Entrevista de Pedro Augusto de Oliveira
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 29/01/2024
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV010
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vamos lá! Pedro, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por topar dividir um pouco da sua...Continuar leitura
Entrevista de Pedro Augusto de Oliveira
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 29/01/2024
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV010
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vamos lá! Pedro, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por topar dividir um pouco da sua história. E, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Tá. Meu nome é Pedro Augusto de Oliveira, eu tenho 36 anos, nasci em São Paulo, morei a minha infância inteira em Pirituba, zona oeste de São Paulo. Eu atuo como artista, na cidade de São Paulo também. Hoje em dia faço parte do Teatro de Contêiner, da Cia Mungunzá e da Vudoo Filmes e Produções. Eu sou um homem branco, de um metro e 86, sou magro e eu estou com o cabelo comprido, porque eu não corto desde que meu filho nasceu e ele tem quatro anos.
P/1 – Uau! Tem alguma história? Foi uma escolha?
R – Não. Foi natural, foi um rolê de eu não deixar o cabelo crescer, sair um pouco do padrão.
P/1 – Hum-hum. E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Me contaram, minha mãe me contou. Ela foi numa... antes do... ela já estava grávida de nove meses, ela foi num aniversário de uma tia minha chamada Sueli, que faz aniversário dia 26 de setembro e ela fez um, teve uma feijoada na casa da minha tia e daí ela comeu um monte e depois, quando chegou em casa, ela começou a sentir dor e ela achou que era por causa da comida, mas na verdade era eu que estava chegando. Ela era servidora pública, ela hoje é diretora de escola, mas na época era professora de matemática e ela foi pro hospital, no Servidor Público e eu nasci lá, que é perto do Ibirapuera.
P/1 - E você é filho único?
R - Não, eu tenho um irmão mais velho, que é o Marcos Felipe de Oliveira e ele também trabalha comigo, na Cia Mugunzá de Teatro e no Teatro de Contêiner.
P/1 - E como é a relação de vocês?
R - Nossa relação é ótima. Ela já foi mais conturbada, quando a gente morava junto, porque eu usava muita roupa dele, ele é o irmão mais velho, ele tem quatro anos de diferença e a nossa criação foi, por mais que seja o mesmo pai, mesma mãe, mesma casa e tudo, ele começou a trabalhar muito cedo, então eu fiquei mais na rua e tive outras informações e outras vivências do que ele, que trabalhou desde os treze anos de idade. Então, isso reflete hoje em dia, ele é uma pessoa muito mais séria do que eu.
P/1 - E como você descreveria seus pais?
R - Ah, minha mãe é brasileira. (risos) Meu pai é português. A minha mãe traz todos os fenótipos e genótipos do brasileiro. Então, eu sei da minha parte, da minha árvore genealógica, por parte da minha mãe, até a minha tataravó. Então, eu consigo fazer links desde a escravidão, por parte da minha família, que era minha bisavó, que acima da minha tataravó era escrava, a minha tataravó já era negra fugida. Nasceu já livre, de fugir. E daí vai minha bisavó, que eu tive muito contato, fui criada por ela, ela morreu com 108 anos e consegui ter bastante contato com esse lado da minha família. Eles vieram do Mato Grosso, então tem bastante... tem uma parte indígena e uma parte negra nessa linha da minha família. E as mulheres dessa linha da minha família foram se relacionando com homens brancos, europeus e isso vai criando esse fenótipo meu, de hoje. Então, eu tenho vô português, pai português e por parte de mãe eu tenho todo mundo originário aqui do Brasil, ou africano.
P/1 - E como é o jeito da sua mãe?
