Entrevista de Simone Bernardi
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 30/01/2024
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV008
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiro quero te agradecer demais por receber a gente aqui, por dividir um pouco da sua histór...Continuar leitura
Entrevista de Simone Bernardi
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 30/01/2024
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV008
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiro quero te agradecer demais por receber a gente aqui, por dividir um pouco da sua história e da história desse lugar e queria que você começasse se apresentado, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Eu me chamo Simone Bernardi, eu nasci em 31 de março de 1976, na Itália, numa cidade chamada Pinerolo, na província, na Itália se fala em província, região de Turim, no norte da Itália. Não morando na cidade de Pinerolo, mas numa cidade ainda menor, uma cidadezinha de seis mil habitantes, chamada Cumiana, também naquela região. Foi lá que eu cresci, né? Que, de fato, me criei.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Ah, eu me lembro de fotos, numa época em que não se tirava tanta foto que nem hoje, a foto, porém era ‘a’ foto, quase como uma pintura, não é? E porém os meus pais tiveram esse carinho de montar aquele livro, com a foto (risos) colada mesmo, com as fotos daqueles dias, daquele tempo. Então, eu me lembro dessas fotos e me lembro deles, dos meus pais e dos meus avós, narrando naquele dia. Eu sou o mais velho de uma turminha de primos. Então, vamos dizer assim que inaugurei (risos) uma série, sendo o primeiro tudo, né, meu avô, meus avós. É o primeiro, então tem muitos relatos, vamos dizer assim, que eles sempre fizeram questão de me passar, porque gostavam de contar isso. Então, tenho essas memórias.
P/1 - Tem alguma história muito marcante que te acompanha, deles contando?
R - Ah, eu me lembro do meu avô materno contando... era uma pessoa muito assim... como é que se fala? Elegante, até diria, muito tranquila, muito... mas que naquele dia ‘perdeu a cabeça’, de tirar os óculos, colocá-los de novo, rir, chorar e todo mundo contar dele neste dia, de como ele era tão alegre que, vamos dizer assim, saiu dos limites dele. Meu avô eu conheci bem, frequentei muito os meus avós, tive essa sorte, então, falando com ele, muitas vezes essa história apareceu. Agora já falecido, né? Mas é uma alegria. Isso é ser acolhido também. Acho que é bom ter essa lembrança, porque você tem uma lembrança de alguém que te quis bem desde o começo. Isso é muito relevante. Na vida eu fui entendendo como isso não é normal para todo mundo. Então, é algo que para mim sempre foi normal e isso vai te moldando. Sentir que outros estavam felizes com a sua chegada é muito importante. Então é uma história simples este relato do meu avô, que todo mundo quase tirava o sarro dele, né? De como ele se... como é que se fala? Desconfigurou naquele dia. É bonito, é bonito. Sempre foi bonito, por isso chamou outros relatos. Tenho essa lembrança marcante. Tenho outras, né, de fotos. Repito: meu pai acho que tinha uma máquina fotográfica que, na época, também, ele se divertiu muito, não é? Tirar fotos de mim, então são fotos até engraçadas. De certa forma, agradeço hoje por ter essa memória, porque você não recordaria, não é? Então, é algo importante.
P/1 - Você morava em uma região menor e você foi nascer em uma cidade um pouco maior, é isso?
R - É, na realidade, sendo uma cidadezinha pequena, na Itália são muitas prefeituras minúsculas, né? Diria hoje, morando em São Paulo, praticamente moro numa casa de acolhida que na Itália seria uma prefeitura. Então, não tinha um hospital. Quem nasce daquele país fala vilarejo, cidadezinha, vai... a mãe vai no hospital grande, na cidade maior, vizinha. No caso era Pinerolo, mas depois... eu nasci lá, naquele hospital, mas depois eu voltei para casa. Então foi isso. Mas para mim também sempre foi normal, a cidade é esta. O vilarejo tem esse tamanho. Depois, bem depois eu fui entendendo um pouco o que era uma cidade maior, quando eu comecei a estudar, já no ensino fundamental mudei, ensino médio, na realidade e aí fui perceber um pouco que as coisas eram diferentes, né? Mas sempre tive esta dimensão que também é muito acolhedora, porque um vilarejo pequeno, claro, tem também muita fofoca, mas porque tem um controle social muito grande, mas isso é também uma rede de proteção, de... você é o filho de alguém daquela família, mas é um pouco filho também daquela cidadezinha. Então, isso, em uma certa idade, te incomoda muito, mas até uma certa idade também te protege muito. Então, isso é algo interessante.
P/1 - Como que era a sua casa? A dinâmica da sua família.
R - É, então, meu pai é filho de migrantes internos, na Itália aconteceu muito isso, sobretudo na direção da cidade de Turim, que é a cidade onde nasceu a Fiat, até Fiat é Torino, então é uma cidade industrial - foi, hoje já não é mais - que chamou muita gente dos vários interiores, se fala no Brasil, do país e meu avô passava fome na região dele, de origem, que era o Vêneto. Então eles migraram do Vêneto para o Piemonte, que é a região de Turim. E na época os italianos faziam muitos filhos (risos). Hoje isso já mudou. Meu pai tem onze irmãos. Então, vindo meu avô do Vêneto para Turim, ainda não tinha todos esses filhos, mas já tinha sete, oito, num caminhão - esse é um dos relatos épicos da minha família, não é? - sem nada, com um baú, onde tinha todas as coisas deles e para trabalhar uma terra de alguém que tinha mais possibilidades no Piemonte, fez com que depois cada um dos filhos fosse, com o tempo, se ajustando naquela nova situação, formando uma família etc, mas tendo também outros filhos. Então, tudo isso para dizer que eu tenho muitos primos e primas. Quer dizer: a minha normalidade sempre foi brincar com um monte de crianças, mesmo não indo na creche, porque mesmo tendo eu, depois, uma irmã só. Mas repito: tendo muitos tios e cada um tendo dois ou três filhos e morando mais ou menos todos naquela região, meu avô praticamente, quando conseguiu, com muita luta, se estabelecer naquela região, depois construiu meio que uma pequena fazenda onde moravam, não todos, mas alguns dos filhos. Então aquele pátio enorme era uma enorme creche também. (risos) Então isso criou essa dinâmica, que se fosse uma família como era a minha: pai, mãe e dois filhos, era uma coisa, mas naquele contexto virava outra, porque era como ter muitos irmãos. E as brincadeiras aumentam de volume, não é? Seja sonoro que é de criatividade, são coisas malucas que você faz, porque duas crianças podem machucar o joelho, agora já dez, podem fazer algo bem maior: subir nos tratores, (risos) tentar colher as frutas. É um contexto muito este, não de uma cidade, mas agrícola. Se fala agrícola?
P/1 – Hum-hum.
R - Então, onde a dinâmica era esta, de produzir frutas, verduras, colher. Então, eu tenho essa lembrança de uma criança onde estes maquinários eram como grandes dinossauros se mexendo no pátio e na época de cortar o trigo saíam estes maquinários enormes. Era um encanto. Era também um perigo, porque os adultos sempre botavam medo: “Fica longe”. Mas era uma grande atração, não é? Então, eu me machuquei um monte de vezes, fazendo coisas que eu não devia. Graças a Deus, de uma forma não grave, mas dedos, braços, estas coisas, mesmo não sendo uma criança tão agitada, mas aquele contexto sempre criou uma dinâmica onde isso era comum.
P/1 - Você não participava dessas dinâmicas agrícolas, em colher, ou participava?
R - Ah, sim. Depois a gente entrava. A gente já viveu um pouco a dinâmica da geração do meu avô para a do meu pai. Meu pai e os meus tios já queriam que os filhos não fizessem mais isso. Hoje já mudou. Eu não moro na Itália já há quase vinte anos, onde esse contexto de trabalhar a terra está voltando, porque é um trabalho onde tem faculdades que te preparam pra isso, mas na época era: “Não, é trabalho duro, você tem que estudar. Largue, não faça isso, porque é duro isso. Não é, socialmente falando, o melhor pra você. Estuda pra se tornar médico, arquiteto, saia dessa vida. Mas eu vou trabalhar até a morte, (risos) para você conseguir”. É um pouco essa passagem social que talvez muitos estejam lutando para ter também aqui no Brasil hoje, não é? Então, mas, estando naquele meio, repito, e com aquele fascínio de, nossa, dirigir um trator era o máximo. A gente querendo entrar. Então, eu me lembro muitas vezes de ter ajudado sim, até só para pegar uma borracha e levá-la no tempo do calor para o meu pai ou meu tio trabalhando no campo e matava a sede deles, não é? Então você fica lá, pronto para se aproximar e fazer esse gesto. Eu me lembro muito disso. Ou de ajudar a descarregar os fardos de feno, que para uma criança era superpesado aquilo, mas orgulho de participar daquele encaixe, para construir aquilo, era como um lego gigante. Então, isso sim. Perceber também a dureza daquilo, isso não era tão legal, o cansaço dos adultos, que depois não têm vontade de falar. Você está brincando, mas eles não. Então você percebe, às vezes, a raiva vindo de algo que não deu muito certo, de algo que se quebrou. A criança não entende, mas sente aquela tensão. Às vezes as brigas entre eles, que não é legal, uma criança sente isso. Acho que, nesse sentido, uma sensibilidade também de perceber certas coisas que talvez as outras crianças não percebiam tanto, mas era um trabalho por estar no meio, não tanto porque alguém te fala: “Não, preciso de você, venha, trabalha”. Uma criança trabalhadora, não. Uma criança que quer se envolver, que quer participar, isso sim, ou simular. (risos) Então, eu tinha o meu pequeno trator de brinquedo, aí eu reproduzia tudo que eles faziam, não é? Porque tinha muitos exemplos do que era plantar, o que era preparar o terreno, então a gente brincava com aquilo, muito menos do que jogar bola ou... isso a gente viu depois, na escola etc.
P/1 - Como você descreveria seus pais, o jeito deles?
R - Eu os descrevo como pessoas que sempre procuraram dar o melhor para nós, talvez tirando um pouco ou muito, não sei se explicar dessa forma, vou tentar, da beleza da vida deles. Porque o esforço, quando se torna mentalidade, estilo de vida, depois te tira também, sei lá, de uma viagem, da possibilidade de fazer alguma coisa também, de relaxar. Os meus vêm muito de uma cultura do trabalho, que era um pouco a cultura de uma época que os meus pais vivenciaram. Meu pai tinha dezoito anos em 1968. Eu sempre, de vez em quando, brinco com ele: “Mas os outros jovens estavam fazendo a revolução, você estava fazendo o quê? Você estava trabalhando?”. Porque isso não pegou todos, sobretudo quem estava fora das cidades e sobretudo no caso de uma situação como a deles, vindo de uma família de migrantes. Tinha que fazer isso para melhorar a qualidade de vida. Então, não digo que eles não viveram bem, porque depois eles foram também construindo aquilo que eles queriam, mas sempre se privando. Então, esta privação depois se reflete também nas relações, porém sempre foi forte a questão da família. Não do núcleo familiar apenas, mas da família grande. Acho que isso é algo que eu sempre agradeço, por eles terem tido essa abertura de nos colocar num grupo maior e não pensar somente em si. Mas era importante, por exemplo, visitar os avós, até eles morrerem, querer bem a eles. Estou... repito: pra mim sempre foi normal, mas depois fui percebendo que não. E o fato de ser uma família grande sempre permitiu fazer isso também, porque uma família grande te tira o peso de ser só, sei lá, um filho que cuida de um pai, ou de uma mãe. Então, acho que hoje, que moro numa casa de acolhida, eu ‘leio’ um pouco tudo com esse ‘óculos’. Veja como aquilo era, já, um sistema acolhedor. Eu vivi muito isso quando... aí é uma coisa muito marcante, óbvio, na minha vida, a minha mãe faleceu muito jovem. Eu tenho muito mais idade do que a minha mãe viveu. A minha mãe faleceu com 39 anos, por um tumor. Então, uma situação muito grave. Porém, volto a dizer que essa família grande ao redor, cultivada, sempre considerada como algo... esses laços nunca fizeram... claro, a gente sente falta da mãe até hoje, mas quem estava ao redor de minha irmã e de mim quase que fizeram de tudo para que a gente percebesse o menos possível a dor e a falta prática também disso, não é? Então, agradeço aos meus pais por esta vivência de família aberta. É claro que eles nunca teriam imaginado este desfecho, esta situação. Porém, eu acho que isso é saber da fragilidade que hoje, talvez, a gente considere menos. As minhas famílias sempre sentiram um pouco o que é a pobreza de origem e sempre a respeitaram. E a pobreza significa também fragilidade. Também força. Mas a fragilidade é evidente, então, saber que é importante não abandonar um laço, não dizer: “Não preciso mais de você”. Não, a gente precisa. (risos) Porém, não ser só uma coisa egoísta, isso foi importante, muito importante. Quando a minha mãe faleceu, se não tivéssemos tido pessoas ao redor, a gente teria... não sei, não sei o que teria acontecido. E aí meu pai foi uma pessoa muito forte, porque ele, além de continuar a trabalhar, se tornou também um pouco pai e mãe, porque de qualquer forma teve que fazer isso, não é? Numa idade em que eu tinha treze anos, minha irmã sete anos, eram ambas idades delicadas. Então, hoje é um enorme reconhecimento. É difícil falar para os pais essas coisas, não é? Então, é difícil também para mim. (risos) Para minha mãe, falaria um monte de coisas que não pude falar. Eu falo de outra forma. Para o meu pai, ainda hoje, não é tão fácil agradecer, mas eu agradeci já várias vezes. Ele mora longe. Nunca falamos muito, mas eu acho que a gente se quer muito bem. (risos)
P/1 – E a sua irmã? Como é a sua relação com ela?
