Mestres do Brasil - Suas Memórias, Saberes e Histórias
Entrevista de Carlos Eduardo Rodrigues Sophia
Entrevistado por Winny Choe e Claudiana Coltrin
Rio de Janeiro, 29/09/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista OFMB_HV035
Transcrito por Vanuza Ramos
Revisado por Emilly Santos e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Carlos, pra gente começar, bom dia!
R - Bom dia, obrigado. É uma satisfação estar com vocês aqui.
P/1 - Eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - Eu me chamo Carlos Eduardo Rodrigues Sophia. O local de nascimento é aqui no Rio de Janeiro, foi em 1964, nove de outubro de 1964.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R - O meu pai se chamava Osmar Ferreira Sophia, já faleceu. E a minha mãe ainda é viva, graças a Deus, é Marciana Rodrigues Sophia.
P/1 – Você tem irmãos?
R - Tenho. Eu tenho duas irmãs vivas e tenho um irmão falecido, que é o Rogério.
P/1 - E me fala uma coisa, quando você era pequeno, os seus pais trabalhavam em quê?
R - Minha mãe era separada do meu pai, então eu só tive criação da minha mãe. Minha mãe era doméstica e até hoje é doméstica. Ela trabalha numa casa há 25 anos, trabalha com a mesma pessoa. Eu digo pra ela: "É, mãe, a senhora só vai lá no dia do pagamento receber e pronto." É uma irmandade que ela tem no trabalhozinho dela. Tem possibilidade de sair porque ela já é aposentada, mas por gratidão a essa pessoa que deu a mão a ela no momento em que ela mais precisou, ela se mantém lá até hoje.
P/1 – Me conte um pouco da sua infância no Rio de Janeiro.
R - Bom, é aquilo no início que eu estava falando com vocês. Eu nasci aqui no Rio, morei no Flamengo do meu nascimento até os cinco anos de idade. Morei com a minha mãe, porque a minha mãe trabalhava, era doméstica, trabalhava em casa de família no Flamengo. Acompanhei essa mudança do Flamengo, o aterro do Flamengo; vi quando eles aterraram o aterro, acompanhei esse...
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Entrevista de Carlos Eduardo Rodrigues Sophia
Entrevistado por Winny Choe e Claudiana Coltrin
Rio de Janeiro, 29/09/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista OFMB_HV035
Transcrito por Vanuza Ramos
Revisado por Emilly Santos e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Carlos, pra gente começar, bom dia!
R - Bom dia, obrigado. É uma satisfação estar com vocês aqui.
P/1 - Eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - Eu me chamo Carlos Eduardo Rodrigues Sophia. O local de nascimento é aqui no Rio de Janeiro, foi em 1964, nove de outubro de 1964.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R - O meu pai se chamava Osmar Ferreira Sophia, já faleceu. E a minha mãe ainda é viva, graças a Deus, é Marciana Rodrigues Sophia.
P/1 – Você tem irmãos?
R - Tenho. Eu tenho duas irmãs vivas e tenho um irmão falecido, que é o Rogério.
P/1 - E me fala uma coisa, quando você era pequeno, os seus pais trabalhavam em quê?
R - Minha mãe era separada do meu pai, então eu só tive criação da minha mãe. Minha mãe era doméstica e até hoje é doméstica. Ela trabalha numa casa há 25 anos, trabalha com a mesma pessoa. Eu digo pra ela: "É, mãe, a senhora só vai lá no dia do pagamento receber e pronto." É uma irmandade que ela tem no trabalhozinho dela. Tem possibilidade de sair porque ela já é aposentada, mas por gratidão a essa pessoa que deu a mão a ela no momento em que ela mais precisou, ela se mantém lá até hoje.
P/1 – Me conte um pouco da sua infância no Rio de Janeiro.
R - Bom, é aquilo no início que eu estava falando com vocês. Eu nasci aqui no Rio, morei no Flamengo do meu nascimento até os cinco anos de idade. Morei com a minha mãe, porque a minha mãe trabalhava, era doméstica, trabalhava em casa de família no Flamengo. Acompanhei essa mudança do Flamengo, o aterro do Flamengo; vi quando eles aterraram o aterro, acompanhei esse processo de mudança do estado do Rio de Janeiro. Aos cinco fui morar com um avô meu em Japeri, de cinco aos sete eu morei lá com o meu avô, quando ele ofereceu uma casa que ele tinha em Caxias pra minha mãe ir morar lá e tomar conta pra ele. De 1976 até a data de hoje e eu espero até minha morte ficar em Duque de Caxias.
P/1 - Me conte uma coisa: você falou que viu o aterro do Flamengo, como foi isso?
R - Ah, eu vi a construção. Eu via aquelas carretas chegarem com pedras, iam jogando, empurrando o mar pra trás, vinham com barro. Eu acompanhei aquele processo ali, quando passavam aqueles ônibus chifrudos ainda, que andavam por eletricidade. Foi muito importante aquele momento pra mim e acho que pra todas as pessoas que viveram essa década de 1960. Foi uma década marcante, hoje quem tem quarenta e poucos anos acompanhou isso e foi ótimo. Eu, graças a Deus, estava no momento certo, na hora certa.
P/1 – Por que você estava lá no momento certo? Era caminho?
R - Era caminho. A minha mãe trabalhava na casa de um senhor aposentado e quando ele vinha receber aqui no centro do Rio ele me pegava, passeava comigo, até pra aliviar minha mãe em casa, pra minha mãe dar uma faxina melhor na casa dele. A gente pegava um ônibus, ele vinha, pagava sorvete, querendo agradar a uma criança. Eu ia sentado na janela e ele ia me dizendo algumas coisas e eu absorvia; muita coisa se perdeu, o que eu mais gostaria se perdeu. Eu gostaria que a nossa mente fosse um pen drive e ficasse ali registrado pra sempre, quando a gente precisasse, fosse lá. Mas infelizmente não é assim, a gente, quando é criança, muitas coisas chamam a nossa atenção e fica um pouco do passado pra trás.
Eu lembro bem, me chamou bem a atenção essa construção do aterro do Flamengo. Eu estava passando na época, sempre passando ali e hoje em dia poder usar aquele espaço. Eu participo de maratona, a gente passa correndo ali e pra mim é um momento especial passar ali correndo, ver o que era e o que se transformou aquilo hoje.
P/1 - Como era lá antes de montar o aterro do Flamengo? Você lembra?
R - Agora você pegou um pouco pesado, porque era mar, era uma faixa de terra igual como Copacabana, mais ou menos. Não tinha aquela diversão toda. Eu acho que é um dos maiores parques de diversões do mundo, pelo menos na América Latina eu tenho certeza que ele é, de ar livre e tudo. Era uma faixa de praia normal igual a Copacabana e decidiram que ali seria um espaço ideal pra fazer um parque nacional para o pessoal usar, desfrutar. E deu certíssimo aquilo ali, até hoje funciona bem.
P/1 – Você lembra como era a sua casa?
R - Vamos voltar lá no Japeri, na casa do meu avô: não tinha luz, a gente comia naquelas latinhas de goiabada. Sobrava latinha de goiabada e o meu pratinho era aquilo. Era angu com quiabo, era forno a lenha, isso eu me lembro muito bem. Isso foi uma experiência de vida ótima pra mim. Era isso: forno a lenha, pegava lá minha comidinha. Meu avô tirava areia do rio Guandu, jogava em cima do caminhão e ia vender nas portas. Eu ia em cima do caminhão com os ajudantes, que eram os próprios filhos dele, meus tios. Vendia de porta em porta a areia, eu me lembro muito bem.
Quando eu fui pra Caxias, a casinha lá em Japeri era de palha, aquelas casinhas bem simples, quase de índio. Uma situação horrível, não tinha banheiro, as pessoas se viravam lá no meio do mato. Já em Caxias não, eram casinhas de tijolos, com tijolos de telhas francesas, como se falam. Fomos morar ali. Só que atrás da nossa casa passa um rio chamado Canal Caboclo. Esse rio, às vezes chovia muito e ele invadia, a água invadia essas casas, até de quem morava junto com a gente. A gente não sabia disso; falavam que enchia, mas a gente não tinha noção do quanto enchia. Quando criança, fomos morar lá e os poucos bens que a minha mãe tinha, nessa enchente a gente perdeu tudo. Até um cachorrinho nosso veio a falecer, porque a gente nunca tinha visto aquilo. Eu era criança, sete anos, minha mãe só me pegou e fomos para a vizinha. Quando a gente voltou no outro dia, mais cedo, a casa estava cheia de lama, o cachorro falecido e a gente estava num zero danado. A gente viu que não tinha. Eu com a minha mãe - ela olhou pra mim, foi difícil ver a casa naquela situação. A minha mãe falou: "A gente vai conseguir tudo de novo." E ela foi à luta como faxineira na casa dos outros e sempre me ensinou o caminho do bem, pra não pegar nada de ninguém porque a gente ia sair daquela situação.
Lembro que em seguida veio o Natal, sempre em época de dezembro é horrível. Veio o Natal, a nossa mesa [foi] uma mesa bem paupérrima. Na casa dos coleguinhas que eu já tinha feito tinha coca-cola, tinha rabanada e na nossa tinha um pão e uma garrafa de café e era eu e meu irmão na época, porque a gente tinha uma irmã que não morava com a gente na época, morava com a nossa avó aqui no Rio, no Grajaú. A minha mãe só tinha dinheiro para um presente, um carrinho de plástico, eu lembro até hoje, um bugrezinho. Ela falou: "Filho, você entende mais, seu irmão não entende muito." Meu irmão Rogério tinha uma diferença de quatro anos de mim. Eu falei: "Não, mãe. Pode dar o presentinho pra ele, não esquenta a cabeça comigo não." Peguei o presentinho, passei pro meu irmão. Ele brincou, brincou, foi dormir e eu fiquei ali, aquela coisa toda, lembro disso até hoje. Mas eu botei na minha mente que nunca mais ia passar um Natal daquele, que o que eu pudesse fazer pela minha casa, pela minha mãe, com certeza eu, até os meus últimos dias de vida, faria, como estou fazendo hoje.
P/1 - Então lá em Duque de Caxias tem esse problema de inundação no final do ano?
R - É, tinha. A gente foi crescendo, arrumando trabalho, arrumando dinheiro, fizemos a contenção. Foi gastando uma grana violenta para fazer aquela contenção de muro, porque não adiantava só fazer o meu, o meu vizinho também não tinha, então eu coliguei com o vizinho da esquerda e com o vizinho da direita. Fiz um murão, gastei uma grana que me deixou meio sem verba, mas fizemos o muro. E graças a Deus, hoje em dia nem eu e nem meu vizinho sofremos com a enchente, beneficiou os dois lados.
P/1 - Eu vou voltar um pouquinho: Primeiro você morou no Rio, depois foi pra Japeri, Duque de Caxias. Eu queria que você me contasse das lembranças das mudanças que você teve de cidade. Quando você foi morar com seu avô, por exemplo, você lembra?
R - Foi um choque. Criança, acostumado a descer de elevador, subi de elevador e ter Natal em que ganhava um presentinho bonito. Lembro de uma ambulância que o patrão da minha mãe me deu, uma ambulância muito bonita. E pra Japeri, eu voltei à pré-história. Não tinha nada; eu me assustava com aquilo, não tinha banheiro. Mas você vai, com a juventude e com as outras crianças, vai aprendendo. A própria criança te leva, te dá a mão e te ensina como deve fazer. E foi assim, saí, tipo você sair de uma cidade de primeiro mundo e voltar para a África do Sul, não tem acesso a nada. E lá é sofrido de tudo, carece de tudo.
Eu lembro de uma vez em que meu avô moeu o milho: pegava o milho, debulhava, botava numa bacia e socava, tipo índio. Aquele pozinho eu tinha que levar a uma distância de uns dois quilômetros para trocar por pão. Eu chegava na venda, trocava aquele saquinho de milho moído por dois pães ou meia dúzia de pães, não lembro bem. Levava pra casa, meu avô cortava, a gente comia e saía pra rua pra entregar areia. O negócio da família era a areia.
Meu avô era um homem de bastantes terras ali, mas não tinha muita instrução, coitado, tomaram tudo dele. O governo veio, tomou as terras dele e fez uma escola. Essa escola existe até hoje em Japeri, achei legal uma escola de segundo grau, forma cidadãos ali. E um pedaço da outra metade ficou pra família. A família fez lotes, vendeu, deu pros tios e essa de Caxias ficou pra minha mãe. Nós tomamos posse lá, é minha, da minha mãe, a gente tomou conta disso. Mas a situação é essa: sair do Rio de Janeiro em 1969, ir pra Japeri em 1970 é uma coisa que espanta qualquer criança nesse sentido. Eu me senti um índio, voltei um índio: não tinha chinela, não tinha nada. Mas foi legal, foi importante, eu acho que tudo na minha vida foi importante.
Caxias, Japeri, voltamos pra Caxias. A minha mãe conseguiu um trabalho de novo numa outra casa de uma senhora. Essa senhora, eu podia ficar um tempo, em Copacabana, na Rua Duvivier. Fui morar com a minha mãe. A minha mãe falou: "A gente vai ter que voltar para Caxias. Seu irmão fica, uma senhora toma conta dele e a gente vai pra Copacabana. De quinze em quinze dias a gente vem em casa ver como está a situação de seu irmão." Estava difícil a situação, ou a gente fazia isso ou... Eu não sei o que a minha mãe ia fazer, com sete anos eu imaginava a situação dela. Hoje eu imagino o que ela passou. Então ela abdicou de muitas coisas por causa dos filhos.
Ela me chamou num canto, eu tinha dez anos: "Olha, você vai ter que ir pra Copacabana comigo morar lá. Você não pode mexer em nada, você não pode... É casa dos outros, meu filho." Como eu já tinha uma experiência do Flamengo, ela me levou. E meu irmão, uma moça tomava conta dele. Uma moça que morava lá, eram sete casas nessa vila que nós morávamos. Mas por encher, a casa ir caindo, o pessoal ou não pagava o aluguel ou... Porque era tudo de meu avô, a gente ia receber o aluguel, mas a casa enchia, ninguém queria pagar nada. Perdiam tudo e não queriam pagar nada. A gente dava sorte de estar no nosso espaço ali.
Fomos morar lá. Foi uma experiência de seis meses ficar em Copacabana. Então eu saí de Japeri, daquela coisa toda de índio, voltei pro mundo moderno de novo. O patrão dela: "Ah, adoro criança." Eu tinha dez anos, ele me pegava, me levava para a Praça do Lido, no Posto Dois, em Copacabana. Foi onde eu conheci o meu Rio de Janeiro, passeava por tudo ali. Ele comprou um bom short pra mim na época, eu adorava aquele short. Tenho até uma foto com esse short, eu, meu irmão e um coleguinha. Vou trazer a foto para vocês verem. Eu esqueci hoje de trazer, mas eu vou trazer a história desse short.
