um parente, tio da minha mãe. Ele não tinha obrigação, necessidade de fazer isso, ele me deu esse dinheiro em troca de um trabalho que eu fiz. Honestamente, eu não lembro o que eu fiz com o dinheiro, (risos) ou se eu gastei com alguma coisa. Era alguma coisa que talvez hoje equivalha a vinte reais.
Depois, ao longo do tempo, na infância e principalmente na adolescência, eu trabalhei muito nos negócios dos meus pais. Estava lá na loja deles, depois na empresa, enfim, estava muito próximo. Não recebia salário, mas estava muito próximo, vendo as coisas acontecerem. E aí, depois, eu fui trabalhar de fato, formalmente, na faculdade, quando eu fui monitor no laboratório de informática. Foi meu primeiro estágio formal, a primeira vez que eu fiz alguma coisa e ganhei, não num ambiente tão protegido, mas num ambiente profissional, de fato. E foi naquelas condições que eu comentei. Era um lugar que estava dentro da própria faculdade, podia me ajudar a ganhar um pouco de dinheiro, que não era muito, então não precisaria me deslocar, gastar transporte pra ir pra outro lugar pra trabalhar, então me ajudou bastante. E também não lembro o que eu gastei.
Nessa época não tinha muita necessidade, nada específico que eu achava que eu precisasse comprar. Nesse período eu já tinha condições muito boas na família, eles me provinham. Essa é a verdade, então não era um desespero tão grande que eu ganhei aquele dinheiro e precisava comprar.
Depois desse estágio com meus pais... Desculpa, no laboratório, fui trabalhar com meus parentes, formalmente e aí foi a minha primeira tentativa de abrir um negócio. Não foi totalmente sozinho - pelo contrário, eu tive todo o apoio deles, isso eu sempre reconheço, absurdamente. Eles tinham uma importadora na época e comecei a desenvolver um negócio de importação de produtos ligados à tecnologia, que eles não tinham. Eles me ajudaram em vários aspectos, eu tinha que fazer, mas logo de cara eu percebi que eu não tinha experiência nenhuma. Apesar de ter trabalhado junto com eles o tempo todo, na empresa, acompanhado, mas experiência de gestão era zero, porque não tinha uma visão de um negócio maior. O que eu tinha era visão de negócios familiares. Quando eu fui estruturar isso, eu tive que lidar com um mundo corporativo que eles não tinham, que eles nunca fizeram, então era um mundo completamente diferente pra mim.
Foi difícil, foi um grande prejuízo, na verdade; a minha primeira lição. Eu digo que, ao longo da minha carreira, eu acho que eu tive mais falhas e derrotas e prejuízos do que, de fato, sucesso, mas são os aprendizados de cada um dos momentos. Naquele momento - acho que eu tinha vinte anos, se não me engano - estava no auge da minha arrogância. Estava numa super faculdade, num negócio de tecnologia que estava começando. Isso foi no início da década de noventa - 1994, 1995. A tecnologia, a informática, de uma forma geral, era um mercado que estava se abrindo no Brasil. Tinha muitas feiras e eventos, então eu participava, via a ebulição. Eu já acompanhava muito antes, achava que eu já tinha muita experiência, que já sabia desse mercado há muito tempo, então tinha muita arrogância. Naquele momento achava que ia dar super sucesso e, pelo contrário, foi um fracasso tremendo. Durante muitos anos eu comprei os produtos pra revender, não vendi quase nada e durante muitos anos eu fiquei com estoque de um produto totalmente obsoleto, que é um cd-rom. Muitos anos depois os computadores nem têm mais leitores de cd-rom. Não eram nem DVD, era CD ainda.
Foi um aprendizado muito grande e eu entendi que o que eu tinha, na época, que minha família proporcionava, tinha um certo limite e eu precisava desbravar isso. Foi quando acho que casou o período em que eu comecei a fazer aquele planejamento que eu comentei, então eu precisava aprender mais coisas, além do que eu sabia e além do que eu estava fazendo na faculdade. Percebi que eu precisava trabalhar em empresas, de fato, ver o mundo como era, entender grandes empresas; foi quando eu comecei a fazer estágios em empresas, de fato. Fiz mais dois, três estágios, em empresas diferentes, pra sair daquele mundo que eu estava vivendo, que era o mundo da comunidade [de imigrantes chineses].
Isso até foi um aspecto importante: minha família nunca foi muito integrada ao resto da comunidade. Os principais amigos são chineses, mas não tem muita relação, não são tão ativos socialmente - talvez seja a melhor forma de colocar isso. Mas, de qualquer forma, era o mundo que eu vivia. Era o mundo dos chineses no Brasil, principalmente em São Paulo. Depois, na minha adolescência e na faculdade também ainda era limitado; as coisas que eu entendia eu via pela mídia, lia pelas revistas, jornais, essas coisas, das empresas. Eu nunca tinha vivido aquilo, então eu percebi que eu precisava ir pra lá. Foi quando comecei a fazer estágio em grandes empresas, mas eu sempre encarei aquilo lá como uma fase da minha vida, como mais um degrau de um plano que eu precisava alcançar.
Fiz e, no final das contas foi pra também criar um currículo melhor, porque eu percebia meus amigos também indo pra grandes empresas, todo mundo montando currículo. Quando eu fui fazer meu currículo, eu vi assim: “Nossa, o que eu vou colocar aqui? Vou colocar que eu trabalhei com a empresa pequena dos meus pais? Quando as pessoas forem olhar meu currículo e compararem com o do meu colega, eu vou estar totalmente em desvantagem. Preciso trabalhar numa empresa enquanto ainda estou como estudante, enquanto ainda tenho uma certa facilidade, vantagem de errar, de tentar”. Pelo menos algumas empresas olham dessa forma, não todas. Foi quando eu comecei a fazer isso. E casou com o período de surgimento do mercado de internet no Brasil - 1997, 1998, mais ou menos esse período; foi quando, de certa forma, me decidi a seguir esse caminho e é um mercado em que praticamente a minha carreira inteira eu estive trabalhando.
(42:04) P/1 – E depois, ao final da faculdade, depois desses estágios, qual foi o seu próximo passo?
R – Meu primeiro passo: eu trabalhei num e-commerce. Na verdade, eu entrei quando eu estava na faculdade. Eu me formei… Eu fiquei um ano a mais na faculdade, porque eu me formei acho que em cinco anos. Isso raramente eu falo. Primeiro por desleixo total meu e por outro foco: eu não achava que precisava e também, por falta de foco nos estudos, eu ia perdendo as matérias, tanto que eu acabei me formando com uma turma que não foi a que eu entrei.