R - Bom, minha irmã é um dos meus heróis. (risos) Ela é menor de mim, mas ela é uma criança que cresceu sem mãe. Enfim, ela sempre foi uma pessoa muito forte. Teve que sê-lo também, como uma menina que cresce sem a mãe. Acho que sem o pai é difícil também, mas sem a mãe é um pouco mais. Então, ela sempre foi uma menina que... foi uma mulher que cresceu numa família de dois homens, ela. E também, pelo jeito dela, de reagir a essa situação, porém sempre nos ensinou muito. (risos) Então, não sei. A gente sempre fica pensando, a gente, depois, se dá uma explicação das coisas, que talvez não seja certa, sei que existe uma explicação, mas a gente se dá, não é? Mas ela escolheu - depois de formar como cozinheira (risos) - um pouco este percurso, hoje já não faz mais isso, mas sempre aprendeu a cozinhar. Mas gostando também disso, tanto é que se tornou cozinheira profissional. É isso. Em casa, era melhor que se substituía neste papel. Ninguém pediu isso pra ela, mas ela foi nesta direção. E depois tivemos percursos de vida diferentes, não é? Eu hoje sou padre, mas não é que a gente vira padre, assim, porque escolhe uma profissão. Pelo menos, não é o meu caso. Então, as nossas vocações, o nosso sentir foi em direções diferentes, com identidades diferentes, né? Ela não sentiu isso, talvez tenha menos este envolvimento pela religião, pela espiritualidade, mas a gente sempre foi se... com ela, assim: dialogando bastante, não é? E o fato de ser mais unidos, de como seríamos, talvez, numa situação mais normal, é explicado também, não tendo uma mãe. A gente teve que... acabou se ajudando muito, até nas tarefas de casa, da escola, eu sendo maior também, acabei sendo também um pouco aquele que é, (risos) depois, um irmão... qualquer namoradinho é aquele que acaba (risos) ficando muito de olho em uma irmã. Então, teve um pouco tudo isso. Até hoje, mesmo morando longe, a gente praticamente se fala um pouco todo dia. Tem uma ligação muito grande. E minha irmã com meu pai... com a minha mãe, se eu tivesse que te dizer a relação da minha irmã com minha mãe, sabe, foi tão curto o período e numa idade em que eu não prestava muita atenção também como é esta relação. É uma relação de uma mãe que tem uma criança pequena e vai criando-a. Só depois pensei: “Puxa vida, quanto vai faltar na vida dela!” Mas eu, depois, com o meu pai tive altos e baixos, também porque eu saí de casa numa idade em que eles ainda moraram juntos por um tempo. Então, isso foi algo muito falado com a minha irmã, menos com o meu pai. Claro que eu sempre fiquei um pouco preocupado, não é? Como é que vão se dar agora, entre eles? Teve com certeza altos e baixos, mas hoje eles moram perto, os dois tiveram uma vida não fácil, também familiar, meu pai se casou de novo, depois separou, depois se casou de novo e hoje está com uma outra esposa, já há um bom tempo, eles são vizinhos de casa, minha irmã e ele, digo que hoje se ajudam muito.
P/1 - Nesse momento, assim, pequeno, de constituição de ser, teve algum outro parente ou alguma outra pessoa, ou amigos dos pais, enfim, qualquer... tios que tenha te marcado, tenha sido muito importante para você?
R - Mas olha, eu diria algumas das minhas tias. Eu falei, tenho muitas tias, né? Por parte do meu pai, claro, muitas; por parte da minha mãe, eram quatro irmãs e depois que faleceu minha mãe, estas três irmãs ‘colaram’ na gente de uma forma que a gente, às vezes, teve que dizer não, mas aí nós somos uma família. Tudo bem, ajudar, aí eu já ficava, já era um pouco mais grandinho, então isso foi um pouco um papel que eu senti que... mas para mim elas foram marcantes numa idade difícil, também na adolescência, no bem e no mal, (risos) porque fizeram um pouco o papel da minha mãe, na parte prática nos ajudaram muito, isso me dei conta muito depois, de quanto elas nos ajudaram, de uma forma que hoje eu estou em dívida de agradecimentos que eu não fiz naquela época, muito, porque eu nem percebia de quantas coisas elas estavam fazendo para nós e para mim também. Eu sentia mais o sufoco delas, porque tudo era perigoso ao quadrado, porque como não tinha uma mãe por perto, então elas tinham que controlar. (risos) E remoto, não é? Numa época que ainda não tinha celular, então era muita presença. E isso era também um pouco um incômodo, um controle, algo que eu não sabia direito como fazer, porque eu percebia que elas nos queriam bem. Porém, era demais, não é? Então, demorou muito para encontrar este equilíbrio, vamos dizer assim. Mas é evidente que para mim foram importantes, porque passaram também um pouco aquilo que meu pai não podia passar, porque passava o dia no trabalho e elas tiveram que nos criar, que nos dar aquilo que uma família tem que dar, só que de uma forma diferente. Então, hoje já são um pouquinho mais idosas, aí toda vez que eu volto na Itália eu as visito, passo um bom tempo com elas, compartilho um pouco da vida com elas, porque eu acho que faria isso com minha mãe. Então, é um laço de ter três mães que não é a mãe, (risos) mas digo com elas, porque talvez elas sentiram mais isso, porque as outras tias também ajudaram, mas elas eram as irmãs da minha mãe, que faleceu. Isso é muito forte, sempre foi muito forte. Ainda hoje muito mais do que com os outros parentes e amigos. Então, marcantes nesse sentido. E depois sim, com outras pessoas, mas mais... até diria mais fora da família, porque também é algo que depois, crescendo, a gente procura. Família é importante, mas a certa altura é importante ‘voar’. Então, isso me levou a procurar outras referências, outras pessoas. Isso já foi um pouco uma reação também a toda esta história que eu estou contando hoje como uma história boa porque, de fato, é uma história boa, mas que numa idade de treze, quatorze, quinze anos é uma história também que te pressiona demais, que te leva, então, um pouco naquele contexto pequeno, de cidade pequena, neste contexto familiar que eu um pouco expliquei, eu... o meu caminho natural teria sido, por exemplo, escolher uma escola e na Itália tem um pouco isso: a gente estuda em escola pública. Eu fui descobrindo (risos) um pouco o tamanho do que é a escola particular, aqui no Brasil. Na Itália você estuda numa escola pública, eu sempre estudei em escola pública, pra mim é normal estudar com o filho do empresário, o filho do operário, o filho do desempregado, está todo mundo junto. Isso eu entendo hoje que é muito importante pra formação de uma sociedade. É de você a sociedade, não é? Então, o meu caminho natural teria sido escolher uma escola profissional de um tipo ou de outro, próximo de lá. Justamente naquela cidade onde eu nasci, onde tem as escolas fundamentais públicas que você pode escolher um liceu ou uma escola profissional. Eu não, fiz uma escolha um pouco inédita, que foi de escolher uma escola profissional muito específica, que era longe.
P/1 – Quantos anos?
R - Isso com quatorze anos. Então, eu fui estudar em Turim que, se você for olhar no mapa, não é... é a vinte quilômetros da minha casa. Repito: de uma cidadezinha pequena eu poderia ter escolhido numa cidadezinha um pouco maior, mas não tão distante, como todos fizeram. Eu hoje sinto isso, que eu fiz uma escolha de: “Pula fora daqui”. Então, eu fui estudar em Turim, talvez arrumei uma desculpa de que esta escola existia somente lá. Meu pai não me inibiu, acho que isso nunca ele fez, este é um motivo de agradecimento. Eu fui estudar nesta escola, que significava um deslocamento importante, de ônibus, de trocar para outro ônibus, até chegar ao bairro, numa cidade, ou seja, eu nunca tinha morado numa cidade de um... na Itália uma cidade de um milhão de pessoas é uma cidade grande. Então aquilo foi muita coisa, para mim. Muita coisa. Eu me lembro quando entrei no pátio daquela escola, me parecia estar em Marte, porque aquela molecada que tinha minha idade tinha uma vivência de vida muito diferente da minha. Muito medo, não é? Muito medo. Mas eu sou uma pessoa assim: uma pessoa tímida, mas uma pessoa que um milímetro por vez avança e aí não desisti, eu encarei. Mesmo ficando no meu canto, eu fiquei lá, não fugi e foi ‘tecendo laços’, foi ‘costurando’. E mesmo sendo uma pessoa tímida, sempre tem outras tímidas por aí. (risos) E mesmo quem parece não ser, às vezes é. Eu sou uma pessoa com paciência, sou uma pessoa que escuta, sou uma pessoa que mantém a posição, não é? Então, para mim era também um grande desafio aquilo. E foi observando, foi aprendendo as linguagens, foi aprendendo até, um pouco, a maneira de andar dos outros, de entrar em outros códigos, que não eram os meus e não eram de quem vinha de uma região como a minha. Porém, para mim, voltar para casa todo dia era como dizer: “Eu estou indo lá, viu? E voltei”. Então, para mim, essa foi uma grande escola, mais do que profissional, de vida, de me abrir porque, se talvez não tivesse feito isso, eu teria ficado... continuo sendo uma pessoa atrapalhada, mas não teria saído daquele mundo, que também era muito confortável, porque aquela família grande que eu comento sempre, é também um grande ‘ninho’. Então, aquilo foi também medir força fora. Isso acho que, para mim, foi um pouco superar o medo de buscar algo que é dentro, que é interior, mas comigo mesmo, não é? Fora, não só acompanhando, não só num trilho. Então, ali eu encontrei outras referências: professores, colegas que me abriram para outros esquemas, para outras histórias. Também a questão religiosa. Eu coloquei um pouco tudo em discussão, porque o caminho... eu sou padre e hoje em dia… então pareceria muito o contrário, mas eu saí um pouco da família católica que você vai na missa porque a família te acompanha. Eu agradeço por isso, porque os meus pais me deram alguma coisa, mas depois desse percurso me fez assumir aos poucos a coisa com os meus passos. Então, claro, eu tive também uma rejeição, mas que foi de dizer: “Não, eu quero entender com a minha cabeça, com o meu coração” e aquela não era uma escola católica, muito pelo contrário. Vamos dizer assim que na Itália a escola profissional continua sendo a escola pública, mas é diferente de um liceu, então aí você vê um pouco as classes sociais também. Então, numa escola profissional vai muito mais o povo, não é? E aquilo é interessante, porque eu estudei como protético. Então, eu sou uma pessoa que estuda, estudou para trabalhar em um estudo de dentista. Não para ser o dentista, se fala?