Eu ia para a praia, conhecer aquele marzão bonito, então eu já tinha a cabeça mais formada. Aí ela falou: "Bom, ano que vem você vai estudar." Até os dez anos eu não tinha… Pulava de um colégio pra outro. "Mas aos dez anos você vai ter que ficar em Caxias para estudar." E foi o que aconteceu. Na minha época você entrava com sete anos de idade na escola, como pobre, a não ser que você tivesse jardim. E começava no primeiro ano, diferente de hoje, [em] que muitas escolas você já entra no prezinho. O município já dá essa oportunidade, na minha época não tinha essa oportunidade de você entrar no prezinho pelo município.
Com dez anos eu fui embora. Fui estudando, estudando, [até] hoje em dia. A última escola que eu estudei foi a Norma Topper, onde eu também trabalho como coordenador. Quando tem eleições, quem bota as urnas nessa escola sou eu. Sinto a maior satisfação de chegar lá, botar urna num colégio onde eu estudei. Eu vi nascer aquela escola ali. Ela também tinha problema de enchente, mas fizeram um jeito, botaram contenção e essa escola não é mais invadida pela água. Então, quem mora na beira de rio, nesses canais… É complicada a situação desse pessoal.
P/1 – Carlos, o que você gostava de fazer nas suas brincadeiras de infância?
R - De infância, pique lata, me lembro muito bem. Na Rua Antonio Davi juntava a equipe da Antonio Davi com a [equipe da Rua] João Montilho, arrumava-se uma lata de óleo, antigamente. Hoje em dia é mais difícil ver a lata de óleo mesmo, hoje em dia é plástico, pet. Botava a lata num canto, uma lata de outro, juntavam quinze daqui, quinze de lá e jogava a lata. Um cara ia pegar a lata e enquanto esse camarada ia pegar a lata os outros iam se esconder. As vilas dessa rua, Rua João Montilho, davam acesso para outra rua, a Henrique Valadares. A gente entrava no meio daquelas vielas ali, se escondia, era o maior barato. Nessa Rua João Montilho tinha uma feira às terças-feiras, uma feira muito bonita, muito grande, era a rua toda. Eram mais ou menos 300 metros de rua: começava pelo peixe, era peixe, verdura e tal... Na segunda-feira à noite eles já botavam umas caixas de legumes. À noite mesmo a criançada ia lá, pegava laranja, pegava não sei o que; o vigia brigava com a gente, mas não tinha jeito. Segunda-feira era o dia da nossa feira, à noite. Encostou o caminhão, deixava as caixinhas de laranja. A gente pegava laranja, pegava não sei o quê mais, era isso. Inclusive o vendedor de suco lá da feira, ele pegava água no poço da minha casa. Ele pegava água no poço, botava no suco de maracujá e vendia na feira. E o suco ficava gostoso, até eu bebia. (risos)
P/1 - Você se lembra de alguma história dessa feira, de brincadeiras de amigos?
R - Então, é isso que eu estou te falando. A gente pegava na segunda-feira, quando chegavam os caixotes. A gente fazia uma fogueirinha, pegava lá o milho, a batata doce, botava lá, aquecia e ficava lá até às onze, doze horas na rua.
Até hoje em dia o pessoal que mora lá é tudo antigo, tudo da minha época mesmo. Eu tenho muitos colegas bacanas. Umas viram importantes, outras nem tão importantes assim, outros colegas perderam a vida através da violência. Mas o importante é que a maioria, de cem moradores, uns 85% ficaram. Isso é muito bom, você sair na rua e encontrar um vizinho de 25 anos, você saber que está [lá]. É legal morar nessa comunidade. Eu não me veria, mesmo com todo dinheiro do mundo eu não sairia do meu bairro. Eu acho muito legal, mesmo com as enchentes lá no fundo da minha casa, eu não sairia. Não troco aquele meu pedaço de Amazônia por lugar nenhum mais. Chega num ponto que a raiz está...
Já andei muito. Morei em São Paulo, morava no Tatuapé em São Paulo em 1984. Fiquei de 1984 a 1987. Uma prima minha era casada com um espanhol; ele tinha uma loja, vendia coisas contrabandeadas no centro de São Paulo, na Rua Comendador Afonso Kherlakian, no terceiro piso. O nome da loja era Sarrulhos. Eu estava sem emprego no Rio, fazia uns biscates aqui. Minha prima falou: "Se você quiser vir pra cá.” Era a época de Natal. “Se quiser fazer um extra aqui." Aí fiquei o Natal, fiquei janeiro, fevereiro… Fiquei um ano com eles lá e foi bom, uma experiência ótima em São Paulo. Conheci muito o centro de São Paulo, conheci Tatuapé, Brás, Belenzinho, aquela área de centrão onde o metrô passava, eu conheci tudo. Eu andava um pouco a pé. Às vezes no domingo, quando eu não vinha pro Rio, eu ficava andando, tentando conhecer o bairro melhor. Eu poderia ter aproveitado melhor, mas tudo que eu conheci pra mim foi ótimo, de experiência.
P/1 - Eu vou voltar um pouquinho no tempo, mas depois você me conta mais sobre São Paulo. Eu queria saber de quando você chegou a Duque de Caxias, que você foi lá pra estudar com dez anos. Como era Duque de Caxias?
R - Duque de Caxias, muito bem. Essa rua do colégio Norma Topper, que foi o primeiro colégio que eu fui, esse colégio é estadual e era barro. A rua era… Não lembro o que era. Era terra batida, vamos dizer assim, e ao lado o rio. Você tinha uma faixa de rua de mais ou menos dez metros e ao lado o valão que cortava. Ele cortava o município todo: ele vem de São João, atravessa Duque de Caxias, sai lá no rio Meriti, que é divisa de Caxias com o Rio de Janeiro, já sai em Vigário Geral.
A rua do colégio era batida de barro, tinha uma porteirazinha antes de chegar à escola e os alunos ficavam ali aguardando o sinal. Tinha um vendedorzinho de tudo, balas, algodão doce. Minha mãe me levava no início, depois eu aprendi o caminho, ia sozinho com os colegas. Tinha boa merenda na época nas escolas.
Tinha o projeto da hortazinha na escola. Cada sala tinha a sua horta no fundo da sala: a gente cuidava da nossa horta, arrancava da horta, incluía na merenda. Uma vez teve um projeto nessa escola. Eu era bagunceiro à beça, então a professora, em qualquer evento, queria me acalmar, de qualquer jeito. Teve um projeto de escrever historinhas, eu escrevi uma história e tirei em primeiro lugar da sala. Depois eu tirei em primeiro lugar do colégio, uma historinha que eu montei de uma coisa de lobisomem, uma coisa assim. Fantasiei legal, uma coisa de criança e por algum motivo eu tirei em primeiro lugar e fiquei muito conhecido na escola nesse evento. Foi importante isso pra mim também.
P/1 – Você gostava de ir para a escola?
R - Gostava, sinceramente, eu gostava. Gostava muito de ir pra aula, achava que lá ia ter convivência com meus amigos. É uma coisa bacana até porque a maioria dos colegas que era da sala era da rua também. E tinha esse colega que morava na rua da feira. Em frente à casa dele era uma barraquinha de peixe, quando era na quarta-feira era peixe que ele levava pra merenda dele. Aquele peixe frito, ele pegava naquele peixe. Antigamente as carteiras eram juntas, não eram separadas igual hoje. Aquela cadeirona de madeira, aquele banco ripado de madeira, você sentava ali e o coleguinha do lado. E ele levava aquele peixe, ai meu Deus, quando ele levava aquela sardinha pra comer, depois ele pegava no material, a mão suja… Ai, meu Pai. Eu falo isso com ele até hoje e ele lembra, a gente ri muito dessas situações que a gente passava como aluno.
P/1 - E na escola você falou que aprontava muito. Você se lembra de alguma coisa que você tenha feito, uma história lá dentro?
R - Vira e mexe, eu estava na secretaria por bagunça na sala. Vira e mexe, a professora... Quando ela saía porque tinha que fazer alguma coisa na secretaria, ou ela me mandava ou ela falava: "Olha, Carlos Eduardo, toma conta da sala, quem fizer bagunça, você me fala." Eu sentava logo na cadeira dela, me sentia o professor. Ficava implicando com as crianças: “Oh...”, era mais ou menos assim.
Eu lembro que tinha que cantar o hino quando a gente entrava, hasteava a bandeira. Eu era doido pra hastear aquela bandeira, mas nunca chegava a minha vez, só iam os mais comportados. Eu sempre ficava por último, mas uma vez chegou a minha vez. Eu hasteei a bandeira cantando o hino. Foi importante aprender o hino, o hino da bandeira. Toda semana a gente cantava o hino, pelo menos duas vezes por semana, como voltou essa norma agora. Até nos colégios onde eu estou fazem isso também.
P/1 - Você se lembra de alguma professora ou professor, uma aula interessante que tenha te marcado?
R - Eu tive uma professora, ela é minha vizinha agora e era de Geografia. Enfim, ela mandou desenhar um mapa e eu desenhei um mapa do meu jeito, eu achava que o mapa... Eu não lembro qual era o estado que era pra desenhar. Ela chamava cada aluno na frente e ia corrigindo o dever: "Cada um traz seu caderno aqui pra corrigir." Quando chegou a minha vez ela olhou o mapa, pegou meu caderno, olhou para a minha cara: "Vem cá, isso aqui é um mapa?" Eu falei: "Foi o melhor que eu pude." "Isso aqui parece um pirulito." A classe caiu na risada, me esculhambou; eu achei que uma professora não devia ter feito aquilo. Mas, com certeza, no interior dela, ela deve ter colocado na consciência que não poderia ter exposto uma criança àquele ridículo. Era criança, aceitei, ela me deu um belo de um zero e eu fui tentar melhorar aquele desenho que eu tinha feito. Não ficou do contento dela, tentei depois melhorar, mostrei outra vez e ele me deu um cinco e meio ou quatro e meio na época. Mas eu me esforcei pra fazer o que ela queria.
P/1 – E fora da escola, nessa época em Duque?
R - Eu lembro que eu queria arrumar dinheiro de qualquer jeito, queria tirar minha mãe daquela situação que ela vivia, era horrível. Eu achava… Hoje em dia compreendo que a gente tem uma vida melhor do que muitos outros que estão passando pior do que o que a gente passava naquela época. Mas eu lembro bem que eu queria fazer um dinheiro, eu não queria depender de minha mãe de nada, mesmo com dez anos. Então, quando aparecia qualquer coisinha que fizessem, um serralheiro que ia botar uma porta, eu estava acompanhando essas pessoas. Segurava, pregava e ganhava meu dinheirinho.
Eu me lembro de uma época que eu ganhava muita revista, gibizinho; “Recruta Zero”, lembro bem, eu ganhava muito aquilo. Peguei aquilo e falei: "Vou fazer dinheiro com isso aqui." Pegava aquelas revistas do Recruta Zero e botava no portão da minha casa pra vender. Nem tinha portão na minha casa, tinha um muro, um espaço aberto; quem quisesse, entrasse, quem quisesse, saísse. E para chegar à minha casa era baixo, era um terreno bem baixo, mesmo. Hoje em dia, graças a Deus, a gente foi aterrando, então ele está quase no nível da rua. Eu botava aquelas revistinhas velhas lá no portão, vendia por cinquenta centavos, tipo cinquenta centavos hoje em dia. Os coleguinhas chegavam, olhavam.
Quando não dava mais a revista, eu montava casinha de bombinha pra vender bombinha, estalinho, aqueles negócios. Eu sempre inventei alguma coisa para ganhar dinheiro e faço isso até hoje. Hoje em dia eu trabalho com uma locadora; tenho um espaço aberto, o outro lado da loja eu alugo, uma pessoa bota docinho lá pra vender.
Isso está no sangue, acho que aprendi com o meu avô. Ele vendia terra, pegava terra e vendia de porta em porta. Eu acho que eu peguei essa coisa de negócio com o meu avô.
P/1- Como era essa venda de areia? Vocês acordavam de manhã, subiam no caminhão...
R - Exatamente. Seis horas da manhã, o dia escuro ainda. O meu avô, não precisava nem chamar. Os meus tios já levantavam, se eu estivesse acordado eles me levavam, se não deixavam até eu dormir, mas eu sempre estava acordado. Tomava café, batata doce ou inhame, jogava um melado em cima. Aquele café feito naqueles fogões de barro, tomava um cafezinho e ia embora, montava no caminhão.
Na época, pro caminhão andar você tinha que dar corda. Você ia à frente rodar um negócio; ele: “BA-TUM-TUM-TUM-TUM”, aí pegava e tinha que rezar pra Jesus pra ele não morrer. Montava todo mundo na caçamba do caminhão, meus tios e tinha outro tio que dirigia. Íamos lá para a beira do rio. Chegava à beira do rio, pegava aquelas pás e ia jogando areia pra dentro do caminhão. Enchia o caminhão, ia pra casa do cliente, despejava na casa do cliente, depois voltava.
Esse areal era dentro do terreno do meu avô. Era um terreno muito grande, hoje em dia foi feito uma escola estadual e ficou lá um pedaço. Nesse pedaço ele aproveitava, tinha plantação, tinha tangerina; tudo quanto era fruta que você imaginasse tinha dentro desse espaço do meu avô. E aquilo pra mim era um mundo, uma Amazônia, eu, uma criança...
Quando eu fui pro meu terreno lá em Caxias, aquilo pra mim era… Eu me perdia lá dentro. Hoje em dia eu vejo que não é assim como eu pensava. É tão pequenininho, dá três passos, já está finalizado. Apesar de ele ter 63 metros de comprimento, eu achava que era um mundo, um mato. Eu pensava: "Meu Pai, o que eu vou fazer pra melhorar isso aqui?" Era tudo fundo, as casas eram velhas, eu achava que um investimento ali era de milhões. Eu não tinha... [Era] uma criança, o que eu ia fazer? O que minha mãe ganhava era só para manter a casa. A gente foi criado só pela minha mãe, eram dois irmãos, depois vieram um total de quatro irmãos, ficou feia a coisa. Eu lembro que minha mãe saía, eu fazia o arroz. Eu queria sempre modernizar: pegava o arroz, ela deixava a medida, eu só tinha que botar a água e mais nada, mas eu não me contentava só em botar água, eu ia na geladeira e via o que tinha para eu incrementar aquele arroz. Pegava goiabada, picava, botava no meio do arroz, mexia, era arroz com goiabada! E os irmãos: "Ah! não vou comer isso assim." "Se não comer vai apanhar." Tinha que comer aquele arroz assim mesmo. Eu aprendi a fazer, lembrei do angu lá.