Quando eu estava no último ano, no último semestre, entrei numa consultoria internacional pra fazer estágio. Acabei o curso e eles me efetivaram, eu continuei um pouco mais de tempo trabalhando lá. Era uma consultoria que me dava muita exposição, muitas oportunidades; apesar de ser um trabalho muito operacional, foi, talvez, uma das minhas escolas. Eu sempre falo que é importante ter um trabalho de consultoria, principalmente nessa fase, porque você é exposto e exigido de muitas formas. Até trabalhei em projetos fora do Brasil, na América do Sul, foi muito legal, mas eu via que aquele ritmo e aquele negócio que eu estava fazendo eu não entregava tanto, porque eu não tinha experiência. Eu estava fazendo consultoria, estava falando pros outros o que tinha que fazer, sendo que eu não tinha feito isso. Eu precisava dar um passo pra trás e sempre voltar naquela questão da construção da minha carreira e do meu conhecimento, enfim.
Como eu já tinha feito estágio na empresa de internet, aquele negócio ficava me cutucando o tempo todo, falando: “Poxa, vai ser o próximo negócio”. Uma das coisas que eu queria montar era de internet, de e-commerce; eu ficava ligado o tempo todo, ficava pesquisando. Aí me deparei, um dia, com um anúncio de uma vaga de trabalho numa empresa que estava sendo formada e eu já sabia dessa empresa, porque tinha visto na mídia, tinha pesquisado. Meus colegas ninguém nem entendiam direito o que era internet, muito menos e-commerce e pra mim foi até natural, quando eu pensei. Eu tinha assistido uma palestra em 1997 e aí, quando eu olhei, falei: “Nossa! E-commerce é como se fosse juntar internet, tecnologia com comércio, que é a vida que minha família sempre passou”, então era natural pra mim e quando eu vi isso, eu falei: “É o que eu vou fazer”.
Eu me deparei com essa empresa, fui lá. Tem uma história curiosa, porque eu tinha, ainda naquela arrogância da juventude, tanta certeza que eu ia passar nesse processo [que] eu tinha pedido demissão da consultoria sem ter passado ainda. Depois, no dia do processo do pessoal do RH que estava fazendo esse recrutamento, eles me ligaram e falaram: “In, você não passou”. Eu falei: “Cara, como assim, não passei?” Eu não falei pra eles que eu tinha pedido demissão, né? (risos) Mas eu falei, expliquei: “Não, eu conhecia todos os meus concorrentes”. Enfim, tinha feito muita pesquisa. Eu tinha certeza absoluta que aquela vaga seria minha e não foi, naquele momento. Só que como eu tinha - acho que era um período em que eu era muito ativo em várias coisas - acabei descobrindo quem eram os executivos da empresa; fui atrás deles. Enfim, é uma história longa, mas eu acabei sendo contratado por fora da consultoria de RH que estava fazendo o recrutamento.
Esse foi o meu início no mercado de internet, principalmente de e-commerce. Eu participei, no início, em 1999 e praticamente toda a minha carreira foi montada em cima disso. Depois, nesse desenvolvimento, uma boa parte dos meus principais contatos e amigos vêm do mercado de internet, de e-commerce, muito dessa época. Foi quando eu comecei a me desenvolver e fui pro mercado, enfim, jogado no mercado, de fato.
(46:27) P/2 – In, você comentou que seus pais são chineses. Você nasceu no Brasil, foi criado aqui. Como foi ser criado em meio a duas culturas totalmente diferentes?
R – Essa é uma boa pergunta. Talvez, acho que [durante] uma boa parte da minha vida, eu não tinha muita consciência das diferenças, porque eu estava vivendo as duas coisas. Às vezes as pessoas perguntam: “Olha, é assim e assado”. Simplesmente acho que é meio que automático. Muitas vezes é como se fosse, talvez, quando a gente vai falar um outro idioma que não é o nosso primeiro, então a gente meio que tem que virar uma chavinha pra começar a pensar, porque a gente não pensa no outro idioma. Mas pra mim sempre foi muito natural, até exatamente primeiro essa questão do idioma.
Eu sempre falei mais em chinês em casa, em mandarim, do que em português. Basicamente eu não falo português em casa. Até hoje, no relacionamento com a minha família, é assim. Eu cresci com a minha avó; minha família, no início, era minha mãe e minha avó. Minha mãe sempre trabalhando fora, minha avó já veio com bastante idade pro Brasil, nunca aprendeu a falar português e era curioso, porque ela assistia TV, novela, sempre e contava pra gente o que estava acontecendo mais por ver as coisas, as imagens, do que necessariamente entender o que as pessoas estavam falando. Como uma pessoa que veio pro Brasil, se eu não me engano, quando já tinha mais de sessenta anos, veio já, obviamente, com toda a sua mentalidade, seus preconceitos, todas as suas ideias já totalmente formadas. Nunca ia mudar absolutamente nada. Ela sempre ficou, basicamente, em casa, tinha pouca relação com brasileiros.
Quando eu era pequeno, sempre fui muito influenciado por ela porque minha mãe trabalhava fora, passava o dia inteiro e eu cresci com ela. Ela também não estudou, então não era uma pessoa que podia me passar muito da cultura, propriamente dita. Então, acho que era muito mais do comportamento. Ela não explicava história, poemas chineses, não fazia nada disso, porque ela não tinha isso. Era mais pelo comportamento e do que ela tinha vivenciado das coisas, talvez da comida, das coisas do dia a dia de uma família qualquer, independente da sua condição social e financeira. Uma boa parte da minha infância foi marcada por isso.
Eu só comecei a ter muito mais contato com minha mãe, talvez, quando a gente foi pra Taiwan e quando a gente voltou, porque aí a gente já tinha mais estabilidade financeira. Até acho que os dez anos de idade, doze anos, a gente tinha contas financeiras bem ruins e só depois desse período que começou a ficar bom. Então, ainda tinha essa questão marcante. Minha mãe me acompanhou pouco, mas ela tinha a mesma situação que minha avó, também não tinha estudado; ela só tinha acabado até o ensino médio lá na China. Ela até falava inglês, porque ela estudou em Hong Kong, [onde] inglês é o segundo idioma, então tinha uma facilidade um pouco maior. Mas então nunca tive...
Na verdade, é assim: talvez nunca ninguém tenha me passado características da cultura chinesa ou me ensinado. Era tudo de observar o que acontecia, talvez por isso eu nunca consegui verbalizar muito. Quando as pessoas me perguntavam: “Olha, como que é a cultura chinesa?”, eu não sabia falar. Basicamente eu vivia isso. Talvez eu percebesse, depois de um certo tempo. E, obviamente, na escola, talvez isso era um choque maior, mas em Foz do Iguaçu a comunidade chinesa é muito grande, as pessoas já tinham uma naturalidade disso. Também não era nada estranho pra ninguém ter amigos chineses, boa parte dos meus amigos eram, parte era chinês e parte eram totalmente brasileiros, mas eles também estavam muito acostumados, então ninguém se chocava com nada, também.
