CTG - Imigração Chinesa
Depoimento de Wally Chan
Entrevistado por Grazielle Pellicel e Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Rio de Janeiro, 20/10/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1126
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:32) P/1 - Oi, Wally, tudo bem com você?
R - Tudo bem. E com você, Grazi?
(00:36) P/1 – Que bom! Tudo ótimo. Nós começamos pelo básico sempre: qual seu nome, local e data de nascimento?
R - Meu nome completo é Wally Fonseca Chan Pereira. Eu nasci em oito de junho de 1937. Esse Fonseca é do meu avô, que também era chinês, mas quando ele chegou aqui na imigração, eles deram outro nome. O nome dele era Hansei e deram o nome de Antônio Fonseca. Eu julguei que eles não tivessem entendido e tivessem colocado [esse nome], mas há pouco tempo eu soube que [para] os imigrantes que chegavam, eles davam nomes cristãos. Eles trocavam os nomes dos chineses que chegavam aqui ao Brasil, então eu tenho esse Fonseca, que seria outro sobrenome.
(01:43) P/1 - E em que cidade você nasceu?
R - Eu nasci aqui no Rio de Janeiro, mesmo. Meu pai veio com onze anos aqui para o Rio de Janeiro. Mais tarde ele conheceu minha mãe, com 21 anos, e eles se casaram.
(02:03) P/1 - E o que seus pais faziam?
R - Meu pai vem muito jovem para aqui para o Brasil. Embora ele tivesse onze, ele veio com um passaporte dizendo que tinha quatorze anos porque, na época, a idade mínima para viajar desacompanhado seria com quatorze anos e ele não tinha, então ele veio com esse passaporte.
[Quando] ele chegou aqui no Rio de Janeiro, o pai já estava, o pai dele, Chan Tsick Ip já tinha vindo. Eu, há pouco tempo, numa pesquisa, estudando também a vinda do meu avô, soube que ele vinha para os Estados Unidos, mas os Estados Unidos não aceitaram naquela época, não estavam aceitando imigração de chineses. Ele então tentou vir para Buenos Aires, mas acabou saltando aqui no Rio de Janeiro. Gostou daqui e...
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Depoimento de Wally Chan
Entrevistado por Grazielle Pellicel e Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Rio de Janeiro, 20/10/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1126
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:32) P/1 - Oi, Wally, tudo bem com você?
R - Tudo bem. E com você, Grazi?
(00:36) P/1 – Que bom! Tudo ótimo. Nós começamos pelo básico sempre: qual seu nome, local e data de nascimento?
R - Meu nome completo é Wally Fonseca Chan Pereira. Eu nasci em oito de junho de 1937. Esse Fonseca é do meu avô, que também era chinês, mas quando ele chegou aqui na imigração, eles deram outro nome. O nome dele era Hansei e deram o nome de Antônio Fonseca. Eu julguei que eles não tivessem entendido e tivessem colocado [esse nome], mas há pouco tempo eu soube que [para] os imigrantes que chegavam, eles davam nomes cristãos. Eles trocavam os nomes dos chineses que chegavam aqui ao Brasil, então eu tenho esse Fonseca, que seria outro sobrenome.
(01:43) P/1 - E em que cidade você nasceu?
R - Eu nasci aqui no Rio de Janeiro, mesmo. Meu pai veio com onze anos aqui para o Rio de Janeiro. Mais tarde ele conheceu minha mãe, com 21 anos, e eles se casaram.
(02:03) P/1 - E o que seus pais faziam?
R - Meu pai vem muito jovem para aqui para o Brasil. Embora ele tivesse onze, ele veio com um passaporte dizendo que tinha quatorze anos porque, na época, a idade mínima para viajar desacompanhado seria com quatorze anos e ele não tinha, então ele veio com esse passaporte.
[Quando] ele chegou aqui no Rio de Janeiro, o pai já estava, o pai dele, Chan Tsick Ip já tinha vindo. Eu, há pouco tempo, numa pesquisa, estudando também a vinda do meu avô, soube que ele vinha para os Estados Unidos, mas os Estados Unidos não aceitaram naquela época, não estavam aceitando imigração de chineses. Ele então tentou vir para Buenos Aires, mas acabou saltando aqui no Rio de Janeiro. Gostou daqui e ficou. Também soube que ele foi um dos pioneiros, aqui no Rio de Janeiro.
