Projeto Mulheres Empreendedoras do Porto de Santos
Depoimento de Ellen Thais Novoa
Entrevistada por Jonas Worcman e Ane Alves
São Paulo, 20/10/2020
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PCSH_HV879
Transcrito por Luiza Gallo
P/1 - Ellen, eu ia te pedir para você... Se você pudesse fechar os olhos, respirar, se conectar com você mesma, com todo o seu passado, com toda a sua história, para que tudo que seja simbólico, valoroso para você, possa vir de uma maneira boa, fluída, tranquila e harmônica. E aí aproveitando esse estado de calma, eu ia te pedir para você acessar e lembrar qual é a sua memória mais antiga, a sua primeira lembrança.
R - A gente está falando só em relação à profissão?
P/1 - Não, da sua vida. A primeira memória da sua vida.
R - Eu tenho memórias do meu vô. O meu vô é algo que eu sempre me remeto, ao pouco tempo que eu convivi com ele, porque ele faleceu quando eu tinha sete anos e quando eu penso na minha infância, eu me remeto a ele, a momentos com ele.
P/1 - Qual era o nome dele?
R - Venâncio.
P/1 Venâncio? E ele nasceu a onde?
R - Em Portugal. Minha família toda é de Portugal… Toda não, a família da minha mãe é toda de Portugal. Minha mãe veio para cá quando tinha dez anos de idade, ela, o vô, a vó e os irmãos. E aí eles se criaram por aqui. O meu pai é de Santos mesmo.
P/1 - Então esse seu vô Venâncio é pai da sua mãe?
R - Pai da minha mãe, isso.
P/1 - E ele nasceu… Você sabe porque ele veio para o Brasil?
R - Para tentar a vida. Na verdade, a minha avó tinha um problema com o clima de lá, e aí, na época, o que falaram é que o Brasil tinha um clima melhor para a situação respiratória dela. Como a vida lá… Eles são da Ilha da Madeira, era tudo muito pobre, tinha que ir buscar água longe, então foi uma situação que levou a outra. Vieram para cá por conta da saúde da vó e também para construir a vida, e aqui ficaram.
P/1 - Eles contam como foi a viagem?
R - Não muito. Foi de navio, muitos e muitos dias, uma documentação pobre de papel. Tanto é que… Atualmente a gente foi tirar a cidadania portuguesa e foi um corre para lá, corre para cá, com advogado em tudo quanto é lugar, porque não tinha documento nenhum, mas sem muitos detalhes. Português é muito fechado, né? Eles são muito…
P/1 - E em que ano foi isso?
R - Ah, não sei.
P/1 - Fala mais ou menos.
R - Cara, não sei. A minha mãe nasceu em cinquenta... Com dez anos, então foi 1960, mais ou menos na década de sessenta.
P/1 - E aí seu vô veio para cá tentar a vida e o que aconteceu quando ele chegou, você sabe? Com o que ele foi trabalhar…
R - Eles, de alguma forma, vieram com dinheiro, um certo dinheiro feito lá… Mesmo com a condição… Porque era uma época que o dinheiro tinha outro valor, né? E aí ele veio para cá com o meu padrinho, eles abriram um supermercado, na verdade é uma cerealista, é muito antigo, né? No pé do morro, aqui perto do túnel, e foi dali que eles se mantiveram por um tempo. Aí meu vô chegou a falecer e esse supermercado acabou ficando só com o meu padrinho, que também vendeu, e foi essa história assim, dá vinda deles para cá, que eu saiba. Não sei de muito mais detalhes, não.
P/1 - E aí ele veio e foi para Santos?
R - Foi para Santos, é. Foi para Santos. Eles vieram direto para Santos e aqui ficaram. Inclusive na mesma rua que compraram apartamento logo que vieram e se estabilizaram, aí compraram um apartamento na Rua da Liberdade. Lá eu morei por 33 anos, depois saí porque fui seguir a minha vida. Mas o apartamento continua sendo da minha família, hoje mora uma prima lá e não tem muito mais histórias, até porque a minha família, com o falecimento do meu vô, a família começou a se dispersar, cada primo foi para um lado, os irmãos, cada um… Não é uma família muito unida.
P/1 - Mas aí eles tiveram quantos filhos?
R - Meu vô e minha vó?
P/1 - É.
P/1 - Sete filhos.
R - Três vingaram, os outros quatro morreram de diarreia, mas lá em Portugal. Bizarro, né? Morrer de diarreia. Por conta das condições que eram, água de riacho, não tinham limpeza direito, era outra vida.
P/1 - E o que você sabe da história da sua mãe? Que ela conta...
R - A minha mãe… A minha mãe sempre foi muito guerreira, ela veio para cá pequena, acabou casando. Antes disso ela fez faculdade… Fez os estudos dela, concluiu os estudos dela, passou num concurso público e levou a vida como escrevente. Escrevente, né? Só escrevente que fala. Aí depois ela virou escrevente chefe. E nesse meio tempo ela casou com o meu pai, que não foi um bom casamento, porque durou só dois anos, e seguiu a vida dela. Ela sempre foi muito batalhadora. Eu lembro que ela tinha um fusca, as mulheres não tinham carro, elas não dirigiam, não eram independentes. E minha mãe sempre seguiu essa linha da independência, de sempre lutar pelas coisas dela, e foi sempre muito batalhadora, e me incentivou nessa mesma linha, de que mulher tem que ser independente, tem que ser guerreira, e eu fui seguindo esses passos dela.
P/1 - Você lembra de algum momento dela ter falando esse tipo de coisa?
R - Lembro. Eu lembro porque assim, como eu acho que não deu certo a relação do casamento, as coisas se tornaram mais difíceis, hoje em dia ainda é difícil ser mulher em alguns campos de trabalho, na própria vida independente, e imagina isso a quarenta anos atrás, foram muitas dificuldades, então eu lembro dela me incentivando sempre a estudar para um concurso público, porque era isso que ia trazer, de repente, a minha estabilidade financeira, que foi o que trouxe isso para ela; de que eu tinha que estudar e trabalhar e nunca servir… É até chato falar isso, mas nunca servir a um homem de forma que eu me apagasse ou me anulasse, que eu tinha que ter orgulho de ser mulher, sempre, sempre, sempre seguiu nessa linha.
P/1 - Nossa, isso que você lembra era você mais crescida ou menor?
R - Mais crescida. Entre o falecimento do meu vô e a minha gravidez, porque assim, eu segui os conselhos dela até a página cinco, né? Porque eu engravidei muito cedo e acabei distorcendo um pouco esse caminho, porque quando você tem vinte anos, ainda terminando a escola, faculdade, aquele período de estudos ainda, você arrumar um filho, solteira, é muito complicado, então acabou dando uma desandada. Que era justamento o que… Que ela tentava que não acontecesse… E não adiantou muito.
P/1 - A gente vai chegar lá (risos). Mas ainda… Você pequena ainda, que memória você tem da sua mãe, pequena mesmo, com três, quatro anos?
R - Então, eu lembro dela guerreira, dela saindo para trabalhar com o carro dela, e ela tendo muito orgulho disso. O meu vô tinha muito orgulho da minha mãe também, porque a minha vó já era aquela portuguesa mais rígida, ela achava o cúmulo uma mãe solteira, que foi o que aconteceu com a minha mãe. O meu vô já morria de orgulho dela, de tipo: “Ah, você casou com um homem que não deu certo? Não faz mal. Siga a sua vida, a gente está aqui para te apoiar, para te embasar”. A minha vó, já rígida, e o meu vô sempre nessa pegada de incentivo. E ela levando a vida dela, de… Cuidando dos meus avós, cuidando de mim, trabalhando… Ela trabalhava com vendas numa época, também antes do concurso, e ela corria o estado com aquele “fusqueta” vermelho dela, pra lá e pra cá. E eu lembro disso, assim, dessa sensação de orgulho em ser independente, no caso da “mamis”.
P/1 - Você lembra dessas memórias de criança, desses diálogos com o seu vô, sua vó?
R - Lembro.
P/1 - E como era a sua percepção de criança ouvindo tudo isso? O que você pensava?
R - Que a minha vó era uma chata, que meu avô era tudo, era o pai, inclusive que me faltava, e muito orgulho da minha mãe, assim. Por um tempo… A adolescência é muito louca, né? Por um tempo eu quis ser como minha mãe, depois eu não quis ser mais como ela, e…
P/1 - Legal. A gente vai aprofundar na adolescência. E aí o seu vô, só para a gente não passar sem ele, porque as primeiras memórias eram ele, né? Eu queria que você me descrevesse um pouco mais essas memórias que você tem com ele, que você lembra dele, a onde eram?