Com dez anos eu já devia ter uma prática de alguma coisa, mas eu nunca tinha mexido em fogo direto. Comecei mexer a partir do momento que a minha mãe precisou trabalhar e eu ter que ficar na casa. Fiz… Como é que é? Fiz o mingau de fubá. Peguei a água, botei uns três copos d'água numa leiteira, botei o fubá, fiquei mexendo, fogo baixo. Água, açúcar e fubá, só. Comemos meio dia, falei: "Que gostoso." Não queria outra vida: todo dia de tarde, chegava da escola, ligava uma televisão bem velhinha, preto e branco que a gente tinha ganhado, ia ver meus programas de televisão com fubá. Quando eu não saía e entrava nesse rio que dava nesse valão - quando a gente foi era até mais limpinho, hoje em dia, não tem como - entrava nesse rio e fazia… Hoje em dia se fala reciclagem. Que nada, eu catava era lata velha mesmo. Entrava no rio, catava lata velha, vidro, juntava numa bolsa, ia ao ferro velho e vendia. Pegava aquele dinheiro, chegava em casa, tomava um banho, me limpava e ia à padaria. Comprava umas cavacas - eu gosto de cavaca até hoje, ou de milho ou de chocolate. Comprava, levava pra casa, a gente rachava. Era uma festa quando tinha aquilo.
P/1 – Então você cuidava dos seus irmãos?
R - Cuidava de três irmãos, duas meninas e um menino, Rogério, que já não está mais com a gente.
P/1 - E essa mata, vocês brincavam muito nela? Você lembra como foi quando vocês começaram a descobri-la, andar nessa mata atrás da casa?
R - Em casa, quando eu cheguei, tinha um pé de amora. Tive que arrancá-lo para construir a minha casa, mas automaticamente já plantei um do lado. Eu tirei, mas eu sempre tive essa consciência de que se você tira um, planta dois, no mínimo. Então, realmente, é um matagal desgramado. Um tal de capim barbante, que eles falam; é ruim de tudo, aquilo sobe numa casa, acaba com a casa. E pra uma criança, como ia capinar aquilo? Minha mãe não tinha dinheiro pra capinar, eu fazia o que podia.
Minha mãe, aos domingos, quando estava em casa, arrancava aquelas moitas. Eu arrancava com ela e jogava fora. [De] planta, árvore frutífera, só tinha o pé de amora, uma mangueira, um pé de mamão e uma coisa que serve pra inflamação, eu esqueci o nome agora aqui no momento. Só esses pés de árvore que tinha lá em casa, mas tinha espaço pra muito mais. Se eu tivesse alguém na minha idade de pequeno que me dissesse: "Vamos plantar essa árvore aqui porque no futuro você vai comer." Mas ninguém falou nada comigo também, eu não plantei nada. Quando eu tive a consciência, a partir desse momento eu plantei. Hoje em dia a gente tem bastante fruta no quintal, graças a Deus. É bacana eu ver minha filha ir lá no pezinho de amora, arrancar a amora e comer. Ela soca, faz ‘sucozinho’ de amora e comem entre elas, é uma brincadeira legal que elas fazem.
P/1 – Tinha bichos nessa mata?
R - Não, bicho só passarinho tradicional, que vai lá comer a frutinha.
Eu lembro quando chovia, que a maré subia e trazia tudo quanto era lixo. Quando ela descia, [por] dois, três dias ficava aquele lamaçal que você não podia nem ir lá nos fundos; pisava, escorregava naquele lamaçal. E vinha na água, a água trazia muita coisa. Eu me lembro de ter visto uma cobra uma vez. Fui mexer numa pedra e quando tirei a pedra, levei um susto: tinha duas cobras enroladinhas, filhotinhos. Saí correndo, não queria voltar naquele lugar mais. E perereca, sapo… Era demais ali, [quando] a gente olhava estava lá, cheio de sapo. Hoje em dia não tem mais, por causa da contenção.
Tem um pé de tamarindo lá antigão, mais velho do que eu, [tem] mais de quarenta anos aquele pé de tamarindo. É um berço ecológico: as aves vão lá, reproduzem, são até avós as aves. Ele está preservado, eu preservei bem aquele tamarindo lá.
P/1 – Dava para pescar no rio?
R - Quando eu cheguei lá, os vizinhos do lado, uma senhora chamada Dolores, falava que pegava camarãozinho branco porque a água era transparente, lavava-se roupa nesse córrego. Eu cheguei a pegar uns peixinhos, peixinho de vala que falam. Eu pegava numa latinha, achava bonito. Botava num potinho de maionese, de vidro, ficava na estante. Eu olhava, em três dias o peixinho morria, eu jogava fora e
pegava outro. (risos) Coisa de criança mesmo. Era isso.
P/2 - Você falou da redação que você escreveu e que ganhou, que foi uma história sobre lobisomem.
R - De fantasma, lobisomem.
P/2 – Vocês escutavam muito essas histórias?
R - Não, realmente. Pra ser sincero, eu não sei de onde eu tirei. A imaginação era tudo, porque a redação foi pedida assim que a gente veio de férias. E lá no meu avô, lá em Japeri, eu lembrava que de noite, naquele barraco de madeira, tinha aqueles pés de bananeira e o meu tio falava: "Olha, não sai de noite, não, que aí tem bicho fantasma, lobisomem, não sei o quê..." Eu acho que foi dali que eu tirei, que montei uma coisa, uma história que as crianças dali nunca tinham visto. Tinham visto coisas que eu estava passando pra eles através do papel; fiz eles entenderem o que eu tinha visto lá, acho que foi isso que conquistou o pessoal. Fiz eles sentirem um pouco do que eu tinha sentido lá na pele, acho que eles se interessaram por isso.
P/1 - Essa primeira escola que você estudou, você estudou até quando?
R - Lá no Norma Topper eu fiz até o ginásio. Depois eu fui pro lado, que era também um colégio estadual, o Duque de Caxias. Lá eu fiz o segundo grau, formação geral, fiquei lá.
P/1 – Me conte como foi quando você mudou de escola.
R – Difícil, porque o Norma Topper não tinha Educação Física até o quinto ano. Era obrigação do Estado; apesar de ser uma escola estadual, a gente não tinha Educação Física. Quando chegou no Duque de Caxias, teve Educação Física. Eu acho esse método… Por isso que eu falo a vocês, no início eu falei que como professor de Educação Física, eu acho errado. Eu acho que a criança, já ao chegar na escola, deve ter o conhecimento da educação física, a bola... Para ele definir o que ele quer. Não adianta você pegar um jovem de dez anos e querer que ele seja um superatleta, isso vai complicá-lo no futuro. Chegou na escola no prezinho, já vai identificando aquela criança. Tem que ter uma pessoa de olho também pra isso, não adianta ser um qualquer. Tem profissional e profissionais, então você tem que entender a necessidade daquele aluno.
Eu me senti perdido porque Educação Física. Eu, já com quatorze, quinze anos, eu lá queria saber de Educação Física? Eu nunca tinha ouvido falar de Educação Física na minha vida! Eu via quando era meu tio, meu tio era atleta, mas o meu contato com meu tio, depois que ele faleceu, eu perdi.
Primeira aula com Educação Física, fazer polichinelo, aquelas coisas todas que criança não gosta, eu era um. Não tinha roupa, minha mãe não tinha dinheiro pra comprar o uniforme de Educação Física, tinha que ter tênis adequado, não sei o quê. E os colegas: "Oh, o professor botou zero em você, tu não foste na aula hoje." Eu: "Não, eu não estava muito bem." Eu sempre inventava uma desculpa. Mas que nada, eu não tinha um dinheiro pro uniforme de Educação Física. Hoje em dia até os governos dão, mas na minha época era complicado.
Eu andei de conga até aos quatorze anos, não tinha dinheiro pra comprar um kichute, era o pretinho. Quando eu ganhei um kichute, caramba! Era a coisa mais bacana da minha vida. Nos meus passeios de final de ano, eu ia pra Japeri, voltava pra Japeri pra dar um passeio pela região. Botava o kichute no pé e ia embora pra Japeri, me sentia todo satisfeito com o kichute no pé, o dinheirinho da passagem.
Até os quatorze anos eu usava conga. Uma vez lançaram um tal de Allcolor, que era um pouquinho melhorado do que a conga. A conga também era azul, azul com duas listrinhas, azul e vermelha ao lado. Hoje em dia parece até aquele Batoré do “A Praça é Nossa”, os alunos pareciam aquilo. (risos)
P/2 - Então foi só a partir dos quatorze, quinze anos que você teve a primeira aula de Educação Física?
R – Que eu tive contato com a Educação Física em escola.
P/2 – No primeiro momento foi difícil para você? E como aconteceu?
R – Foi horrível. Fui reprovado em Educação Física.
P/2 – Como aconteceu essa identificação?
R - Foi horrível, porque eu não sabia o que eu queria. Um jovem com quatorze, quinze anos: "Vai. A quadra é tua!" Eu estava perdido naquilo ali, além de não ter uniforme também me travou e os coleguinhas todos com uniforme, a maioria, as meninas lá. Eu me sentia envergonhado de não ter o uniforme. As menininhas bonitinhas - eu achava as menininhas bonitinhas da minha sala, já estava pensando em namorar e tudo, e você não ter uniforme e ir de conga. Ninguém queria namorar com uma pessoa de conga. (risos) Era difícil eu naquela situação.
Na reunião de pais a maioria dos pais iam, no dia dos pais todo mundo arrumava um presente pro pai e eu não tinha pra quem levar o presente. Eu levava pra minha mãe, minha mãe foi sempre o meu super herói: "Mãe, presente do dia dos pais." Era conjuntinho de pente, caixinha de fósforo, lencinho. Ah, o que minha mãe ganhou de presente do dia dos pais! Uma vez, até adulto, numa palestra que eu dei, eu falei sobre essa história de não ter pai, mas ser um cidadão do bem. Eu acho que me tornei um cidadão do bem - antes de tudo, apesar dos pesares, eu sou um cidadão do bem. Eu tento passar isso aonde eu vou, em qualquer lugar onde eu esteja no Rio de Janeiro.
Hoje em dia, graças a Deus, eu conheço o Rio de Janeiro bem, muito bem mesmo. Pelo menos essa parte, como se fala, de beirada de praia, de Grumari, vamos dizer assim - eu venho de Grumari e vou até… Como é o nome daquela praia de onde sai o Galeão? Ilha do Governador. Eu sei te falar os pontos turísticos desses pontos todinhos, até porque a gente faz a maratona, a gente corre isso aí tudinho. Já trabalhei na Estrada do Juá. Estava até falando com alguém aqui que a visão que vocês têm daqui, estão tendo ali pra enseada de Botafogo, empatou com a que eu tinha quando eu trabalhava lá na Estrada do Juá em São Conrado.
Eu era funcionário, quando eu entrei era chamado Cassino Royale, depois ele foi modificado pra Titanic. Até hoje em dia, se você passar lá está aquele formato do navio, mas assim como o Titanic, ele também veio a falir. Isso com dezoito anos de idade, eu estava lá trabalhando nesse Titanic e infelizmente faliu, era uma coisa muito bacana. Quando comecei eu alugava pista de boliche. Até aquele Kadu Moliterno, André di Biasi alugavam. Toda segunda-feira eles estavam lá alugando pista de boliche comigo, eu alugava pra eles. Eu conheci muita gente famosa ali de televisão, na época era o tal da “Armação Ilimitada”. Eles acabavam de gravar, iam pra lá jogar boliche. Depois fui promovido, eu era ascensorista de elevador. Eu subia num elevador chamado Lacerdinha. Tem o Lacerda na Bahia, então fizeram um modelo dele aqui pra subir o pessoal da festa da Rádio Transamérica. E eu era o ascensorista, qualquer festa que tinha o elevador. Só podiam subir quatro pessoas. Depois fui promovido, fiquei gerente de um restaurante que tinha na parte de cima. Todo domingo tinha feijoada deles lá. E eu era gerente, comandava tudo: os garçons, as cozinheiras.
Infelizmente, não sei se foi a administração… Não me lembro bem o que foi, eu sei que num momento falaram: "Carlos Eduardo, segunda-feira você não precisa mais vir." E acabou. "Titanic" está encerrado. Poxa, aquilo deu uma dor no meu coração, tirei até fotos na última corrida que eu fui. Fiz questão de chegar mais cedo e subir a estrada de lá, que era uma maravilha. Subia e descia correndo pra praia, quando trabalhava lá. Só vinha em casa uma vez na semana. E, rapaz, me deu uma saudade de ver aquilo tudo abandonado. Aquilo está abandonado. Acho que um empresário deveria mexer naquilo lá, deveria comprar, porque está virando até favela. Eu acho que aquilo não merecia aquele fim.
P/1 - Carlos, antes de entrar na sua volta ao Rio de Janeiro vou lembrar um pouco mais de Duque de Caxias, do seu tempo de ginásio. Você estava lá, com quatorze anos, tinha dificuldade de ir pra educação física, pra aula. Tinha algumas coisas que não lhe faziam muito bem: você contou que foi no tempo que você começou a dar umas paqueras, conhecer umas moças, fazer novos amigos. Conte um pouquinho pra gente como foi. Tem algum caso de alguma historinha de paquera ou alguma coisa mais?
R - Tem. Na época tinha um drops - hoje em dia é Halls, hoje em dia é Freegells, mas na minha época, do pai de vocês também, deve ter chamado Dulcora, o nome do drops era chamado Dulcora. Era um mistozinho. E tinha uma menina na minha sala chamada Cora, aí eu completava: eu, Eduardo, com a Cora, dava Educora. Eu era aficionado pela menina, queria namorá-la de qualquer jeito. A mais bonita da sala, quem não queria namorar, né? O cara mais riquinho, que tinha grana e o outro mais “pobrinho”, que era eu, que não tinha nada, só tinha aparência.
Era um garoto até bonito. O pessoal me achava bonito, as professoras tinham simpatia por mim, minha aparência, mas tinha gente de grana e ela gostava do cara de grana. Na hora do recreio pagava um lanche pra ela, uma coisa. Eu nunca pude pagar nada, era difícil pagar alguma coisa pra ela. E quando tinha dinheiro ia à cantina do colégio e comprava o Dulcora. Falava: "Ó, comprei você, está vendo?" Aí dividia, dava a metade pra ela e ela aceitava. Ela ficava com a outra metade.
Tinha uma vizinha minha, Elizabete. A Bete, hoje em dia é casada, mora na João Montilho. E eu falava: "Pô, Bete, dá uma força lá. Vê o que você pode fazer. Fala que eu gosto dela."
Eu era muito acanhado, só vim me desenvolver mesmo depois que eu fui pra Forças Armadas. Até aos dezoito anos eu era um cara super acanhado. Eu não tinha expressão, não sabia me projetar pra o que eu queria. Eu queria aquela coisa, mas não sabia como. Só poderia conseguir aquilo através de alguém que pudesse me ajudar. Após os dezoito anos, não. A vida abriu outro leque pra mim e a gente... Graças a Deus. Mas era assim: na hora do recreio, até [já] adulto mesmo...