Soube também há pouco tempo que ele veio fugido de uma guerra que estava acontecendo lá no norte da China. O Japão estava invadindo a China e eles tinham, no sul da China, em Guangzhou - diz-se Cantão aqui no Brasil - na vila de Suinan, uma loja de artigos diversos. A minha avó era quem tomava a conta da loja e meu avô era professor. Com receio dessa invasão e com, naturalmente, um dinheiro que havia juntado, ele veio para... Queria sair da China, né? Inicialmente pros Estados Unidos, porque tinha parentes lá nos Estados Unidos e depois, como havia outros chineses chegando, vindo aqui para o Brasil. Ele então veio num navio holandês para o Brasil.
Quando meu pai chegou, o meu avô já estava estabelecido e tinha comprado um restaurante. Meu pai, então, veio ajudar meu avô. Eu sei que ele foi à escola, ele dizia que foi à Escola Tiradentes, ali no Centro do Rio de Janeiro. Eu sei por que ele dizia: "A professora me levava de sala em sala, para eu mostrar como fazia o origami". Ele fazia diversos origamis, de cavalinho, de pássaros e a professora o levava de sala em sala, para mostrar. Ele realmente tinha uma letra muito bonita e escrevia muito bem, então deve ter frequentado um tempo a escola, antes de começar realmente a ajudar meu avô no restaurante. Meu avô era proprietário do restaurante.
(05:46) P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe era do lar, se dizia antigamente do lar. Doméstica, ela nunca trabalhou. Ela chegou a trabalhar numa época e justamente foi aí que ela conheceu meu pai, no caixa do restaurante do meu avô. Então, eles se conheceram, se apaixonaram, meu pai era loucamente apaixonado pela minha mãe. (risos) Eu assisti diversas cenas de ciúmes dele, porque ninguém podia olhar pra minha mãe. (risos) Eles foram sempre muito apaixonados, até o final da vida eu sentia muito amor entre eles.
(06:32) P/1 - Na sua família tinha algum costume especial entre vocês?
R - Costume? Durante a semana, as atividades normais: as crianças iam pra escola, os adultos tinham, cada um, seus afazeres, os seus trabalhos, meu pai trabalhava muito. Mas nos finais de semana nós passeávamos, sempre. Tenho até fotos dele comigo e meu irmão no Passeio Público, ali na Cinelândia; o jardim era muito bonito na época. Nós íamos ali pra Praça Paris, porque morávamos no Centro.
Na minha infância o Rio de Janeiro, primordialmente, era o centro da cidade. Nas férias eu me lembro que nós fomos à Conservatória, sempre perto, nos arredores do Rio de Janeiro. Ele alugou uma casa na Ilha de Paquetá, nós passamos umas férias lá em Paquetá; ele gostava muito de nadar, nadava muito bem. Ele pescava siri, pescava camarão com uma lanterna. Eu me lembro, pequena, de vê-lo pescando. Então, se resumia nisso. Durante a semana a escola das crianças, os adultos trabalhando e nos finais de semana, religiosamente, nós passeávamos.
(08:26) P/1 - Eu me perdi e acabei não perguntando: qual é o nome da sua mãe?
R - Marina Fonseca Chan.
(08:36) P/1 - E quantos irmãos você tem?
R - E meu pai Walter Chan. Se bem que o nome dele em chinês é Chan Seo Hong.
(08:47) P/1 - E seus irmãos, quantos você tem?
R - Nós éramos três, eu [sou] a mais velha e mais dois irmãos: o Charlie Chan e o mais novo é Wellington Chan. O do meio, o Charlie, era dentista - os dois já [são] falecidos - e o Wellington foi inicialmente do Colégio Militar, mas ele não se deu bem na carreira militar. Depois ele foi fazer Administração e esteve um tempo administrando o restaurante do meu pai.
(09:29) P/1 - E sobre o restaurante, era que tipo de comida? Era chinesa, mesmo?
R - Não, era um restaurante de comida popular. A revista A Cigarra, acho que de maio de 1950, fotografou até o meu pai no restaurante. A reportagem é: "Chineses no Brasil" [mostra a revista] Você está vendo? "Chineses no Brasil". Aqui está meu pai, no caixa do restaurante. Meu avô, Chan Tsick Ip, colecionava selos. Aqui faz a referência [de] que ele era professor lá na China. (risos) Ele escrevia versos e colecionava selos.
Eu nunca vi realmente meu avô trabalhando muito, não. Eu me lembro [que quem] trabalhava muito era meu pai, mas meu avô era mais intelectual, não era empresário, não.