R - A minha mãe é uma lutadora, é marxista, trotskista, foi do PT, na fundação do PT, rompeu com o PT lá por 94, quando entrou numa disputa eleitoral e daí ela se aproxima ao PORT, depois nos anos 2000 ela rompe junto com o PORT também, que ela se aproxima do PSTU, rompe com o PSTU e agora ela está numa militância mais apartidária, mas ela é bem próxima ao PSOL também, hoje em dia. Ela, a vivência dela é isso, ela... meu pai teve muitos problemas com droga na minha infância e eles se separaram e ela, mãe solo, criou eu e meu irmão e era professora de escola, de ensino público, de matemática e depois ela prestou concurso, agora é diretora e ela está prestes a se aposentar e hoje em dia ela gosta muito de estudar. Ela está fazendo mestrado sobre psicologia e educação e neurologia e educação também.
P/1 - E você teve contato com seu pai?
R - Tive, tive bastante contato, na infância. É uma relação de amor, de filho. Meu pai era muito liberal comigo, então eu tenho bastante lembranças boas, assim, dele liberando bastante coisas (risos) que minha mãe não liberava. No bar, eu podendo jogar fliperama. (risos) Tenho bastante lembrança boa, mas eles separaram eu era bem novo também, não entendi aquele movimento. Fiquei um pouco nessa disputa ali, da separação, mas nada que umas terapias não ajudem. (risos)
P/1 - E seu irmão, nesse momento?
R - O meu irmão já foi mais caótico, assim, porque como ele tem uma diferença de idade, ele já tinha mais noção do que estava acontecendo, tinha mais noção da desestruturação que o meu pai estava trazendo para aquele núcleo familiar, por causa das drogas, por causa de outros motivos e a relação dele foi mais conturbada do que a minha. Ele sentiu bem mais e rolou um momento de repulsa entre ele e meu pai, eles tiveram uma briga, um rompimento de relação e que só foi restaurar quando meu pai estava no leito de morte, que ele teve um câncer e daí o meu irmão se aproximou novamente dele e fez esse momento final, de cuidado. Então, eles conseguiram zerar a conta, lá no final.
P/1 - E seu pai trabalhava? Tinha alguma profissão?
R - Meu pai era mecatrônico. Ele... hoje em dia, quando você vê um ônibus e vem com um letreiro de led, o primeiro de São Paulo foi ele que desenvolveu e colocou lá, pra testar, na Tusa e ele foi mandado embora da Tusa por causa de movimento de grevista. Então, tinha uma greve de ônibus, ele ficava com o estilingue quebrando os ônibus, impedindo que os ônibus saíssem da garagem e ia preso. Daí ele saiu dessa empresa, mas com o conhecimento que ele tinha de eletrônica e de mecânica ele foi trabalhar na Odebrecht. Então, ele fez a linha amarela do metrô, aqui em São Paulo, que foi o momento que eu fiquei mais próximo dele, ele fez barragens pelo interior. Então, nesses momentos que ele viajava para o interior, para fazer essas barragens, fazer outros trabalhos, eu ficava longo período sem encontrar com ele. Então, eu ficava um ano, dois anos sem ver, depois eu encontrava com ele e passava um tempo. E daí ele fez o trabalho de São Paulo, que eu fiquei mais próximo dele, depois ele foi de novo para o nordeste, fazer uma outra barragem, agora eu não lembro qual que era, acho que era Ilhéus, alguma coisa por ali, por aquele lado e depois ele voltou para São Paulo, já doente e ficou até o fim, que ele morreu em casa, na casa da minha avó, que é num prédio onde minha mãe mora hoje também, ali no centro de São Paulo, na Rua Nothmann.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Não sei muito bem as histórias, eu sei que a minha bisavó... avó por parte de pai estava morando na Angola, quando teve a Guerra dos Traídos lá, a guerra civil e ela saiu da Angola, é cinematográfico ela contando a história, porque ela pega helicóptero, que ela era uma branca dentro de um país onde a elite é branca. Ela é extremamente racista, ainda, até hoje a minha avó é bem racista. E lá ela era essa elite branca e quando teve a guerra ela foi uma... é a burguesia que fugiu do país. Aquelas portuguesas que estavam lá. Então ela teve bastante auxílio de governo, de Exército e ela saiu com as coisas dela, com os filhos pequenos. Meu pai já era um pouco maior e eles se desencontraram, nessa fuga e ele ficou na Angola mais um tempo, depois ele foi para Portugal, descobriu que minha avó estava no Brasil, veio pro Brasil encontrar com minha avó e daí nesse momento que ele conhece minha mãe.