P/1 – Hum-hum.
R - Mas para trabalhar para. Então, a parte técnica. Todos os materiais, aparelhos etc. Então, lá eu encontrei algumas referências outras, né? Eu me lembro de um professor, justamente de religião, que era uma matéria facultativa, opcional, que porém eu escolhi. Esse professor fazia de tudo, a não ser estudar e ensinar religião. Era muito politizado, era muito de: “Vamos estudar a constituição republicana, vamos...”. Então, era um pouco um mito, na escola. E lá ele me interessou, porque ele fazia o jornal da escola, então eu comecei a escrever alguma coisa, ele mostrava livros que não eram os livros didáticos, ele ia propondo leituras. Então, ele foi uma pessoa muito importante para mim. Eu nunca falei para ele, mas (risos) é uma pessoa que me deu muito, né? Inclusive essas leituras me estimularam bastante. E ele me passou, depois eu encerro um pouco essa parte, (risos) mas é muito longa, mas na Itália tem um padre também que foi um pouco revolucionário, foi um pouco o [Paulo] Freire do Brasil, um pedagogo, que foi muito rejeitado, ele foi afastado. Ele fundou, no vilarejo onde ele foi meio que expulso, chamado Barbiana, na Toscana, uma escola para os alunos pobres do campo que ele tinha ao redor, porque naquele contexto tinha somente aquilo. Ele valorizou muito o conhecimento desses meninos, que eram analfabetos, mas que sabiam fazer um monte de coisas, só que eles não conseguiam expressar isto. Um aluno de uma cidade não conseguia matar a fome de uma família. Eles conseguiam, porque sabiam plantar, cultivar, crescer, subir numa árvore, cortar madeira, esquentar no inverno, mas tudo isso não era cultura. Então, este padre começou a ensiná-los desde o latim, a raiz etimológica das palavras, para dar a eles os instrumentos para que pudessem explicitar toda a cultura enorme que eles tinham, mas que o mundo não valorizava. Eu comecei a ler tudo deste padre, até os diários que tinham versões inéditas publicadas das cartas que ele fazia, porque eu sentia que era muito verdadeiro. E que ele conseguiu uma pequena revolução e contestava o modo de ensinar clássico. E aí ele criou em mim uma grande rejeição para a escola nos últimos anos, porque eu não conseguia entender por que a escola me avaliava sobre coisas que não me explicava, tipo redações sobre a atualidade e ninguém falava da atualidade na escola. Então, você era avaliado sobre uma redação sobre a guerra na ex-Iugoslávia e isso não era tema de escola. Então, todas essas coisas eu comecei a questionar, a escrever no jornal da escola etc. Então, isso me moldou muito, porque o mundo não entra na escola e, portanto, os problemas reais das pessoas não entram na vida das pessoas e as pessoas estudam e não sabem para quê. Isso se tornou um pouco meu ‘’miolo’. Eu, a certa altura, quis desistir da escola, não queria mais e meu pai aí entrou e falou: “Não, agora você chegou no quarto ano, você faz o quinto, por favor!” Eu cheguei muito perto de largar.
P/1 - O quinto era o último?
R - O quinto era o último, que na Itália é fazer a prova, que depois te permite encerrar aquele percurso e te dá o diploma, que você pode apresentar no mundo do trabalho ou para entrar na faculdade. Então, ele tinha muita razão, eu não podia desistir, mas eu queria. E, por causa dele, ele foi muito severo, eu continuei, me formei, trabalhei esses temas até o final, mas usei aquilo como tema para as provas, para tudo. E bom, depois parei e comecei a procurar trabalho. Não gostava mais daquela profissão, também. (risos) E fui trabalhar, porém tinha aquilo na mão, em dois estudos de protéticos, que me deram a possibilidade de trabalhar. E aí esses dois foram, para mim, duas pessoas importantes, porque vi que um deles trabalhava só porque, um pouco como eu, tinha desenvolvido aquele trabalho, o pai já tinha um estudo, ele continuou, mas não estava apaixonado. E o outro, onde eu ia, estava muito apaixonado por aquilo que fazia. E aquilo, para mim, foi um espelho: “Eu vou ser o quê?” E a certa altura, esse ‘cara’ que estava muito dedicado ao trabalho, porque gostava, era evidente que gostava, um dia me parou, eu estava fazendo uma coisa lá e falou: “Mas, escuta, eu escuto um pouco os seus discursos, quando você fala da sociedade, daquilo que são os problemas da Itália, de como resolver, você, seus olhos brilham. Quando eu te dou um trabalho para fazer, você até faz, mas você tem certeza mesmo que você quer fazer isso?” (risos) Eu agradeço muito esse homem, porque ele não tinha obrigação de me dizer isso, mas aquilo, pra mim, foi uma bomba. Quando ele me falou aquilo, eu voltei pra casa e chorei a tarde inteira, porque ele pegou um nervo vital. E não era um guia espiritual, não era... era um trabalhador. Porém, um trabalhador pode ser uma pessoa que informa os outros. E para mim foi como se fosse um guia espiritual. Ele me colocou diante de uma pergunta que eu encarei. Eu tenho que responder, eu não posso fingir, porque se eu fingir é perigoso. Vou fingir a vida toda? Então, eu voltei para um e falei: “Olha, muito obrigado. (risos) Eu vou parar de fazer isso”. Eu acho que eu o choquei também, porque eu joguei uma ‘bomba’ pra ele, não é? Porque esse ‘cara’ que não gostava muito do trabalho dele me ouviu dizer isso, eu percebi nos olhos dele que eu estava sendo ele, alguns anos antes. E quando fui até o outro, eu falei: “Olha, eu te agradeço. Eu acho que você tem razão”. Eu já dirigia naquela época, né? Tinha dezenove anos, peguei o meu carro, acho que dirigi até ter gasolina, pensando: “E agora?” E aquilo, para mim, foi um começo de... acredito que aquilo que depois me levou a descobrir a minha vocação que eu tenho hoje, mas eu demorei, porque eu sou tímido e também acho que um pouco cabeçudo, né? Então, é difícil admitir para si mesmo. Eu queria... né? Eu, claro, tinha as minhas namoradinhas ao longo do percurso da escola, eu queria isso, eu tinha isso, tinha... naquela família grandona eu tenho parentes que se tornaram padres e tudo, mas não teria pensado para mim isso, mas isso veio como uma pergunta, não de me tornar padre, isso ainda não, mas uma pergunta aberta, dizer: “Bom, pode ser tudo, mas eu quero descobrir”. E aí começa um pouco um caminho longo, que me leva até hoje. Mas naquela idade, dezoito, dezenove anos, em que essas coisas aconteceram, o final da escola, o trabalho, essas conversas, foram um belo trevo, onde (risos) eu decidi bastante coisas lá.
P/1 - Antes de entrar nisso, qual é o nome do padre?
R - Oi?
P/1 - Qual é o nome do padre que você falou pra gente?
R - Não, não. Essa pessoa que eu falei, que me fez essa pergunta, é um trabalhador.
P/1 - Não, não, não. Antes, lá nos estudos ainda, nessa escola.
R - Ah, não. Ele não era um padre, não.
P/1 - Ah, não?
R - Não, não. Era um professor, leigo. Não sei se na vida dele tinha sido padre e depois deixou. Não sei. Não sei. Nunca, nunca, repito, como eu disse: nem o agradeci muito, não falei muito pra ele depois. Pode ser que ele fosse um daqueles padres que, depois, como se fala, largaram o ofício e o ministério. Chamava... nossa, agora me foge.
P/1 - Não, sem problemas. Mas não teve um que tinha sido padre, que fez essa escola? ____________ que você trabalhou?
R - Esse professor de religião, não é padre, mas professor de religião não necessariamente é um padre, tanto que ele era um leigo. Agora não me surge, não me vem o nome dele, é que a gente o chamava pelo sobrenome, então, mas ele vai aparecer.
P/1 – Então eram os textos dele que você lia?
R - Exato. Ah, desculpa, ok, agora entendi, o autor, o autor dos livros, desculpa. Então, ele era Don Milani. Don Lorenzo Milani. E a escola dele, que ainda hoje é muito conhecida, porque depois ele se tornou conhecido, chamava Escola de Barbiana. Barbiana é a localidade onde ele morava. Repito: pequenininha, muito afastada. Hoje dizer Escola de Barbiana é quase dizer um método, vamos dizer assim, porque depois, quando a pessoa é forte, ele era que nem fosse um Gandhi da Itália, né? Depois começou a ser muito conhecido e todos iam visitá-lo, para falar com ele, para dialogar com ele. Mas a força dele veio do afastamento dele, porque ele incomodava, né? Ele, para mim, significou muito, também pelas batalhas que ele fazia, ele era... na Itália o serviço militar, ainda na minha época, era obrigatório e hoje já não é mais, é voluntário, então todos os jovens, na época somente meninos tinham que fazer a visita, depois, se eram - não me lembro como é essa palavra em português - considerados que você pode prestar serviço militar e não é dispensado, você tem que fazer serviço militar, era obrigatório e uma das batalhas dele foi a objeção de consciência. Ou seja: lutar para que os meninos pudessem decidir prestar serviço militar ou não. Muitos jovens na Itália foram presos por lutar contra essa obrigatoriedade. Eu cheguei numa época onde você já não era preso, mais. Então, você tinha essa opção, então você tinha que fazer uma carta dirigida ao Exército, em que você explicava as motivações pelas quais você não queria pegar uma arma na mão. Eu fiz isso. Eu escrevi uma carta que… ah, já era mais forte, eu sabia que não ia correr o perigo de ser preso, mas correr o perigo de ter uma demora enorme para ter uma resposta, isso eu sabia. Então, demorou bastante. E isso travava meio que a sua vida, porque enquanto você não recebia dispensa, você não poderia encontrar um trabalho, porque as pessoas te pediam: “Você foi dispensado, você prestou serviço militar?” “Não, eu estou neste impasse. Então, era seu trabalho precário. Então, você ainda pagava um preço, mas ainda, né, por tudo aquilo que eu tinha lido: “Não, eu não quero, não quero me armar”. Eu sabia que não ia fazer uma guerra. Mas até o valor simbólico de dizer: “Pegar uma arma para se exercitar, atirar algumas vezes na vida”, eu não queria fazer isso. Então, eu escrevi e esperei. (risos) Enquanto isso, fui fazer outros trabalhos. Fui voltar a trabalhar no campo. Fui trabalhar para um fazendeiro que cultivava flores. (risos) Então, fazia isso de manhã cedo, ainda com aquele frio, às vezes. Voltei para uma fazenda, de fato e esperei, fiz várias coisas, porque aquele trabalho que eu falei que não ia gostar, que eu não queria fazer, eu não fiz mais. Mas depois tinha que, no mínimo, manter a gasolina para colocar no carro, essas coisas, morava com meu pai ainda. Então, fiz outros trabalhos. Mas aí conheci a história do Arsenal, porque tinha tudo a ver, não é? Conheci, fui conhecer pessoalmente, por que o que o Estado previa? Que, se eles te dispensavam, você tinha que, da mesma forma, fazer um serviço de humano obrigatório civil ao Estado, não no Exército, mas servindo tipo uma ONG, ou alguma realidade: uma prefeitura, um hospital etc, que era uma coisa também legal. Aí eu tinha que procurar um lugar onde fazer isso, porque um dia ou outro vai chegar esta resposta. Chegou. E aí eu fui procurar numa realidade em Turim, que era este grupo que tinha transformado um arsenal de guerra, uma fábrica de armas abandonada, num lugar a serviço da paz. Uau! Eu já tinha ouvido falar disso várias vezes, porque inclusive dois dos fundadores dessa obra eram da minha cidadezinha, mas eu nunca tinha dado ‘bola’. Só que lá eu precisei e precisando eu fui atrás também de um desses dois senhores, já eram senhores na época, eles tinham começado muitos anos atrás. E fui: “Você me leva? Porque eu soube que lá tem a possibilidade de prestar serviço alternativo ao Exército etc”. É engraçado, porque os outros estão de olho em ti mesmo que você não saiba, não é? Esse senhor, pra mim era uma pessoa muito chata, mas eu tive que procurá-lo. Porém percebi, depois, que ele estava de olho em mim já há um bom tempo, não é? (risos) Ele me acompanhou. Eu conheci essa realidade, que me encantou muito, de um grupo de pessoas da sociedade civil, que muitos anos antes, inclusive na época em que o padre que eu falei escrevia livros, eles também estavam lutando, de verdade. O que sempre me fascinou e me fascina até hoje é encontrar pessoas que fazem o que dizem. Depois eu posso discordar. Uma pessoa coerente. Quando eu entrei lá, eu falei: “Opa, então é possível fazer aquilo que ele escreve naqueles livros. Tem alguém que acredita num ideal e está realizando. Estes, que na época eram jovens, sonharam em transformar uma fábrica de armas e hoje é uma casa de acolhida, não é banal. Como é que eles conseguiram?” E aí fui descobrindo a história, que hoje sinto minha, de pessoas que não eram ninguém aos olhos da sociedade, mas que foram, pediram, insistiram, perseveraram, caminharam, lutaram e transformaram aquele lugar, que era um símbolo de morte, num lugar que, quando eu cheguei lá, já estava acolhendo gente: imigrantes, refugiados. E lá eu obtive aquilo que eu queria. Quando chegou a resposta de eu ser dispensado do Exército, fazer um ano de serviço lá, eu fiz. Para mim foi a possibilidade de dar mais um passo. Não ia só e voltava de Turim todos os dias, eu ia morar lá. Então, eu fui morar naquele lugar. Foi o meu primeiro ano de vida fora de casa.