(11:05) P/1 - Na sua infância, você lembra da casa que você passou? Você consegue descrevê-la?
R - Eu me lembro de nós mudarmos muito nos sobrados do Rio de Janeiro. Um sobrado que eu me lembro muito mesmo era naquela Rua Júlia Lopes de Almeida - hoje é Rua Júlia Lopes de Almeida, naquela época era Travessa de Oliveira - entre a Rua dos Andradas e acho que a Senador Pompeu, bem perto da Avenida Marechal Floriano, onde meu pai tinha o restaurante. Eles vieram e compraram esse restaurante.
Eu queria fazer um parêntese, porque isso foi um achado agora: eu soube que esses chineses que vieram nessa época pro Rio de Janeiro e se estabeleceram por ali, pela Avenida Marechal Floriano, Praça Tiradentes, eles não eram agricultores; eles eram todos de uma classe média, vieram fugidos da guerra do Japão. E eles vinham com um certo capital, por isso que puderam adquirir esses restaurantes no Centro do Rio de Janeiro. Então... eu me perdi agora. Eu me perdi, porque eu estava contando…
(12:48) P/1 - A gente estava falando sobre a casa da sua infância, o sobrado...
R – As casas! Pois é. O sobrado era paralelo à Avenida Marechal Floriano. Eu morei num sobrado na Rua da Conceição, que é ali próximo, morei em outro sobrado ali nessa Travessa da Oliveira, porque era perto da minha escola. Eu estudei numa escola particular inicialmente, foi a única escola particular que eu estudei; foi no primário, depois o ginásio e a faculdade foi no ensino público.
Eu me lembro desse sobrado. Era no segundo andar na Travessa do Oliveira - eu tinha vontade até de voltar - no número nove, segundo andar. Os cômodos eram muito grandes, bem espaçosos; o chão de madeira, tábua corrida e o banheiro era do lado de fora, na área. Tinha uma área descoberta, que eu me lembro com muita... Uma sensação gostosa, boa, no verão, no blackout - era época da guerra, nós tínhamos que jantar à luz de velas. Essa sensação é muito gostosa, quente; com aquelas velas acesas dava um ambiente bonito, gostoso, na época da guerra. Eram ensaios que faziam de todas as cidades ficarem às escuras, então se dizia que àquela hora era de blackout, todos tinham que apagar as luzes. Engraçado que eu nunca ouvi ninguém relatar esse episódio da história do Brasil, dessa época de guerra, em que se tinha que fazer isso.
Eu me lembro desse... Ah, eu ainda tomei banho de bacia, bacias grandes. Ainda tinha em casa o urinol, que ficava... Porque o banheiro era fora de casa, era depois da área, no sobrado, então ainda se tinha o urinol, (risos) que hoje não se tem mais. São lembranças que você está me fazendo ter agora.
(15:29) P/1 - E a sua família, ao chegar ao Brasil, conseguiu se habituar bem?
R - Eu creio que sim, porque meu pai, como veio muito jovem... Minha avó ficou na China, ela ficou tomando conta da loja que eu disse que tinham. Ela não quis vir para o Brasil, disse que já estava acomodada, tinha o restante da família pra tomar conta. Ela nunca quis vir ao Brasil, mas há um fato curioso: quando meu avô chegou aqui no Brasil, soube que ela estava grávida. Esse filho veio anos depois, mais ou menos na época do comunismo, na década de cinquenta. Ele custou muito a vir para o Brasil, meu pai tentou diversas vezes, até que conseguiram, dizendo que eles tinham que mandar um dinheiro equivalente a um trator, que seria comprado pra comunidade. Meu pai e meu avô enviaram esse dinheiro e foi aí que meu tio, esse tio que é o mais novo, conseguiu vir para o Brasil, após esse envio de dinheiro lá para a China.
Nós vimos, [é] interessante, que ele era o mais parecido com o meu avô; no modo de segurar o cigarro, no modo de andar, ele era o filho mais parecido com meu avô. Deixa eu ver se eu encontro aqui o retrato do meu avô, com os quatro filhos. Aqui são os três. Aqui tem os três filhos, mas eu tenho outro com os quatro. Aqui, com os quatro. Meu avô aqui no centro, o mais velho, Seová, meu pai, Seohon, Siu Fi e Seo Chen. Esse [Siu Fi] é o mais novo, você vê. Essa é minha mãe e minhas tias.