Talvez tenha começado a acontecer um pouco mais depois da universidade. Na faculdade, estava numa sala de cinquenta pessoas, tinha dois chineses. E não era um curso, uma faculdade que tinha muitos chineses e talvez, nesse momento, até por uma questão também… Eu sempre penso muito nisso e eu percebo na prática que você vai, na juventude, lutando contra os valores, luta com a família; você quer ser rebelde, quer ser diferente, você não aceita. E tem outro agravante que, nesse período da minha juventude - de todo o meu período até a vida adulta, na verdade - a China sempre foi um país visto como pobre, como exótico, esquisito, enfim, com todo distanciamento e todos os preconceitos que a gente conhece, muito em função da falta de conhecimento transmitido na escola - a gente não aprende na escola. E todo o resto é consequência disso, exatamente interesses políticos e ao longo do tempo, não digo só agora, sempre foi isso.
Esse exotismo sempre foi muito presente, mas sempre tentei tratar de uma forma mais natural possível. Quando eu era pequeno, me incomodava absurdamente e não é uma coisa, por exemplo, se eu fosse uma criança que não tem uma fisionomia, feição de outro país. Se fosse um ocidental em outro país ocidental, aí eu poderia esconder. Eu não tenho como esconder, então eu ando na rua, as pessoas sabem que, no mínimo, eu tenho pais estrangeiros. Mas eu acho que me incomodou mais durante a infância, porque acho que é uma idade um pouco mais cruel, que as crianças também não têm tanta noção, mas é aquela questão: talvez seja mais pelo fato de serem crianças do que por eu ser diferente, porque tinham muitos colegas chineses. A escola em que eu estava tinha muitos, então acho que tem esse aspecto.
Como eu comentei antes, minha mãe e minha avó são de uma província pequena, falavam um dialeto diferente do mandarim. Ele é muito parecido, é quase como se fosse um sotaque, então as pessoas entendem, mas era outro dialeto. Quando eu fui pra Taiwan foi um choque absurdo pra mim, primeiro porque eu não conseguia me comunicar totalmente bem, tive que aprender. Aí, sim, eu comecei a observar, talvez, mais coisas, diferenças culturais, principalmente na escola, porque o sistema escolar é totalmente diferente. E aí comecei a entender, porque antes eu não tinha, talvez, contato com famílias de amigos não chineses. Eu não frequentava a casa deles, então não via como era o dia a dia, o cotidiano de uma família não chinesa, na minha infância. Nunca tinha visto. Talvez eu tenha entrado na casa de um amigo, poucas vezes. Era mais na escola, então eu não conhecia isso.
Até depois, na minha vida adulta, várias pessoas falando: “Do que você brincava quando era criança?” A gente até falou um pouco nisso, estava recordando um pouquinho disso. Eu não brincava das mesmas coisas que os amigos da escola também, porque eu não vivi aquilo lá. Não eram brincadeiras de crianças, brincava disso ou daquilo, porque eu vivia numa outra comunidade, uma outra realidade. Quando fui pra Taiwan, esse nível de rigor, essa disciplina, essa rigidez toda pra mim ficou muito mais evidente, porque aí eu comecei a viver uma outra realidade, no dia a dia. Porque quando eu estava aqui eu não vivia duas realidades, eu vivia a minha, e [com] os meus amigos eu só tinha contato na escola. Quando eu fui pra lá, aí eu senti o choque. E aí tentei, mas acho que me saí relativamente bem, porque eu tinha já passado por várias mudanças de escola, de lugar, de mudar de casa, então sempre tive uma certa facilidade, talvez até porque eu também não... Sempre vivi muito isolado, então não era uma criança que tinha muitos amigos, não era um drama mudar de escola, de lugar. Acho que esse é o principal problema pras crianças: quando você muda de um lugar que você faz seus amigos e você perde. Como eu não tinha isso, pra mim foi super, sempre, muito tranquilo.
Uma coisa que sempre esteve presente também na minha casa: o conteúdo em chinês - não necessariamente jornal, mas videocassete. Antigamente minha avó assistia muitos vídeos, então quando a gente estava em qualquer lugar onde a gente esteve, onde tem o mínimo de comunidade chinesa... Antigamente; agora, com internet, não existe mais isso, mas tinha sempre uma locadora de vídeos e filmes chineses. Acho que todas as comunidades sempre tiveram muito isso e na comunidade chinesa também. Eu sempre tive muito acesso, nesse aspecto, a coisas da cultura, através da TV. Então, não vivia em casa uma cultura... Eu vou usar um termo que talvez não seja o melhor, mas uma cultura mais elaborada ou mais sofisticada, porque eu vivia muito a cultura do dia a dia chinês, então via como era um banquete chinês, vamos supor, ou uma festa de alto padrão. Eu não vivia isso no Brasil, na minha família, mas eu via pela TV como era. Eu achava curioso como era o relacionamento amoroso das famílias chinesas, o sadae chinês pela TV. Não conhecia, porque era uma família muito isolada do resto. Eu conheci muitas coisas da China pela TV. E aí, também, obviamente, quando você é pequeno, você não sabe o que é realidade, o que não é e, pra você, tudo aquilo lá é a verdade, né? Foi interessante nisso e aí conheci, talvez, coisas que poucas pessoas da minha geração, depois, viram: óperas chinesas, música chinesa, porque eu vivia muito isso na minha família, minha avó sempre assistia.
Isso talvez me deu um pouco mais de qualidade no meu mandarim, porque eu tenho um pouco mais de sofisticação quando eu falo as coisas. Eu percebo que as pessoas que não passaram por isso, por exemplo, meus primos… Eu tenho dois primos da minha idade também na mesma situação, só que eles não mudaram tanto, eles sempre moraram no Brasil, em São Paulo, a vida inteira e não tinham essa vivência em casa, desse conteúdo, apesar da mãe deles - o pai deles é o tio, irmão da minha mãe – que já faleceu há muitos anos, também não tinha essa imersão cultural como minha avó fazia, de assistir muitos vídeos, então eles nunca tiveram muito isso. Eles também não têm, talvez, a profundidade de pensar em chinês, o linguajar, que depois eu desenvolvi, por causa disso.
Tem muitas coisas de nuance que, talvez... Obviamente eu não conheço poemas, mas quando alguém fala uma expressão, eu consigo entender razoavelmente, por causa da TV. Eu acho que veio muito disso, porque depois fui crescendo e tive poucas vezes aula de mandarim - meus primos tiveram. Isso é uma coisa que antigamente era mais comum, então se aprende em casa, falar em casa o seu chinês da sua rotina, familiar, não sei como chamam isso, aquele chinês que você usa pra falar: “Eu quero comer, ir ao banheiro. Não quero isso, não quero aquilo”. Só está restrito a essas coisas. Com o fato de eu ter estudado lá e ter assistido muitas coisas, eu consegui desenvolver melhor.