Quando fui fazer um estágio numa empresa aérea, você tem que prestar um curso antes, você não pode ir direto. E esse curso antes, é aquela história, acho que eu tenho que me livrar desse carma: sempre o mais pobre era eu. Todo mundo chegava de carro, quem não chegava de carro era eu. Estava trabalhando de carteira assinada e ia fazer um curso na Vasp, no hangar da Vasp aqui no Rio. Entravam dez, desses dez só ficava um. Todo dia tem uma prova. E eu não tinha computador. Botaram logo um computador na minha cara. Eu falei: “Caramba, tenho que me desenvolver aqui." Mas a professora dando as coordenadas e a gente ia fazendo muito bem.
Na hora do almoço os colegas: "Eduardo, tu vai almoçar onde?" Eu falei: "Vocês vão aonde? Naquele ali? No bar ali de frente?" Um tal de Teco-teco, um restaurante no formato de um avião. "Estão lá no Teco-teco, então me aguarda lá que eu já estou indo." Que nada. Eu pegava meu sanduíche e ia pra dentro do banheiro. Era um banheiro limpo, tá, gente? Parecido mais ou menos com isso aqui. Olhava, dava descarga primeiro, sentava e comia meu lanchezinho lá. E graças a Deus eu passei, mas não pude assumir o emprego porque sofri um acidente de carro. E estavam precisando urgente.
Eu ia assumir a gerência de uma loja da Vasp em Petrópolis. Não pude, fiquei quatro meses sem poder fazer nada pra ninguém. Um camarada vinha fugindo da polícia, pegou o carro no meio. Eu estava com um vizinho, fomos prestar um socorro a uma vizinha que estava passando mal. Na volta do hospital o carro bateu na nossa traseira: a gente rodou, entrou numa marquise num botequim, eu acordei desfalecido com um bombeiro me chamando. Graças a Deus eu não quebrei nada, mas eu fiquei bem ruinzinho. Eu fiquei até quinze dias sem poder andar, só na cama. Eu não pude assumir e a Vasp depois entrou em pique. Aconteceu, eu acho que você já sabe, faliu também. O Canhedo não teve como segurar o pessoal lá. Uma boa empresa também, mas não deu certo. Amanhã vou trazer a foto também da Vasp, da época.
P/1 - Me conte uma coisa, Carlos. Depois que você acabou o ginásio, quando você estava fazendo dezoito anos, você falou que voltou pro Rio de Janeiro?
R - Através do Cassino Royale. Eu fui trabalhar no Cassino Royale.
P/1- Mas como foi antes? O que você estava fazendo em Duque, que decidiu mudar? Como foi?
R – Não estava fazendo nada, na realidade. Tinha ido pro quartel. Eu me alistei na Marinha, sobrei, peguei excesso de contingente. Depois tentei fazer prova pra Fuzileiro Naval. Passei, mas fiquei em dúvida. Cumpri o prazo, eram doze meses, na época. Eu fiquei os doze meses, mas você não podia ficar só ali, você tinha que fazer prova. E aquelas provas... Uma das questões que tinha na época, em 1982, tinha no requisito o seguinte: "Tem parente dentro da marinha? Qual a função? Patente?" Se você não tivesse alguém, ali já estava um ícone pra você não ficar ali. E eu não tinha ninguém na Marinha. Eu tinha no Exército, que era meu tio, mas também já era falecido. Fui em cima do meu oficial, que na época era comandante de quadra, o Ari da Costa Coimbra, já deve ser aposentado hoje em dia, e pedi a ele: "Comandante, você tem como?" Ele falou: "Carlos Eduardo, só depende de você. Estuda. Faz as provas, não é difícil." "Mas senhor, tem essa coisa aqui." Ele falou: "Faz a prova."
Eu passei na prova, mas surgiu a oportunidade de trabalhar em São Paulo. Essa minha prima. Ela me falou o salário, quanto seria. Aí eu falei: "Não vou ficar nessa vida de militar, não. Isso aqui pra mim, não é o que eu quero.” Servi. Foi bom pra mim, na época que eu estive lá, aprendi muita coisa. “Mas eu vou pra São Paulo." Fui pra São Paulo trabalhar.
Voltando: já tinha feito segundo grau, não tinha mais, estava sem visão de nada. Não sabia se ia fazer uma faculdade, que passo eu tomaria. Na época, em Caxias não tinha nem faculdade e as que tinha, só pagando. Diferente de hoje, já está até chegando UERJ lá, UFRJ também. Mas, na época, cara, só quem tinha muita grana. Eu fui daqui, dali, dei meu jeito e cheguei onde cheguei, graças a Deus.
P/1 - E a sua mãe?
R - Está aqui no centro.
Na volta da casa dela passei pela Central do Brasil e fui assaltado. Já tinha morado em São Paulo, estava aqui no Rio e vendia mercadoria. Continuei vendendo mercadoria, aquelas mercadorias de Paraguai, aqui no Rio. Vendia rádio.
Estou lá, com a bolsa cheia de mercadoria - a sorte que ele não levou a bolsa, ele só levou um relógio que estava no braço. Passei pelo centro da cidade, ali, na época [era] uma bagunça danada. O cara me pegou com uma garrafa, me deu uma gravata, botou meu braço pra trás. Só quis o relógio, levou só um relógio.
Muito bem. Eu fui atrás de um policial: "Olha, o rapaz ali me assaltou, aquele cara que está indo lá." "Ah, está indo por lá? A gente foi por aqui." Bom, eu senti que ali não ia dar em nada. Falei: "Deixa eu ir-me embora porque ainda estou com minha bolsa e minha vida." Foi o que eu fiz, montei dentro do meu ônibus e fui-me embora.
Em casa, refleti: "Caramba, eu tenho três meses de academia e de musculação. Não me serviu pra nada. E agora?" Fui ver outra coisa. Falei: "Bom, acho que vou praticar caratê. Numa situação dessa eu posso me resolver melhor." Fui ver o caratê. Não me adaptei bem ao caratê. Vi o judô. Também não.
Vi o kung fu, uma coisa leve, livre. Falei: "Pronto. É esse aí que eu quero." O kung fu entrou na minha vida em 1982 e está nela até hoje, sou instrutor de arte marcial. Eu sou professor de kung fu. Está na minha vida até hoje, me adaptei tão bem. Em todas as empresas que eu trabalho eu sou convidado a ministrar aula, palestra, dar exercícios.
P/1- Então você foi pro Rio, depois você foi pra São Paulo trabalhar com sua prima...
R - Três anos em São Paulo.
P/1 - Ficou três anos lá trabalhando bastante, voltou pra Duque de Caxias.
R - Sempre retornando a Duque de Caxias. A casa ainda era daquela situação que vocês imaginam. Mas eu mandava dinheiro pra minha mãe, minha mãe já tinha feito o muro na frente, um muro melhor, com portão, uma coisa mais segura. Já tinha melhorado a casinha dela.
Eu não era casado ainda. Em 1985, vim embora. Quando foi em 1987, a vizinha ao lado, que a mãe dela era lavadeira, Dona Severina… A minha mãe, coitadinha, já estava meio cansada, tinha os problemas dela. Eu achava que queria andar melhor, queria andar com uma roupa melhor. E minha mãe, coitadinha, já não lavava tão bem. Como a gente tinha essa senhora, sempre que chegava de São Paulo eu dava minha roupa pra ela e pagava, ela lavava bem.
Fui conhecendo a filha dela. A filha dela [estava] com doze anos, atual esposa minha. Eu falei: "Bom, já está na época de eu procurar um casamento, casar com uma pessoa direita, decente." Namoramos um tempo, três meses. Depois de três meses nós fomos, casamos. Chamei-a pra casar, ela casou, o pai aceitou. Apesar de ela ser menor, ela casou com 16 anos e eu tinha 23. Estamos juntos até hoje, temos cinco meninas. Estamos lá com toda a dificuldade do mundo, igual todos têm.
P/1 - Qual é nome da sua esposa?
R - Maria Aparecida.
P/1 – Como foi o comecinho de você conversar com a Maria?
R - Meu terreno já tinha levado bastante aterro e o dela continuava baixo, coitadinha. E a casa dela também enchia. Enchia demais aquela área, tudo enchia. Então quando chovia, [tinha] enchente, eu pulava pra casa dela. Ajudava ela no que podia, voltava, socorria minha mãe também. Era uma briga, eu me sentia horrível com aquela situação. Nessa, a gente conversava.
A primeira vez que ela foi ao cinema foi comigo, a gente foi ver um filme chamado “O predador”, eu que levei. Olha o filme que a gente foi ver: “O predador”. (risos) Levei Maria Aparecida pro cinema, pedi licença ao pai dela. A gente foi pro cinema, comemos pipoca, tiramos fotos, levei-a numa coisa pra tirar foto juntos, aquela coisa de casal, daquela época. Respeitei numa boa, levei-a pra casa, comemos pizza. Sempre que eu vinha de São Paulo, quando ia comprar alguma coisa em São Paulo, trazia alguma coisa pra ela, uma lembrancinha. Aí eu falei: "Bom, está na hora de eu ficar pelo Rio. Se vendo lá, posso vender aqui." Falei pra minha prima: "Olha, eu vou ficar..." Ela me deu ajuda, falou: "Quando você quiser comprar, compra com a gente aqui."
Aí [falei]: "Aparecida, vamos casar?" "Vamos." Apareceu uma oportunidade. Falei: "Mas a gente não tem casa. Você mora de aluguel, a casinha da minha mãe eu não posso... Como a gente vai fazer?" Tinha o irmão dela, que ele era empreiteiro de obras; Severino, que é falecido hoje em dia, coitado, me deu uma força. Falou: "Tem um prédio que estou pintando e o rapaz lá está precisando de um zelador do prédio. Você não quer?" Eu falei: "Vamos lá ver." Ele me apresentou a síndica do prédio, Dona Maria, uma senhora gente boa à beça. Falou: "Estou precisando de um zelador, a casinha é essa daí, uma quitinete." Bacana, uma visão bacana que eu tinha ali da Tijuca. Falei: "Está feito, Aparecida. O que você acha?" Ela falou: "Está bom. Vamos casar."
Quando eu me casei só tinha um fogão, comprei no Ponto Frio. Só tinha um fogão, mais nada. Não tinha cama, não tinha nada. Mas tinha uns edredons, em São Paulo tinha uns edredons em que eu dormia, eu trazia aquilo. Juntamos dinheiro, começamos a fazer nossa casinha. O dia em que a casinha ficou pronta eu pedi pra sair do prédio, me deram todos os meus direitos e fomos pra casa, morar na nossa casinha. E aí estamos.
P/1 - Foi quando você começou a trabalhar na academia?
R - A academia já fazia parte de mim, já tinha feito parte da academia. Eu tinha em 1984 conhecido a arte marcial. Depois que fui pra Tijuca, lá tinha uma academia que eu não me lembro o nome agora, mas tinha um professor conhecido que era de Caxias, o tal de Lúcio - o apelido dele na academia era Brucelúcio, porque ele fazia o estilo do macaco. Toda noite eu ia lá visitá-lo lá na academia e ele: "Pô, Eduardo." Então ele me passou alguma coisa.
Depois desse prédio, fizemos nossa casa, fomos pra Caxias, compramos a nossa casa. Depois apareceu uma oportunidade de a gente morar no Recreio. Fomos pro Recreio, moramos num prédio, um prédio novo. Esse mesmo irmão dela - ele estava sempre pintando alguma coisa, então quando apareciam essas coisas legais, que ele achava que eram boas, ele me oferecia. A gente não tinha filho ainda. Falei: "Então vamos embora, vamos testar. A gente aluga a nossa casa aqui." Foi o que a gente fez: alugava, pegava o dinheirinho de lá, dividia pra mim e pra minha mãe e fomos morar nesse prédio novo, no Recreio.
No Recreio também tinha uma academia, chamada Recreio Sport Center. Acabava meu horário de trabalho, eu ia lá pra Recreio Sport Center. Lá também tinha outro rapaz, o João, que fazia também o estilo do macaco. E a gente foi, até que eu conheci o meu mestre, que é o falecido Marco Natali, ele faleceu em 1992. Eu já era graduado, já era faixa marrom, já tinha licenciamento pra aulas. Daqui pra frente, de 1985 eu só podia ministrar aula se eu fosse a São Paulo fazer os exames numa academia que tem lá, GM, que é o mestre geral aqui, ele vinha uma vez ao Rio dar aula pra gente aqui. Era muito cara a aula na época, eu preferi fazer com ele lá. Ficava dois dias lá, fazia o exame com ele e já vinha autorizado pra dar aula.
Em 2002 eu parei, nunca mais dei aula, até porque voltei pra casa, não trabalhava mais. Eu dava aula nos prédios, todos os prédios que eu trabalhava eu dava aula. O último emprego meu foi na Vasp. Na Vasp eu não pude porque era uma sala, só vendia passagem, então os funcionários não tinham como. Mas o antepenúltimo foi numa companhia de tecidos chamada União de Tecidos. lá tinha uma Cipa [Comissão Interna de Prevenção de Acidentes], uma quadra grande, tinha esporte.
Eu entrei lá como balanceiro, eu que pesava os caminhões. Os caminhões chegavam, eu pesava, tirava a talha, o bruto, ele ia, descarregava. Quando ele voltava vazio eu tinha que tirar, fazer aquela continha e via quanto entrou e [quanto] deixou de carga lá dentro. Nisso aí foram me convidando, as pessoas lá: "Pô, dá aula aí pra gente." E a Cipa me convidou.
Reduziu o número de acidentes dentro da empresa. Os funcionários chegavam, antes de pegar nas máquinas tinham que passar por mim. Cinco, quinze minutos de aula. Depois, lá dentro tinha o MST, que era chamado MESC, o centro esportivo. Tinha bailes que a empresa fazia para os funcionários. Os funcionários se organizavam, faziam baile. Tinha o futebol deles. Convidaram-me pra ser o tesoureiro do clube: "Você quer ser tesoureiro? Já que ministra aula." Eu fui ser tesoureiro e foi, mas, por algum motivo, foi trocado. Fazia muito saco de café de juta - isso se chama juta, foi trocado na época por polipropileno, já era saco plástico. Então a máquina também foi trocada, mas se arrastou, não aguentou; a empresa faliu, foram vendidas aquelas máquinas. A Índia veio aqui no Brasil, comprou aquilo. A última máquina que saiu, quem deu baixa nela fui eu. Botei a última máquina no contêiner, caminhão levou, fechei a indústria. Hoje em dia tem uma pessoa que toma conta lá. Nem pertence à União mais.
P/1 - Carlos, então você casou, foi entrando no kung fu, né?
R - O kung fu está na minha vida desde 1983.
P/1 - E todo lugar que você ia trabalhando você aproveitava pra dar aula.