Eu ia contar outra coisa que eu achei interessante. Meu avô, embora o nome dele fosse Chan Tsick Ip, ele era chamado de Sianzan pelos chineses que moravam aqui. Sianzan, no dialeto deles - eles falavam o dialeto cantonês - é professor. Eles só se dirigiam ao meu avô como professor. Com grande respeito, sempre Sianzan, não diziam o nome do meu avô. Tanto que inicialmente eu pensei que meu avô se chamasse Sianzan, porque todos só o chamavam de Sianzan.
Você perguntou o que nós fazíamos; posso voltar àquela pergunta? No final de semana nós íamos ao Centro Cultural Chinês, era um centro onde se reuniam os chineses, então, aos domingos era o Centro Cultural Chinês. Olha aqui, essa aqui é uma foto. Os aniversários, isso aqui era no Centro Cultural Chinês. De manhã íamos ao passeio público, mas à tarde sempre íamos ao Centro Cultural Chinês. Fica ali ainda... Antes era na Praça Tiradentes, agora é na Avenida Gomes Freire; ainda existe esse Centro Cultural Chinês, onde se reuniam os chineses. Ali eram feitos os casamentos, os batizados, todas as reuniões eram feitas ali.
É interessante porque a comunidade chinesa, naquela época, era muito pequena, então todos os chineses se conheciam através dessa reunião no Centro Chinês. No dia dez de outubro, que era antigamente considerado o Dia da República da China, nós nos reuníamos na Embaixada da China. Aqui é um retrato, uma foto na embaixada, que era ali na Rua São Clemente, em Botafogo, hoje em dia não é mais. Mas, naquela época... O que eu queria dizer era o seguinte: como a comunidade era chinesa e o embaixador falava mandarim, ele precisava ter um intérprete pra falar com a comunidade, porque os dialetos eram diferentes. Eu acho que isso é uma curiosidade interessante.
(21:09) P/1 - E na sua infância, você tinha alguma brincadeira favorita?
R - Ah, bem... Ouvir histórias da minha avó, a avó da parte da minha mãe. Adorava ouvir as histórias que ela contava. Eram de um livro Contos da Carochinha, naquela época havia esse livro. Era Chapeuzinho Vermelho, eram as mesmas histórias, só que reunidas nesse livro, Contos da Carochinha. E eu me lembro também deles me colocarem assim no banquinho e me fazerem recitar quadrinhas; eu gostava muito de recitar de cor as quadrinhas que me ensinavam.
(22:07) P/1 - E tinha mais alguma coisa que você gostava de fazer, quando era criança?
R - Eu com nove anos, oito anos, talvez, ganhei uma bicicleta e meu pai me ensinou. Embora fosse a rua de paralelepípedo, (risos) lá na Travessa de Oliveira, tinha... Eu agora não me lembro o nome que se dá a uma trave que tem na bicicleta, porque era uma bicicleta de menino. Naquela época, aqui no Brasil só tinha aquela bicicleta de adulto, então eu aprendi a andar de bicicleta pequenininha numa bicicleta Phillips. Era uma bicicleta holandesa, porque tudo naquela época era importado, nós só tínhamos objetos importados. Eu gostava muito de andar de bicicleta.
Depois nós nos mudamos, porque meu pai deve ter, acho, juntado dinheiro, aí comprou - pela Caixa Econômica Federal, pela Tabela Price, eu me lembro que ele contava isso - um terreno lá no Méier e nós íamos todo domingo ao Méier, ver o terreno. (risos) Depois ele construiu a casa e nós fomos morar lá. Até hoje existe a casa, naquela época se chamava bangalô, com uma varanda, mas hoje se chama mansão. É um local do Méier que é só de casas, até hoje não existem edifícios. E lá eu andava de bicicleta e patins, gostava muito. Ah, e as brincadeiras de roda, de carniça, de pique, de bandeira. Aquelas brincadeiras de criança na calçada, brincadeiras de calçada de rua, que eram da minha época.
(24:18) P/1 - E indo pra escola, você tem alguma primeira lembrança que te marcou, nessa época?
R - Muitas lembranças. (risos) A primeira lembrança foi que eu fui pro jardim da infância do Campo de Santana, que é ali no Centro. Eu me lembro que chorei muito, chorava, chorava sem parar, porque eu não queria ir pro jardim da infância; eu queria ir pra escola, aprender a ler. Justamente por isso me colocaram nessa escola particular, que era pertinho de casa e eu ia a pé, na Rua dos Andradas, número onze. Tenho vontade até de ver esse sobrado, deve estar ainda lá, se ainda não fizeram algum prédio. Eu hoje vi um retrato lá dessa minha... Aí, sabe o que aconteceu, Grazielle? Eles me ensinaram a ler e a escrever. Eu, então com quatro anos, já sabia ler, escrever e contar. Eu tenho até uma prova com a minha letrinha, operações de soma, de subtração, com quatro anos.