R - Eu lembro dele me levando para passear, eu lembro dele me levando para trabalhar junto com ele no mercado, ele era uma pessoa muito agradável… Me veio agora uma memória da gente pegando o ônibus, e onde ele passava ele cumprimentava as pessoas, as pessoas sabiam quem ele era, ele era uma pessoa muito agradável, muito agradável. Lembro de estudando na sala e ele sempre ao lado, dando suporte, não lembro exatamente o que, mas sempre incentivando. Ele foi muito o meu pai, né? Eu só tenho sensações boas em relação a ele. Ele faleceu quando eu tinha sete anos, então não são muitas memórias. Eu lembro… A minha família era unida na época que ele era vivo, então tinha muitos primos, os Natais eram cheios, tinha muita festa enquanto ele era vivo.
P/1 - Como eram essas festas? Tinha Natal, quais mais?
R - Tinha Natal, tinha Páscoa, tinha família reunida. A gente é… É uma família… Não sei se você conhece Itatiba, perto de Atibaia, interior de São Paulo… E lá tem um campo que chama Clube de Campo Fazendo Itatiba e todos da minha família acabaram comprando um lotezinho lá e tendo uma casinha lá, então todo final de ano eram dois meses passados com a família inteira, todo mundo junto. Eram festas simples, não precisavam de muitas datas comemorativas. O Natal e a Páscoa eu lembro perfeitamente de ter mesa farta e todo mundo junto, agora do resto do ano sempre tinha uma reunião, sempre tinha… Ele que era o agregador, ele que juntava a família. Então… Eu só lembro disso até os sete anos, depois foi outra realidade de família, outra história.
P/1 - Nossa, você quer contar um pouco como foi essa passagem no seus sete anos?
R - Foi bem triste assim. Na verdade o meu vô faleceu por conta da… Não sei se vocês já ouviram falar de quando o porco não é muito bem assado tem um bichinho que vai para o cérebro e dá derrame, foi disso que ele faleceu. Ele comeu porco e teve derrame por causa do bichinho. Aí foi uma ida e vinda de hospital e de repente ele faleceu, que é um dos meus grandes traumas também, de eu não ter falado… Eu lembro do dia que ele veio do hospital, eu fiquei brincando com a barbie num canto, ensaiando que eu ia falar que eu o amava, porque eu tinha que falar que eu amava ele, imagina, era o meu vô, e eu fiquei com vergonha, com vergonha, com vergonha, o dia inteiro passou, aí fui dormir, quando eu acordei ele já não estava mais em casa, já tinha voltado para o hospital, de lá não voltou mais… Essas coisas criam uns partos na vida da gente. E aí depois disso, depois do falecimento dele foi uma decadência em relação a família, não existia mais Natal, cada um foi vivendo a sua própria família. Ah, o Natal não vai ser mais na casa da vó e do vô, vai ser… “Ah, vou fazer na minha casa esse ano”, “vou fazer na minha casa no outro”, e aí ficou se dispersando e acabou. Acabou. Não teve uma união de primos, foi bem triste até, assim.
P/1 - E tinha alguns primos que vocês tinham um contato mais próximos?
R - Tinham, éramos em sete primos, somos em sete primos ainda, só que volto a dizer, tudo girava em torno do meu vô. Quando essa família perdeu esse eixo, cada um foi tomando um rumo, e a gente nunca mais fomos os mesmos. Aí depois disso a minha vó adoeceu e aí que… Mais nada. Hoje a minha família sou eu, me filho, minha mãe e o marido dela. Não vejo os meus primos, não vejo as pessoas, cada um seguiu…
P/1 - Queria perguntar um pouquinho também do seu pai, você falou que foi um casamento de dois anos, mas você tem alguma memória do seu pai?
R - A minha vida não é muito alegre, tá? Eu não tenho muitas coisas alegres para contar.
P/1 - Se você soubesse o que eu já ouvi.
R - (Risos). É, né? Cada um tem um… Às vezes a gente vê as pessoas e não sabe o que elas passaram, né? Também não tenho nenhum problema mais violento, mas também não tenho um pai presente. Meu pai infelizmente enveredou pra uma vida de álcool e drogas e não deu muito certo, principalmente na minha adolescência. Na minha adolescência ainda me aproximei um pouco… Quando ele se separou da minha mãe e arrumou já uma outra família e aí existiu um conflito, porque essa mulher já tinha uma filha e é impressionante como parece que o homem se une a família que ele está no momento e o passado parece que perde o peso… Enfim. Então existiam muitos conflitos entre a infância e a adolescência, entre os sete anos e os dezesseis anos por conta dessa nova família. Eu não me dava muito com essa minha “irmã”, ele não acreditava em mim, então foi meio pesado. E sumia e aparecia, aí veio a adolescência. Na adolescência, eu sempre fui rueira, sempre gostei de bagunça, e ele tinha essa ‘Q’ bagunceiro por causa do álcool, então eu acabei me aproximando muito mais dele. Aí eu fui me vendo em todas essas situações, e não gostando do que eu estava vivendo e fui me afastando dele, completamente. Hoje faz dezessete anos que eu não o vejo, porque a gente brigou por uma coisa boba.
P/1 - Caramba, isso você tinha quantos anos?
R - Eu estava, aí eu já estava com 21 para 22, porque o meu filho já tinha nascido e ele era bem pequenininho, devia ter um para dois anos.
P/1 - Mas quando você nasceu o seu pai ainda era casado com a sua mãe?
R - Era. Mas eu não tenho lembranças porque ele se separaram quando eu tinha dois anos de idade.
P/1 - Eles chegaram a namorar?
R - Namoraram. Diz a lenda que o meu pai é um cara legal.
P/1 - Então nessa infância você não tem tantas memórias dele presente?
R - Nenhuma. Só por foto assim, algumas fotos que eu vejo que o meu pai estava ali, mas eu não consigo resgatar algum sentimento, não consigo nada. Só sei que ele existiu realmente naquela época por conta de fotos.
P/2 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Não. Não sei.
P/1 - Isso tudo era aqui em Santos, né?
R - Em São Paulo. Eu nasci em Santos, aí eles foram morar em São Paulo, por esses dois anos. E aí se separaram, ele continuou sei lá por onde e a minha mãe veio para cá para morar com os meus avós e lá ficou.
P/1 - Ah, e aí foi que você morou com o seu vô…
R - Isso, com o meu vô, com a minha vó, durante 33 anos no mesmo apartamento.
P/1 - E era onde aqui em Santos?
R - Na Rua da Liberdade, ali no Embaré, canal cinco.
P/1 - E aí como era esse lugar nessa época?
R - Ah, era uma época bem gostosa, as crianças brincavam na rua. Os vizinhos todos colocavam cadeiras na… Tinha ingá. As árvores de Santos tinham uma… Vocês já comeram ingá? Já? É, então. É uma fruta que parece que vem numa ervilha, grande, gorda. As árvores todas tinham essa frutinha, e a brincadeira da criançada era tirar aquela frutinha, enchia sacos e sacos, que só dava bicho depois, e chupava aquilo, que era docinho, era uma gosminha docinha, então era assim. As crianças brincavam nas ruas, os pais ficavam com cadeira de praia sentados conversando no final de tarde, ou se não eu lembro da minha vó gritando: “Ellen, vem tomar banho!”, era bem bairro mesmo. Não tinha tanto trânsito, então se jogava queimada na rua. Foi legal.
P/1 - Nossa, você jogava queimada na rua?
R - Jogava. Eu era maria-moleque. Eu abri o queixo três vezes. Uma caindo do muro, uma caindo da rede, uma caindo na piscina. Sempre fui muito maria-moleque assim, para brincar.
P/1 - Brincava mais com os meninos.
R - Mais com os meninos. Minhas amizades sempre foram mais os meninos. As meninas me excluíam (risos), não sei porquê.
P/1 - Não sabe por quê?
R - Não sei porquê, mas eu sempre tive… Acho que porque eu não tinha tantos brinquedos de menina, porque eu sempre gostei de uns brinquedos tipo, transformers, carrinhos… O meu pai tinha uma coleção daqueles carrinhos de ferro. Hoje são colecionáveis, mas antigamente não eram. E ele me deu todos. O meu vô tinha ferramentas e eu brincava com aquelas ferramentas. Eu sempre brinquei mais com as coisas de menino do que de menina e eu acho que por conta disso as minhas amizades sempre foram mais com os meninos.
P/1 - Caramba…
R - É verdade, eu nunca tinha pensado nisso, sabia? Meus trabalhos sempre foram mais masculinos. Ah, quase uma terapia isso aqui (risos).