Quando eu voltei pro Brasil e já vim pra São Paulo, pra cidade maior, depois fui frequentar as aulas, mas eu fiquei pouco tempo, porque eu fui percebendo que talvez eu pudesse ler o jornal, fazer as coisas, ao invés de ficar na escola, aprendendo. E é uma coisa que os meus primos fizeram por uma boa parte da vida deles da infância, mas eles não aprenderam muito. Isso é uma coisa super comum. Na comunidade chinesa - os mais novos, eu digo, essa geração minha, essa primeira geração de nascidos aqui - é diferente, talvez, pegar alguém da mesma idade que eu tenho, mas que veio da China e de mim ou dos meus primos, que têm essa mesma idade e nasceram aqui porque os que vieram já vieram com alguma bagagem cultural, alguma coisa de linguagem. A gente teve que aprender aqui, então não dá pra fazer essa distinção só pela idade. Tem que entender como foi totalmente essa mudança.
Depois, quando comecei a lutar menos com as minhas origens, querer aprender mais, me conectar, perceber também e a China começou a ter mais importância globalmente, política, econômica e eu comecei a me conectar mais, aí virou uma fase muito diferente pra mim, porque eu comecei a ter mais curiosidade, mas tinha alimentação do que tinha disponível, então ia nas livrarias; não tinha livro sobre a história chinesa em português e muito menos, mesmo em inglês, também não tinha tanto, porque nem importava um livro sobre a China em inglês pro Brasil. Tinha muita limitação sobre isso e aí eu tentava muito por inferências minhas. Quando conversava com alguém, tentava aprender. Aí, depois, meu padrasto veio se juntar à gente, o pai dele tinha sido diretor, talvez, de uma escola. Apesar dele ter passado por um período da história chinesa muito difícil com relação a ensino, que foi a Revolução Cultural - ele passou a infância dele nisso - na casa dele, na família dele, sempre tinha muita sofisticação, então ele toca instrumentos musicais, violino, fala, pinta, faz um monte de coisa, apesar de ter vivido, talvez, um dos piores momentos da História na China, em termos de cultura. Ele foi um cara que me ensinou muito dessas coisas e eu fui absorvendo.
Uma outra coisa interessante: meu padrasto vem de Guangzhou, que é uma cidade... Província do sul da China... Desculpa, cidade. E minha mãe cresceu em Hong Kong, que são lugares que falam outro dialeto, eles falam cantonês. E não é nem mandarim, nem o da minha avó, então minha mãe fala três dialetos. Eu cresci falando o da minha avó, em mandarim, e depois eu fui absorvendo naturalmente, de tanto ouvir. Isso foi uma das coisas mais loucas, que eu nunca percebi, de fato, mas de tanto ouvir meu padrasto, minha mãe e meu tio falando mandarim. Então, principalmente adultos falando, eles não querem que as crianças saibam o que estão falando e falam no dialeto deles. E eles têm um dialeto completamente diferente. Quem não é daquele, não entende nada. Só que eu cresci ouvindo, já tinha idade e aí talvez eu nunca tenha percebido; quando eu já era adulto, eu fui pra Hong Kong e percebi que eu tentava e conseguia me comunicar um pouquinho no dialeto deles. Aí sim, percebi que falava, que eu podia ter um novo dialeto. E acho que esse é um processo que funcionou pra todas as coisas da cultura chinesa, pra mim. Foi nessa fruição natural, no dia a dia.
Quando me perguntam das diferenças, agora talvez eu consiga mais pontuar, porque virou uma coisa profissional. Nos últimos cinco anos, talvez um pouco mais, eu tenho trabalhado muito no mercado de tecnologia relacionado à China, então é fundamental, pra mim, pro meu trabalho e pra eu entender esse processo das diferenças culturais de fazer negócios e tudo o mais, porque agora isso é uma coisa que eu preciso dominar profissionalmente, mas antes sempre foi de instinto e acontecia muito. Agora, profissionalmente, eu tento trazer e organizar essas coisas, então consigo verbalizar melhor, mas anteriormente não. Uma boa parte do meu crescimento foi isso e eu acho que é muito natural pra uma boa parte dos filhos de imigrantes, pras gerações seguintes viverem esse tipo de situação, como eu passei.
(01:03:27) P/2 – Você comentou que a comunidade chinesa em Foz do Iguaçu é bem grande. Tinha algum lugar em que as pessoas se reuniam, uma parte que tinha mais chineses?
R – Lá o chinês atuava, basicamente, no comércio, então tinha lojas, uma boa parte. Eu não sei precisar a quantidade, mas imagine [que em] Foz do Iguaçu, principalmente do lado do Paraguai, talvez um terço das lojas pertenciam a chineses. As pessoas já estavam públicas, vamos assim dizer. Você estava num centro comercial, estava todo mundo lá. Na hora do almoço, na hora de abrir e fechar a loja, todo mundo se encontrava, mas existia obviamente os restaurantes, um dos lugares, talvez, onde as pessoas mais se encontravam. Naquela idade eu não conhecia muito, mas acho que existiam centros culturais, alguma coisa... Aliás, associações regionais, da sua região de origem, sempre foram muito comuns.
Quando você entra com mais profundidade na comunidade chinesa, as pessoas perguntam de qual província você é, qual região, quando se deparam com você e boa parte das vezes as pessoas já percebem pelo seu sotaque. Essa parte, a ligação é mais num nível mais profundo; é mais a origem na sua região no país do que como chinês propriamente dito. Se eu encontro um chinês que não é da minha província, eu tenho um nível de relação X, mas se ele é da mesma província ou até da mesma cidade, obviamente o nível é muito diferente, assim como a gente vai pra outro país, quem é de São Paulo, quem é do Rio. Talvez no Brasil tenha menos isso, porque o idioma é o mesmo, tem os sotaques, mas na China você tem os dialetos, que marcam muito. Dialeto, na verdade, vem lá da antiguidade, que tem muitos traços culturais diferentes, então você tem essa relação que acaba fazendo.
As pessoas se encontravam, mas naquele momento, também, minha família não era muito ligada à província deles, então a gente nunca se encontrava numa associação. A gente se encontrava mais no dia a dia dos negócios. Eles se encontravam nas lojas, um ia na loja do outro, ia na empresa do outro, no escritório e depois no restaurante. Era mais nesses momentos. Que eu me lembre, não tinha nenhuma entidade formal, organizada, um lugar de fato de encontros, além dessas associações.
(01:06:10) P/2 – A gente falou das diferenças. Tem alguma semelhança entre a cultura chinesa e a brasileira?