Sabe o que eu observei hoje, numa foto que eu vi lá do meu colégio? Que eu aprendi a não ter discriminação racial, primeiro que eu era duma classe de minorias. Depois eu te conto isso porque... Mas olha aqui, eu observei que eu tinha um professor negro, está vendo? E tinha alunos também negros na sala. Olha o professor ali, no meio. Eu acho que eu aprendi também isso.
Você sabe que eu, quando pequena, na rua me xingavam muito. Eu era discriminada, passava e diziam: "China, China!" Engraçado, isso não me marcou assim, não. Não sei o que houve durante a minha vida que não me fez sofrer com isso. Não me senti triste por causa disso, ao contrário. Meu pai me ensinou a amar a China. Eu não sei que China, (risos) porque a China é tão dividida. Existe hoje a China Continental, que é a China comunista, a China de Taiwan, que é a China nacionalista e a dos diversos - não são colônias, mas são bairros. Antigamente havia Hong Kong, que era colônia, mas hoje em dia Hong Kong está... Mas eu não sinto, inclusive porque aqui mesmo no Brasil existe essa rivalidade entre chineses de Taiwan e chineses comunistas, não sei se você sabe disso. Existe uma certa rivalidade velada, mas existe essa diferença e eu não sinto isso, porque meu pai me ensinou a amar a China e eu tenho… Tudo quanto é chinês eu gosto.
(28:42) P/1 - E já na escola, você tinha vontade de ser alguma coisa, quando crescesse?
R - Desde os quatro anos queria ser professora. Essa professora que está na foto me dizia: "Minha filha, a vida de professora é tão sacrificada. Ganha-se tão pouco, escolha outra”. (risos) Mas eu quis ser professora, persegui esse desejo e fui ser professora. Eu cursei o Instituto de Educação nos Anos Dourados, era muito difícil entrar para o Instituto de Educação, muito difícil. Tive que ir para um curso preparatório. Naquela época nós fazíamos o primário e depois o curso de admissão, que era um curso de admissão ao ginásio, né? E eu consegui entrar para o Instituto de Educação. Eu sempre fui muito estudiosa, porque dava orgulho ao meu pai, então eu era muito estudiosa. Gostava de dar, como se dizia, esse gosto a ele.
(30:00) P/1 - Teve algum professor que te marcou, da escola?
R – Tive muitos bons professores. No Instituto de Educação eram só catedráticos, eram autores de livros, professores de grande projeção educacional, então não posso dizer que um ou outro [marcou]; todos eles me marcaram como profissional e como pessoa.
(30:35) P/1 – Esse período do instituto foi durante a escola ou depois?
R – Instituto de Educação é o ginásio e o normal, né? Hoje seria o ensino básico e o ensino médio. Fiz até o ensino médio no Instituto de Educação. Pela manhã eu fazia o Instituto de Educação e à tarde a Escola de Música, fui estudar piano.
Eu, com seis anos, queria estudar ballet; não queria estudar piano, não, queria estudar ballet. Minha mãe me levou ao Teatro Municipal, mas ela queria que eu estudasse piano e lá no Teatro Municipal disseram: “Só com sete anos”. Então, ela disse: “Só para o ano que vem você vai poder, esse ano você não vai, então você vai começar a estudar piano”. Aí comecei a estudar piano a contragosto. Não gostava, uma hora de piano era um sacrifício para eu estudar, mas hoje em dia eu adoro. Hoje em dia eu agradeço a ela ter me forçado a estudar piano, (risos) porque eu gosto muito. Retornei agora há pouco tempo o estudo de piano e gosto muito, muito, muito. Fico horas e nem sinto mais.
(32:01) P/1 – E, ao terminar a escola, qual foi seu próximo passo?
R – Casar. Eu casei muito cedo. Achava que estava casando tarde, engraçado. (risos) Eu casei aos vinte anos, fui mãe aos vinte anos e achava que estava casando tarde. (risos) Conheci meu marido na fila do lotação, indo pra aula de piano. Ia pra aula de piano e conheci meu marido. E ficamos, namoramos e noivamos durante três anos. Eu o conheci com dezessete anos e casei com vinte anos.