P/1 - O que mais você brincava com os meninos? Era queimada…
R - Brincava de bola, na rua, de pega-pega, andava de patins, nunca consegui andar de skate, era brincadeira de rua, que hoje não existe mais. Tinha taco, queimada, a gente brincava de vôlei, pega-pega, esconde-esconde.
P/1 - Na rua?
R - Na rua. Valendo o mundo inteiro, era só a quadra, né? Mas a gente brincava que valia o mundo inteiro. Pulava muro, porque os muros eram baixos, não tinha essa de… A gente podia pular de um prédio para o outro através do muro que não ia tomar um tiro de alguém e nem apanhar. Era assim a brincadeira, era muito saudável.
P/1 - E como era a relação com os vizinhos?
R - Todos eram assim. Eu lembro que no prédio que eu morava, que eu morei boa parte da minha vida, todos os apartamentos que tinham crianças as portas nunca estavam trancadas, porque a gente entrava e saia um da casa do outro o tempo todo. O tempo todo. E videogame era só quando chovia, porque não tinha o que fazer na rua, tipo não era… Era o oposto do que é agora. Os pais acabavam empurrando o videogame, tipo assim: “Olha, não tem o que fazer hoje na rua, vocês vão ficar aqui”. Era assim. Hoje já é ao contrário, né? A molecada fica louca querendo só.
P/1 - E isso não era só com você? Pelo que você está me contando era assim com geral.
R - Era geral.
P/1 - E quando começou a mudar? Você reparou qual foi o momento que as pessoas pararam brincar na rua?
R - Ah, quando a internet começou a surgir, o número de carros começou a aumentar muito, o mundo foi mudando, na verdade, não foi só um conceito ou outro, todo mundo foi mudando. Essa rua que a gente brincava, hoje, se você passa por lá, parece uma avenida, porque é carro o tempo todo. É impossível hoje… O meu filho não conseguiu brincar na rua por causa da quantidade de carros, não porque eu tinha medo de ser assaltado ou qualquer coisa, mas porque não tem mais esse espaço físico permissível para brincadeiras na rua, hoje em dia. Aí já logo veio a internet, que ainda era uma coisa mais escassa, porque se esperava dar até meia-noite, para poder conectar e não pagar, vocês conheceram essa época da vida aí, mas já foi mudando um pouco mais os conceitos das coisas, e aí tudo mudou, muito rápido né? Aí foi uma questão de um clique, ninguém quer mais brincar, só jogar, só se expor, ficar em Instagram, Orkut, na época.
P/1 - Mas, naquela época, eu ia te perguntar se você tinha alguma relação com o mar? Com a praia?
R - Sempre tive, sempre fui muito praieira. Muito praieira.
P/1 - Você tem alguma memória de algum episódio que te marcou?
R - Na praia?
P/1 - Na praia ou de brincadeira… Alguma histórinha mesmo que aconteceu.
R - Ah, eu sempre fui fissurada em catar concha. Hoje em dia não tem mais concha, não sei o que aconteceu, mas sempre teve muita concha. Hoje é mais pelo canal sete que você encontra uns pedaços assim. Eu lembro disso, de ir com a minha mãe andar na praia… Ah, uma coisa gostosa, onde é o Emissário [Submarino] hoje, sabe onde que é? No canal um. O Emissário de Santos. Precisa conhecer (risos). Antigamente era só um Píer de pedras, quase da mesma extensão que é hoje, só que só tinham as pedras, e a minha mãe me levava lá para a gente ficar vendo os formatos das pedras e os formatos das nuvens, e ficar viajando naquilo. “Ah, parece um coração”, “Essa pedra parece um urso”. Eu não sei se eram horas, mas a sensação que eu tenho de lembrança era de que a gente passava horas fazendo isso. Isso era delicioso demais, demais. Deixar a imaginação ir com todo aquele ambiente, cheiro de mar, céu aberto, isso sempre foi muito bom. Nossa, muito bom. As conchas, de catar conchinha… Tanto é que eu tenho esse hábito até hoje, não posso ver concha que eu levo para casa. O que mais? Estar na praia sempre foi o meu momento preferido, e a minha mãe também sempre curtiu isso, então ela sempre me levou para aproveitar essa situação, tanto na infância quanto depois. E aí quando eu comecei a ser mais independente, aí já por minha conta. Mas não sou dos esportes da praia, tipo, não faço nada, só fico que nem frango mesmo, pegando sol de um lado, do outro, mergulho, mas não pratico.
P/1 - E a escola? Como era a escola?
R - A escola… (risos). A escola… Eu nunca fui a mais estudiosa. Minha mãe acha que eu era, mas eu acho que eu só era um pouco mais… Absorvia rápido o que estava na sala de aula e dali eu desenrolava, mas…
P/1 - Você estudou sempre na mesma escola?
R - Não. Eu estudei em escola particular até a quarta série, aí na passagem para quinta série eu não lembro se foi problema do Collor, que aconteceu que ele tirou dinheiro de todo mundo, e eu tive que mudar, mesmo a minha mãe trabalhando em… Sendo serventuária, trabalhando no fórum, teve um momento muito sério financeiro em casa que eu tive que passar para um colégio público, o que foi um terror na minha vida, porque eu era novinha, não lembro quantos anos eu tinha, mas se eu tinha treze para catorze, os alunos que estavam lá, a maioria era repetente, tinham dezoito anos, então me zuavam, porque eu era CDF, CDF é “cu de ferro” e eu achava o cúmulo me chamarem daquilo. E aí eu tive que optar entre ser a CDF ou me juntar com a galerinha do fundo, e aí a minha tendência foi ir para o fundão. Aí não foi muito bom para o meu currículo escolar, em bombei a sexta série… Nossa, não foi nada bom, na verdade, eu ter ido para o Colégio Municipal (risos), porque eu bombei a sexta série, me juntei com a galera do fundão, comecei a fumar cigarro para ser mais adulta e poder estar perto das pessoas que eram os mais interessantes da escola, e aí foi isso, virei bagunceira.
P/1 - E conta um pouco mais… Como foi começar a fumar cigarro? Você tinha quantos anos?
R - Tinha catorze para quinze.
P/1 - Esse é o pedaço da adolescência, né?
R - É, então. Era um momento também da própria história do mundo, onde era coisa de adulto fumar cigarro, era charmoso. As propagandas de cigarro eram estimulantes. Malboro andava com aquele cara gato no cavalo. O free, pessoal pulava de asa delta, tipo nem combina, né? Mas era uma época eram essas propagandas que estimulavam. Meu pai fumava, eu achava aquilo muito bonito, tinha um estilo. E aí eu comecei a fumar, um dia eu acordei e falei: “Eu vou fumar um cigarro para poder me ver mais como adulta” e dali começou o horror do cigarro na minha vida. Me arrependo. É um dos dias que se eu pudesse voltar atrás esse seria assim top de que eu voltaria e não faria.
P/1 - Mas aí você fumou até quando?
R - Até hoje. Até antes de entrar no prédio. Infelizmente.
P/1 - E o que mais você fazia na vida? Você ia para o fundão, né?
R - Aí então, eu virei bagunceira, virei amoladora de aula… Que horror. Virei bagunceira mesmo. E continuei na Escola Municipal, de lá eu fui para o Colégio Estadual, fazer o Colegial, na época, que é o Ensino Médio de agora. Aí conheci o pai do meu filho e aí engravidei… Não, na verdade, pera aí. Aí bombei o último ano, passei em vestibular em Direito.
P/1 - Mas me conta, como você era bagunceira e passou no vestibular em Direito?
R - Então, porque eu tinha um “Q” de inteligente, mas eu gostava mais da bagunça, de estar no oba-oba.
P/2 - E quando você era criança, você tinha um sonho assim de profissão, você sonhava…
R - Eu queria ser mecânica de avião, mas nunca estudei para isso. Quando começou o momento onde eu tinha que fazer o inglês mais pesado para poder seguir alguma determinada profissão, eu optei pela bagunça, por ir para balada. É verdade cara, não vou mentir. E foi isso que foi acontecendo, como eu falei mais para frente, eu sempre tive uma facilidade para entender o que estava dando na sala de aula, então não precisava estudar muito em casa porque eu absorvia muito rápido, por isso a minha mãe achava que eu era super melhor, mas podia ter sido…
P/1 - Tinha alguma aula que te fisgava, algo que você curtia a partir daquilo?