R – Eu acho que tem semelhanças... Vou tentar verbalizar da melhor forma possível. Não da forma de fazer as coisas, mas determinados interesses. Então, aí eu vou falar [sobre] relacionamento. As pessoas gostam de se relacionar. Chinês também gosta, mas de uma forma diferente. Por isso que as pessoas, quando a gente olha como ocidental, fala: “Poxa, os chineses são supertímidos, não gostam, ficam lá na sua comunidade”, mas eles adoram se relacionar entre si, só que de uma forma diferente. Talvez outras culturas ocidentais e principalmente, talvez, europeias e coisas do gênero, não tenham, sejam mais isoladas.
A cultura chinesa é mais coletiva e social, de uma forma geral. Tem esse contraponto com o ocidente, mas os brasileiros são muito sociáveis, sociais de uma forma geral. E os chineses também são, mas de formas diferentes de se comunicar. Talvez os brasileiros sejam mais físicos, mais emotivos nisso; gostam de fazer, se associar e viver em grupos. O chinês também; talvez não tenham tanto contato físico, não sejam tão emotivos nisso, mas também gostam.
Talvez esse seja um dos aspectos que mais nos conectam, os brasileiros com os chineses. Outro aspecto muito parecido é essa diferença, também, regional. Eu sempre trago: “Olha, se você está em São Paulo, é diferente de um nordestino, de um gaúcho, qualquer coisa. Quando você está na China também é igual. Lá são 33 províncias, só que algumas centenas de etnias diferentes, que falam seus respectivos dialetos”. Essa diferença é muito fundamental também. Quando a gente olha, parece - e, na verdade, é a mesma etnia, que é han, que são acho que mais de 80% dos chineses ou 90% - mas eles vêm de histórias diferentes. Quando a gente olha um chinês, também não dá pra olhar do mesmo jeito, assim como a gente olha o brasileiro de regiões diferentes, e também não dá pra falar que é a mesma coisa. Acho que, nesses aspectos, são muito similares. Então, [é preciso] entender essas diferenças: quando eu vejo alguém, quando eu falo, eu tenho que entender além do que é simplesmente a nacionalidade no passaporte dele. Acho que é esse aspecto, mas deve ter mais algumas outras coisas.
Como eu te falei, às vezes é meio difícil verbalizar, mas eu quis falar dessa questão de relacionamento porque acho até que é pra desmistificar um pouquinho do que a gente vê na China. Porque certamente quando o brasileiro tenta se relacionar com o chinês aqui no Brasil, o chinês que não é nascido aqui vai ter uma barreira. Primeiro a de língua, depois a cultura, então a gente sempre vai achar que ele é tímido, retraído, mas às vezes ia ser o cara mais amigão de todo mundo, se ele estivesse na China. A gente sempre fica com uma percepção errada. A pessoa, o cara não está no ambiente natural dele, ou pelo menos onde ele nasceu. Acho que isso é importante, a gente sempre conseguir avaliar alguma cultura no ambiente deles, não no outro país. Da mesma forma que um chinês olha pra um brasileiro, quando o brasileiro está na China. É uma coisa completamente diferente do que quando o brasileiro está aqui, no próprio país.
(01:09:59) P/2 – A gente conhece a China como uma cultura milenar. Tem alguma coisa que foi passado da sua avó pra sua mãe, pra você, que você mantém até hoje?
R – Eu acho que um pouco dessa rigidez cultural, no sentido de uma disciplina das coisas, de uma concentração, de um foco. O que você prioriza na sua vida. Como eu comentei, você tem, principalmente - não só nos chineses, mas na filosofia confucionista - sempre olha os níveis coletivo e social primeiro, com mais prioridade do que o nível individual, que [é o que] a gente olha no ocidente. A gente sempre pensa um pouco mais coletivo.
Mas aí tem um aspecto importante na China, assim como a comunidade, de uma forma geral: as coisas mudam muito, então isso era antigamente. Agora, com a ocidentalização, com a abertura do mercado, com o crescimento, com o enriquecimento, não é necessariamente igual. Isso é até interessante: quem imigrou e volta muitos anos depois, não é o mesmo país que quando eles saíram, em nenhum aspecto. Às vezes, até em termos de comunicação, porque você sai falando um idioma e [quando] você volta, a linguagem é completamente diferente - expressões, gírias e tudo o mais. Você tem esses aspectos totalmente distintos, e acho que de uma forma geral.
A conexão entre os dois países, o entendimento ainda está em evolução, em amadurecimento, principalmente a comunicação e o compartilhamento de conteúdo, que é muito restrito ainda, muito raso. Mas, de qualquer forma, eu acho que... Deixa eu tentar responder de um outro jeito: a gente tem pouco conhecimento mútuo. Então, quando a gente tenta olhar sobre o nosso filtro... Aliás, quando a gente tenta ler o outro, a gente está lendo sobre o nosso filtro e vice-versa. E é isso que causa todas as distorções, no final, porque eu estou vendo e entendendo o que é certo e o que é bom pra mim, não o que é bom e certo pra eles. E a cultura milenar chinesa também tem muitas coisas que foram colocadas ao longo do tempo, algumas coisas importantes - essa questão de pensar coletivo, uma visão mais de longo prazo, porque isso eu sempre reforço muito: a gente só consegue enxergar, como ser humano, o nosso tempo de vida, então, desde o período em que eu nasci. Na verdade, agora, como tudo muda muito rápido, o período que eu nasci já parece pré-história, porque os últimos dez anos da história da humanidade é um mundo completamente diferente, antes dos anos 2000, inclusive, do século passado. De qualquer forma, os chineses tentam olhar de uma forma um pouco mais ampla, além desse nosso momento; olhar pra frente e olhar pra trás, pra aprender a utilizar isso de uma forma mais estruturada. E essa relação dentro da família, o mais importante são os pais; tem até uma expressão que eu acho que é uma das mais difíceis de traduzir pro português ou pra qualquer região ocidental, que é traduzido como “respeito aos pais”. Mas existe uma expressão pra isso, que é uma das coisas que os chineses têm que mais dar importância. É quase como se fosse acima de tudo da sua vida; isso dá um aspecto completamente diferente das suas prioridades.
Enquanto o ocidental, ou principalmente os americanos, saem cedo de casa, logo na juventude, os chineses ficam super apegados e talvez isso seja uma característica também parecida com os latinos, de uma forma geral: são mais próximos à família. Mas aí não é só proximidade, é o respeito, então é quase como se fosse um outro nível. Enquanto, talvez, as famílias latinas brasileiras estejam... Não vou dizer [que] você não está no mesmo nível que seu pai, mas você é um ser humano, você tem um relacionamento do seu pai com os seus filhos, mas os chineses têm um nível quase completamente diferente, de respeito e quase de uma veneração. Por isso que olham muito pro passado, tem uma série de coisas.
Acho que esses são alguns aspectos, são algumas coisas que nos marcam e nos diferenciam muito, que talvez sejam mais evidentes nisso.