(32:52) P/1 – Você lembra do dia do seu casamento?
R – Muito. Meu casamento foi lindo, eu casei na Candelária. (risos) Casei na Candelária, lindo casamento, muito bonito. Naquela época ia um – engraçado - tipo de anão que ia na frente batendo um bastão, abria a porta e a noiva entrava. Hoje em dia é normal caírem aquelas pétalas de rosa, mas na época não era não, era só em algumas igrejas. Mas eu casei lá por quê? Porque era no Centro da cidade. Meu noivo, depois meu marido, trabalhava ali perto, na Candelária, então a igreja próxima a ele para contratar o casamento foi a Candelária. (risos) Por isso eu casei na Candelária. Depois, minhas filhas foram batizadas também pelo Cônego Fernando Ribeiro, hoje já falecido.
(34:00) P/1 – E suas filhas nasceram... Você falou que com vinte anos teve sua primeira...
R – Eu tive uma filha com vinte anos, Mey Leng, que infelizmente faleceu esse ano, em março. Depois eu tive outro filho, cinco anos depois, que também faleceu, mas esse faleceu bebê ainda, com cinco meses. E a minha filha que foi temporão, nasceu em 1969, hoje já está com 52 anos, acabou ficando agora minha filha única. Tive três filhos.
(34:54) P/1 – Qual o nome deles?
R – A mais velha é a Mey Leng, que é espírito da beleza; Lu Ye, que era o nome de um guerreiro chinês, e Ayllen, que é espírito do amor, no dialeto do meu pai.
(35:17) P/1 – E como foi pra você ser mãe? O que você sentiu?
R – Tão natural. (risos) Fui mãe naturalmente, como se fizesse parte da minha vida ser mãe. Não foi difícil, foi fácil (risos).
(35:52) P/1 – Mesmo sendo mãe tão cedo assim, você conseguiu continuar seus estudos?
R – Aconteceu o seguinte: eu não continuei logo a faculdade, não. Eu apenas me dediquei à profissão, porque eu era uma profissional muito dedicada mesmo. Eu gostava de lecionar. Levava os alunos pra minha casa quando era solteira, eles iam pra minha casa nos finais de semana.
Eu não fiz logo faculdade, eu fui fazer faculdade… Eu me formei em 1956, tô fazendo 65 anos de formada esse ano. Nós nos reunimos todos os anos, você acredita? O grupo todo se reúne... Só não reuniu esse ano, por conta da pandemia, mas mesmo assim, eu me reuni com uma amiga. Eu disse: “Nós duas vamos nos encontrar”. E fomos nos encontrar, éramos da mesma turma.
Eu fui professora, depois fui subdiretora de escola, fui diretora de escola. Eu tive uma escola particular, na casa que meu pai fez eu tive uma escola, um jardim da infância; dirigi essa escola durante vinte anos. E hoje nós temos médicos, advogados, que foram dessa escola que eu tive, uma escola particular.
Quando eu estava com vinte anos, com essa escola... Ah, não, antes, em 1971 houve uma lei que incentivava as professoras primárias a fazerem faculdade, então eu fui só em 1971 fazer a faculdade. Nessa época eu estava já com essa minha filha Ayllen nascida. Eu costumo dizer que tive duas filhas únicas: a Mey e a Ayllen, com onze anos de diferença. Então, eu pude me dedicar à minha carreira de professora, depois fui fazer mestrado. Em 1971 comecei a faculdade de Educação, terminei em 1975. Depois, então, é que eu, em 1979, era aluna lá da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]... Não, tinha terminado o curso da UFRJ, de Pedagogia, e houve um curso de aperfeiçoamento para professores do Brasil inteiro, dados pela UFRJ e pela PUC; fui da equipe docente desse curso. Depois desse curso, uma colega, Sônia Nogueira, foi chamada para dar aula lá na UFRJ, como celetista, mas a Sônia era casada com um médico e teve que acompanhar o marido aos Estados Unidos, então me chamaram, como eu tinha me destacado nesse curso de férias, para dar aula lá na UFRJ. Eu fui dar aula em 1979, primeiro como celetista; depois fiz concurso, fui como professora efetiva. Em 1987 eu fui diretora da graduação. Nessa época eu já estava fazendo, acho que eu já tinha terminado o mestrado e mais tarde, então, eu resolvi fazer o doutorado lá mesmo na UFRJ, doutorado em Educação.
(40:40) P/1 – E voltando um pouquinho pra família, como seus pais eram chineses, tinha alguma mistura entre Brasil e China na sua criação, dentro da sua família?