R - Ministrava aula, porque era muito caro. O curso de kung fu é o mais caro que tem das artes marciais. É uma vez só no ano que você faz, diferente dos outros que é por faixa, daqui a seis meses você faz uma faixa. Kung fu é uma vez no ano e é super caro. Hoje em dia, está em torno… Uma faixa branca [em torno de] 1500 reais.
P/1 – Como foi pra você esse encontro com o kung fu e depois pensar em passar esse...
R - Em ministrar esse conhecimento, um pouquinho do conhecimento que o kung fu... Os grandes mestres que eu conheci, o Natali, o D’Urbano. No kung fu, uma pessoa para de ministrar aula. Tem um momento que você para, você sente quando tem que parar. Não sei por que não aconteceu comigo ainda, graças a Deus. Você para e começa a se dedicar a livros.
Eu já comecei, tenho um livro editado e conta, ele é muito assim: "Gostas de felicidade." Não sei se você já leu esses livrinhos assim, umas palavrinhas de auto-estima. A mesma coisa eu fiz, tenho um livrinho já editado. Só que é caro você editar um livro. Eu tenho um protótipo em casa. Aonde eu vou, nessas reuniões que eu vou, eu o levo, dou pras pessoas e as pessoas lêem. Hoje eu não trouxe; hoje eu falhei num monte de coisas aqui, as fotos, livro, mas Deus sabe de todas as coisas.
Eu já estou nesse momento de fazer essas reflexões de vida, pra ajudar alguém. Não que aquilo a pessoa tenha que seguir. Eu sempre falo pra os alunos o seguinte: "Você vai ver várias coisas na sua vida." Eu tenho várias faixas etárias de aluno, desde oitenta a cinco, pra mim não tem mistério. Está interessado, a gente passa o conhecimento. Então falo assim pra eles: "Vocês vão ouvir muitas coisas na vida de vocês. Peneire o que for de melhor. O tio..." Quando for criança: “O tio não tem o dom da... Não sou o dono da verdade. Vocês têm que ver o que estou falando que serve pra vocês e use na vida de vocês. O que não servir você joga fora, descarta. É assim que vocês têm que fazer na vida de vocês."
Não gosto que as pessoas me sigam. Tem gente que faz um livro assim: "Se você fizer tudo que está neste livro sua vida vai dar bem." Uhm! Deu bem pra ele, mas será que vai dar pra mim? Então você tem que peneirar. Na sua vida você tem que fazer esse tipo de coisa, é peneirar o que serve, o que aquele livro te peneira de melhor, joga fora.
P/1 - Depois, quando você voltou a Duque de Caxias?
R – Cheguei em Caxias de vez em 2000. Em 2000 eu já estava, graças a Deus, bem fixo. As crianças já precisavam de aula, já não podia pular de galho em galho porque as meninas já tinham que ficar na escola e a gente tinha que dar atenção geral. Então falamos: "Bom, 2000, vamos estabilizar. Vamos ficar aqui, melhorar o que está aqui.” E ficamos. Eu continuava trabalhando fora de Caxias, mas fixo em Caxias por causa das aulas das meninas.
Nas aulas, quando adentrei uma escola, fui convidado, a diretora falou: "Você pode ministrar as suas aulas aqui?" Montei um curso chamado "Vida e Virtude", onde eu pegava os três períodos de aula das crianças de manhã, de tarde e à noite. Tinha um momento, de manhã tinha um momento com eles, à tarde e à noite. No colégio Santa Terezinha, no antigo, que era na igreja - agora eles têm uma sede nova, que é a escola mesmo, na David de Oliveira - fiquei um ano dando aula pra criança, dentro de uma escola, dentro do projeto "Vida e Virtude". Ensinava desde Educação Física até como se proceder numa empresa, já tinha passado pela Vasp, numa empresa. Ensinava as meninas como sentar, como se comportar numa entrevista. O pouquinho que eu sabia, que eu aprendi, eu passava pra elas; eles não sabiam nada, eram crus.
Aquilo que eu falei, se alguém tivesse no passado me falado: "Planta uma árvore aqui que depois você vai comer uma coisa." Então, falava: "Quem tiver dificuldade em casa, com o papai e com a mamãe e quiser conversar depois da aula com o tio pode me chamar que o tio vai conversar numa boa com vocês, tá? Agora, se você conta um segredinho pro seu colega e seu colega depois passar o segredinho pra frente, foi bom pra quem? Pra você, que você vai conhecer aquele colega, você sabe que aquele colega não é mais de confiança. Mas, o tio não, vai morrer com o tio. O que você falar pro tio, se o tio puder, o tio vai ajudar." E no final da aula sempre alguém levantava o braço, dois, três: "Tio, ó..." Algumas coisas não tinham a ver, mas chegavam situações pra mim, grossas. Chegava coisas que eu tinha que passar pra direção. Situações diferentes, de padrasto mexer com a menina, de menina já estar namorando sem a mãe saber. Eu falava: "Eu sou pai também. Tenho meninas mais velhas do que você. Se minha filha namorar sem me contar eu vou ficar muito triste com ela. Acho que você deve parar de fazer o que você está fazendo e conversar com o papai e com a mamãe. São eles que vão te dizer o que você deve fazer. Mas o titio está falando pra você conversar com papai e com mamãe primeiro."
P/1 - Quando você chegou em Duque de Caxias você já tinha tido uma experiência dando aula de kung fu junto com as empresas. Mas como foi? Você chegou pra Duque de Caxias, a diretora veio conversar com você, ela lhe convidou. Era uma disciplina a mais ou era uma disciplina dentro da grade?
R - Era dentro da grade. Foi levada à Secretaria de Educação e tive que postar a minha bagagem, o que eu tinha, passagem de vida, as escolas tiveram que assinar pra mim, as empresas onde eu passei, dando o aval praquela coisa. A secretaria entendeu o programa e achou numa boa, ficou dentro da grade aquilo.
Infelizmente, quando a escola nova passou a ser dentro do Santa Terezinha, que a gente achou que o campo ia ficar pra nossa comunidade, não ficou. A escola nova, o campo novo. Achamos que o campo novo ia ser administrado pela escola. E não foi isso que aconteceu. O campo tem seu administrador, a escola não podia nem fazer mais as festas caipiras dentro do campo. A primeira festa caipira que teve fizemos lá dentro. Mas depois o camarada que administra disse que não podia fazer buraco no chão do terreno, que atrapalhava o jogo, então eles achavam mais importante ter o jogo na quadra, que atrapalha até hoje a escola, do que a nossa festa junina. Foi horrível.
Hoje em dia a gente faz a festa nossa, caipira, em frente, na rua. Até que é uma rua tranquila. Mas a tradicional era dentro desse campo e esse espaço a gente perdeu. A direção que está hoje em dia, infelizmente se perdeu, não teve pulso firme pra enfrentar junto com o conselho escolar, junto com a escola, tomar aquele espaço. Aquele espaço é da criança.
No primeiro conselho, que foi formado em 2000, dentro da Santa Terezinha, foi falado isso: "Não pode ter jogo em horário escolar." O que mais acontece é jogo em horário escolar. É apito, tira a atenção do aluno; são palavrões da comunidade, alguém que jogue. Então, infelizmente, eu acho que as pessoas não estão sabendo administrar aquilo, nem o administrador do campo e nem o diretor da escola, que não se faz... Fazer a autoridade dele como diretor. Fico muito triste em ver algum evento no horário escolar.
P/1 - Carlos, você se lembra do seu primeiro dia de aula dentro da escola? Da primeira escola de Duque de Caxias?
R - De Caxias, você fala? Bom, Caxias que eu falo foi o Norma Topper. Eu saí - saí não, eu estava chegando. É porque você já entra com sete anos lá. Na minha época tinha que fazer sete anos pra entrar, não tinha “prezinho”. Eu com a cabeça raspada, tipo um topete na frente, tipo... Aquilo era moda.
Muito bem, lá vou eu: chinelo, minha pasta era um saco de arroz de cinco quilos, dois caderninhos dentro, um lápis preto e uma borracha redondinha na cabeça do lápis. Sentei e quando eu sentei, logo de cara… Geralmente a pessoa, quando tem papai, tem mamãe que mora junto, a vovó, tem mais condições… Eu me lembro muito bem de uma canetinha que chamava Silvapen. Poxa, quem tinha aquilo ali era "ricão." E ao lado da minha mesa sentava um garoto que tinha um compactozinho com as 24 cores. Pô, eu namorava aquele estojo dele. “Pá”, pegava o meu saquinho de arroz, escrevia. Minha letra era horrível, até hoje minha letra é horrível. E eu: “Caramba! O cara tem uma Silvapen.” Eu falei: "Um dia eu vou ter uma Silvapen também." E pedia a minha mãe: "Mãe, a senhora pode comprar uma Silvapen pra mim?" E minha mãe: "A gente vai ver." Aquela coisa de empurrar, de não dizer não logo na cara. E foi.
Na frente da minha cadeira estudava uma menina que eu era apaixonado por ela, o nome dela era Maria Lúcia. Até hoje, outro dia eu a vi no ônibus passar. Eu era apaixonado por ela e a Maria Lúcia só dava conversa pra o cara da Silvapen e pro cara do saco de arroz. Ela não queria nem papo com o cara, que era comigo.
Na hora da merenda eu evitava comer na escola, acho que eu ficava com vergonha de comer na escola, já tinha um uniforme ruim e achava que o pessoal ia achar... Coisa de criança, de comer e achar que era “pobrérrimo”, que não tinha nada na minha casa pra comer e ficava com aquela coisa na cabeça. Mas era muito bom. Interessava-me a aula que o professor estava dando porque eu sabia que é dali que um dia eu ia poder sustentar a minha família. Eu tinha que aprender alguma coisa, por mais ruim que a aula fosse.
Quando era uma aula difícil, como era matemática pra mim, eu procurava ser amigo do professor, tentava fazer alguma coisa pra eu aprender aquilo. E ficava triste quando pedia: "Professor, não entendi." "Não entendeu porque você estava conversando, rapaz." Ai meu Pai amado! Tinha que levar a dúvida pra casa. Eu sempre falo pro aluno: "Não leva a dúvida pra casa." Mas naquele momento, comigo aconteceu de ter que levar, porque o professor não queria. Ele achava que... Não sei o que ele achava, sei que pedia e ele às vezes não falava: "Você estava conversando!" Eu não estava nem conversando, na maioria das vezes; algumas vezes sim, outras, não.
P/1 - E o seu primeiro dia de aula como professor em Duque de Caxias?
R - Será que eu vou lembrar o primeiro dia de aula?
P/1 - Dos primeiros.
R - Eu sempre faço apresentação. Falo meu nome, pergunto pra saber o nome de todos eles. Quero saber um pouquinho da vidinha deles, o que mais me interessa é a vidinha deles. A minha, eles já quase me conhecem do bairro, vizinhos todos ali do bairro. Eles já me conhecem, sabem do meu roteiro de vida.
Eles ficavam super animados. Tudo no início é super animado. Os primeiros três meses então, eram uma maravilha. Eu fazia aquela dinâmica: quando não estava chovendo, na quadra da igreja; quando estava chovendo, dentro de sala.
A gente fazia um apanhado de tudo. E tinha relatos horríveis: de criança que dizia que em cima da geladeira dele tinha um remédio que a mamãe dele quando estava com dor de cabeça usava. Eu falava: "Olha, evita usar o remédio. Você não usa, né?" "Não, não uso, não. Minha mãe quando está doente vai lá, pega um saquinho, passa aquele saquinho no nariz, cheira e ela diz que passa." Eu tinha esses relatos e identificava a criança, fazia um trabalho com aquela criança.
Um professor tem que ser isso. Você tem que atinar, ver dentro da sala. São 35 dentro de uma sala, 35 vidas que estão ali. Ali um vai ser bombeiro, outro vai ser, espero que... Eu estou ali pra que ele seja cidadão do bem. Passar pra eles que apesar das dificuldades, assim como o Eduardo teve… Conto o que eu estou falando aqui pra vocês, eu resumo lá pra eles, numa boa. Falo: "Eu comia sanduíche no banheiro e hoje em dia o tio está aqui. Hoje em dia o tio pode comprar o tênis que ele quer, mas um dia o tio não podia. O tio andava... A primeira aula dele foi com chinelo." Eles riem. E acabam aprendendo a dar valor a alguma coisa na vida deles, porque nem todos eles, como eu… Além da minha mãe, não tive uma presença paterna dentro de casa, de brigar: "Eduardo, olha, você está errado." Muitos na minha comunidade também não tem. Eu sinto uma pena danada de ver crianças na situação que elas vivem, então, se eu puder fazer alguma coisa... Não posso estar em todas as escolas ao mesmo tempo, mas as que eu pertenço, você pode fazer um apanhado e ver como funciona.
P/1 - Como você chegou pra sua escola, Olga Teixeira?
R - O Olga Teixeira era assim: se você tem uma criança - igual eu tinha no Santa Terezinha, a minha filha mais velha, Sueli, que foi a primeira a ir pro Olga Teixeira e foi pro ginásio. O município só tem obrigação com você do “prezinho” até o primário, o ginásio já é do estado. O município não tem obrigação.
A minha filha, chegou a época que ela tinha que sair do Santa Terezinha. Ela tinha passado de ano, teria que ir pra o quinto ano, que já pertence ao ginásio, hoje. E ela foi pro Olga Teixeira. No Olga Teixeira, as mães ficaram sabendo que eu dava aula lá. A diretora mandou me chamar, a Lídia. Ela conversou: "Carlos Eduardo, eu sei do seu trabalho. Você já tem um trabalho na Secretaria de Educação, já tem um projeto formado. Você não quer participar com a gente aqui, não? Num primeiro momento seria só o conselho escolar e depois a gente…” Falei: "Tudo bem, pode ser." Houve uma votação, igual a eleição: os pais vão lá, votam naquela chapa e eu pertencia a uma chapa. Nessa chapa eu estou até hoje. Mudam as pessoas, mas eu, a Lídia e o André não mudam nunca. Muda o professor, mas o Carlos Eduardo, a Lídia e o André, que é um dos cabeças dentro da escola, a gente não muda.
Foi através de voto direto e com minha filha lá dentro. Você só pode pertencer ao conselho se você tiver filho ou aluno dentro da unidade. Do Olga Teixeira, esse ano eu estou saindo, porque a minha filha, a Maria Eduarda - não mais a Sueli, a Sueli hoje em dia já fez o segundo grau, está procurando faculdade pra ela, está fazendo concurso pra ver se primeiro trabalha, depois ela faz a faculdade. Ela já não pertence ao Olga Teixeira. A Maria Eduarda está indo pro segundo grau, então é o último ano dela. Mas na retaguarda, lá atrás, já vem a Emanuela e a Gabriele, que estão com sete e oito. Elas estão no Maria José, no colégio onde eu sou... Do Maria José elas já vão direto pra o Olga, então daqui a dois anos eu estou voltando pra o Olga de novo.