(01:15:23) P/2 - Voltando um pouquinho pro período escolar, seu período de alfabetização, como é que foi? Porque você comentou que você só foi saber português fora de casa, demorou um pouco.
R – Eu não lembro muito bem (risos) desse período, mas de fato eu comecei a aprender na escola, mesmo. Nunca tinha sido alfabetizado em casa, então é diferente de famílias onde as crianças já começam a aprender com os pais, começam a ler livros. Eu lembro que os livros que tinha em casa eram em chinês, não em português, então fui pra escola e aí foi quando eu comecei a aprender.
Eu não acho que tenha sido superdifícil porque, nessa idade, aprende-se rápido as coisas. Um período que foi, talvez, mais complexo, foi quando eu estava na China - em Taiwan, especificamente - e aí eu tive que aprender mandarim, mas eu não podia esquecer o português. Tinha comentado antes o meu processo de aprender mandarim, mas eu era... Eu não vou dizer que eu era a única pessoa na cidade, o único brasileiro, mas não tinha contato absolutamente com nenhum brasileiro, então não tinha com quem falar português e eu tinha sete, oito anos de idade. E essa é uma idade que eu percebi, naquele momento eu vi como se esquece rápido as coisas. Eu só usava português, minha mãe sempre falava pouco português, minha avó não falava, então sempre foi muito chinês. E quando eu estive lá, eu esqueci. Literalmente, esqueci. Só que eu lembro que uma das coisas que minha mãe mais brigava comigo era: eu não sabia nem contar de um a dez, em português. Eu sempre chegava, falava: “Um, dois, três”; chegava no oito, eu não lembrava mais. Eu apanhei várias vezes por causa disso, porque eu não tinha essa vivência do português, direto. E aí, quando eu voltei pro Brasil, aconteceu a coisa ao contrário: que foi que eu fui pra escola aqui no Brasil e tive que reaprender português. Foi relativamente mais simples, porque eu já tinha estudado aqui, mas as pessoas me olhavam como estrangeiro, falavam: “Tem cara de chinês, nome de chinês e não sabe falar o português, então você é um estrangeiro.” Mas eu explicava: “Não, eu nasci no Brasil”. E eu lembro claramente: eu voltei e não sabia, absolutamente.
Naquela época você já tem mais informações da vida real, da sociedade. Eu lembro que não sabia nem quem era o presidente, aí fui pra uma aula particular e o professor me fazia falar: “Olha, o presidente do Brasil é fulano de tal, os ministros são esses aqui”, quais são os estados - porque quando eu saí daqui eu não tinha aprendido tanto, tinha seis anos de idade, e quando eu voltei, as crianças já tinham aprendido um monte de coisa e eu estava desconectado dessas coisas.
Tive essas duas quebras no processo de aprendizado, mas essa parte foi super-rápida. Eu sempre lembro muito que eu até falava, na primeira vez que eu reencontrei meus primos, em chinês e eles mal falavam em chinês; eles tentavam falar em português comigo e eu não conseguia falar português com eles. (risos) Foi até engraçado.
Uma das escolas que eu frequentei - aliás, as duas escolas que eu frequentei logo que eu cheguei aqui eram católicas, então tinha mais essa questão, tinha que ir numa aula de religião que eu não fazia ideia do que era. Tinha que ir à escola, a professora da aula de religião era a diretora, então era mais rígida ainda, tinha que rezar. Eu estava rezando e não sabia... Não é que eu não seguia a religião, não sabia o que estava fazendo lá e aí eu fui aprender várias dessas questões. Facilitou bastante o fato dos meus tios - na época, eu morei na casa deles por um tempo, quando voltei pro Brasil - frequentarem igreja cristã chinesa, então fui aprendendo lá também, apesar de eu não ter seguido a religião. Atualmente eu me coloco como agnóstico, não sigo religião, mas penso muito nisso.
Esse é outro aspecto importante, que a cultura chinesa se mistura quase com a religião, de certa forma, então religião, filosofia, cultura, são muito próximas. Alguns aspectos até meio místicos são parte da cultura, mas é de uma outra dimensão. É pensar o quanto os seus antepassados ou os filhos dos seus antepassados estão influenciando, estão em outro nível. Isso não é cultura, isso é religião; isso já é um outro plano, pode-se chamar, mas faz parte da cultura, então as coisas se misturam muito e depois fui aprendendo e tentando interagir. Esse período foi complicado nesse aspecto também.
Enfim, aí eu tive aula nessas escolas católicas, tinha que rezar, que ir na missa, fazer um monte de coisa. Depois, eu nunca mais voltei.
(01:20:37) P/2 – E, atualmente, quais são as suas atividades profissionais? Você pode comentar um pouquinho?
R – Sim. Eu atuo muito, nos últimos anos, fazendo conexão Brasil/China, no mercado de tecnologia, então eu tive experiência, há alguns anos, na entrada, como executivo de uma empresa chinesa de tecnologia, de smartphone - especificamente, na Xiaomi. Eu fui executivo da empresa na entrada deles aqui. E nesse momento comecei a trabalhar mais com as empresas de tecnologia.
Nunca trabalhei com empresas de outros setores chineses. O que é muito comum é agronegócio, infraestrutura, enfim. Profissionalmente nunca fiz, sempre foi só no setor de tecnologia, comércio eletrônico e nos últimos anos tenho feito muito essa ponte. Nessa consultoria, atualmente, estou focado muito em comércio eletrônico via live streaming, que é o formato que vem se desenvolvendo na China e acho que eu consegui desenvolver muito isso em função desses dois aspectos, dessas duas características. Primeiro já por ter trabalhado a vida inteira no mercado de e-commerce aqui no Brasil, de internet, mais especificamente, e num outro ponto, por ter background chinês. O mercado chinês vem se desenvolvendo, inovando e são coisas que, se eu não tivesse esse background chinês, talvez eu não teria acesso a essa informação, talvez eu não conheceria.
Eu estou utilizando isso como ativos que eu tenho, recursos profissionais que eu tenho e é uma coisa que eu vejo que a maior parte dos jovens da comunidade chinesa, inclusive da minha faixa etária, poucos conseguiram fazer isso, essa conexão de negócios, porque não eram do setor, ou não tinham domínio do mandarim ou do chinês da cultura chinesa. Eu tinha os dois. Não necessariamente o domínio da cultura com muita profundidade, mas eu sabia o que estava acontecendo e é uma coisa que, de certa forma, é uma pena que esteja acontecendo, porque a comunidade chinesa não conseguiu ainda sair do seu tradicional, dos seus negócios tradicionais de comércio, de importação, de serviços ou de quem acaba indo pra faculdade e vai estudar, vira médico, engenheiro, advogado ou coisa do gênero. Então, no setor que eu atuo tem pouquíssimos chineses, agora a gente começa a ver mais alguns mais novos, mas nunca foi uma área que se desenvolveu muito aqui no Brasil, por enquanto ainda.