R – Meu pai, como eu te disse, veio muito jovem, então ele queria que nós nos adaptássemos como brasileiros, que nos desenvolvêssemos o mais possível profissionalmente como brasileiros, tanto que ele se naturalizou depois brasileiro. Ele tinha time de futebol, (risos) ele torcia e discutia muito política brasileira. Ele discutia política como se fosse um brasileiro, então... Mas eu creio que isso [aconteceu] porque ele veio muito jovem, então ele se adaptou e cresceu como brasileiro. Eu não falo chinês, só sei algumas palavras que ele falava em casa, dizia: “Vai buscar isso, faz isso”. Algumas palavras eu sei, no dialeto dele. Mandarim diversas vezes comecei [a estudar], mas é uma língua difícil, com muitos tons. Eu gostaria muito de aprender chinês. De vez em quando eu inicio essa aventura, mas não termino. (risos) Eu acho que só se eu vivesse lá mesmo algum tempo, mas como eu tenho amigas, filhas de espanhóis, mãe espanhola, que não falam espanhol, eu digo: “Ah, então chinês é muito mais difícil”. (risos)
(42:48) P/1 – Você falou que a comunidade chinesa no Rio de Janeiro é bem pequena. No Centro Cultural Chinês vocês costumavam festejar alguma data importante?
R – Dez de outubro, que era o Dia da China. Hoje não é mais dez de outubro. Isso era na época da China Nacionalista, de Chiang Kai-shek, que era dez de outubro. Hoje comemora-se o primeiro de outubro, que é justamente a data da revolução do Mao Tsé-Tung. Esse ano não sei se houve… Por conta da pandemia, eu creio que não houve comemoração, não.
(43:41) P/1 – Você conviveu bastante com os seus avós?
R – Sim, com meu avô, muito. Eu me lembro que ele levava frutas e dizia que não levava balas pra não estragar meus dentes - realmente, até hoje eu tenho todos os meus dentes. (risos) Ele colecionava selos; eu cheguei a começar a colecionar junto com ele, eu tinha minha coleçãozinha de selos. Comecei a fazer alguns versos em português, como ele fazia.
Tinha bastante convivência com ele. Ele, numa época, morou conosco, depois foi morar com um primo, um sobrinho dele, que havia chegado lá da China, mas uma época morou conosco nessa casa no Méier.
(44:46) P/1 – A gente conhece, normalmente, que a China é uma cultura milenar, né? Ele passou algum conhecimento que os pais dele passaram pra ele e passaram por filho, que passou pra você?
R – Eu acredito que muitos. (risos) É que eu, assim... Acredito que muitos. Em alimentação ele sempre dizia: “Acelga é pra estômago, isso é pra não sei o quê...”. O hábito de tomar chá após as refeições, gosto muito de tomar uma bebida quente após a refeição. Ai, é tanta coisa que... Tudo eu acho que meu pai... (risos) Até hoje me marcou muito. “Não fale com a pessoa subordinada, vá direto ao chefe.” Ele falava tantas coisas que ainda hoje pratico. (risos) Deixa eu ver se me lembro... “Não se detenha com um ‘não’, vá adiante, não se detenha nunca com um ‘não’.” Muita coisa. (risos)
(46:04) P/1 – Wally, o que você faz hoje em dia?
R – Eu estou, como disse, aposentada, mas eu tenho diversos grupos de amigos. Tenho amigos mais próximos, grupo de amigos da pintura, porque eu faço aquarela chinesa com uma professora chinesa. Tenho o grupo de inglês, faço conversação em inglês. Tenho o grupo de piano, tenho o grupo que vai comigo ao teatro, tenho amigas que gostam de ir ao teatro. Eu gosto de ir ao teatro, gosto de ir ao cinema, tenho amigos que gostam de ir ao cinema e tenho amigos que gostam de ir à Ópera, gosto de ir à Ópera também. (risos) Eu tenho diversos grupos de amigos e elas dizem que eu estou sempre, como dizem agora, antenada, né? Sabendo, porque eu sou curiosa, gosto de saber o que está acontecendo e gosto de novidades. Eu sou geminiana, então, gosto de novidades. (risos)
Atualmente, com a pandemia, faço aula de conversação em inglês on-line e até aula de piano, tive hoje aula de piano on-line. Gosto muito de viajar, conheço diversos países do mundo. .
(47:38) P/1 – Que legal! Você já viajou pra China?