R - Não, porque eu sempre achei a escola muito… Aí eu sou contra os métodos de ensino até hoje, eu acho que podia ter sido muito mais absorvida a escola, tipo, quando você aprende a fazer a linha “X”, a linha “Z” e você acha o ponto aqui. Cara, isso daqui é o princípio do desenho holográfico, porque ninguém nunca te falou isso quando tu estava estudando essa droga lá na escola? Que tu não sabia porque tu tinha que achar aquele ponto no meio do nada. Então eu sempre achei a escola muito desestimulante, e aí acabei caindo mais para a bagunça porque a bagunça era mais estimulante que aquilo, não me faziam entender o porque eu estava aprendendo aquilo, então aquilo não me interessava mais. Em algum momento - o porquê do Direito - eu me tornei meio guerrilheira, meio defensora das coisas, eu achava que o que estava certo, estava certo, e aí eu tinha que defender, tinha que buscar algumas informações, então foi a onde eu me interessei pelo Direito.
P/1 - Mas foi do nada?
R - Foi do nada. Foi no Colegial, onde você começa a se colocar mais como adulto, como gente grande, onde você é mais desafiado pelos professores, pelo tipo de matéria que você vai aprendendo e aí me levou para esse tipo de pensamento, de: “Ah, de repente quero defender pessoas”, mas também não segui para frente, porque aí eu repeti o terceiro colegial por falta e não segui com o vestibular. Aí foi quando eu engravidei e a vida tomou outro rumo.
P/1 - Calma aí, rapidinho, a gente já vai entrar nesse pedaço que é importante. Mas perguntando ainda da mecânica de avião, é uma coisa… Da onde surgiu isso?
R - Não sei, mas isso eu lembro de ser muito forte, eu queria muito esse tipo de trabalho. Eu sempre gostei, como eu te falei, os brinquedos sempre foram mais voltados para carro, para as ferramentas do meu vô, nossa eu lembro, o meu vô tinha uma caixa de ferramentas desse tamanho, quando ele abria aquilo parecia que brilhava assim, de lindo. “Nossa, para que serve isso? Para o que serve aquilo”. Tanto é que eu tenho… Minha melhor amiga é uma furadeira hoje, eu instalo as minhas coisas.
P/1 - Sua melhor amiga é uma…
R - É uma furadeira (risos).
P/1 - E nesse período da escola você conseguiu se enturmar mais com as meninas ou sua turma ainda eram os meninos?
R - Sempre foram mais os meninos. As poucas meninas da minha vida, são meninas parecidas também que tem mais amigos meninos, nunca foi aquela coisa mais delicada. Eu não sei me maquiar até hoje, só para você ter uma ideia. Nunca me interessei por maquiagem, nunca me interessei por salto alto ou por estar na moda, nunca foi o meu perfil. E as amizades que eu fiz femininas também sempre foram mais nesse perfil. Nossa, tinha até uma época que eu andava com roupa de surf, eu parecia mais um moleque do que uma menina, mas não tinha nada a ver com opção sexual, tinha a ver só com estilo de comportamento, porque os meninos brincam mais, se divertem mais do que as meninas, as meninas são chatas, elas ficam trocando roupas de bonecas ou se maquiando, e eu achava que isso era perder tempo, se eu podia estar jogando bola na rua, se eu podia estar voltando suada pra casa, de tanto ter brincado, sempre foi assim… Estou me sentindo muito maria-moleque falando essas coisas.
P/1 - E quando você matava aula era para quê? Me conta um dia, por exemplo, que você matou a aula…
R - Para passear na praia, para… A maioria das boladas de aula era para ir à praia, para fazer nada, para andar… Para andar, para bolar aula, só para não ir para escola, ou só para ser, de repente, desafiadora, sabe? Fazer algo que era proibido. Tipo, minha mãe não sabia que eu estava bolando aula, era bem emocionante.
P/1 - Era isso que eu ia te perguntar… Como a sua mãe lidava com você bombar por falta, por exemplo.
R - Aí teve surra. Isso era… Tudo muito bonito, quando dava certo, quando não dava certo a minha mãe descia o cacete em mim, porque ela é portuguesa, então… E a gente veio de uma época onde… Eu sou de uma época onde dar umas borradas no filho não era isso de chamar a Assistente Social, não era nada disso, era educação, não era visto como agressão. Até porque eu também não vejo como agressão. Tomei cintada sim, e graças a Deus cara, porque você vê que se deixasse solta onde que ia parar. Então tinha muito disso da minha mãe pegar e “tatatata”, dar umas cintadas e tudo passava. Ficava de castigo. Ficava bastante de castigo.
P/1 - Boto fé. Deixa eu te fazer uma pergunta um pouco delicada. Os homens nessa adolescência, você sentia que você era assediada, de alguma maneira pelos homens na rua?
R - Ah, sim. Os meninos, né? Como andava em grupos, você acabava ficando com os meninos do grupo. É… Assédio é uma coisa que é diferente hoje, como as pessoas chegam umas nas outras, a gente se beijava, mas eram os amigos, eram as pessoas que andavam juntas, não tinha… Porque eu sou de uma época que se andava em ruas, não ia para balada, não ia muito… Nessa fase antes da gravidez, tipo dezessete. Você encontrava… Não tinha celular, então você encontra com as pessoas, você sabia que naquele determinado lugar ficava um grupo de pessoas, então saia da minha casa e eu ia encontrar aquele grupo de pessoas, e ali acontecia o envolvimento emocional, o irmão de não sei quem. Era malhar que se falava na época, dá uns “malhos”, que é “dar uns beijos”. Como isso é antigo, nossa. E não tinha assédio, na verdade era: essa irmã: “Ah, meu irmão está afim de ti. Você quer dar uns malhos nele?” Não tinha esse lance de assédio, era “achitos”, um agitava o outro pro outro e assim a vida ia sendo descoberta.
P/1 - E como foi então que você conheceu o pai do seu filho?
R - Irmão de uma amiga minha da escola, do terceiro colegial. Ela tinha um irmão mais novo que eu horrivelmente assediei ele, eu que pedi para agitar, acabamos namorando e aí eu engravidei, e ele me deixou e aí eu segui a vida.
P/1 - Não, mas conta um pouco mais. Você engravidou… E como você contou para a sua mãe que você estava grávida?
R - Foi horrível. Foi horrível porque, acho que o sonho de todo a mãe é que a filha engravide estando casada ou com alguém ou com uma idade onde possa se sustentar, que seja realmente a realização de um sonho, né? Não no início de uma juventude, porque com vinte anos você está no início de tudo, parece que com vinte anos você é muito grande, mas você é um “bocó” e eu… Na verdade eu não sabia muito bem o que fazer. Descobri que estava grávida porque… Era tão “bocó” que descobri com quatro meses de gravidez, porque nem percebia que não estava menstruando, aí fui fazer exame, porque já tinha plano de saúde, então eu tinha essa autonomia para fazer as coisas sozinha. Aí deu positivo. Contei para minha mãe. Eu lembro dela falando assim: “eu estou chorando, e tinha que ter sido de uma emoção boa, meu neto/minha neta, vai ser meu amor, mas não era o momento, você deu um passo muito errado na sua vida, você vai complicar tudo, mas você vai ter esse filho, porque eu te ensinei a assumir as suas responsabilidades”. E aí foi bem difícil a gravidez inteira, ela não falou direito comigo durante até os sete meses mais ou menos, ela não falou direito comigo, porque era um misto de vergonha com decepção e… Aí, posso beber água? (Pausa). Aí no final da gestação ela já começou a ficar mais amiga, né? Porque aí já era a filha que ia ter um filho, começam aqueles sinais de que vai nascer, e aí a preocupação e a postura mudou, ela me ajudou bastante. Mudou, mas assim - é engraçado hoje revendo - depois que o Bruno nasceu, eu tive depressão pós-parto. O Bruno é o meu filho. E a minha mãe não conseguiu enxergar isso, que eu estava adoecendo, porque na cabeça dela eu tinha que ser responsável. Então se eu não estava amamentando, é porque eu queria sair e não porque estava doendo e eu não sabia o que fazer, por ser uma moleca ainda. Ela percebeu em um momento que a coisa tava muito errada quando eu tive que ir para o hospital para secar o peito, porque ele tava enorme, inflamando. [Aí] as coisas foram se acalmando, foram…
P/1 - E deixa eu te perguntar um negócio… E o pai? Qual era o nome dele?
R - Tiago. O Tiago não é uma boa pessoa até hoje. Tiago resolveu ficar de fora, não me ajudou.
P/2 - Vocês não chegaram a morar em nenhum momento juntos?