Espero que nos próximos anos essa realidade mude e eu tenho tentado muito fazer isso conectado, criei grupo no whatsapp que tem, se eu não me engano, setenta pessoas que são chineses-brasileiros, a maior parte nascidos no Brasil, filhos de chineses e alguns que migraram muito jovens, mas que têm dois temas em comum. Aliás, três: empreendedorismo, tecnologia e essa origem chinesa, pra conseguir potencializar mais essa relação com a comunidade e esses recursos, porque eu acho uma pena que, na verdade, o mercado chinês, principalmente o que eu atuo mais, de comércio eletrônico, a China é a maior do mundo, disparado e os chineses que estão aqui não fazem nada com relação a isso. Então, a gente não aproveita o potencial que a gente tem. Essa é a realidade. Então, poucos evoluíram pra isso e eu estou tentando atuar e, apesar dessa minha falta de proximidade com a comunidade, eu tentei fazer muitas atividades pontualmente, pra fazer uma integração maior. Muito entendendo - principalmente com jovens - quando eu passei por isso na época, quando eu estava prestando vestibular, que eu comentei antes, da falta de informação. Eu tive a vantagem de saber que eu queria fazer aquela faculdade e aquele curso, mas o tempo todo eu vejo pessoas que não sabem. Na verdade, fazem alguma coisa também por limitação, às vezes até os pais podem dar liberdade, mas o cara nem sabe, porque não tem ninguém pra falar pra ele.
Esse é um período de transição. A imigração chinesa no Brasil aconteceu em várias ondas. A que meus pais vieram foi na década de sessenta, depois vieram mais alguns na década de oitenta, que vieram de regiões diferentes e o que a gente está vivendo agora, talvez, nos últimos anos, tem dois perfis: um de chineses do interior, de fato, da China continental, e outra parte de executivos de empresas, que muitos, inclusive, têm sócios e ex-sócios que estavam nessa situação, expatriados, que vieram pro Brasil e acabaram ficando. Eles se juntaram à comunidade, não era só um executivo que depois voltou. Tem muitos nessa situação. A gente tem ondas diferentes, com características específicas, vindo de regiões ou por motivos diferentes, que vieram se integrar. E uma das coisas que eu tentei fazer, apesar de não estar totalmente integrado, imerso nessa comunidade como um todo, é fazer essa integração do lado... Sendo um chinês, mas estando muito mais do lado dos brasileiros.
É curioso, por exemplo, que uma boa parte das pessoas que estudam a China são brasileiros. E uma boa parte das pessoas que estão nas universidades, falando em China, são brasileiros. Eu faço parte, eu tenho relação com vários desses grupos e uma boa parte das vezes eu sou o único chinês. Participo de muitas palestras, eventos, a maior parte ligada a tecnologia, mas alguns, falando de uma forma geral, nesse relacionamento e eu sou um dos poucos chineses. E eu acho isso, pra dizer muito abertamente, um absurdo. Acho isso um absurdo tremendo. Talvez por uma falta de conexão da própria comunidade e do próprio entendimento dos brasileiros com relação aos chineses, eles não se aproximam. Os chineses que estão aqui no Brasil... Aliás, os brasileiros que têm interesse na China são mais próximos da China do que dos chineses que estão aqui, que às vezes são seus vizinhos, às vezes o cara está aqui na cidade. O brasileiro interessado na China está mais conectado lá, pela internet, principalmente ou, às vezes, morou lá; às vezes têm amigos ou fazem negócios e não com o chinês que está aqui. Isso, pra mim, é o maior absurdo que pode acontecer e é um receio muito grande dessa desconexão da comunidade com a sua origem.
Acho que, se a China não tivesse se desenvolvido tanto, certamente as próximas gerações não teriam essa conexão e estariam praticamente todas miscigenadas. Não que isso seja ruim, isso é natural, mas você perde as suas origens, a sua língua, perde tudo. Seria natural, talvez, daqui a cinco, dez gerações, mas logo de início, na segunda geração, já tem muitos que não falam. Isso é um absurdo. Eu fiz muito pontualmente, ajudo essas conexões, tento fazer o papel, limitado ao meu esforço individual e muito voltado a jovens, que são os que, talvez, tenham a cabeça mais aberta e talvez sejam os que mais necessitam disso.
(01:28:13) P/2 – Agora, caminhando pra parte final, quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Mais importantes? Poxa, muito filosófica essa pergunta. (risos) Bom, não sei quando as pessoas vão assistir esse vídeo, mas a gente está vivendo agora ainda um final de período de pandemia, enfim, então acho que agora a gente tem... Agora as minhas preocupações são muito básicas: saúde pessoal, da minha família, das pessoas próximas e do país, de uma forma geral, porque não adianta eu estar super bem se tudo está mal. Uma melhoria de condições. Me preocupa muito a situação que a gente está vivendo agora, das pessoas, muita gente indo pra condições extremas, ruins. Eu vivi, nesse último período, também momentos muito difíceis e foi curioso, porque eu sempre penso quando começou, quando eu comecei a ouvir as primeiras notícias sobre a pandemia... Aliás, sobre covid, não era nem pandemia, no início; foi em janeiro, no final de janeiro. Eu ouvia os noticiários, achava ok. Como tinha acontecido já a epidemia lá atrás, em 2003 e sempre tem alguns surtos grandes na Ásia, a impressão é que seria mais um. E nesse, especificamente, eu estava muito próximo, porque eu viajo muito pra China e isso ia me impactar, eu falei: “Tudo bem, pode ser mais um”. Vendo as coisas se agravando, acontecendo, evoluindo. Quando foi pra Europa, foi pra Itália e aí você percebe que as coisas não são iguais, mesmo assim eu não tinha a percepção que poderia ser tão grave quanto foi.
Esse foi talvez um dos piores momentos que eu tenha vivido do ponto de vista de ter origem chinesa porque, no início, acho que todo mundo, de um forma ou de outra, vivenciou, viu o quanto os chineses, de uma forma geral - e no Brasil não foi diferente - sofreram preconceitos; se agravou muito a situação, eu fui xingado várias vezes. Como eu comentei, eu sempre fui muito em palestras, participação eu fechei muito nesse momento, repensei muito o meu trabalho, porque isso estava me expondo e me corroendo por dentro de uma forma absurda. Teve momentos que eu não queria mais fazer isso, mas como era o meu foco, você não muda de uma hora pra outra e ainda mais nas condições, então esse momento foi terrível.