R – Já, nós estivemos na China a primeira vez, num programa que houve aqui no Brasil, para os descendentes... Aliás, no mundo inteiro, a China estava oferecendo aos filhos de dragão, como eles diziam, que estavam soltos pelo mundo. Eles ofereciam um programa de passar [um tempo] em Pequim, estudando a língua chinesa. Nós fomos a casa de pintores, fomos à fábrica de porcelana, de pérolas, fomos à Grande Muralha, fizemos aqueles passeios turísticos todos com esse grupo aqui, que esteve lá no colégio. Nós ficamos num colégio, ainda era época do comunismo de Mao Tsé-Tung. Todos se vestiam da mesma maneira naquela época, desde o motorista da escola, os professores, os diretores; todos tinham o mesmo tipo de apartamento, o mesmo tipo de mobília de casa, era tudo realmente igual. Nós passamos lá, uma época, na China e nos comunicávamos em inglês, porque eram pessoas da Tailândia, da França, do Canadá, do mundo inteiro, dos Estados Unidos, então era a forma... E eles também não falavam chinês.
Você me perguntou sobre... (risos).
(49:49) P/1 – Eu queria saber também se você chegou a visitar...
R – Depois eu estive, há pouco tempo, passando um Ano Novo na China. Eu passei lá na China, com a minha família mesmo, fomos quinze pessoas da família. Nós alugamos até um ônibus, o ônibus esteve conosco e eu fui à vila do meu pai, fui à casa do meu pai - ainda existe a casa do meu pai. Ainda está lá o retrato que eu tenho aqui da minha avó, na parede. Como meu pai descrevia a casa dele, eu então tive a oportunidade ainda de ver. Fomos também ao templo, um templo Chan que foi dado pelo imperador, porque um antepassado meu conseguiu afugentar os malfeitores da vila; deve ter sido alguma coisa muito forte, porque o imperador deu esse templo. Na época do comunismo o templo não funcionou, porque no comunismo eles são materialistas, não existe religião, todos os deuses eles retiraram, guardaram, esconderam. Agora já estão todos outra vez, o templo já está funcionando. É um templo taoísta, com o nome Chan e tem até no alambrado o nome da minha família, porque nós contribuímos sempre com a reconstrução do templo. Tem o templo da família, o templo Chan lá na vila.
Foi um desejo enorme. Há pessoas que perguntam: “Qual é seu desejo de consumo?” Era voltar à vila do meu pai. Eu sempre tive essa vontade, de conhecer o rio onde ele aprendeu a nadar, a escola… A escola é enorme, uma escola linda, muito bonita. As crianças estavam saindo da escola no dia em que eu passei por lá. Então, foi um sonho realizado a ida à vila do meu pai, Suinan. Sui quer dizer água, por causa, por conta do rio que passa lá.
(52:40) P/1 – E, caminhando agora pras perguntas finais, quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Minha família, meus netos. Tenho um casal de netos, o Kim-san e a Sofia, são... Sonhos eu nunca tive. Nunca sonhei em casar, nunca sonhei em ter filhos, nunca sonhei nada. A vida foi me acontecendo, as coisas foram acontecendo e eu fui vivendo. Foi assim que ocorreu minha vida, estou com 84 anos, né? Ocorreu assim, normalmente, naturalmente.
(53:28) P/1 – E agora, por último, como é que foi contar sua história?
R – Ah, eu gostei de contar. Eu observei que minha vida foi uma vida como devia ser a vida de todo mundo, uma vida que eu não posso dizer... Tive dores, dores fortes, tristezas, mas superáveis. Pela religião ou pela minha filosofia de vida, consegui superar bem essas minhas dores profundas, mas que eu acho que tive uma vida normal, com a educação que todos deviam ter, com uma... Vamos dizer, uma parte financeira também estável. Então, se me perguntarem, é o que eu desejaria, que todos tivessem esse tipo de vida. Nem rica, nem pobre, mas uma vida tranquila..
(54:56) P/1 – Então, Wally, em nosso nome e do Museu da Pessoa, a gente agradece pela sua entrevista. Foi incrível ouvir toda sua história.
R – Eu é que agradeço a vocês terem me dado essa oportunidade de relembrar a minha família, relembrar o que eu vivi e ter o prazer de conhecê-los.
(55:33) P/1 – O prazer é nosso!
R - Porque eu acho que vocês estão fazendo uma parte muito importante da História. A História não é só de heróis, a História é também de pessoas comuns, como nós.
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