R - Durante os dez primeiros anos, não. Durante os dez primeiros anos ele foi um pai bem ausente, inclusive ele foi morar até fora, com outra pessoa, fora do estado, com outra pessoa e eu fui criando o Bruno sozinha. Coloquei ele na justiça, pedindo pensão, e nada dele. Aí em dado momento ele teve em Santos, aí consegui um mandado de prisão contra ele, aquele espetáculo todo, e ele se afastando cada vez mais. Isso até os dez anos. Aí teve um outro momento que ele voltou para Santos de novo, que ele estava morando no Sul, aí voltou novamente para Santos. Ele sofreu um acidente e eu me reaproximei dele nesse momento e aí a gente voltou, reatou. Ficamos cinco anos morando juntos, só que aí eu repeti o padrão do meu pai. Foi quando eu me separei porque não é o meu perfil ser esse tipo de mulher que vai buscar homem em bar ou qualquer tipo de vida que a galera que está doente assim leva.
P/2 - Eu quero voltar um pouquinho. A sua mãe levou um choque quando você chegou para ela e falou que você estava grávida, mas a sua mãe já sabia que você tinha relações sexuais… Quando você perdeu a virgindade você contou para ela?
R - Não contei, mas ela já sabia. Não sei como assim. Ela não se assustou com essa notícia como se eu fosse uma virgem, não, ela se assustou com a minha falta de responsabilidade de não ter usado camisinha, de não ter tomado um anticoncepcional, já que eu tinha acesso a médico, a ginecologista, já frequentava ginecologista, então esse foi o choque dela, da minha falta de responsabilidade. Mas eu nem sei como ela soube que eu já não era mais virgem.
P/1 - E quando você ficou grávida, você trabalhava?
R - Trabalhava. Eu trabalho desde os quinze anos. Meu primeiro emprego foi no McDonald, aí depois de lá eu fiz alguns…
P/1 - Conta aí um pouco do primeiro emprego…
R - O McDonald é uma escravidão, né? É um horror de lugar, assim. É gostoso no começo porque você come sanduíche adoidado, mas depois é um horror, porque paga pouco, você trabalha pra caramba, fiquei pouco tempo lá. Depois disso eu fui para o Dunkin' Donuts, porque teve um Dunkin' Donuts aqui em Santos, fiquei também pouco tempo porque a loja durou pouco tempo. Trabalhei um pouco em shopping. Fui frentista de posto de gasolina, que eu era amarradona. O primeiro pneu que eu troquei eu adorei. Aí depois eu fui trabalhar numa loja aqui do lado, na Hidrowapess, que é uma assistência técnica de máquina de alta pressão. Então foi quando eu comecei a me envolver com o mundo que realmente me agrada. E fiquei acho que, se não me engano, cinco ou seis anos nessa loja, aí fui mandada embora, aí foi quando eu arrumei o emprego do Porto [de Santos], só que nisso já se passaram muitos anos.
P/1 - Mas você foi trabalhar porque? Era para ajudar em casa ou era para um dinheiro seu, assim?
R - Não, meu dinheiro. Minha mãe sempre me incentivou a ser independente. Ela queria que eu fosse como ela, tivesse meu próprio dinheiro, meu carro, minhas coisas. E seguisse a vida de cabeça erguida, não dependendo de nada nem de ninguém.
P/1 - E dentro desses trabalhos que você deu uma listada, o que te marcou? Por exemplo, esse de frentista. Como apareceu…?
R - Tudo era por jornal, né? Há umas décadas era muito fácil arrumar emprego, só ficava desempregado quem queria, na verdade, porque você tinha o Classificado de Domingo, no jornal, mandava os seus currículos e… Honestamente, não é que chovia empregos, mas você tinha uma entrevista hoje, outra amanhã… Eu acho que eu nunca cheguei a pegar um seguro desemprego por inteiro, que na época era de seis meses, hoje em dia é proporcional, sei lá, porque sempre aparecia um novo emprego. Emprego não era um problema, há algumas décadas. Não estou falando também de empregos que te pagassem uma fortuna a ponto de você ir morar sozinha, mas você tinha emprego, arrumava emprego. Hoje em dia não, né? Hoje está bem difícil. No Porto eu arrumei, também, através de jornal. Entrei para o Porto… Fui mandada embora aqui da Hidrowapess, aí fiquei uns três meses desempregada, por opção. Falei: “Vou curtir o meu seguro desemprego”. Aí peguei o jornal, tinha lá, mandei, me chamaram, me contrataram e aí a minha vida mudou. Aí eu me apaixonei pelo Porto e aí… Mas então, isso já passou porque ó, quando eu entrei no Porto eu já estava no final da Faculdade de Psicologia.
P/1 - A gente vai entrar no Porto. Então, vamos voltar para aquele momento que você teve um filho.
R - Tenho um filho.
P/1 - Tem quantos anos?
R - 21 quanto ele nasceu.
P/1 - E você já estava cursando Direito?
R - Não, no Direito eu só passei no vestibular. Passei no vestibular, bombei o terceiro ano, e aí eu desisti de tudo.
P/1 - Você passou no vestibular e bombou o terceiro ano?
R - Aí eu não tinha o que fazer, não dava nem para segurar vaga, nem nada, e aí eu terminei o terceiro ano e desisti da faculdade. Aí foi quando eu conheci o pai do Bruno, comecei a namorar e engravidei e aí eu só tinha o trabalho e o filho.
P/1 - Que era qual na época? O trabalho.
R - A vap.
P/1 - E como era o trabalho?
R - Ah, eu cuidava da assistência técnica das máquinas que quebravam, máquinas de alta pressão, profissionais, semi-profissionais, industriais. E gostava daquilo porque lidava com máquina.
P/1 - Mas como foi… Você tinha esse conhecimento para cuidar de máquinas?
R - Então, não tinha, os empregos apareciam, você entregava o currículo, a pessoa te chamava de acordo com o que ela achava do seu perfil, e você começava a trabalhar, e aí desenrolava ou não. Eu, de alguma forma, que nem quis ser mecânica de avião, não segui a linha de estudar para isso, mas sempre tive isso dentro de mim, de máquina. Gosto de coisas pesadas, gosto de ver máquinas de grande porte, sempre. Os transformers mexeram comigo (risos), é verdade, cara.
P/1 - Eu acredito.
R - Eu tenho o meu bumblebee até hoje, desses últimos filmes que saíram, eu fiz questão de comprar um bumblebee para mim. Eu falei: “Meu Deus, é tudo o que eu preciso”.
P/1 - Mas você tinha brinquedos de transformers?
R - Tinha brinquedo de transformers, eu pedia para minha mãe esse tipo de brinquedo.
P/1 - E você acha que isso tem alguma coisa a ver com você querer ser mecânica de avião?
R - Eu acho, mas é uma coisa minha assim, é inato. Estava em mim. Aí então… Eu tive o Bruno, a vida seguia tranquilamente…
P/1 - E o cotidiano, como era? Você, criança pequena e trabalhando, como você dava conta?
R - Minha mãe me ajudou muito, porque eu morava com a minha mãe. Morava eu, minha mãe e minha vó. Aí quando o Bruno veio era muito fácil. Na verdade eu até que fui bem exploradora das duas, porque tinham duas mulheres em casa, avós, né? A bisa e a vó, então elas me ajudaram muito, muito, muito. Por mais que eu tenha sido meio ingrata na época, porque adolescente é uma praga, não é de Deus, elas me ajudaram demais. Tanto é que nada foi impeditivo na minha vida. O Bruno não foi impeditivo de nada, porque eu tinha o suporte da minha mãe e da minha vó. Eu conseguia trabalhar, eu conseguia sair. Cuidava dele também, lógico, porque elas não adotaram ele, tinha a minha parcela, mas “ah, eu tenho algo para fazer”, elas ficavam com ele, às vezes de boa vontade, às vezes não. Aí decidi fazer faculdade, estava com 27 anos já. Aí fazer o que, né? Foi uma época que eu comecei a perceber o impacto da depressão, o quanto tinha me mudado, o quanto as pessoas são “totócas” da cabeça, foi um momento que eu comecei a perceber mais esse lado humano das pessoas e o quanto as coisas que aconteciam na vida modificavam todo mundo, até porque o meu ciclo de amizades continua o mesmo, então as pessoas que eu conheci com dezesseis, dezessete anos, eu trago até hoje, muitas delas, e aí você consegue observar o que a ausência de um pai fez - quando você vai crescendo - naquela sua amiga, ou o que uma viagem, uma mudança fez também com a vida de outra pessoa, e aí eu fui me interessando pela Psicologia. Aí foi o momento que a minha mãe já estava mais estruturada financeiramente, eu aqui na vap, até que ganhava bem e dava para pagar a faculdade, aí meti as caras, com filho pequeno, trabalhando e faculdade, era loucura, mas eu adorava, adorava. Eu sempre fui muito agitada, então… E eu ainda acho que quanto mais coisa tu faz, mais tu consegue fazer, porque quando tu só tem uma coisa para fazer, parece que… Ela não sai, você tem preguiça, é impressionante. Tipo, tem uma coisa para fazer, cara, mas não tem hora para fazer aquilo. Agora, quando tem tudo, tu faz, e faz mais e dá um jeito, e era o que acontecia. Era filho pequeno, trabalho, faculdade.