Não importa a direção que esteja lá, o Carlos Eduardo está voltando. Se tiver espaço pra o conselho, eu fico, se não tiver é porque é aquilo que eu falei, é através de chapa. É formada uma chapa... O conselho escolar é formado de 21 pessoas: representante de professores, representante de comunidade escolar, representante dos alunos. E essa chapa é eleita ou não. Se tiver condições de me deixar entrar eu estou lá. Enquanto eu tiver vida, enquanto eu tiver minhas filhas, pelo menos na rede municipal ou escolar, o que for, enquanto elas tiverem atividades físicas escolares, eu estou com elas lá.
P/1 - O que você faz nesse conselho?
R - Tudo. O conselho faz de tudo, cara. Falaram-me assim, o André foi até rústico comigo quando eu cheguei no Olga Teixeira. Houve uma reunião: “Vocês ganharam. Eu estou sendo empossado hoje. Assina aqui a ata de posse. Já digo uma coisa." Isso é a palavra do professor André: "Aqui vocês não vão ganhar nada. Não somos fiadores de vocês pra nada, a não ser reuniões que sejam assuntos de colégio. Não procurem a gente pra mais nada." Falei: "Caramba! Tudo bem." Eu já estava acostumado com esse tipo de coisa. Era pra somar e não pra pedir. Mas que nada, o colégio que mais abriu as portas pra mim, foi esse. Tanto é que estou aqui hoje, dando essa coisa pra vocês.
A caminha escolar é complicada. Pegamos aquela escola com criança quebrando porta de banheiro, crianças que pegam papel higiênico e jogam na privada, papel, rolo novo, eles jogam. Tanto menina como menino. A quadra nossa era quebrada, horrível. Um colégio problemático. Conseguimos acabar com aquilo tudo? Não, mas com certeza 70% conseguimos. O colégio, graças a Deus, se continuar assim, no que está, daqui a cinco anos a gente não vai ter mais problemas. Tem muitos problemas, o maior colégio municipal é o Olga Teixeira, onde eu volto a dizer: lá acontece de tudo. Tem coisa pro TRE [Tribunal Regional Eleitoral]? Estamos lá. Eles pedem o espaço. DETRAN... Solicita-se aquele espaço. Qualquer evento que tenha no colégio eu sou chamado. Eu faço parte, assim como outros professores, fazemos parte. Nós somos aplicadores de prova, somos fiscais da prova. Por exemplo, como fiscal do TRE, eu vou lá, boto as urnas no dia quatro, sábado. Eu vou lá, boto as urnas pra no domingo ter eleição; se eu não for levar as urnas, fica difícil. Tenho que saber dizer quais salas em que estão as urnas. O conselho age assim, dessa forma.
P/1 - Carlos, me conta um pouquinho, o que você acha importante, como pai das meninas que chega próximo da escola. Qual é o interesse, a importância de estar se aproximando assim?
R - De acompanhar, se realmente é passado, se elas estão absorvendo o que é passado e se tem condições, [se] daquela escola o ensino é bom. O conselho também avalia muito isso. E eu fico preocupado: "Será que minha filha está com nota ruim porque ela não absorveu, é culpa dela mesmo ou será que o aprendizado que ela está tendo tem alguma coisa errada no aprendizado?" Graças a Deus eu nunca tive esse problema de criança com aprendizado. Todas elas, nunca. Graças a Deus foi diferente do pai delas. Elas passaram de ano, mas eu nunca tive esse problema. O ruim que estava, elas tiravam média seis. Elas sempre passaram, não teve essa preocupação, porque também eu cobro muito.
Eu tenho uma regrinha lá em casa, na sala de casa, que é de quadro de cortiça. Eu venho falando isso com as meninas. Trago o quadrinho de cortiça e falo: "Se vocês seguirem isso que está aqui nesse quadro, vocês não vão ter problema com o pai de vocês e na vida." Qual é a regrinha? Cada dia da semana uma tem a limpeza da casa, cada dia pertence a uma; o horário de estudar; o horário do almoço, é servido em tal horário, é acabado em tal horário; janta em tal horário... Então: "Não se metam em conta, não se metam em dívidas porque vocês não trabalham, vocês não têm como pagar, então não se metam em conta. Não peçam nada emprestado a ninguém." Tem umas regrinhas, quinze, mais ou menos. Todo dia, na hora do almoço, elas estão sentadas, o que é um pouco difícil porque os horários divergem da gente, uma almoça às onze horas, outra ao meio-dia.
A gente ainda toma conta de duas crianças - esqueci de falar isso, a gente toma conta de duas bebezinhas, desde três meses. A Clarinha, minha mulher toma conta dessa menina, hoje em dia a Clarinha já está com dois anos. Na hora do almoço, quando está todo mundo junto, eu pego: "Olha, acabou de almoçar? Já comeu a sobremesa? Agora vai ler isso aqui." Que já são as regrinhas. "Ah pai, eu já sei isso." "Dá outra lida pra reforçar, pra vocês nunca caírem no erro." Eu sempre faço isso com elas. E graças a Deus... Elas e todos nós somos passíveis de erro; se errarem, elas já estão sabendo, eu não admito erro. Não tem erro comigo. Aquele negócio: "A segunda chance." Depende, a segunda chance é bem... Não me deram segunda chance. Sempre me cobraram e sempre foram rústicos comigo. Sempre.
P/1 - E a Dona Marciana, fazia isso também contigo?
R - A Dona Marciana... Vou pensar bem pra falar da Dona Marciana. Ela cobrava muito, até por eu ser o mais velho. Se ela chegasse em casa e eu não tivesse dado banho nos meus irmãos - no meu irmão, no caso, porque eram duas irmãs, uma não morava com a gente, morava com minha avó, aqui no Grajaú. Só morava a mais novinha e o Rogério. Ela me cobrava: "Você deu banho no seu irmão?" "Mãe, dei." "Você deu janta?" "Dei." Então, dentro do que ela podia cobrar, que ela achava que podia me cobrar. "Seus cadernos estão aí? Tá tudo? Tem ponta no lápis?" Ela sempre se preocupava com essa coisa da educação, de ter o lapisinho, a borracha. "Tem." "E seu irmão foi à escola?" "Foi." Mas o Rogério sempre teve um problema de escola, às vezes ele gazetava aula. O Rogério andava com o uniforme sujo, apesar de ele ter tido mais condições do que eu. Na época de escola dele ele teve, ele não gostava de aula. O Rogério realmente era complicado na aula e ela me cobrava muito dele. Eu era o pai dele, na realidade. "Deu banho no seu irmão?" "Dei." Quando ele não queria tomar banho, já estava em cima do horário escolar, eu pegava ele onde ele estivesse. Os vizinhos até falavam: “Não faz isso com o seu irmão." Pegava pela camisa, levava pra o banheiro, botava ele pelado, ele com oito anos. Pegava os dentes dele, estavam amarelos, pegava Bombril, passava nos dentes dele: "Agora escova." Funcionava assim.
P/1 - Carlos, conta uma coisa pra mim: você conhece o projeto TONOMUNDO?
R - Eu ouvi falar, mas não conheço.
P/1- Lá na Olga Teixeira tem outros projetos que você ache interessante? Que o conselho leva ou que outros grupos atuam?
R - Lá sempre tem, graças a Deus. O Olga Teixeira é um colégio pólo, então muitas pessoas se interessam no que é feito ali dentro. Tem um projeto da Embrapa, que ensina as crianças a plantar, identificar plantas, raízes, como podem ser usadas aquelas raízes, aquelas plantas. Tem o projeto das mães, que sabem alguma coisa e passam para as outras. Tem o reforço escolar, quando a criança está com problema de aprendizado, tem um reforçozinho escolar aos sábados. A gente tem vários projetos lá dentro e desenvolvidos para a comunidade. A comunidade não pode dizer que está desassistida; ela pode não ter informação porque a informação não chega pra todos. Apesar de ter um mural, estar explicadinho como funciona, muitas pessoas acham que a escola é um depósito de criança, largam a criança lá. Infelizmente tem acontecido muito isso. E sobra pra gente, a gente tem a função de dar o estudo. A educação, quem dá é a família em casa.
P/1 – Lá no Olga Teixeira tem alguma história, algum fato marcante que você se lembre de ter vivenciado lá?
R - Algo marcante do Olga Teixeira? Sempre as festas juninas que a gente faz. As festas juninas lá são uma coisa legal. A gente vê que a comunidade escolar, os pais e as mães estão sempre presentes. A gente faz com o maior carinho.
Esse ano a gente decidiu não botar esse negócio de funk, essas coisas. É realmente voltada para a cultura da arte caipira, da festa junina. No passado, botava-se coisas horríveis lá e eu não gostava muito, até não ia. Esse ano não, esse ano já peguei, já dei a serragem da pescaria. Virou uma coisa junina, mesmo. Eu acho que foi marcante essa troca de música, realmente coisa regional.
P/1 - Eu vou mudar um pouco de foco para entrar na vida do Carlos sem o Olga
Teixeira. O que você faz? Em quantas escolas você tem andado? Lazer?
R - Meu lazer, como pobre, desde pequenininho era o atletismo. Eu sempre me espelhei no meu tio, que era atleta. Mas eu não me convenço que ele foi muito pouco. Eu acho que se eu tivesse, como ele uma vez pediu pra minha mãe: "Márcia, deixa esse garoto comigo que eu vou encaminhá-lo." Eu ia ser do colégio militar, ele ia me dar oportunidade porque ele era professor de lá. Mas Deus, como o ditado: “Deus sabe de todas as coisas”. Então minha mãe não deixou eu morar com ele. Minha mãe achava que ele viajava muito por ser militar. Uma vez ele estava em Brasília, outra vez em Belo Horizonte.
O último contato que eu tive com o meu tio foi em 1984. Ele já era instrutor da Polícia Militar em Belo Horizonte. Ele falou: "Meu filho, você quer ser polícia militar? Eu não aconselho a você, mas se você quiser, você faz a prova e seu tio te dá todo o aparato." Eu falei: "Não tio, eu prefiro um emprego civil mesmo." Ele falou: "Mas se você quiser, pode procurar seu tio."
O lazer que eu tive como pobre era correr. Antes do quartel eu já corria com o pessoal. Quando o relógio apita é hora de eu ir buscar minha filha na escola, tem alguém fazendo isso, eu deixei avisado com a minha esposa. São cinco alarmes que tem aqui: um pra ir buscá-la na escola, um pra dar o almoço. Então eu fazia corrida antes, com quinze, dezesseis anos eu já corria. Saía ali pelo Olga Teixeira, saía lá num bairro chamado Lagunas Douradas. Fazia aquelas corridas, caminhando na rua, sem noção de nada. Ia com mais uns cinco, porque eu achava que pra manter a forma era a corrida. É um esporte prático, você não precisava comprar kimono, não. É um tênis e boa disposição.
Quando aqui no Rio de Janeiro foi lançada uma cerveja chamada Kaiser - não sei nem se ainda existe porque, graças a Deus, eu não bebo - , eu participei dessa corrida, a primeira corrida minha profissional, vamos dizer. A Kaiser vai lançar uma cerveja e quem ganhar vai tirar uma grana. Quando falou em grana, então, eu falei: "Correr é o que eu faço, vou lá correr."
A largada foi na quinta da Boa Vista, andando lá por dentro que nada, tinha nego preparado, nego de quartel, não sei o que... E eu com dezessete, dezoito anos ia ganhar daqueles caras como? Eu falei: "Caramba, eu pensei que o negócio era fácil e é difícil." Eu não ganhei nada, acho que ganhei aquele negócio que cola em carro, mas serviu como experiência e dali eu peguei o entusiasmo. Fui para o quartel e no quartel a gente corria muito. Nunca mais abandonei essa coisa de correr, correr pra mim...
Fiz isso profissionalmente a partir de 1999. Por quê 1999? Eu participei da primeira meia maratona do Rio. Tem vulto nacional, nessa meia maratona vem gente de tudo que é parte do mundo. E profissionalmente eu estava lá. Eu falei: "Não, essa daí eu vou ganhar. Eu vou ganhar esse carro e vou ganhar esses dólares que estão falando aí." Era não quantos mil dólares que davam e a Fiat dava um carro zero. Eu falei: "É agora que eu vou, eu vou ter que ganhar." Mas que nada, eu comprei um tênis novo. Já fiz errado, porque você não pode correr com tênis novo, tem uma preparação especial. É tudo coisa que você vai aprendendo com o tempo, você novato. Lá fui eu meter o pé na meia maratona. Largamos em São Conrado, seguimos ali quinhentos metros na subida da [Avenida] Niemeyer, saímos na Rocinha. E eu pulando igual... "Por que esse pessoal não está correndo? Eu vou ganhar isso aqui fácil!" Existe uma técnica de corrida, isso você aprende, e eu pulando igual a macaco, pulando as calçadas. Quando chegou ao Hotel Shelton, aí sim, a corrida se decide dali, quem vai tirar em primeiro lugar ou não. Subir os quinhentos metros da Niemeyer foi fácil. O plano da Rocinha, melhor ainda. Quando chegou na descida, já pra sair no Leblon, que você passa no Hotel Shelton, ali já se decide. Aí o pessoal começa a correr e você já está cansado, pois vem de uma corrida de quinhentos metros subindo. E a descida? Ali, meu amigo, ali fica definido. O pessoal passando por você correndo, eu falei: "E agora os caras vão correr?"
Eu nessa época não tinha bandeira ainda. A bandeira veio pra mim em 2003, no falecimento do meu irmão eu peguei essa bandeira. E eles descendo o Leblon correndo, eu já fiquei... Eu pensei: "Eu tenho que fazer alguma coisa, tenho que me diferenciar nessa corrida. Já sei que ganhar eu não vou, ficou ruim pra mim." No Leblon eu já estava cansado, não tinha nem dois quilômetros de corrida eu falei: "Caramba, e agora? Ainda faltam mais vinte quilômetros pela frente." Eu não tinha noção do percurso, do que tinha pela minha frente. Eu sabia que eram 22 quilômetros, mas aonde eu ia, o que eu iria passar, eu não sabia. Cara, gente falando, passando por mim, eu falei: "Desse jeito eu vou ser o último, mas o último eu não vou ser, não."
Metendo o pé em tudo, comecei a fazer brincadeiras na corrida, tipo empurrando o colega da frente. Numa época tinham uns caras chamados Os Sombras, eles imitavam as pessoas que iam andando, eles iam atrás das pessoas. Os colegas passavam por mim e os colegas ao meu lado rindo. Eu falei: "Deu certo, eu estou fazendo palhaçada e o pessoal da plateia está batendo palma." Quando a gente passava na orla, beira de praia, o pessoal gostava da brincadeira que eu fazia. Corria lá na frente, eu fazia que estava puxando aquele cara, aí fui indo. Eu falei: "Bem, por aqui que eu vou." E completei o percurso.