P/1 – Quantos anos?
R - É, isso já chegou, eu tinha vinte anos, por aí. Claro, era um morar fora que eu sabia que ia voltar. Só que eu não sabia como aquele ano teria me fascinado, ao ponto de sentir que não era, eu não estava, eu não fiz naquele ano só um serviço para me livrar de uma burocracia. Eu convivi numa comunidade de pessoas diferentes, onde alguém tinha feito uma escolha de vida. Era uma comunidade católica, mas uma comunidade católica com um estilo também muito leigo. Por exemplo: hoje a gente sabe, não sei, um convento, você tem freiras, monges com um hábito, não era bem o estilo deles, porque nasceram num contexto onde eles escolheram ter um estilo muito mais próximo às pessoas comuns, no ‘coração’ de uma cidade, no ‘coração’ de um bairro muito problemático, muito cosmopolita, onde eles acolhiam. Para eles a espiritualidade era muito importante. Ao redor deles pessoas que ajudavam, que participavam, cada um com uma intensidade diferente. Eu gostei muito, porque eu me sentia livre, não obrigado. Então, eu participava dos momentos de oração, quando eu sentia que era necessário para mim. Não participava e não era julgado. Então, aquilo começou a ser ‘eu que assumo aquilo’. Vou me alimentando daquilo como você come alguma coisa porque estou precisando, não porque é uma imposição. E fui entendendo que isso era importante na vida daquelas pessoas e dava força para elas acolherem outros que estavam muito mais em dificuldade. Então, aquilo despertou em mim muitas perguntas, que eram aquelas, não é? Ok, não vou fingir, mas agora, de verdade, vou fazer o quê? Então, aquele ano, para mim, ‘voou’. E quando terminou a obrigação burocrática eu tive muito medo, porque eu tinha feito uma caminhada lá, só que ok, agora, medo de fazer ainda mais perguntas para mim mesmo, de escolher. Escolher não é fácil. É sempre bom deixar muitas portas abertas. Só que eu, vendo essas pessoas que tinham tomado uma decisão na vida, eu percebia que eles conseguiam transitar por muitas portas com uma identidade. E isso me fascinava muito. Quer dizer: ali eu os via como pessoas que tinham tomado uma decisão de se consagrar, ou de se casar, ou definiram, porém eram livres, porque estava dentro de uma escolha que era verdadeiramente a escolha que eles queriam. Então, eu me perguntava: “O que você quer fazer? Quer formar uma família? Quer se consagrar como um frei? O que você quer?” (risos) Eu sentia que a minha escolha era esta, mas tinha muito medo de tomar essa decisão. Depois eu fui procurar, aí não só por acaso, dentro desta realidade do Arsenal de Turim, pessoas que eu pudesse conversar com uma certa frequência, sentir também um pouco a severidade deles, no sentido de: “Me digam o que vocês acham depois que vocês conversam comigo, sobre mim mesmo”. (risos) E depois eu comecei a decidir de aceitar os conselhos, sabendo que poderia chegar uma resposta que eu não queria ouvir. Certa altura eu me lembro, uma época que eu estava meio que ficando com uma menina, este senhor que, para mim, era um pouco um guia que eu escolhi me disse: “Mas você está mesmo apaixonado por ela? Você quer fazer um filho com ela? Você quer formar uma família com ela?” Puxa, quando ele me perguntou isso, não sei, não. (risos) Eu estava mais apaixonado pela ideia, do que por dela. E, com o tempo, mas aí não muito tempo, eu posso dizer assim: admiti para mim mesmo que eu sentia que a minha vocação não era essa. E que a minha vocação era de dar a minha vida, sabendo que decidir significa renunciar a algo para escolher outro, como um consagrado, como um frei naquele núcleo, era uma fraternidade de meninos e meninas que tinham tomado essa decisão de se doar completamente ao serviço aos outros. Claro, isso significou uma caminhada, mas não aquela caminhada como tem nas congregações já históricas da igreja, onde tem um percurso bem estabelecido. Era uma caminhada um pouquinho mais flexível, no sentido de não tão codificada, mas, mesmo assim, firme, definida. Eu entrei nessa caminhada em 2001, né? Eu sempre lembro, primeiro de abril de 2001, que parece o dia da brincadeira, mas eu tomei uma decisão de verdade. (risos) Eu escolhi esta caminhada e desde então estou nela. Não decidi me tornar padre, isso veio ao longo dessa caminhada, bem depois. Eu me formei como padre, fui ordenado em 2015. Então, são oito anos de sacerdócio. Mas aí eu passei a morar no Arsenal de Turim, morei lá, de fato, quatro anos. Fiz muita coisa que sempre me fascinou. Viajei bastante também, porque a nossa comunidade lá sempre... enfim, agora se entro na explicação da comunidade é um mundo, né? Mas foi em 2005 que me pediram para me mudar para o Brasil, já depois dessa caminhada, lá na Itália, que parece curta, mas eu já vinha um pouco dessa experiência anterior etc. Em novembro de 2005, já dentro dessa caminhada de consagração de serviço lá no Arsenal de Turim, me pediram para... se eu queria passar a cuidar, junto com os outros aqui, da nossa casa aqui no Brasil, que tinha sido fundada bem antes. Eu me lembro que cuidava, naquela época, um pouco do jornal (risos) da comunidade, porque aquela experiência da escola me levou a gostar desta parte e numa reunião de redação com o fundador da comunidade, onde a gente tinha preparado um monte de perguntas para fazer para ele, no final da reunião ele ainda não tinha respondido a nada daquilo, ele me olhou e falou: “Mas se eu te pedir para ir para o Brasil, o que você me fala?” Eu fiquei sem fôlego, porque a pauta era outra, não é? Mas os fundadores são assim, são meio malucos, não é? Então, agem também por intuição, ou por pensamento que eles têm, mas que não compartilham, não é? E naquele momento ele me perguntou isso, eu falei: “Pode ser”. Pouco tempo depois eu estava no Brasil, sem falar nada de português, já dentro de uma comunidade que não fui eu que fundei, outros já tinham desbravado aqui. Eu sou assim: eu sou um vagão, não sou uma locomotiva, mas quando me agarro ao trem, eu carrego muita gente. Sou o número dois, não o número um, não tenho essa coragem. Se eu vejo um pouco todas as passagens, é um pouco assim. Porém, se eu encontro um bom número um, eu largo, não é? Então, eu cheguei aqui numa terra onde alguém já tinha fundado esta obra, que hoje se chama, já há muito tempo, Arsenal da Esperança e hoje só o presidente da associação que leva adiante esta aventura, porque é uma aventura, o Arsenal de Esperança é uma aventura. Acolher gente é uma aventura enorme, dificílima, onde, porém, é uma comunidade, né e a gente cuida aqui. Nunca teria imaginado de vir para o Brasil, mas agora são dezoito anos.
P/1 – Quando você vai para o Arsenal, lá em Turim, aos vinte anos, você nunca mais volta para casa do seu pai?
R - Não, ainda por um tempo eu volto porque, repito: (risos) eu não sou aquele, sabe... um golpe depois mastigo muito, então demorei um pouco. Mas já com aquela inclinação, por isso escolhi estudar Serviço Social, por isso certas decisões, mas já um pouco nessa linha, de quem ainda... já tomou uma decisão, mas ainda não quer admitir, não é? Mas, sim, ainda por um tempo, sim.
P/1 - E lá em Turim, o que você fazia? Rapidamente, para a gente poder te compreender.