P/1 - Rapidinho, só deixa eu te perguntar uma coisinha… Eu queria te perguntar: como você saiu da depressão?
R - Por osmose, porque ninguém cuidou de mim. É, então, foi uma das coisas que eu fui prestando atenção, foi esse impacto do quanto uma situação pode modificar uma pessoa. Eu fui saindo da depressão, na verdade, eu acho que… Por muito tempo eu nem saí dela, por muito tempo eu vivi nela, só que eu fui aprendendo a lidar com o que estava acontecendo, com a tristeza, com as dificuldades… Porque parece muito bonito, né? Porque eu saia, a minha vó ficava com o meu filho, mas nem era tão bonito assim. No fundo eu sabia que eu não tinha nem que estar saindo porque eu tinha um filho, só que eu também tinha 23, 24 anos, tinha uma ânsia dentro de mim de querer estar me divertindo. E eu fui me adaptando, eu não fui tratada da depressão, não fui. Eu fui… Na faculdade eu fui me auto-analisando mais, e tomando minhas providências de fazer uma terapia, aí eu fui buscando coisas… Tanto é que ainda não parou, mês que vem eu já tenho uma sessão de hipnoterapia marcada por conta de coisas que ainda me atormentam, mas eu não me curei da depressão pós-parto, eu fui me adaptando talvez por ter algo em mim meio bem guerreiro, tipo, eu não posso deixar isso ser maior do que eu. Isso eu sempre tive dentro de mim. Em outro momento eu também tive outro episódio de depressão, que foi quando eu fiquei desempregada um tempo atrás e comecei… Busquei auxílio psiquiátrico e o caramba, só que aí eu vi: pode parar que é em mim, sou eu comigo, eu tenho que sair dessa. Eu sempre tive essa pulsão de vida dentro de mim de não permitir, quando eu tomo consciência, de permitir que aquilo vá me levando, quem leva sou eu, quem manda sou eu.
P/1 - Então na faculdade, você sentiu que você foi por esse olhar, de ________ e estudando?
R - Exatamente. A escolha da faculdade foi mais por mim do que pela profissão. Foi um momento onde eu tive a oportunidade de me olhar e de cuidar de algumas situações que não tinham sido tratadas. Foi uma escolha bem pontual, na verdade, a minha mãe… Tanto é que eu lembro dela falando: “Psicologia, filha? Psicólogo não ganha dinheiro, é muito difícil ser psicólogo clínico, é muito difícil entrar não sei aonde, isso e aquilo”. Eu falava: “Mas eu quero. Esse é o meu caminho agora, não tem o que fazer de diferente. Senão eu não vou fazer faculdade”. E foi bem esse momento assim.
P/1 - E o que você descobriu de si mesma que é possível partilhar?
R - De mim mesma? Cara, sei lá. A vida é muito difícil (risos). A vida é muito difícil. A gente dá significados para algumas coisas que parecem bobas, mas elas são tão pesadas. Uma tiração de onda na escola pode te trazer insegurança para uma vida inteira; uma falta de posicionamento por um responsável por você, em alguma época da sua vida, pode te trazer impactos violentos, eu não sei te… Eu ainda estou em busca disso, eu acho que é uma eterna busca. Não sei te explicar.
P/1 - E o que mais te interessava na faculdade?
R - Inicialmente isso, aí eu fui me encantando com tudo o que vai se aprendendo em relação à mente humana e até sonhei em ser psicóloga clínica, abrir o meu consultório, trabalhar com pessoas, poder ajudar elas. Aí no quarto ano da faculdade foi quando eu perdi o emprego da vap e fui para o Porto e aí tudo mudou.
P/1 - Conte um pouco mais de como foi esse ponto de virada.
R - Aí no Porto, quando eu entrei por um classificado de jornal e fui fazer a entrevista, odiei o que vi, já logo de cara, porque o cais é sujo, é poeira pra tudo quanto é lado, mas passei na entrevista, e eu precisava terminar o meu último ano de faculdade. Eram cinco, eu já tinha feito quatro, fosse o trabalho que fosse, eu ia abraçar pelo salário, para poder terminar, e ainda tinha o sonho de levar a Psicologia como profissão. Aí na primeira semana no cais, foi um horror, foi um horror, cara, porque eu não entendia como aquelas caixinhas se moviam de um dia para o outro num pátio de… Vocês já foram num pátio de contêineres? Se tu for lá hoje e tu for lá a doze horas, vai estar diferente a estrutura do que você está vendo porque tem remoção, tudo se move… E eu não conseguia entender aquilo, eu não conseguia entender o que as pessoas falavam, toda aquela linguagem.
P/1 - Mas como é um pátio de contêineres? Porque pra mim ainda é meio vago. Se você puder me descrever como era esse pátio de contêineres...
R - Eu entrei em um setor chamado Registro, na época, que fazia a conferência da documentação do que ia entrar para o terminal como exportação, que a gente ia mandar para fora do navio, ou a documentação do que ia sair de importação, do que tinha chegado e do que ia sair, então eu tinha que conferir tudo aquilo, e eu não entendia nada, nada, nem de contêiner e nem documentação, então foi muito impactante, e estava prestes a desistir com aquele peso da faculdade de que eu tenho que abraçar para conseguir pagar, mas eu não estou conseguindo, aí um menino do meu setor falou: “Olha, aqui ou você desenrola ou realmente não vai”. Ele me desafiou, eu não lembro exatamente da frase dele, mas ele me desafiou, tipo assim: “Se tu ver que não vai dar, corre”. Eu falei: “Correr eu não vou, cara, porque eu não sou dessas, vou entender esse diacho aqui” e aí eu fui me envolvendo e me apaixonando por todo aquele mundo de comércio internacional, porque quando você vê, você está lidando com cargas valiosíssimas, como pode tanta coisa dentro de uma caixa daquelas? Como aquelas caixas vão no navio? Aí eu fui me envolvendo de uma forma que eu comecei a mudar de setor com muita facilidade, mas tudo ainda dentro de escritório, tudo do documental.
P/1 - Mas o que estava te apaixonando? Você dentro do escritório estava se apaixonando…
R - O desafio. O desafio dele de que eu não ia entender aquilo, então eu que corresse. É um mundo, o Porto é um mundo, é uma engrenagem, cara. Um setor realmente depende do outro, que vai depender de outro, de outro, de outro, até chegar no final da situação, que é o navio. Tem um monte de trâmites, de entrada e saída, de despachante, de documentação, de agendamento, de caminhão, de vazio, de cheio, tem uma série de trâmites, tem o comercial que vende espaço dentro do terminal, ou que vende o transporte daquele contêiner, tem um mundo. E quando você entende que uma coisa está ligada na outra é encantador, realmente. E eu fui me encantando pelo mundo operacional. Eu trabalhava no documental, dentro de escritório, contador, papelada, mas me encantando com o final disso tudo, que era no navio. Aí recebi algumas promoções até, cheguei a ir para o comercial de uma empresa… Da primeira empresa que eu trabalhei, que foi a TECONDI, não sei se pode falar nomes.
P/1 - Pode.