Você vê muito dessas situações nos Estados Unidos, principalmente, em outros países, de preconceito, de racismo contra chineses. No Brasil a gente sempre tem essa discussão e acho que aqui a gente está falando no Museu da Pessoa, é provavelmente um tema recorrente, de uma forma ou de outra, o quanto etnias, grupos, enfim, não importa qual tipo de grupo, sofrem, de uma forma ou de outra, em níveis diferentes. Nos Estados Unidos, principalmente, na América do Norte, acho que de uma forma geral, os chineses sempre tiveram muito problema, muito mais do que no Brasil, então a gente vive uma situação relativamente confortável, comparado com o que eles passam; aqui a gente estava bem. Acho que durante o período da pandemia tudo se agravou e piorou, mas também não no mesmo nível, mas acho que faz as pessoas começarem a pensar numa nova situação.
Antes eu sempre levei na brincadeira, até porque uma boa parte das pessoas que faziam comentários ou piadas comigo eram pessoas conhecidas e aí eu sempre relevei isso, achando que era ok. Quando isso começou a se agravar, eu comecei a ter uma consciência diferente da minha origem, coisa que os chineses que estão nos Estados Unidos, talvez chineses que estão em outros países, sempre tiveram, porque sempre sofreram.
Aqui tem muita história de minoria modelo, enfim, vários nomes que queiram dar. Os asiáticos, de uma forma geral e os chineses estão dentro disso, têm condições, obviamente, muito melhores que outras raças, tirando os brancos, então não me coloco, obviamente, em história de sofrimento de nenhum outro povo, mas cada um tem os seus problemas, as suas características, o que você está sofrendo. O que a gente não passou e eu relevei a minha vida inteira com relação a isso, nesse momento eu comecei a repensar - repensar a origem, o seu papel e essa relação, de uma forma geral. E, talvez, vivendo extremos. Talvez eu nunca tenha sido tão chinês na minha vida inteira e tão pouco chinês. Eu vivi os dois extremos, nesse momento. E acho que a gente sempre fala muito do que a pandemia causou e uma das principais, principalmente pra quem é de origem chinesa, no mundo todo, é repensar o seu papel na relação com os lugares onde você está, em como você é. Pra mim, eu nasci aqui, então não tenho como negar a minha origem, mas eu sou chinês, de origem chinesa, ainda estou nessa fase de transição.
Pra mim, o que eu mais gostaria que as coisas acontecessem é que essa relação comece a melhorar. Ela não vai mudar de uma hora pra outra, até porque a gente está vivendo a pandemia e vai viver por algum tempo ainda. Como as coisas foram evoluindo e foram conduzidas estão postas, então não tem o que mudar o que já aconteceu, mas é tentar esperar e agir pra que as coisas melhorem nessa relação.
Minha perspectiva pessoal e dentro de uma comunidade chinesa é tentar melhorar nisso, porque eu não sou alguém que vá amanhã, talvez, embora e não tenha mais relação com o Brasil. Não tenho como fazer isso. Eu nasci aqui, minhas raízes estão aqui, mas tem muita gente que tem uma crise e vai embora. O que eu gostaria mesmo, de fato, agora, é obviamente todo mundo estar com saúde, a situação econômica melhorar. Eu não consigo enxergar, de fato, uma melhoria a curto prazo. Mas também, pra uma comunidade chinesa, do ponto de vista disso, eu gostaria que as coisas melhorassem de uma forma geral. É isso.
(01:35:09) P/2 – Você comentou que sempre pensa a longo prazo. Você tem algum sonho, pro futuro?
R – Sonho pro futuro, do ponto de vista pessoal, é conseguir impactar e ajudar o maior número de pessoas possível. Acho que falar isso até reflete muito essa questão de como os chineses pensam, é o grupo. Obviamente tem um lado egoísta também, é assim: é o meu status, é as pessoas olharem pra mim de uma forma como alguém que mudou ou ajudou ou fez a diferença, mas também de trazer resultados e melhorias pra outros. Tem as duas mãos nessa história, não é totalmente só pensando no lado bom das coisas, obviamente. A gente sempre tem um lado importante, pessoal.
Acho que é isso: tentar fazer dessa forma e com essa vertente, esse cruzamento da relação dos dois países ou das duas culturas. Não só... Porque a gente generaliza os países, não só as entidades políticas: Brasil país e a China país, as culturas, principalmente. Quando a gente está aqui, não é necessariamente o país China, são os chineses que estão aqui. Eu sempre falo muito, tento mostrar pras pessoas [que] tem essa distinção, que é diferente da parte boa ou ruim: são chineses que estão aqui, que saíram há muito tempo, moram aqui, estão se integrando. Eles não são a China, pro bem e pro mal, tanto que você não pode ter a expectativa comigo que você tem com a China. Eu sou um cara que está fora do país, nasci fora, então você não pode assumir que eu sou igual. Tenho minhas conexões, minhas raízes, mas acho que é isso.
No final das contas, meu sonho, como grande sonho, como uma visão, é acho que impactar e ajudar a maior quantidade de pessoas possível e deixar um legado, talvez. Enfim, é isso.
(01:37:25) P/2 – Por fim, como é que foi pra você contar sua história?
R – Eu acho que, quando a gente verbaliza, te exige pensar mais nas coisas. Não é [como] quando você pensa só. [Quando] você está pensando sozinho, é um turbilhão de coisas, né? Você não organiza as ideias. Estão todas bagunçadas, como aqueles balõezinhos. Quando você tem que falar, você tem que raciocinar, até pra não falar besteira e diferente do que você está pensando. E falar de uma forma organizada.
Pra mim, sempre é um exercício que eu gosto muito de... não é que eu fale sozinho, tá? Mas eu gosto de falar, pra conseguir organizar as coisas, às vezes, quando a gente pensa sozinho.
Acho que eu consegui repensar, principalmente minha infância, meu passado. Não é um assunto que eu costumo falar pra muita gente, talvez poucas pessoas saibam dessas coisas. Fico feliz de poder dividir isso, não sei qual vai ser a impressão das pessoas que vão assistir isso ou que vão ouvir, mas pra mim é sempre... Quase uma terapia, né, quando você está falando. Algumas coisas você consegue resolver só falando e conseguindo se organizar, então pra mim foi isso. Consegui expor e relembrar alguns aspectos. Mas também me mostra claramente que tem algumas coisas na minha vida que eu não lembro (risos) mais, principalmente coisas muito antigas.
(01:39:01) P/2 – Então, em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece a sua entrevista, foi ótima. Muito obrigada!
R – Obrigado, Grazi! Obrigado a vocês e foi um prazer. Acho que fiquei superfeliz quando apareceu essa mensagem, convite. Fiquei até espantado, porque veio do LinkedIn, não é um canal em que normalmente receberia esse tipo de contato. Sei lá, pode vir do Facebook, Instagram, mas achei superlegal e é como eu falei: eu acho que, nos últimos anos, não só [como] questão pessoal, mas uma questão também... Aliás, não só profissional, mas pessoal também, de reconexão e nos últimos dois anos, por causa da pandemia, [foi uma] reconexão até forçada. Isso me deixou muito feliz, foi um prazer e agradeço o convite mais uma vez.
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