R – Sim. Um pouco de tudo porque, claro, depois a gente acaba tendo tarefas, né? Uma vez eu disse, por exemplo: essa de cuidar da revista, de fazer parte desse grupinho de redação. Mas numa casa como aquela, também como essa, todos interagem com a acolhida. Então, eu, já antes de morar lá e isso foi muito importante pra mim, o ano em que eu fiquei lá morando como serviço alternativo ao Exército, trabalhava muito direto contato com a acolhida dos imigrantes. Mesmo quando depois fui voltar na casa do meu pai, eu mantive uma noite por semana, toda sexta-feira à noite passando a noite lá, ajudando, servindo e dormindo na acolhida noturna do Arsenal de Turim. O que é a acolhida noturna? É o lugar onde, à noite, chegam os que não têm uma residência. Aqui em São Paulo se falaria de moradores de rua. Na Itália não são bem os _________ são aqueles que... a Itália é uma ponte, chegam muitos imigrantes. Na época era muito do leste da Europa. Caíram todos os regimes da antiga União Soviética e vinham muitos do leste da Europa. Eu me lembro que quase tinha aprendido um pouco de romeno, um pouco de albanês, porque tinha muita gente vindo daquela região e a gente acolhia, então eu passava muito tempo convivendo com esse pessoal, que muitas vezes eram jovens da minha mesma idade, que me pareciam muito mais adultos do que eu, porque cresceram num contexto totalmente diferente do meu e fugiam, né? Muitos fugiam de regimes, eu... isso abre muito a cabeça, que você conversa com alguém que te fala: “Eu escapei da guerra”. É. O que é isso, não é? Mas aquela pessoa tem a guerra nos olhos. Aquela pessoa tem um parentes lá. Então, isso foi exatamente aquilo que eu sentia falta na escola. Eu ia sugando isso, muito, porque aquilo era a vida real. E estando no Arsenal, fazendo esse tipo de serviço, o que me fascinava era que o que era notícia no jornal da TV, para mim era uma pessoa. O que, para todos, era um papo, para mim era aquele senhor, com aquele rosto, aquele documento que, inclusive, pegava para fazer a ficha, preencher. Não era uma notícia, era uma pessoa de carne e osso, não é? Então, isso, para mim, mudou. A palavra acolhida passou a ser um rosto, um cheiro, um sotaque, o problema de alguém que você não consegue resolver. Uma inquietude, não é? É muito mais sólido isso. Não é: “Ah, vamos falar de problemas migratórios”. Não, você tem pessoas que você conhece que sabe que atravessaram o deserto sem água, que viram alguém morrer por causa disso, que te contam isso, que de repente começam a chorar, você não sabe por quê. Quer dizer: eu preparei um copo de água aqui, não bebi até agora. Tem gente que por isso daqui morre, porque não tem. Então, isso, para mim, se tornou muito forte, uma palavra de grande respeito e também uma escolha. Quando você decide se dedicar a isso, tendo estes elementos, você sabe que você está realmente se casando com uma causa que é séria, não é? É importante. Então, eu fazia isso. Isso me ajudava também cuidando do jornal, porque quando a gente escreve, a gente partilha dessas histórias, não é? Então, isso é importante. Eu me lembro de um rapaz que a gente ensinava italiano, não é? Ensinava italiano pra gente de muitas... tipo: uma turma de 25 pessoas, ainda hoje é feito lá, onde você tem 25 nacionalidades. Então, você percebe que ensinar italiano não é só importante pra ajudá-los a estar no país, mas pra falar entre eles, porque muitos falavam inglês, francês, um dialeto local etc. Não se entendem. Então, ensina o italiano. E a gente fazia isso a partir de mapas também. Como é feita a Itália? Onde nós estamos? Que trecho você fez para chegar até aqui? Olha, você caminhou de lá do sul da Itália para chegar até Turim. Significa que você percorreu mais de mil quilômetros. Eu me lembro que um rapaz estava lá, com um giz na mão, escrevendo uma palavra que a gente estava passando, ele literalmente travou quando a gente falava dos rios, porque ele pensou na questão da água. Demorou um tempo para ele destravar. A gente não conseguia, não é? E depois ele chorou e falou dessa questão, que ele se lembrou que, quando estava atravessando o deserto, naquele caminhão lotado, os ‘caras’ jogavam os corpos daqueles que morriam por causa da sede, não é? Então, para ele, a água (risos) significava isto. Então, a gente sabe que isso está dentro de muitas pessoas que a gente encontra. Ou melhor: a gente não sabe, por isso... às vezes a gente tem vontade de abraçar, eu aprendi a fazer tudo com muita calma, com muito - aprendemos, né? - respeito, porque às vezes um abraço para alguém pode ser uma violência. Então, com calma, não é? Você se aproxima, você tem que mostrar que você tem... está querendo oferecer algo que é bom, mas o outro tem todo o direito de desconfiar enormemente de você, porque ele já foi traído muitas vezes, por gente que falou pra ele coisas boas. Então, eu penso que, quando cheguei no Brasil, anos de sexta-feira à noite, tempo dedicado, foi a minha universidade. Quando cheguei aqui, tive que aprender o português, foi bonito, porque eu aprendi o português na alfabetização aqui. Então, eu estava do outro lado. (risos) Claro que não é a mesma coisa, eu sou privilegiado, eu não passei fome, mas tive aquele tempo para também entrar aqui e ver, sabendo o quanto é importante observar. Eu acho que os primeiros seis meses que eu passei no Brasil, até mais, eu não fiz absolutamente nada, a não ser colher papel no chão e (risos) jogar no lixo. Eu conheci um missionário, a gente conhece vários, africano, ou melhor, italiano, que trabalha na África, ele fala: “Se você passa uma semana na África, escreve uma matéria. Se você passar um mês, escreve um livro. Se você passa um ano, não escreve mais nada, porque você, primeiro tem outras coisas para fazer, segundo você entende quanto você não sabe daquele contexto e passa a respeitá-lo ao ponto de que, para escrever uma frase, calma, não é? Avalia bem se aquilo mesmo é a realidade ou se é só algo para colocar numa página”. (risos) Então, é um pouco tudo isso. Então, eu fazia isso.
P/1 - E a aventura de vir pra cá? Desde o avião, pensamento de arrumar a mala...
R - Sim. Olha, quando eu vim para cá, eu perdi a passagem (risos) de volta. A coisa estava tão agitada que eu... quem me acompanhou, não sei como aconteceu isso, hoje já seria diferente, porque a passagem você tem no celular, você mostra o QR code lá, não é? Na época não, era a passagem que você tinha na mão e simplesmente eu deixei no Arsenal. E quando eu cheguei no aeroporto, enfim, eu até hoje não consigo me explicar isso. Bom, não tinha, não tinha passagem. Então, hoje também, isso eu acho que não seria mais possível, foi, fizeram de tudo com que eu pudesse ter aquela passagem. Alguém comprou a passagem pra mim naquele dia, naquele momento, quer dizer, pra eu pegar aquele vôo. Então foi uma agitação (risos) gigantesca. Nada relaxado. Eu não estava sozinho. O fundador da nossa comunidade, que ainda está vivo, se chama Ernesto Olivero, que de fato é o verdadeiro fundador desta casa, o Arsenal de Esperança também, me acompanhou e ele vinha ao Brasil, muito, porque a obra não estava tão sólida como está hoje. Então, ele acompanhava de perto, mas ele morava na Itália. Mas ele, claro, fazia questão de toda vez que alguém de nós, pela primeira vez, vinha para cá, com a perspectiva de ficar, inclusive, acompanhar pessoalmente. Mas ele não estava sentado (risos) onde eu estava, no avião. É um avião grande, aquele que atravessa o oceano, não é? Então, foi muito estranho, muito agitado, muito tudo. São aquelas passagens, não é? Eu me lembro também quando decidi dizer o meu sim, né, pra esta vida de comunidade e passar a morar no Arsenal definitivamente, eu me lembro daquela noite como deitar e olhar e dizer: “Você está aqui mesmo, você disse sim mesmo? O que vai ser amanhã? (risos) O que será?” E você se pergunta isso, porém você sente dentro que tem a certeza de que aquilo é aquilo mesmo. Agora, você não sabe como chegará, mas você sabe que a direção é certa. Então, eu sinto isso nas escolhas que me levaram a ter aqui, que não está, nunca, tudo pronto, nem agora está, porque os questionamentos sempre voltam, mas tem alguma coisa que é acima e você sabe que aquilo é o que orienta. Então, aquela viagem foi uma bagunça só, foi muito agitada. Essa questão da passagem diz tudo, não é? Quer dizer: está tudo errado, começou tudo errado, mas depois _________. Eu me lembro do calor, dos cheiros, da comida, da acolhida também. Repito: eu não chego num lugar onde não tem ninguém, que você tem que começar algo. Não. Chego já como se fosse um campo base nas alturas, mas já tem alguém que montou aquele campo. Porém é tudo diferente, você não entende nada. Eu me chamo Simone. Então, quando as pessoas te perguntam como você se chama, você entende, porque português e italiano são tão... mas quando você fala Simone, o nome é feminino aqui. Então as pessoas riem, sorriem, você não entende nada. Descobri depois essa questão do nome. Então, desde aquilo é tudo novo. As pessoas te chamam com um nome diferente, porque não só sotaque, mas tentam corrigir aquilo, porque Simone não, mas aqui... então, cada um dá um jeito, não é? Até hoje é assim, mas no começo você não tem parâmetros, então aquilo é muito sem rede, não é? Para como eu sou feito, isso é muito, de novo: colocar tudo em discussão, mas é um pouco aquele desafio que eu falei, não é? São vários pontos aqui, eu acho que vou ter outros. Aquele pátio da escola, né? São todos momentos assim. Porém, você adquire também a experiência de que aquilo não é o fim, é um começo. Então, é um pulo. Eu acho que também tenho muita sorte em dizer isso, porque às vezes os pulos são no escuro e fica escuro, não é? Eu acho que dei pulos, que porém depois foram luminosos. Isso é um pouco o que me motiva a trabalhar para pessoas que eu acho que pularam muitas vezes no escuro e ficaram no escuro. Então, isso eu sinto que é um dom e que eu tenho que restituir esse dom, que não é em vão e não é só para mim. Então, se eu tive isto também, porque não é que explico tudo de uma forma mágica, é porque tantas pessoas me criaram estas condições. Então, eu entendo que eu posso ser uma das pessoas que hoje criam essas condições positivas para outros. Então, fazer parte de um arsenal como este, onde todos os dias chegam aqui mil pessoas que estariam desamparadas, é um pouco criar este contexto luminoso, não é? Positivo, pra quem já só se esmagou, se destruiu em tantas aventuras que não foram boas. Então, é um pouco isso. Nem me lembro mais qual era a pergunta, mas enfim. Aqui já tinha um grupo, não só de quem veio da Itália está aqui, mas também do grupo brasileiro que começou a ser Arsenal da Esperança aqui e que foi me acolhendo. Me lembro deste bolo que tinha sido preparado. Muito colorido! Nunca tinha visto em Itália um bolo tão colorido como aquele, (risos) não é? Eu falei: “O que é isso?” Então, é um pouco esta intensidade, que você está cansado e precisa assimilar. Tem uma experiência anterior que, naquela época ainda de não decisão, mas já de conhecimento do Arsenal de Turim, eu fiz aqui. Então, não era a primeira vez, mas eu já tinha vindo aqui muitos anos antes, fazendo parte, um pouco, daquele grupo que eu tinha começado a frequentar, no Arsenal e que, naquela época, esta casa estava no começo e vinha muita gente da Itália se revezando aqui, para dar uma força a quem estava estabelecido já, mas num contexto de fundação mesmo. Então, eu participei de um grupo que tinha vindo aqui, tinha ficado aqui um mês e digo isso como uma coisa importante, porque eu vi esta casa como estava naquela época de fundação e estava muito diferente. Então, claro, a gente tem fotos daquela época e tudo. Mas tendo vivenciado, ainda que por um mês, eu já tinha um pouco ideia do que era e também um pouco tinha ficado curioso isso, um pouco, pra mim, a sonoridade do português, daquilo que eu tinha ouvido e isso ficou na minha memória e quando cheguei naquela