R - Que foi a TECONDI, que hoje é a ECOPORTO, como assistente corporativa, mas não era o meu perfil. Assim, eu estava dentro de algo que estava me encantando, mas tinham coisas que eu não gostava, tipo de ser muito delicada… Atender cliente não é o meu perfil, falar docemente, calma, não era comigo. Aí surgiu uma oportunidade no cais, mesmo, que era para Conferente de Carga, o que é assim, bem difícil de entrar, porque no cais existe o Ogmo, que é o órgão gestor que regulamenta o operador portuário, e você só entra para o cais tendo esse Ogmo, que é um cadastro nesse órgão gestor. E o último que aconteceu para conferente foi em em 95, se eu não me engano. O estivador também já não tem concurso nem cadastro para eles há muitos anos, ficou uma mão de obra bem fechada, ou você tem ou você não tem. Só que existem brechas na lei, e o gerente que eu tinha na época, ele queria além de inserir mulher no cais, que ele era visionário, ele é muito louco, muito legal, ele queria… Além de inserir mulher no cais, ele queria colocar mais gente que não tivesse o Ogmo para que se mudassem até o próprio posicionamento em relação aquelas pessoas. Porque o Ogmo - eu não sei explicar - ele te dá estabilidade, da mesma forma que o trabalhador avulso não tem um lugar fixo para ir, hoje são vinculados, mas até dois anos atrás não, ele não tem um lugar fixo para ir, mas ele também tem emprego todo dia, porque tem um lugar onde saem as senhas, a numeração, trabalho para determinados lugares, eles têm uma numeração e eles se empregam, então nunca ficam desempregados. No caso do Conferente era através de concurso público, que nunca mais teve, então ficou aquele grupo fechado. Só que dentro da lei existe uma situação assim: a empresa solicita mão de obra avulsa, a mão de obra do Ogmo, se não aparecer gente capacitada suficiente ela pode tirar fora do sistema, que foi onde eu entrei. Eles chamaram o Ogmo…
P/1 - Não deram conta…
R - Não deram conta, então eu vou colocar o meu: “Vem você, vem você e vem você”.
P/1 - Mas aí como você ficou sabendo?
R - Foi uma chamada interna, como que fala isso? É, foi uma chamada interna da própria empresa, lançaram um email dizendo: “Ó, vamos abrir vagas para Conferente de Carga, quem tiver interesse se inscreve que vai ter uma avaliação”. Eu falei: “Cara, esse aí é o meu lugar, vou tentar”. Além do salário que era três vezes maior do que eu ganhava, porque o que rege o salário do cais não é o empresário, é o Ogmo. No dia que esse Ogmo sair, acabar o poder dele, aí o empresário toma conta e fica todo mundo ganhando mil e duzentos reais, que é assim que funciona. Aí eu fiz essa prova e passei, e fui a única menina… Dentro dos Conferentes de Carga e Descarga de Santos só tinham três meninas concursadas, o resto é tudo homem. Na estiva não tem mulher, na capatazia, que também é outro setor do cais, não tem mulher, só no Conferente de Carga que tinham três. Uma morreu, outra não seguiu, seguiu outra profissão e tem uma que é concursada que está atuando até hoje, então a gente só tinha uma mulher naquele momento com Ogmo no cais, e na empresa onde eu trabalhava, zero, nenhuma, então dentro da empresa onde eu fui trabalhar eu fui a primeira, foi muito legal.
P/1 - Conta um pouco mais sobre isso…
R - Foi bem desafiador, porque as pessoas que souberam que eu tinha passado na prova me questionavam: “Você é louca? Você vai para o cais. Primeiro você vai trabalhar de turno, vai trabalhar de madrugada com aquele bando de homem estivador”. Eu falei: “Gente, eles são estivadores, mas eles não são estupradores, eles não são violentos, ninguém vai me matar no cais, nem me desrespeitar. Eu sei me impor, sei me colocar”, mas mesmo assim foi surpreendente para a maioria das pessoas, e muitas deles, inclusive, achavam que eu não ia dar conta. A própria psicóloga que fez, ela foi muito antiética, na verdade, porque ela me fazendo as questões para poder finalizar o processo seletivo, ela me questionava: “Mas você tem certeza? Eu acho que isso não é trabalho para mulher. Você vai ter que trabalhar na madrugada, vai ter que trabalhar debaixo de chuva”. E eu falava: “Não, eu dou conta, se eu não der conta vai ser mais uma experiência, mas eu sei que eu tenho capacidade para isso e tenho certeza que eu vou bem me encontrar”, porque eu já via, estando no documental, eu já via como era aquele trabalho do lado de fora. Aí chegou o meu primeiro dia no trabalho no cais e 99% das pessoas eram concursadas do Ogmo, entraram só quatro fora do sistema, que era eu e mais três meninos. No primeiro dia um dos senhores - porque eles são mais velhos - do Ogmo, olhou para mim e falou: “Olha, eu não vou te ensinar nada, você nem olhe para mim, porque eu não vou te falar nada do que está acontecendo aqui, se vire”. Eu falei: “Caraca meu… Ferrou, né?” Primeiro porque eu nunca tinha entrada em um navio de carga e aí você se depara com ele lotado de contêiner, aquele bando de homem gritando, tudo pertinente ao trabalho, mas você não entendendo nada, o navio… “Olha, você vai para o primeiro terno”, o que é um terno do navio? Eu não entendi nada e não podia perguntar para ninguém, eu tive que ficar observando durante um tempo para poder visualizar, aí não estava entendo “bulhufas”. Aí um dos senhores do Ogmo acabou me adotando, porque aí acalmaram os ânimos deles…
P/1 - Você foi contratada?
R - Eu fui contratada pela empresa, não tenho Ogmo. Eu já era da empresa, aí a empresa me passou para aquele setor, eu fazendo prova de seleção.
P/1 - Mas aí você está falando que o cara te falou isso, e o homem que te adotou já foi no primeiro dia?
R - Não, na primeira semana. No primeiro dia eu tomei esse dedão na cara aí fiquei só naquele de observação, indo com o pessoal, mas não entendendo “bulhufas”, aí um dos senhores acabou me adotando, que foi o Seu Cleiton, eu devo muito a ele de aprendizado, aliás, muito mesmo. Aprendi, nossa, toda a base que me fez ser a profissional que eu sou hoje, graças a ele, que teve toda a paciência do mundo de me ensinar o “Bê-á-bá”, porque a prova foi direcionada para o navio, mas é uma coisa você saber na teoria e você fazer na prática, porque na prática a teoria é outra, nada é… Que nem, você estuda na faculdade, quando você vai para o trabalho você vê que boa parte daquilo que tu viu na faculdade você não vai usar ou não se encaixa, vai ter que fazer de uma outra forma, e lá foi a mesma situação. Sabia do que estava falando, mas não sabia fazer. E aí começou, aí ele me adotou, me ensinou e eu fui me apaixonando cada vez mais pelo Porto. Fui sempre muito respeitada por todos, o que foi o contrário do que as pessoas tinham medo e me assustavam e falavam: “Ah, os homens do cais…”
P/2 - Você nunca passou por nenhuma situação de assédio?
R - Nenhuma. Primeiro que eu tenho um jeitão “brabo”, assim, sou meio brava, então… Aqui eu não estou falando palavrão, mas eu sou dessas. E sempre soube me colocar, tá certo, tá certo, tá errado, tá errado e ponto.
P/2 - E você falou do negócio de turno… Você trabalha de madrugada também?
R - Trabalho. Inclusive eu estou na semana da madrugada. Trabalhei da uma às sete da manhã hoje.
P/2 - Como é a sua rotina com o seu filho? Com a sua família?
R - No começo foi complicado, porque o Bruno era mais… Hoje o Bruno está com 22 anos, e no começo… Eu entrei para o cais em 2017, então já tem bastante tempo, e ele era bem novinho, né? Aí ainda morava com a minha mãe e ela me ajudava, depois morava com o Tiago, ele não gostava muito, mas ok, e aí quando eu me separei do Tiago, o Bruno já era mais mocinho e ele correu junto comigo, tinha que deixar ele sozinho em casa, mas ele sempre foi um bom menino, graças a Deus não tive grandes problemas em relação ao turno. O que o turno me traz hoje é um problema sério de sono. Eu sou uma pessoa completamente… Que vivo com sono, eu encosto, eu durmo, em qualquer lugar, a qualquer hora, mas eu acho que isso tem a ver também com estar ficando mais velha e não tendo um horário regular, enfim… Mas eu gosto, tá? Não vou negar, não. Eu não consigo me imaginar hoje trabalhando em um escritório, trabalhando em um horário comercial.
P/1 - E dentro dessa paixão que foi o Porto, quais foram os grandes momentos desse romance? (risos)
R - Ah, quando eu aprendi o trabalho de Conferente. Você lidar com… Cara, lá são tudo em toneladas, lá é tudo muito grande - lembra no começo que eu falei que eu gosto de máquinas grandes - e hoje eu me vejo no meio disso tudo. Num (ASTS?) tem 42 metros de altura, o contêiner tem doze metros, pesa trinta toneladas… Ele vazio pesa duas toneladas e meia, e você brincar com aquilo, porque, na verdade eu vejo como brincar de batalha naval… Lembra como era brincar de batalha naval? Você tem um espaço e uma altura e é isso que a gente faz no navio, você coloca o contêiner de embarque numa determinada posição, que vai… O navio é dividido em bays. Vai, bay 22. “Eu vou colocar aquele contêiner na bay 22, na roll, que é a coluna que ele vai, 07, na altura 74, que é a… Então é brincar… Hoje eu encaro isso como brincar de batalha naval, quando você consegue brincar com isso tudo, só que tudo muito gigante, é uma delícia, uma delícia. O trabalho lá é muito desafiador o tempo todo, não tem só contêiner, tem carga geral, a gente embarca e descarrega lanchas, trator, caminhão… Peças de avião eu nunca mexi assim… Se veio eu nem soube o que era, porque chega umas peças lá que tu não faz a menor ideia para que serve, mas são peças gigantescas. Aquelas pás eólicas, que fazem… Aquilo tem um comprimento, acho que são 52 metros de comprimento, gigante aquilo, são dois equipamentos levantando aquilo para colocar no navio, é muito louco. E eu fui me apaixonando por isso, por esse mundo, de brincar de batalha naval. Parece simples, mas não é. Assim, é bem desgastante.