Ganhei a medalha mais bonita que eu tenho, é essa da primeira meia-maratona. E tem duas da Adidas que eu fiz, tem a do Bosque da Barra e lá no Gericinó, duas medalhas muito lindas. Tinha umas 17.000 pessoas inscritas; eu devo ter chegado entre os 15.000. Foi difícil, você chega quebrado. Eu não tinha noção do que eu tinha que passar. A sorte é que eu procurei uma barraca de massagem, fizeram logo uma massagem em mim. Eu não aguentava dar um passo depois que saí da massagem. E pra voltar para Duque de Caxias de ônibus? Para subir na escada do ônibus? Eu sentei no ônibus e não queria mais sair. "Onde esse ônibus for, eu vou."
Mas na segunda já foi melhor. Na segunda eu já sabia o percurso, já sabia tudo: 21 mil pessoas inscritas. A largada, eu já sabia o percurso, pronto. Quando você sabe o percurso, onde você tem que correr e onde você não tem que correr, aí fica tranquilo. Tirei entre os três mil primeiros. Na quarta meia maratona fiquei mais pra trás, eu não estava treinando, mas sempre completei o percurso. Aí sim, em 2003 ganhei a bandeira depois do falecimento do meu irmão. Veio a falecer também a Gabriela Prado Maia, aquela menina que morreu no metrô no Rio de Janeiro, foi assassinada; eu fiz uma parceria com o pai e a mãe dela. A mãe dela infelizmente faleceu agora no mês de setembro, mas a luta nossa continua. A bandeira serviu pra isso, eu ganhei essa bandeira de uma pessoa do meu município. Ela achou que a bandeira serviria pra mim naquele momento. Eu botei um cabo naquela bandeira e corro com ela até hoje. Desde 2003, aonde eu vou, qualquer lugar que eu vou - hoje, por exemplo, não, mas com certeza eu vou voltar aqui com a Lídia em outro momento e vou trazer essa bandeira pra vocês verem.
O pessoal pergunta: "Como você faz?" Bom, você tem uma técnica pra bandeira também. Quando eu era fuzileiro naval, eram “Os dragões”: eles caminham com a bandeira, você tem uma técnica de caminhar com aquela bandeira sem ela te prejudicar muito, mas é difícil, porque se o vento não estiver ao seu favor é mais um peso pra você impulsionar aquilo. Então é isso, aonde eu vou com a bandeira, qualquer evento que tem que não seja coisa de política, eu estou envolvido com o pai e mãe dela. A gente junta alimentos e vamos em orfanato, asilo, onde tem pessoas com câncer; limpamos o banheiro, deixamos aquelas comprinhas para aquelas pessoas, naquele momento. É o que a gente faz com a bandeira da paz. Eles me convidaram: "Participe com a gente." Graças a Deus, aonde eu vou as pessoas me convidam; eu sou um, mas eles me chamam. Acham interessante eu estar ali com aquela bandeira naquele momento. Fiz um manifesto na missa de sétimo dia da Gabriela: eu fiquei no local onde ela faleceu, fiquei esperando com a bandeira aberta. As pessoas passavam, batiam palmas e eu calado, não me manifestava com nada. Na época que os Estados Unidos também invadiram o Iraque, eu fui para a porta do Consulado Americano aqui no Rio, fiquei na porta. Quase me prenderam, não podia fazer aquilo. Eu falei: "Eu sou cidadão brasileiro, não estou botando o nome de ninguém. É só a bandeira da paz, eu quero que a América pare com isso. Eu não acho justo que façam isso, é a minha maneira de me manifestar. Eu poderia estar jogando pedra em vocês. Eu estou quieto, estou me manifestando quieto." Chamaram a polícia, ela veio, eu me identifiquei: "Mas você não pode..." Eu falei: "O senhor é brasileiro, eu também sou. Se eu estiver impedindo alguma coisa, o senhor vai ter de me levar pra delegacia, a gente vai ter que fazer." O guarda achou por bem me deixar ali mesmo porque eu não estava fazendo nada de implicância com ninguém. E já pai de cinco meninas, hein?
Eu fiquei meio perturbado, conturbado. A ficha caiu quando meu irmão faleceu. Com esse falecimento do meu irmão, eu fiquei de… 2003, 2004 me deu uma balançada. Um dia eu larguei tudo, não corri mais. Só não larguei a família, mas o resto... Deu-me uma balançada, porque quando você perde um tio que mora não sei onde, mas quando é seu, que está dentro do seu lar e você não vai mais ver aquele prato na mesa, doeu. Aquilo doeu bastante.
Eu já me recuperei dessa coisa. Como é que eu me recuperei? Através da bandeira e aonde ele vai, eu acho que aquela bandeira... Alguém de outra religião, eu não sei, eu acho que aonde aquela bandeira vai, eu acho que é ele que está ali comigo. Então, onde tem coisas do bem, eu estou ali com aquela bandeira.
P/1 – O que tem desenhado na bandeira?
R - Uma pomba, escrito “paz”. A bandeira é branca e uma pombinha da paz com as
asas abertas e escrito “paz”.
P/1 – É um movimento que você está levando no dia-a-dia?
R - Com a morte agora da Cleide eu fiquei de novo quase que caído. Também participei das “motosseatas” que saem do Leblon. A que teve dia 21 passado eu não pude ir, eu estava fazendo uma prova do IBGE, estava aplicando prova e não pude ir. Mas eu liguei pro Santiago, que é o marido dela, pai da Gabriela e falei: "Santiago, eu não posso ir, cara, porque eu estou aplicando a prova do IBGE. Já estava na grade, eu não tenho como ir, desculpa." Pedi desculpas a ele. Nas duas últimas eu fui, nessa realmente eu não podia. Logo essa após o falecimento dela, eu gostaria muito de ter ido nessa, mas eu estava compromissado.
Eu acho que compromisso é tudo. Se você tem um compromisso, cumpra e depois ele vai entender, com certeza. Eu não estive com ele mais depois do momento. Mas é isso. O que a Gabriela, o grupo “Diga Não à Impunidade” faz, a gente está presente.
Eu fui convidado a ser o primeiro secretário, cada município tem o chamado Conselho Comunitário de Segurança. O nosso, de Caxias, não é diferente. Existe dentro do 15º Batalhão o Conselho Comunitário de Segurança, que é chamado CCS. As ISP, que é Área de Segurança Pública, manuseiam esse conselho no qual eu fui eleito agora em setembro, dia 17 de setembro. Eu sou o primeiro secretário do conselho. Comigo são mais quatro pessoas: Tem o presidente; o vice-presidente, que é o próprio comandante do batalhão; tem a professora Cátia; tem um rapaz que é presidente da associação de moradores e tem uma pedagoga que ela tem uma "ongzinha", uma ONG, estamos tentando dar uma força pra ela. Estamos dando uma força na ONG porque ela passa [por] muitos apertos e não estão dando respaldo a ela. Ela levou vários assuntos para o Conselho Tutelar e não tem tido respaldo, então para se fortificar, ela fez a chapa dela no conselho e foi eleita, graças a Deus. Agora, como conselheira também de segurança, com certeza… Esse ano é ano eletivo, a gente está quase parado de tudo, mas com certeza em janeiro de 2009 a gente vai ajudar em alguma coisa.
P/1 – Carlos, você...
R - Dessa porta eu poderia falar e o que eu quisesse falar, alguém iria ouvir. Mas, eu estava quase desesperado porque aconteceram tantas coisas que eu falei: "Poxa, gente, eu tirei tanta foto, tanta corrida, tanta coisa que passou na minha vida e eu vou levar isso embora pra mim? Não vai ficar isso no mundo?”
P/1 - Carlos, você é uma pessoa que tem uma história toda cheia de vitórias, responsabilidades, eu vi que você tem também muita disciplina. Você tem um relógio aí contando o seu tempo e muita ação também. Como você se organiza com toda essa disciplina e com toda essa programação gigantesca que você faz?
R - É, você pegou num ponto básico que de repente vai servir pra todos que estão nessa sala. O que acontece com o Carlos Eduardo?
Eu tenho uma disciplina que é o seguinte: cinco e vinte da manhã eu já estou levantando, porque eu tenho que botar uma criança às sete horas na escola. Cinco e vinte da manhã, você pode ir à minha casinha que eu já estou lá levantando. Segunda, quarta e sexta é dia do lixo, eu tenho que botar o lixo pra fora, abro a locadora de vídeo onde eu trabalho, abro, limpo a sujeira do dia anterior. Compro pão, dou café a minha filha. Mas minha esposa também ajuda, ela levanta minha filha, arruma minha filha, penteia, enquanto eu estou comprando o pão na padaria. Chego em casa, corto o pãozinho dela, boto o cafezinho dela, porque eu gosto de botar a alimentação delas. A mulher faz, mas eu boto naquelas bandejinhas tipo de Mcdonalds, boto na mesa: "Filha, o café está aqui." Enquanto ela está tomando o café dela eu estou fazendo meus exercícios, isso pra mim é fundamental. Se eu não fizer exercício por algum motivo, aquele dia pra mim não vai ficar legal, então eu tenho essa disciplina do exercício. Eu faço meia hora de exercício. Acabo de fazer o exercício, corro, tomo banho, tomo café, cinco para as sete eu a deixo na escola. Voltei, vejo o que eu tenho dentro de casa, se é dia de compra. Todo dia eu tenho que ir ao mercado, todo dia, porque é aquilo que eu falei, lá em casa é um hotel cinco estrelas. Às sete e meia eu pego essas duas menininhas que a minha mulher toma conta desde os três meses de idade, que são a Caroline, a Beatriz e a Ana Clara. Elas estão com a gente desde bebezinhas, a mãe delas confia a minha esposa tomar conta delas. Pego elas às sete e meia, deixo em casa, vou ao mercado, vou na geladeira e vejo: hoje é dia de carne moída com legumes. Vou ao mercado, ajudo a mulher descascar, porque ela está olhando a menina, eu tenho que contribuir de alguma forma. Eu fico muito chateado quando eu não posso fazer, eu gosto de fazer descascar o legume, cortar. Então esse lance de comida é essencial pra mim, o básico pra mim é o café da manhã e o almoço. Como é que eu faço o feijão? Eu boto dentro dele beterraba, quiabo, tudo que eu tiver dentro da geladeira, eu boto. No mínimo cinco, é o mínimo, mas se tiver 20, vai as vinte lá dentro. Claro, não exagerar, eu boto meia beterraba, meia cenoura. Tem gente que diz que perde a vitamina, mas tem gente que diz muita coisa hoje e amanhã está descontradizendo isso. A gente tem que ficar muito atento a isso.
Eu conheço pessoas que diz assim: "Hoje eu sou secretário e amanhã eu não posso ser." Então aquele cara ali não é nada. Ou você é professor de essência, você tem que ter essência. Você nasceu pra aquilo, procura saber para o que você nasceu, com o que você se identifica. Fazer entrevista com as pessoas? Então faça o melhor de você, dê sua essência, porque você é aquilo sua vida toda. Não é porque você está num cargo, amanhã pode não ser. Então você fala aquilo. Meu pensar, tá? Você tem que ser o melhor, dar o melhor de você. Quando eu me propus ser o Carlos Eduardo, atleta, professor, me dedicar ao kung fu, eu quis aprender a essência, quis ir lá na base: porque que o kung fu veio? Por que isso?
Na minha família a mesma coisa, eu quero dar uma estrutura para as minhas filhas que estão vindo agora, porque eu sei que isso vai ser essencial para elas. Tem muitos que não. Quando eu botava os legumes na mesa, elas: "Ih, pai, isso não." Eu comecei a botar os legumes dentro do feijão. Hoje em dia elas até pedem. A minha mãe faz o jiló; minha filha mais velha adora o jiló, aquela coisa amarga, ela come tudo. Antigamente precisava dar cinquenta centavos para cada uma comer a metade de um, senão elas não comiam também, a não ser quando estava no feijão escondidinho. Mas agora não, agora elas comem numa boa porque eu sei que aquilo vai ser uma base para elas no futuro.
Lá em casa, cara, a mais velha está com dezenove anos, se ela entrou no hospital duas vezes foi muito. Foi logo que ela nasceu mesmo, porque tinha que sair e outra pra alguma coisa, mas é difícil eu ter que ir ao hospital lá em casa, graças a Deus. Nunca quebramos nada de braços, ossos. Já passei pra elas exercícios, elas sabem, mas não é a praia delas. A praia delas é outra, eu não insisto nisso, mas pelo menos elas têm o básico e eu me sinto muito feliz com isso.
P/1 - Essa marcação que você faz nos momentos que você tem que levar sua filha,
acordar, você as planejou junto com sua esposa? Como foi?
R - Não, eu realmente me planejei sozinho, até porque o horário nós dois sabemos, alguém tem que ficar responsável por aquele horário. Quando eu não estou, ela está fazendo o que eu estaria fazendo.
P/1 - E você começou a colocar isso mais no seu dia-a-dia quando você entrou no exército?
R - Não, o exército não influenciou muito na minha vida, não. Infelizmente, seria uma coisa que poderia. Eu penso assim: que todo cidadão deveria servir às forças armadas, tanto o menino como a menina deveriam passar lá, porque existe uma disciplina, mas não foi lá que eu tive disciplina. A disciplina quem me deu foi eu mesmo, automaticamente na minha vida, peneirando - voltando aquele assunto, vou peneirar o que serve na minha vida: acordar cedo vai me ajudar alguma coisa na minha vida? Vai, então vamos acordar cedo, antes do sol nascer. Tem um ditado chinês que diz que é melhor você acordar antes que o sol nasça do que quando ele já está nascido.
P/2 - Você encontra resistência nesses trabalhos que você faz nas escolas? Você encontra resistência das pessoas quando você coloca essa disciplina?
R - Sempre. Tem sempre. Até no conselho tem uma mãe que questiona isso. Ela questiona: "Ah, minha filha... Sua família é sua família, a minha é a minha." Eu penso comigo: "Pô, como é que está a família dessa senhora?" A filha dela, com quatorze anos, já está namorando, eu tenho uma com dezenove que me pediu autorização agora pra namorar. Eu fico analisando. !Tudo bem, senhora, é só o meu ponto de vista” Quando alguém me diz que eu estou errado, eu nunca entro em atrito. “Não, tudo bem.” É uma coisa minha. E analiso a vida daquela pessoa, o pouquinho que eu conheço. Essa mãe, eu conheço muito bem e infelizmente a filha dela, com quatorze anos, já está namorando. Não que seja pecado, pelo amor de Deus, eu não estou aqui pra isso, mas eu vejo dela com quatorze namorando e a minha com dezenove pedindo agora pra namorar, aí vem a interrogação: “Mas, Eduardo, será que com dezenove ela já não namorou e você não sabia? Você não a acompanha 24 horas.” Realmente eu não estou, mas eu sei como eu criei dentro da minha casa, eu conheço os meus, então eu tenho essa segurança. Eu sempre converso com elas: "Minha filha, vai namorar? Primeiro converse com o papai e com a mamãe." É o que eu sempre converso com os alunos também. Segundo ponto, se precaver: "Use a camisinha. Não é pra você usar, mas se for o caso, você use sempre a camisinha e depois converse com o papai e com a mamãe pra gente ver o que faz.”