época, para depois ficar, eu quase que me agarrei, para resgatar um pouco aquela memória. Olha só como era aqui e como mudou. Tive essa possibilidade de que os primeiros missionários que vieram aqui não tiveram, porque literalmente não tiveram tempo para isso, que foi de estudar o português a partir de uma gramática, por exemplo. Porque já não precisava logo de mim numa linha diferente, mas já pude me preparar um pouco, então eu podia estudar o português, estudar a gramática. Me dei também um pouco isso como missão, porque percebi que os outros não tinham tido essa possibilidade e aprenderam o português na marra. Estudar era uma maneira de ter alguém que pudesse, quem sabe, falar um pouco melhor, mas como serviço era importante também para escrever, para traduzir textos. Eu sempre tive um pouco isso, sempre gostei desta parte da comunicação. E eu entendia como isso era relevante, porque percebia como certos conceitos que para nós eram importantes, por exemplo: o Arsenal de Turim, não era banal traduzi-los aqui. Era um trabalho. E quem fazia esse trabalho? Quem estava aqui antes não tinha tempo para fazer isso. Então eu falei: “Olha, se eu estudo bem o português, posso ajudar nessa parte de conectar um pouco melhor a casa da Itália com a casa daqui, as duas comunidades, fazer com que, de lá, possam saber um pouco melhor o que se passa aqui e vice-versa. Mas precisa da tradução. Isso sempre foi um pouco uma das minhas causas (risos) aqui. E também a beleza de começar, com o tempo, a descobrir que aqui todo mundo tem uma gíria, que aqui vem gente do Brasil inteiro, ter um pouco a noção do que é o Brasil. Você acha que na Itália tem noção do que é o Brasil? Não tem. Porque o Carnaval é uma foto, é uma música, é uma ideia, muitas vezes errada, não é? E aqui a gente não viaja muito, mas chega o Brasil inteiro aqui. Tem gente de Manaus, tem gente de Santa Catarina, tem gente do interior do estado. E, com o tempo, é até bonito, você começa a perceber o sotaque. Eu me lembro da satisfação de começar a dizer: “Ah, você é baiano, você é do sul”. Para um gringo é muita coisa, não é? É, você se dá também uma motivação, não é? Não posso fazer nada ainda, mas se eu estudo português, entro na riqueza que tem aqui e as pessoas gostam de falar. Às vezes você percebe... eu gosto de futebol, estudar os times de futebol aqui. Nossa, eu hoje sou padre. Se você conhece a história do Corinthians, eu faço metade da homilia, não é, com esse povo. Porque, como é que você acolhe também? Comunicando com as coisas que o pessoal conversa. Então, (risos) é engraçado isso, mas às vezes eu faço rir. Para explicar o que é a fé, eu começo pelo Corinthians. Aí eles dão risada, mas depois a coisa se conecta e você vai para outros níveis. Isso é... eles também te passam outras coisas, porque se você entra na gíria com uma frase, eles te falam tudo. Da casa, do que é a rua, do que é sobreviver na rua. Uma frase. Porque quem vende bala na rua sabe sintetizar muito numa frase, porque não tem... tem o tempo do farol pra vender, pra te convencer. Então, eles são grandes comunicadores também. Mas se você não escuta, afinal de contas você não acolhe, porque você dá uma coisa, eles pegam uma coisa, mas é uma coisa, enquanto na realidade quem está aqui, mas eu acho que para mim é a mesma coisa, eu não quero uma coisa. Eu quero você. Quero a atenção do outro. Quem bate nesta porta está com fome, quer banho, quer uma cama, mas quer saber se você está interessado nele. E você tem que saber disso, você tem que modular isso com o tempo, que também você tem que saber ‘ler’, tem aquele durão, que não se abre nem... tem aquele que se abre demais. (risos) Então, você tem que fazer com que um se abra um pouco, o outro talvez fale um pouco menos, porque os outros não aguentam. E você cria um... o contexto de acolhida é um malabarismo. Eu acho que nós, se tivéssemos que falir com o Arsenal, a gente pode abrir um circo, porque a gente sabe caminhar muito nesta corda bamba de acolher e ser também equilibrado, mas não no sentido de não entro. Não. Exatamente porque você está dentro, até o pescoço, saber lidar, porque você lida com a pessoa que chega hoje, você lida com a pessoa que está aqui há um mês, você lida com a pessoa que está saindo, você lida com a maloca lá fora, você lida com a GCM, você lida com a prefeitura. E tudo isso, claro, focando no bem de alguém, que é o mais fragilizado. Mas fazendo isso você percebe quanta fragilidade tem também em todos os outros, inclusive nós. Por isso, no nosso caso, no meu caso, é importante a espiritualidade. Quer dizer: a gente rezar, a gente ler, a gente também se retirar, na medida do possível, se revezar, porque isso te esgota muito. Eu acho que vocês também, né? Ouvir alguém cansa. E acolher alguém cansa. Então, você tem que saber isso, porque depois que você cansa você começa a fazer estragos enormes. Então, tem que... é uma coisa que te leva a te conhecer muito. Acolher outro não é só saber que o outro é frágil, é (risos) sobretudo saber que você é frágil, porque outro vai te levar ao seu limite. É bonito fazer uma ação onde você, no Natal, abraça o outro, dá um presente. É lindo, também é muito importante, mas o dia a dia é diferente. Você não vê só o bonito da coisa, você vê quanto o outro é insuportável, ou eu posso ser insuportável pra ele, de como isso pode virar uma treta enorme, que você pensou uma coisa boa, mas depois se torna uma coisa ruim. Então, você não pode... como posso dizer?... desmoronar totalmente. O outro, sim, porque o outro está lá e está claramente numa situação de fragilidade, mas você que é responsável pelo contexto que o acolhe, você sabe que tem que também mostrar para os outros que você é frágil, mas o sistema não pode cair, porque eu, se o Arsenal fecha, eu sei que tem um lugar para onde ele dormir. Se o Arsenal fecha, quem bate na nossa porta dorme na rua. Então, nós não podemos desmoronar no sentido que, todos os dias, mesmo cansados, a gente sabe que o nosso estoque de comida tem que estar abastecido para o dia seguinte. Os outros não veem isso, provavelmente nem conseguem enxergar essa parte, um pouco que nem eu com as minhas tias, quando eu era criança, mas eu sei que essa parte é nossa responsabilidade, então eu tenho que ter uma energia que me permite ouvir, escutar, abraçar ou não e depois ainda pensar no estoque, na energia, na organização toda da casa, na lavanderia, na troca de roupa de cama, fazer com que esse sistema funcione. Tudo isso para nós é algo que não é só logístico, é também espiritual. Então, o Arsenal é uma casa que acolhe, que isso é pouco visto fora, mas que tem este motor dentro de uma comunidade que o habita e que parte de uma motivação espiritual, que depois se torna pragmática. Mas para nós é isso. Com isso, eu não falo que as outras são melhores ou piores, são diferentes. Mas no nosso caso, o nosso segredo, que não é um segredo, mas é este. Depois, não todos entendem ou acham que isso é importante, porém, para nós é. Se não tivesse esta fonte, que para nós é a espiritualidade e a religião, o motor central para… Separa... por exemplo: agora está tocando um sino, não é? Tem um momento de oração. Como é que a gente faz? Isso, para nós, também é importante. Não obrigamos as pessoas a participar dos momentos de oração. Então, é como se o Arsenal fosse um pouco um mosteiro, porque para nós é. Nós moramos nele, como os monges moram no mosteiro, mas no lugar de ser um mosteiro afastado, numa montanha, é um mosteiro no ‘coração’ de uma cidade, de uma metrópole, onde a gente não faz mistério de que nós vivemos isto. Mas todos os mosteiros, também os mais antigos, têm sempre um espaço para a acolhida. Os antigos mosteiros, também na Idade Média, nasceram para quê? Também para acolher os peregrinos que se deslocavam de um lugar remoto para outro lugar remoto. A gente vê um pouco isto. Hoje, na cidade, acontece isso. Tudo que é tratado como pauta “moradores de rua”, é gente que está se deslocando, às vezes de um estado para outro, vindo aqui em São Paulo, procurando uma esperança e não tem um refúgio. Então, o nosso mosteiro tem uma grande hospedaria e aqui eu te acolho. E tudo que eu te dou, se eu te dou uma roupa de cama, ela é limpa, porque pra nós é importante que seja limpa. Isso é pragmático, porque era uma lavanderia industrial, mas ao mesmo tempo carrega um gesto que também é espiritual, porque você... hoje de manhã a gente estava resolvendo o problema de uma mala de um rapaz, que é de Marrocos. Está aqui e fala só árabe. Mas, para ele, a roupa de cama limpa é uma palavra forte, é uma linguagem universal. Ele fala árabe, eu falo português, mas aquela roupa de cama limpa os dois entendem o que é. É uma roupa de cama limpa. Você está me respeitando. E, portanto, eu respeito este local. Depois vamos aprender a língua. (risos) Mas é isso. Então, quem... tem gente que nunca me pergunta nada de espiritualidade, mesmo sabendo, todo mundo sabe que eu sou padre, aqui. Os evangélicos às vezes me chamam de pastor (risos): “Ah, o senhor é padre”. Eles sabem a diferença entre um e o outro, mas eles sabem que eu celebro, que eu presido as missas etc, mas que não são obrigados a participar, então é curioso, porque tem gente que se aproxima, como se fossem várias tonalidades, não é? Ou aquele que nunca se aproximou, porém na hora do aperto vem e te procura. Depois não te procura mais, procura o responsável da lavanderia, o assistente social, o educador. E o Arsenal é um pouco isso. Não é uma comunidade onde, por exemplo, o nosso método é: te acolho pela oração. Tem um grupo que participa dos momentos e tem outros, a maioria eu diria que não. O que acontece é isso, sim: a gente faz questão de criar dinâmicas de grupo, isso sim. Às vezes é o grupo de autoajuda; às vezes é o curso profissional; às vezes é, não sei, uma roda de conversa. É importante criar estas rodas, estes grupos, estas experiências, porque as pessoas que chegam da rua são muito sozinhas e muito com medo uns dos outros. Então, mesmo numa casa como esta, a pessoa chega e se defende. Então, você criar um grupo onde pelo menos aquela pessoa conheça outros quinze. É importante, porque ele vai recuperando a confiança de que, dentro de uma casa como esta, por exemplo, eles não me roubaram nada. Aliás, me acrescentaram, fizemos um curso juntos. Eu cheguei até o final do curso, porque tinha o fulano, o ciclano. Ele conseguiu, eu vou conseguir também. Quer dizer: inverte um pouco a roda. Ele fica sabendo de um ‘bico’ lá fora, pra quem fala? Pra alguém que conhece. Então, a gente cria pequenas comunidades, que seja bem claro, estou idealizando, tudo isso é muito difícil, mas é o que a gente tenta fazer. Eventos, né? Apresentações de teatro, jogos de futebol, onde todo mundo torce ou dá risada juntos, né? Cria aquela experiência, porque a gente percebe que uma grande pobreza é a solidão, não só o fato que ele não tem coisas para sobreviver, ele está sozinho. Então, muitos, quando saem daqui, agradecem. Primeiro tem alguém para agradecer, alguém para chamar pelo nome, alguém que se lembra do teu nome, isso é muito importante. Mas vai embora. Ou enquanto está aqui ele está te falando, não é? Ou está falando com alguém de suas próprias coisas. Isto é muito forte. Quando isso acontece é porque o Arsenal já ajudou, de alguma forma, porque muitos não falam com ninguém. Desconfiam de tudo, não se abrem para certos tipos de discursos, não é? Então, imagina se abrir para dizer: “Eu tenho um problema”. Isso... difícil, né? Ele te fala alguns problemas, aqueles que são mais codificados, não é? “Eu estou aqui e quero trabalho”. É verdade, ele está querendo trabalhar, mas antes do trabalho ele está precisando falar de um monte de outras coisas que ainda não falou com ninguém. Então, o tempo de permanência e o contexto que você cria possibilita um pouco isso.
P/1 – Como que vocês pensam, criam essas atividades, pensando no futebol, nessas rodas, como se dá essa escolha?