P/1 - Se você fosse eleger um desafio, que foi assim: rapaz, forte mesmo, nesse período todo, qual que seria?
R - O próprio estar lá, cara. Estar lá é muito, assim... Eu nunca sofri desrespeito, mas tem algumas situações onde eu não tenho voz porque eu sou mulher. Eu estou certa, eu sei o que eu estou falando, mas eu estou sem voz porque eu sou mulher, isso não é descarado, mas é muito claro para mim, porque chega outra pessoa dez minutos depois, fala a mesma coisa que eu falei e ela: “Ah é, puts, como eu não pensei nisso”. Aí tu olha aquilo e fala: “Caraca meu, não é possível que até hoje pessoas ainda veem essa diferença entre homem e mulher em determinado tipo de trabalho", mas tem.
P/2 - E com a quarentena… Agora com o Coronavírus, o que mudou na sua rotina de trabalho?
R - Nada.
P/2 - Não mudou nada?
R - Não. A empresa mudou nos procedimentos, ela distribui… Máscara a la vontê assim, descartável, instalou uma cabines de lavatórios de mão, tem álcool em gel a rodo pelo terminal. Então a empresa nos protege da forma que ela consegue, mas graças a Deus a empresa onde eu trabalho está na contramão do mundo, não mudou nada, navio que não acaba mais, graças a Deus, uma movimentação batendo record em cima de record, assim, não tem nem o que falar. Não peguei Corona[vírus] nenhuma vez.
P/2 - Nem outros funcionários?
R - Alguns sim, né? Mas assim, de onde está vindo a gente já não sabe mais, porque antes a preocupação era… A gente faz a Linha Ásia, então tinha muito preocupação em falar com a tripulação, porque infelizmente a nossa Anvisa é bem falha em relação à conferência das coisas, tanto é que já entrou navio com tripulante com covid em uns três, quatro navios. Quer dizer, parou na barra, a Anvisa checou, quando chegou aqui o comandante falou: “Olha, estou com um tripulante doente”, já não tinha nem que ter entrado, tinha que ter ficado lá, na quarentena na barra esperando, então a nossa preocupação era essa, porque a gente tem contato direto com a tripulação o tempo todo. Mas eles também estão se cuidando como podem, tá indo, cara. Os cuidados acabaram mudando um pouco em casa, mas confesso que já está um pouco mais relaxado. No começo não tirava sapato dentro de casa, chegava, uniforme já direto… Às vezes já tirava a roupa meio que no corredor, na porta, para já colocar tudo para lavar, mas estamos indo, graças a Deus lá não parou.
P/2 - E acho que a gente já está indo meio para as perguntas finais, queria saber como é o seu relacionamento com o Bruno… Hoje ele já é um homem, né?
R - Meu relacionamento com o meu filho é bem de amigo, o que acaba, às vezes, se perdendo um pouco, porque ele se vê mais como meu amigo do que como meu filho. A falta de uma figura masculina é muito… A figura masculina, na criação de uma criança, é muito importante, por mais que algumas pessoas achem que não, “sou mãe solteira, não preciso de homem”. Cara, não é precisar de homem, é precisar da figura masculina para exemplos, para conversas, e isso faltou muito na criação com o Bruno, porque o meu avô faleceu, meu pai se ausentou, o pai do Bruno, sem palavras pra ele, e aí foi seguindo só eu, nesse mundo masculino, que me coloca às vezes numa postura até grosseira com ele e às vezes isso se perde um pouco. Minha mãe, minha amiga. Ta falando comigo de uma forma: “Pô, o que é?”, tipo… Mas, eu sei colocar respeito na situação, e ele volta. E aí ele baixa a bola. Tem os conflitos, às vezes, mas ele é um bom menino, e eu sou uma pessoa legal também, então a gente se estranha, mas a gente se ama e estamos seguindo aí.
P/1 - Dentro dessa sua trajetória do Porto, você disse que teve esse momento de aprender a ser Conferente no cais, mas teve algum outro momento que você levaria para ilha deserta?
R - De lembrança, assim?
P/1 - Sim, de lembrança.
R - Cara, todos. Cada dia no Porto, cada dia no cais é diferente, cada trabalho é diferente. O mesmo navio que veio hoje, que vai vir semana que vem, ele está diferente, porque são… Eu não sei como explicar, mas é diferente… O mesmo trabalho não é o mesmo trabalho. O mesmo navio é trabalhado de forma diferente toda vez que ele vem, porque são outros contêineres, outros portos, outra configuração do desenho do navio, outra configuração de como o pátio está, a retaguarda, então como eu vou trabalhar, se está chegando carreta, se não está, é uma engrenagem tão louca que nada é igual todo dia, na verdade nunca tem um trabalho igual ao outro, e isso é encantador. Assim, eu sou fascinada pelo meu trabalho, sou encantada realmente pelo que eu faço lá. Parece bobo, tira caixinha, coloca caixinha, mas não é só isso, tem toda uma mágica naquilo tudo, naquela movimentação toda. E quando tu para pra pensar que você está recebendo insulina, que tu tá recebendo alimento, que é realmente um comércio internacional, é uma movimentação do mundo ali nas suas mãos, isso é mágico. Eu acho, eu acho incrível.
P/1 - E você tem algum sonho de vida, hoje?
R - Vamos descobrir isso mais para frente em terapia, porque isso é um dos problemas que me atingem hoje. Aí já é mais pessoal assim, eu dei uma estagnada em sonhos. Um deles eu vou realizar agora nas minhas férias que eu vou saltar de paraquedas e… Agora profissional, eu não sei. Eu não sei.
P/1 - É, de vida. Saltar de paraquedas.
P/2 - E como está a Ellen hoje em dia, em questão de relacionamento, de amor…?
R - A Ellen está solteira (risos), Ellen está bem solteira, tô bem comigo. É, não tem muito o que falar assim de relacionamento…
P/1 - E só fechando mesmo, mas que é uma pergunta… Tem um filme japonês que a pessoa quando ela morre ela só pode levar uma memória para eternidade, e aí eu queria te perguntar isso: se você pudesse de toda a sua vida que você descreveu todinha, lá do seu vô até agora, só levar uma memória… Se quiser até pensar assim, qual seria a memória, de tudo que você viveu, que você levaria?
R - Volto no meu vô. Volto na proteção, volto no que ele me trazia como gente, como amor. Eu acho que… Eu volto nele. Eu levo para todo o sempre. A minha base assim de amor. Acho que eu até me emocionei agora.
P/1 - E como foi contar a sua história?
P/2 - Pera aí, mas teve alguma coisa que a gente não te perguntou que você queira falar…
R - Não sei, tô me sentindo até despida aqui, de tanto que eu falei.
P/2 - Então, mas pensa se tem mais alguma coisinha que você queira deixar registrado, alguma coisa que a gente esqueceu de perguntar, importante…
R - Acho que não. A gente falou da minha trajetória profissional, da minha família, do meu filho… Acho que não.
P/1 - E como foi contar a história?
R - Está sendo emocionante, na verdade. Um resgate de coisas que eu já nem lembrava mais. É interessante até a minha vida, é legal ouvir ela num todo, eu acho que eu nunca parei para contar para ninguém, você não conhece alguém e fala: “Olha, senta aí, deixa eu te contar… Quando eu nasci, quando eu trabalhei, quando eu engravidei”. Normalmente você conta coisas pontuais e as coisas vão sendo descobertas aos poucos, em situações… Nunca tinha contado ela assim numa sequência. Talvez faltem coisas, mas… É bem interessante isso, é bem emocionante contar, ver a sua vida desse jeito, ela numa linha. É muito importante, acho, o que vocês tão fazendo.
P/1 - A gente agradece muito.
P/2 - E foi um prazer pra gente escutar.
P/1 - Muito, muito agradecido mesmo.
R - Louco isso, né?
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