P/1 - Carlos, me conta uma coisa: você já falou que gosta de maratona e que tem um cotidiano bem bacana.
R – Adoro, adoro, maratona... A gente não deve dizer essa palavra "adoro", que adorar só a Deus, mas eu...
P/1 – O que mais que o Carlos gosta de fazer?
R - É a sobremesa, minha sobremesa é correr. Fiquei impossibilitado uns dois anos atrás, porque eu senti muito as pernas. Eu estava fazendo um tratamento para as pernas, eu mesmo. Eu não procuro médico pra nada. Não, só se estiver quebrado alguma coisa e tiver que ir pro médico, igual quando aconteceu um acidente de carro. Mas chegou ao hospital, eu falei: "Olha, não precisa. Eu não quero tomar remédio, eu não quero tomar nada." Só bateram a chapa pra ver se eu não tinha quebrado nada - não tinha, graças a Deus, até porque os ossos são resistentes, eu trabalho essa coisas de resistência muscular. Graças a Deus que quando houve a pancada comigo eu sabia, eu estava bem, eu estava consciente. Só desmaiei na hora por casa do cérebro; ele deu 360 graus, então apagou alguma coisa do sistema, foi o que aconteceu comigo. O bombeiro me acordou, eu levantei, a primeira coisa que eu olhei foi os meus braços. Eu estava bem, olhei meus braços, estava sentado, então tudo bem. O bombeiro falou: "Vamos colocar o colar." Mas chegando ao hospital eu falei: "Eu não quero tomar remédio, nada, eu me responsabilizo." E fui pra casa numa boa. Mas quando chegou em casa, que o sangue esfriou, realmente eu não pude me mexer, fiquei quinze dias parado. Mas eu não tinha quebrado nada, só tomei mesmo a sopa que a minha mulher fazia. Eu não uso remédio pra nada.
A minha esposa, por ser de outra família, ela usa remédio de dor de cabeça. Ela está sempre com uma dor de cabeça muito constante, então agora está fazendo tratamento. Tomara que ela melhore, ter uma parceira ao meu lado. E minhas filhas, graças a Deus, são todas iguais a mim, são todas de ferro, todas. É banho gelado tantas horas da manhã se precisar sair cedo, é banho gelado de noite. A gente tem uma regra legal, eu acho legal essas coisas na minha família.
P/1 - E o que mais vocês gostam de fazer? Vocês já foram viajar para algum lugar em família? Alguma festa? Alguma coisa marcante?
R - Ah, a gente sempre faz. Por exemplo, quando eu estava na Vasp, a gente teve um passeio num sítio. Foi todo mundo pro sítio; elas ainda estavam pequenininhas, tinha toboágua, tiramos foto lá no toboágua.
De vez em quando elas vão pra Jaconé - nem conheço Jaconé, conheço de nome. É uma praia litorânea aí pra cima, depois de Niterói. Elas sempre vão pra casa de uma cunhada que eu tenho lá, elas têm uma casa de praia, de veraneio. Nunca me bateu a coisa de ir lá, eu só pretendo ir lá quando comprar o meu carrinho e está perto de este sonho de acontecer, aí eu levo a minha família. Nunca gostei de carona, de ficar dependendo dos outros.
O Carlos Eduardo, ele é muito autônomo, ou eu tenho ou eu não tenho. Sempre que posso, como pobre, eu procuro levá-las. Por exemplo, teve um evento da Petrobras em Caxias há uns três anos, tinha as tartaruguinhas nas poças. Eu saí a pé da minha casa, andamos mais ou menos dois quilômetros a pé, um pra ir e uma pra voltar, eu com as minhas filhas. Com as mais novinhas, na época uma tinha três, outra tinha quatro. Chegamos lá, elas visitaram as tartarugas, tiramos foto. Acabou, viemos embora a pé. Passamos no shopping, fizemos um lanchezinho. Eu evito essa coisa de shopping, não temos muita essa coisa de hambúrguer. Só quando tem promoção de brinquedinhos, que as duas pequenininhas querem, eu falo: "Bom, vamos juntar o útil ao agradável, compro o brinquedo com o sanduíche que elas estão comendo." Mas evito.
P/1 - Me conte quais são as suas expectativas, planos, um sonho, daqui pra frente, o que você tem passado.
R - Exatamente, é aquilo que eu estava lhe falando. Eu tenho um pedaço da Amazônia ainda, que é o meu terreno. E se Deus quiser, eu tenho certeza disso, que eu vou fazer uma casinha lá do meu jeito. Eu até fiz, agora tem três anos que eu tenho uma casinha super novinha lá, do meu jeito, do jeito que eu sempre passei pelas casas dos outros, como eu trabalhei com a minha mãe numa época da minha vida eu também.
Minha vida foi muito corrida, eu trabalhei desde pequeno. Teve uma época da minha vida que com quinze anos eu era mordomo - eu me esqueci de falar isso pra vocês, com quinze anos eu era mordomo de uma pessoa aqui na Gávea, ela era dona de dois hotéis em Ipanema, o Hotel São Marcos e o São Lucas. Na casa dela, ela era uma mulher tão rica na época que a casa dela não era pintura, era seda nas paredes, uma decoração de China, era seda. E eu criança, jovem, estava na casa dela e ela me deu oportunidade pela aparência. Eu vi o anúncio no jornal, bati na porta da casa dela, ela mesma me atendeu naquela porta dos fundos: "Eu vim pelo anúncio do jornal." Eu tinha altura, sempre fui altão. Dezessete anos, magro - dezessete não, quinze anos, magro.
Eu fui à casa dela, ela abriu, me apresentou. Eu expliquei o que queria fazer: "Eu queria a vaga de copeiro." Fui para copeiro, lavar copo lá. Ela falou: "Tudo bem, eu vou lhe dar a oportunidade. Eu também tenho um filho com seu nome, Carlos Eduardo." Ela tem um filho chamado Carlos Eduardo, tinha uma menina chamada Viviane e tinha outro chamado Rodrigo. O marido dela quase eu não conhecia, nesses dois anos que eu trabalhei lá, se eu vi duas vezes o marido foi muito. Deu-me oportunidade, fiquei na casa dela, fazia de tudo. Eu era igual a empregada doméstica, só tinha uma folga de quinze em quinze dias. Eu limpava janela, limpava privada, o banheiro da casa dela; eu fazia tudo. Chegou num ponto até de conversar com a cozinheira que trabalhava lá. Eu tinha que conversar com a cozinheira pra saber se a cozinheira tinha procedência boa, eu tinha que telefonar para o telefone que ela dava como referência e ela deixou essa função na minha mão.
Eu só achava chato na hora de polir prata, caramba! Como eu ficava brabo com aquilo de polir. E ela tinha prata, hein? Tinha muita prata. Eu limpava o que ela gostava de polir. Eu nunca tinha sabido o que era servir à francesa; pra mim, servir à francesa era uma coisa de outro mundo. Um dia ela falou: "Hoje você vai servir à francesa." Eu falei muito bem, servir à francesa! Ela falou: "Às sete horas você esteja aqui de banho tomado na sala." Deram sete horas, botei a roupa, fiquei lá esperando. Ela falou: "Você sabe o que é servir à francesa?" "Não, como é à francesa?" Aí ela me explicou, a madame, doutora Sinia. Ela me ensinou o detalhe do pão, os garfos, as posições de garfo, talher, tudo. Eu falei: "É isso?" Ela falou: "É, não tem problema. Quando eu der algum jantar aqui em casa, você já vai se aperfeiçoando mais." Fiquei dois anos nessa casa, só saí mesmo porque...
Ah, tá! Eu fiz uma bagunça lá um dia. Ela saiu pra viajar, foi pra outro país, nem sei pra onde ela foi. Ela quase não dizia, só falava: "Estou viajando, qualquer coisa você fala com a cozinheira." A cozinheira já era maior de idade e eu era menor. A responsável era a cozinheira, era Sofia o nome da cozinheira, ela era do Sul. "Então quando for sua folga, você vai. Eu estou deixando o dinheiro, você vai. Daqui a uns quinze dias eu estou de volta, mas a sua folga já está vindo, é sábado, então você vai pra casa." As crianças iam pro colégio às sete horas da manhã - os filhos, crianças que eu falo, já estavam tudo na faculdade. Eu que lavava os carros pra eles irem, ela tinha motorista particular, que era um Landau que ele dirigia pra ela e pro marido. Quase eu nunca via o marido, mas ela eu sempre via.
Eu que lavava os carros. Mas aí eu, com a chave do carro, eu quis andar no carro e não sabia nada de carro. Meti a chave na ignição, o carro pegou, eu falei: "Beleza!" E lá era um condomínio fechado, um negócio esquisito, uma rampa pra você subir e sair num lugar plano. Meti a chave no Landau. O motorista escutou, ele veio: "Ó, não mexe no carro, não, senão ele vem brigar com você." Sorte minha, ele pegou a chave, eu lavei o carro e ele foi embora. Mas no outro dia ele estava de folga, não estava. E ela tinha um carro americano, aqueles carros que tem uma madeira em volta, tipo umas peruas, um carro bonito que ela trouxe lá de fora. E ela tinha uma Fiat pequenininha americana também, americana ou italiana, sei lá de que diabo aquele carro era. Hoje em dia eu tenho noção do que eu fiz: entrei no carro dela, lavei, tudo bonitinho porque ela ia chegar no sábado. Peguei o carro dela, ela saía pra passear com aquele carro. Lavei a "fiatzinha" dela, azulzinha, bonito o carro. Eu falei: "Ah, esse aqui eu dirijo, pequenininho." O outro era grandão, a marcha do Landau era em cima e o outro era com o câmbio embaixo. Eu falei: "Eu tenho uma noção pra dirigir." Meti a chave, eu não sei o que fiz e saí com o carro, subi a rampa. A sorte é que o porteiro viu e falou: "Oh, rapaz, você não ande com esse carro, não. Se baterem o carro deles..." Me explicou. Quinze anos, eu não tinha juízo ainda. "Olha, você não dirija esse carro, esse carro é caro." Me explicou tudinho, pegou a chave: "Vamos descer do carro e pronto."
Acho que o que o porteiro falou com o patrão. O patrão, quando chegou de viagem, me chamou. Foi uma das últimas vezes que eu vi o patrão, doutor Marco: "Olha, seu Eduardo, você está com dezessete anos agora. Você vai ficar aqui e quando estiver na época de tirar sua carteira, nós vamos tirar sua carteira. Mas por enquanto se atenha só a lavar os carros. Tá bom pra você? Você entendeu essa parte?" Eu falei: "Sim, senhor." E não mexi mais no carro.
Não fiquei até a época que ele queria. Eu tinha que servir às forças armadas, foi quando eu abandonei a casa deles. Fui servir à pátria e ficou pra trás essa coisa do passado. Mas foi outra experiência que eu tive de vida também.
P/1 – Qual a expectativa pra sua nova casa que você quer fazer?
R - Então, eu quero fazer uma casa igual a que eu vejo aqui. Eu gosto desses detalhes aqui, coisas rústicas, eu acho importante esse contato com a natureza. Eu quero fazer nos fundos da minha casa, onde está o rio, quero sair dele. Eu acho que esse passo que eu vou dar, eu estarei dizendo pra ele que a vida toda ele me derrubou, mas agora eu que vou derrubá-lo. Eu vou ficar acima dele, porque a minha casa é muito baixa e ele entrava na hora que quisesse. Eu pretendo fazer as colunas e fazer em cima dele, pra dizer pra ele em outros termos que agora eu sou mais do que ele. Eu quero fazer a minha casinha do meu jeito, um quarto confortável para as meninas, o meu quarto confortável. É o que eu pretendo fazer, bem simples, nada de... Bem simples, coisas simples, mas eu quero fazer a minha casa do meu jeito, que até hoje não fiz.
P/1 - Carlos, o que você achou de dar essa volta no túnel do tempo com a gente, contar essa sua história?
R - Muito importante. Acho que todo ser humano devia ter, receber isso que vocês fazem. Eu acho muito importante o trabalho de vocês. Vocês ficaram ali, me olhando, vendo uma pessoa pela primeira vez na vida de vocês. Não sabem a procedência desse cara, em qualquer momento poderia puxar um revólver e prender todo mundo, alguma coisa assim, qualquer coisa louca que o mundo oferece.
Você pode ter certeza que na frente de vocês tem um pai de família e um cara que vai fazer 44 anos agora em outubro, dia nove, está pertinho aí. É um cara que ainda está na luta e se Deus quiser, enquanto ele me der vida e saúde, eu vou fazer por mim. Aquilo que sobrar pra mim eu vou dividir com os meus que estão à minha volta, é o que eu faço.
Achei muito importante, acho que todo ser humano devia ter oportunidade, ou numa escola, alguma coisa, eu sempre acho que devia conversar com o pai daquele aluno que eu acho que é bagunceiro. Não condená-lo porque ele é bagunceiro, tem que ver o porquê dele ser bagunceiro, se está tendo oportunidade em casa. Eu não tive oportunidade, eu tive que fazer oportunidades, a vida quase não me deu oportunidade de nada. Eu que tinha que buscá-la. Eu tinha que ser o garotinho bonzinho pro patrão da minha mãe me dar o carrinho. Eu tinha que ser o aluno super quieto porque era filho de pobre, o mais pobre da sala, então o mais pobre era sempre o mais visado. Eu sempre tive que me destacar. Eu sempre falo para os alunos o seguinte: "Olha, você já é um vencedor porque entre não sei quantos milhões de espermatozóides, você está aqui, você venceu, você viveu, então procure o que lhe interessa na vida. Qualquer dificuldade, qualquer tentação que vocês caírem, vocês me procurem. O que eu puder, eu vou fazer por vocês.”
P/1 - Eu queria agradecer em nome do museu. Acho que poderíamos delongar essa
entrevista por dias e dias, mas vamos finalizando, agradecendo.
R - Pena, a gente poderia ficar aqui falando uma vida. Eu contei, acho que praticamente a metade dela. Acho que ainda tem muita coisa pra fazer. Com certeza eu, com 80 anos, ainda vou estar aqui sentado, contando dos 44 aos 80. Daí que eu vou estar falando da minha vitória mesmo. Até então só foi uma base, eu me alicercei. É daqui pra frente que eu vou me doar mesmo, é daqui pra frente, porque agora é que eu peguei impulso. Agora é que eu vou pra frente, eu tenho certeza disso.
P/ 1 – A gente deseja muita sorte na sua caminhada.
R – Ok, obrigadão!
P/2 - Obrigada, Carlos, muito legal!
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