R - Bom, tem algumas coisas que fazem parte, um pouco, já da estrutura da casa, então você tem coisas básicas que todo mundo que vem aqui procura, provavelmente sempre irá procurar, então a estrutura dura não é das camas, os banheiros, chuveiros, o refeitório, portanto a cozinha, o estoque, tudo isso é a estrutura rígida da casa. Mas tem toda uma parte que está sempre em evolução, que é devido também ao fato de que as pessoas que procuram a casa são sempre diferentes, não é que as pessoas são sempre iguais. Nós acolhemos um tipo, vamos dizer assim, de ser humano que é diferente dos anos 2000, ou de 2010 para cá. Depois da pandemia nem se fala. Nós estamos ‘de cueca’ agora, diante dos desafios que a pandemia criou, porque, repito: estamos numa época em que estamos tentando reinventar tudo. Ou seja: essas propostas de que eu estou falando um pouco, de que tipo de abordagem, que tipo de resposta, que tipo de projetualidade a gente oferece. Está tudo meio em crise, porque as pessoas que estão aqui agora são muito resistentes, não reagem como, por exemplo: faziam até 2019, 2020. Então, como é que a gente faz? Neste momento em que estamos bem em dificuldade, também econômicas, porque a pandemia tirou de nós muitas parcerias, a gente resgata um pouco aquilo que sempre foi importante para o Arsenal. Ou seja: a disponibilidade também das pessoas, da sociedade civil, em trazer aqui algo para oferecer. O Arsenal tem uma parceria com a prefeitura, que é importante, mas a prefeitura ajuda sobretudo a manter a parte rígida da estrutura. Mas ninguém vive só de comida, banho e cama. As pessoas, sobretudo nós, que vivemos o dia a dia, aqui a pessoa chega, vai para o maleiro, pega coisa na bagagem, vai tomar banho, deita um pouco, se alimenta e depois se olha e fala: “E agora?” É só o começo aquilo. Ela carrega um monte de desafios e de problemas que aquilo é só ajudar a sobreviver, mas é só o começo. Por isso é difícil manter uma casa de acolhida, porque eu acho que até agora nunca usei a palavra gratificante. Eu acho que vou usá-la agora, só para negá-la. É gratificante de vez em quando, quando você vê algumas coisas que alguém... bom, tem alguns momentos que você fala: “Bom, estamos indo na direção certa”. Mas depois é só tempestade. Então, não é tão gratificante lidar com a tempestade do dia a dia, que é a pessoa que carrega um problema enorme, que você não tem resposta. É difícil encarar o olhar de alguém que te pede uma coisa e você não pode ajudar. Às vezes são coisas pequenas. Às vezes você tem que dizer um não para aquela pessoa, para que ela encontre o sim que ela precisa. Eu, que gostaria de dizer somente sim, falo mais não durante o dia do que sim, mas eu acho que uma mãe também faz isso. Então, a gente se baseia um pouco, aliás muito, nessa fase, como eu disse muito mais, de ter alguém que, por exemplo, venha aqui, conhece o trabalho do Arsenal e fala: “Eu quero ajudar”. Então, a gente fala: “Tá, qual é o seu tempo? O que você traz?” A gente escuta. Todos trazem também, às vezes, ideias maravilhosas. A gente tem que tomar cuidado, porque é que nem macaco velho, que falaria: “Não, isso não funciona”. Não podemos falar isso. Porque pode não ter funcionado conosco, mas a ideia pode ser boa e pode funcionar. Então, a gente escuta, mas a gente fala para aquela pessoa: “Olha, venha e faça um serviço naquilo que já existe. Por exemplo: existe uma biblioteca, fica um pouco lá, no atendimento e faz um empréstimo e devolução de livros”. Às vezes a pessoa chega aqui pra fazer um concurso literário: “Você me pede pra fazer isso?” “É, sim, te peço pra fazer isso, porque assim você senta um pouco e começa a entender o que é isso, quem são as pessoas que estão aqui, porque acolher não é só você que acolhe, precisa ver também se o outro quer ser acolhido”. Quer dizer: é uma coisa que se faz em dois, a acolhida. Então, você pode ter uma ideia super boa, mas às vezes não é o que precisa. “Eu quero doar pasta de dente”. Mas talvez você tenha que me ajudar a pagar um tratamento dentário primeiro porque, se você doa pasta de dente e a escova, a pessoa não tem dente, é complicado”, não é? Então, porém, estas disponibilidades, depois, são importantes, porque com quem... tem também e às vezes a gente é assim, nós somos também arrogantes, não é? “Eu quis oferecer isso, você me falou que não, então vou procurar outra, porque você não precisa”. Não é bem isso. Te pedimos um pouco de paciência. Quem passa, vamos dizer assim, por esta fase, normalmente depois consegue encaixar o talento dele para que possa realmente ser útil à casa, ou seja, à população acolhida. Então, seja no trazer uma doação porque, por exemplo, a pessoa que quer doar a pasta de dente e aceita a nossa provocação, porque talvez naquele momento precisa de sal e açúcar, começa a trazer sal e açúcar, começa a ver que isso realmente é preciso, é bom ajudar naquilo que precisa. Aquela pessoa parte e faz uma campanha no prédio dela pra sal e açúcar. Tem gente que adota o Arsenal ao ponto que nós, talvez por um mês, não precisamos comprar café. Veja como isso é importante. Porque aqui você tem que fazer um pequeno plano de economia, (risos) para fazer com que a casa chegue até o final do mês. Se você começa a contar se uma pessoa que realmente se engaja e faz uma campanha que se torna um pouco metódica, aquela pessoa adota (risos) mil e duzentas pessoas no item do café. Agora, estou fazendo um exemplo. Não significa que todos façam isso e nem devem. É a nossa vizinha que traz uma sacola de vez em quando com, dentro, seis quilos de alimentos, também é ótimo, tudo é precioso. Então, o Arsenal se baseia num mosaico muito grande de gente que faz alguma coisinha, (risos) mas só que não é coisinha. E para nós, além de ser muito importante aquilo que a pessoa traz, é um pouco a nossa utopia, é a sociedade que se mexe para resolver um problema. Senão tudo vira conflito de mídia social, que não serve pra nada. Aí você divide os esquerdistas, os bolsonaristas, que se matam, dizendo moradores de rua sim, moradores de rua não. Vamos ajudar todo mundo, justificando tudo e vamos queimar todo mundo e afastando tudo. Afinal, não seria melhor começar a enxergar a complexidade da realidade e cada um adotar um pedacinho dela? Esta é um pouco a lógica do Arsenal, não é uma lógica que premia muito, porque não faz muito barulho, não é? Não engaja muito. Só que, depois, na realidade é aquela que salva, porque a gente vê e na época das eleições a gente, engraçado, percebe muito isso: Congresso que, porém, faz alguma coisa, porque enxerga que aquilo que eu dou aqui, depois vai para alguma coisa. O Arsenal é falho, tem muita coisa que... nossa, eu acho que estamos no 10% daquilo que a gente poderia fazer. Mas é isso: como é que vive o Arsenal com uma parceria assim, com o Poder Público, que é muito importante e que a gente vai reivindicar sempre, porque nós fazemos um enorme serviço público, mas a gente não abre mão também de tentar engajar, ainda que seja um por um, a sociedade civil, porque acreditamos que a resposta vem muito de lá, porque existe uma cultura que não é muito acolhedora. Então, o Arsenal é uma casa que acolhe já, mas que pode ser também um pouco um exemplo de como criar uma cultura da acolhida, porque muita gente chega aqui porque foi excluída lá fora. Então, foi excluída da família, foi expulsa pela faculdade, não foi bem acolhida, sei lá onde, no posto de saúde, ela vai desmoronando e quando chega na nossa porta, já é muito tarde, (risos) já vem de anos de rejeição. Então, não teria sido melhor ser mais acolhedores antes? Aí, quando chega aqui, vira todo mundo vagabundo. É, mas como é que aconteceu isso? Isso é só um sintoma. Deve ter um problema, uma doença bem maior, é bem anterior ao fato de uma família ir morar na rua. Tem alguma coisa anterior a isso. Aí chega na época das eleições, a Cracolândia vira pauta, chega polícia de todo e qualquer lado e alguém vai apanhando, alguém vai batendo, mas não resolve nada. Então, a gente acredita, esta é a nossa utopia - só que se você fala isso, você passa por fraco - que a acolhida resolve, que a bondade desarma. É o nosso lema, mas feito de verdade. A gente tenta fazer isso, claro, nós não temos uma universidade aqui dentro, que possa tornar isto um sistema educativo. A gente tenta fazer isso convidando escolas aqui dentro para fazer voluntariado, para tirar jovens da classe média da bolha, para fazer com que peguem o metrô para vir até aqui, para que façam a experiência de que você passa um dia aqui e não morre ninguém. Só que não é fácil fazer isso. Às vezes a gente brinca que é muito mais fácil acolher mil e duzentas pessoas do que fazer um projeto com trinta alunos e passar um dia deles aqui, porque têm um medo enorme. Todo mundo tem medo dos outros. (risos) Então, a gente gostaria cada vez mais oferecer o Arsenal, para que as pessoas conheçam uma realidade diferente da deles. Se eu volto um pouco a minha vida, eu vejo quanto isso, para mim, foi importante e agradeço também quem me deu a oportunidade de fazer experiências ‘perigosas’, mas perigosas no sentido que tudo é perigo. Nós temos, graças a Deus, professores engajados, que já conhecem o Arsenal há tempo, que vieram aqui, eles mesmos fazendo o voluntariado, que acreditam no projeto, que porém não conseguem trazer os alunos, porque os pais não autorizam. Por quê? Por medo. Não porque conhecem o Arsenal. Por simples medo, teórico, porque seguem perfis que se chamam vigia, medo, assalto, é tudo isso. Não digo que essa não é a realidade, mas aí a gente morre, a gente se fecha, que é o contrário da acolhida e o contrário da acolhida é a exclusão. Aliás, eu acho que é morrer, mesmo. Porque mesmo quem se fecha para se proteger está se excluindo. Então, esta é um pouco a utopia. A gente não tem grana pra isso, nós gostaríamos de montar um educativo que acolha de uma forma mais sistemática. Acabamos fazendo nós isso, mas é que a gente tem que cuidar do lado da acolhida real. (risos) Teríamos bastante coisa pra falar também em palestras, assim, mas não temos muito tempo. (risos) Então, a gente agradece também por esta possibilidade, como compartilhar um pouco da experiência do Arsenal. Mas é isso. Para nós, para terminar um pouco, a palavra acolhida não é uma coisa que a gente considera como... só para uma categoria de pessoas. É errado dizer nós somos uma casa de acolhida, como se só uma parte da humanidade precisasse de acolhida. Nós somos uma casa que acolhe. Todos. Você que tem um carro, que tem uma casa, não se iluda, você também precisa de acolhida. E quanto antes você descobre isso e compartilha o que você tem, melhor é, mas também para você, porque depois, ensinar alguém a falar o idioma que ele não está falando agora, ver que ele usa isso e vive com isso, é lindo, não é? Se doar e doar aos outros, não é uma coisa porque você assim passa a ser uma pessoa boazinha. Não, é lindo mesmo. Te realiza. Eu estou dando a vida, que nem os outros aqui, porque é bonito. É complicadíssimo, mas eu não trocaria a minha vida por uma outra. Eu estou feliz com aquilo que eu faço. Eu estou contente, não é? Acho que todo mundo quer comprar e procurar felicidade. Talvez a gente ainda não tenha entendido que acolher o outro te dá isso. É um desafio grande, mas te dá isso. E acolher significa muita coisa, não é? Eu acho que escrever num jornal é acolher. Se eu falo a verdade, se eu me torno compreensível pra quem tem dificuldade, se eu invento coisas que ainda não existem pra fazer com que gente que não tem resposta às tenha, tudo isso é acolher. Cada um acolhe a partir daquilo que sabe fazer. Ninguém está pedindo pra levar uma pessoa que está na rua na sua casa. Não, não é isto. Mas coloque alguma coisa no seu carro, tipo uma garrafa de água, para dar para quem está no farol, pode ser uma coisa. Um milhão de coisas dá para se fazer. E você contribuir com uma casa como esta também é uma possibilidade, porque acredito que quem ajuda aqui pode dizer: “Eu acolho mil e duzentas pessoas”. Não é o Arsenal que acolhe mil e duzentas pessoas. São muitas pessoas que fazem o Arsenal, que podem dizer: “Eu acolho mil e duzentas pessoas”. Isso é interessante.
P/1 - Para você, quais são os desafios? Acho que você está me contando, mas desafios e aprendizados de acolher essas pessoas que batem aqui na porta.
R - Os desafios?
P/1 - E os aprendizados.
R - Sim. Eu acho que as coisas andam bem atreladas. Um pouco eu falei. O desafio é ver que, por quanto você se esforce ou se iluda de estar do lado daquele que acolhe, você também é frágil, não consegue fazer ou dar. Falta sempre muito. Diante da desproporção daquilo que se apresenta na sua frente, você é muito pequeno. Então, isto é um desafio. Porém, é também uma aprendizagem, porque isso te leva muito no plano da realidade. É na realidade que a gente muda o mundo, não nas ideias. É importante ter ideias, mas depois é... bom, eu sei que aqui temos esta mesa, não é? E quantas pessoas conseguimos sentar ao redor desta mesa? Ok, dez, um pouco apertadas. Vamos começar a fazer com que a gente consiga sentar dez. Depois a gente inventa um revezamento. Quer dizer: você se torna humilde, mas a humildade que não é falsa: é isso e os outros entendem isso. As pessoas em dificuldades, que entendem que você também está em dificuldades diante daquilo que é o desafio, te agradecem até quando você não consegue ajudá-los naquilo que eles estão te pedindo e te respeitam muito, porque sentem que você está dando tudo, que você está sendo verdadeiro. Então, nesse sentido, numa casa como essa, você é muito nu. Primeiro porque cada coisa que a gente faz é pública. Eu tenho a sorte de ter... acho que tenho umas quinze camisetas, mas eu procuro tê-las da mesma cor, (risos) porque eu reconheço as pessoas muitas vezes pela cor da camiseta, que eles não podem trocar, porque tem aquela camiseta, ou às vezes tem duas. Então, é importante que a nossa lavanderia funcione que nem um relógio, porque ele precisa trocar a camiseta. Mas ele olha pra mim e, independentemente de qualquer coisa que eu possa falar, eu olho quantas vezes eu me troco, às vezes durante o dia. Ele olha no meu sapato. A primeira... antes que eu abra a boca, eu posso fazer o sermão mais lindo do mundo, mas muito mais do que gente que vem e me pergunta sobre aquela passagem da Bíblia, eu tenho gente que vem e me pede um par de chinelos. Então, eu aprendi a medir muito e a enxugar muito, ser muito enxuto. Não hoje, que estou falando um monte, mas enxuto nessas coisas que reverberam de tantos relacionamentos, de tantos contatos. Então, este é um grande aprendizado. Eu posso ter um doutorado em teologia, mas se eu não entendo isto, não adianta falar de Deus. Não adianta. Tenho que saber que ele, sem aquele chinelo, anda descalço. E mesmo com aquele que tem, ele já está, surrado, com o clipezinho, pra consertá-lo dez vezes. Então, eu tenho que medir minhas palavras neste plano de realidade e saber que, muitas vezes, eles pedem uma coisa e eu estou sendo... (risos) é engraçado isso, né? Quando a gente fala alguma coisa, às vezes você poderia dar, mas já tem outro que está te ouvindo. Então, a pergunta é sempre muito ‘pesada’: “Você tem condição de dar isso para cem daqui hoje à noite?” Se não tiver, é melhor falar não. Porque senão você dá isso para um, mas até meia-noite você criou 99 frustrações. Então, você fala: “Não, eu não posso”. E aí você trabalha muito com o sistema da casa, por isso é importante o vilarejo que você cria. Então: “Olha, você quer isso? Passa pelo educador”, que você já organizou um estoque de sabonetes, mas aí tem um método, não é o padre que te deu sabonete, é a casa que está te dando sabonete. Isso também requer humildade, porque é bonito ser agradecido, é bonito ser olhado como salvador da pátria, mas primeiro ninguém salva a pátria sozinho. Segundo, diminua um pouco e tente organizar o sistema, que de fato é um pouco um micro vilarejo, para que ele funcione e ele possa encontrar aquilo que ele precisa, indo também um pouco atrás, senão a gente cria a dependência do quê? Do padre. Não, se ele... se você quer ajudar a pessoa a se inserir, ele vai ter que encarar a fila do banco para abrir uma conta. Não adianta, não será o padre que vai abrir a conta no banco. Então, a casa trabalha um pouco como esse ‘elástico’, não é? Eu te dou, mas também peço para que você colabore, porque senão não estou te ajudando. Eu estou te dando na hora, te ajudando na hora, mas depois amanhã você continua com aquela fraqueza. Isso veio com o tempo, foi com o tempo que a gente viu um pouco tudo isso. É uma experiência de décadas e também você tem que aceitá-la, porque eu posso escrever um manual, mas se você fala: “Não, isso não é verdade, não é assim”, cada um tem o próprio percurso também. Talvez tenha um pouco de aprendizagem e também um desafio.
P/1 - E você consegue separar? ______ de um certo cansaço, de ter coisas que não dá pra ser resolvido por você, por vocês, mas imagino que isso toque. Deita na cama, como que separa isso, assim: a atuação e você consigo mesmo? Isso existe, isso não existe? Como funciona?
R - Bom, separar é difícil também, porque pra nós, tudo isso é um pouco como se fosse um filho, não é? Então, você deita, mas qualquer barulho é seu, qualquer... o tom de voz que pode parecer um começo de briga é seu, então é um pouco como estar sempre se preparando para uma olimpíada. Mas isso é interessante, porque a gente também evolui, né? Vê que você, que antes dormia oito horas por noite, consegue dormir cinco e você consegue. Mas acho que a única coisa que te dá paz é o fato de você saber, bem ou mal, às vezes mais, às vezes menos, que você fez tudo o que dava. Então, isso te dá uma certa tranquilidade interior também. Quer dizer: você sabe que não resolveu tudo, você sabe que deixou coisas pela metade, mas você vê um pouco o seu dia e você deu tudo. Eu sei que o tempo que estou dedicando aqui hoje é normal, não é pouco. E que depois você tem que correr para fazer outras coisas e não dá para fazer, talvez, mas eu sei que pode ser importante, quem sabe, para envolver outras pessoas, para dar aquele ‘gatilho’ que alguém deu em mim, de entrar nesta vida, de entender um pouco mais a vida. É, você vai dormir cansado, morto de cansaço e acho que o melhor sono é este. Depois, separar, tem algumas coisas que te preocupam mais, que fazem o seu cérebro, o seu coração trabalhar por mais tempo, mas é evidente que você não... a desproporção com a qual a casa lida, se você não encontra também um pouco de paz, você enlouquece. Mas você percebe também quanto o ser humano, por outro lado, também o ser humano sofrido, é forte. E quanto muitas vezes é muito mais forte do que você imagina. É um pouco brutal o que eu vou dizer agora, né? Mas se eu tivesse que sobreviver uma semana na rua, eu não sei se eu seria capaz. Agora, eu conheço centenas de pessoas que me demonstram como, nossa, o ser humano é capaz de desenvolver coisas que você nem imagina e é quase que ele que te dá coragem. Fala: “Não, ‘mano’, a gente vai conseguir”. (risos) Mas sou eu que tenho que dizer isso. Mas é no andar da caravana que você percebe também quanta força tem neles porque, claro, se ajudada é melhor, porque ela se agarra a algo mais sólido e vai evoluindo de uma forma que dignifica mais. Mas eu aprendi também a não me desesperar tanto diante de tantas coisas que, sei lá, quinze anos atrás me deixavam: “Nossa, como é possível?” Porque eu já vi que aquilo que era um muro, no dia seguinte a pessoa estava do outro lado do muro e você não sabia nem como. Mas era... entendeu? Isso é surpreendente. Ser humano é surpreendente. Acho que a pandemia mostrou muito isso pra esta população, vivendo com esta população no tempo da pandemia. E foi isso, né? A gente fez 96 dias de quarentena aqui dentro. O Big Brother, pra nós, é ‘fichinha’. Então, a sobrevivência, a força, não é? A gente teve que assustá-los, no começo dávamos palestra pra criar medo, porque eles não tinham medo. Mas não era uma questão ideológica. Aí é outra história. Era uma questão de: “Mas eu sobrevivi a tanta coisa, acha que isso vai me matar?” A gente fazia palestra pra... eu me lembro, às vezes falei: “Não acredito que a gente está fazendo isso”. Pesquisávamos fotos no Google de gente morta na China, no chão, pra projetar no telão e dizer: “Olha, gente, está acontecendo, chegou um negócio que é isso. Vocês acham que, se acontece alguma coisa conosco, a gente vai pro Einstein? A gente morre”. Porque nós não sabíamos também. A nossa única vantagem é que, sendo também italianos, a Itália estava no desastre total, que foi o primeiro país ocidental a pegar a pandemia em cheio, morreu um monte de gente também, porque é muito idosa a população. E o pessoal do Arsenal de Turim ligava pra nós nos aterrorizando, dizendo: “Olha, vocês têm que fazer...”, mas não, nem chegou aqui, nem sabe se vai chegar. Eles ligando pra nós: “Não, vocês têm que se preparar, vai chegar e quando chegar vocês têm que estar prontos porque, se pega aquilo numa casa que acolhe mil pessoas, vai ser um desastre”. Eles conseguiram colocar um pouco de medo em nós, ao ponto que quando, depois do carnaval de 2020, foi oficializado o primeiro caso, a gente já tinha um esquema pronto. E a gente, me lembro perfeitamente o dia... as pessoas não são obrigadas a ficar aqui, elas saem durante o dia, voltam e na filona que tinha naquele dia, era 23 de março de 2020, então já tinha passado um tempo, as pessoas entravam e nós fazíamos grupos de cinquenta em cinquenta, a gente fazia uma orientação para dizer: “A partir de hoje começa uma coisa que se chama quarentena, a gente faz isso para tentar contrastar uma coisa que se chama pandemia. Quem aceita ficar, fica; quem não aceita pega suas coisas e vai, porque o único jeito para a gente sobreviver vai ser este”. 1026 pessoas ficaram e a gente teve que montar tendas pra que eles ficassem o menos possível fora. Não sabíamos, é claro, mas a gente já tinha o coronavírus dentro da casa. Muito medo também dos funcionários. A gente pediu para os voluntários não virem mais, então ficamos muito sozinhos. E aí que digo a força deles, porque eles sentiram o tamanho do desafio e como se tivesse baixado aqui alguma coisa que tivesse os responsabilizado enormemente para com a casa e para com eles mesmos. Foi duro, tiveram momentos em que todo mundo queria fugir. A gente literalmente falou: “Ainda não, tem que chegar a vacina, temos que...”. Dava para fazer um filme, né? Porém eles mostraram, me refiro sobretudo aos acolhidos, quanto foram responsáveis, porque tivemos que mudar completamente a organização da casa. Nunca mil e duzentas pessoas, 1.026, no caso, tinham almoçado aqui, porque a maioria sai durante o dia e volta à noite, jantar sim, mas café da manhã, almoço, jantar, a cozinha nem tinha tempo de respirar. Eles mesmos começaram, porque aquelas palestras viraram assembleia, se dizia: “Não, vamos ter que organizar turnos por alojamentos, tal alojamento almoça de tal a tal hora”. Foi isso. Então, tem muita força que também a gente acolhe. Não acolhemos só fragilidade, acolhemos muita força. Acho que o desperdício da sociedade é não perceber a força e a beleza que estamos jogando fora, não acolhendo. Tem muita gente que passou aqui que hoje tem duas academias, que hoje é chefe de cozinha num restaurante, que hoje voltou à família, sabe? Isso, se não tivesse encontrado uma acolhida, teria sido só um problema. E enquanto eles passam aqui, também entendem como é importante ser acolhido. Não digo todos, eu não estou idealizando. Mas muitos, acho que isso também é um pouco o que a gente tenta fazer, vão embora com esta cultura da acolhida. Então, é como se alguns fossem alguns Arsenais que se espalham pelo Brasil e fazem coisas também, porque muitos sentem também a exigência de restituir o que eles receberam quando começam a se dar bem, como eles falam. Então, é importante acolher bem também nesse sentido, porque aquilo semeia acolhida depois.
P/1 - Eu teria mais um milhão de perguntas, eu ficaria aqui horas, porque é muito gostoso te ouvir. Só para finalizar, você gostaria de contar, falar, deixar alguma mensagem, trazer algo que eu não te perguntei?
R - Acho que já falei muitas coisas. Eu, mas quando eu digo eu, digo nós, acho que isso já é um conselho, fazer com que o eu vire nós, que a gente desmonta um pouco eu e a gente monta um pouco nós, acreditamos que acolher e não vou usar uma palavra espiritual, mas uma palavra muito pragmática: é conveniente. Em uma sociedade onde todo mundo procura o que convém? Qual o interesse, o meu interesse nesta história? Pode parecer paradoxal, mas acolher acaba sendo... não quero ir para o lado da bondade, não quero ir para o lado da espiritualidade, não quero ir para o lado ideológico, qualquer... é conveniente. Ninguém pode viver bem numa cidade com cinquenta mil pessoas na rua. Por quanto você cumpre segurança, ninguém pode viver num mundo bem onde tem gente morrendo de fome. Como eu posso dizer: “Ah, eu estou bem”. É uma mentira. Então, faça alguma coisa para mudar essa situação, porque isto vai ser bom para quem recebe, mas também você recebe muito naquele momento, mas também a longo prazo, porque o mundo muda. Então, eu digo isso. Acreditamos nisso, porque a gente é ajudado também por tantas pessoas, nós somos uma comunidade católica que não são católicos, que não são nem religiosos, ou que não acreditam em Deus, ou que têm um pensamento muito diferente do nosso, mas eu acho que são pessoas que entenderão isso e isso se torna algo incomum. Então, sejamos acolhedores, sejamos pessoas que concretizam esta cultura da acolhida e, portanto, fazem reverberar, anuncia aos outros. Acho que isso é importante.Recolher