P/1 - Novo ainda?
R - É, uns 22 anos, por aí. E nessa época ele ia pra um baile e o amigo dele que conhecia minha mãe e que tinha um caso com a minha mãe e depois esse amigo acabou que não deu certo e ele que teve um caso com a minha mãe.
P/1 - O que você gostaria de contar mais sobre a sua família, da origem? Porque eu estou entendendo que você tem bastante...
R - Não, eu... de origem, assim, de família, eu sinto que eu trago muita ancestralidade, tento buscar e conversar com a minha avó. Então, a minha avó por parte de pai, minha avó paterna é muito engraçada. Ela fala com sotaque português. Eu sempre paro do lado dela pra perguntar as histórias, assim. Daí ela conta as histórias dela, de infância, que em Portugal era proibido vender álcool e ela fazia o tráfico de álcool, em Portugal. E quando ela vai pra Angola, ela abre um bar na Angola, só que é um bar de elite. Então você tem muitos militares que conviviam naquele espaço. E que até hoje os meus tios, por exemplo, são amigos de quem assumiu o poder lá na Angola, depois dessa revolução. Então eu entro no Facebook do meu tio e todo o complexo militar angolano está lá, no Facebook dele. É uma coisa que parece muito distante, que eu não tenho contato, mas que, se for olhando, a coisa se aproxima demais.
P/1 - E da outra família?
R - É, e da outra parte da família, é uma família linda, a minha família por parte de mãe, porque é uma família com bastante regionalidade, bastante culturas. Então é muito musical. Os meus tios, minha avó é do coral, meu tio é músico. Então nas festas, sempre tem a chalana, tem os rituais. Quando quebra um copo, é tradição, a gente grita o nome do meu vô, que chama Conrado, e daí o meu bisavô Conrado… existem vários outros Conrados na família, por causa desse nome: tem o tio, tem o primo e o meu filho também chama Conrado. Então, é um nome de família que vem por causa desse meu bisavô.
P/1 - E como é essa tradição?
R - É que no casamento do meu bisavô com a minha bisavó, um tio meu, que era palhaço, chamado Nogueira, (risos) no casamento começou a quebrar copo. E daí todo mundo falava: “Quebra que o Conrado paga”, tal. E daí quebrou quase todos os copos na festa. E quando vira uma festa hoje em dia e quebra um copo, a gente lembra o nome do meu avô. Então é: “Quebra, seu Conrado”.
P/1 - Bem de vocês.
R - É bem nosso, é. Parecem essas coisas de grego, quebra prato, mas não. É um tio meu, histérico e é bem malandro, assim. Uma história de um lugar machista, de um tempo, um outro tempo, onde ele era muito ausente com a minha tia, mas ele é ausente e quando voltava, voltava trazendo dinheiro, joias, ia mantendo com a minha tia. E quando ele faleceu, tinha três, quatro filhas chorando no enterro, descobriram várias famílias e daí ele era cheio de mutreta. Quando minha família veio do Mato Grosso pra cá, deram uma grana pra ele comprar alguma coisa e naquela época ele poderia ter comprado, sei lá, em bairros legais da cidade, ele comprou um Pirituba, pegou o dinheiro, comprou uma farmácia. Então, ele ia fazendo mutreta com todo mundo, todas as famílias. E eu tenho um baú dele em casa, que é onde ele guardava as coisas dele, de circo. Um baú que tem lá seus oitenta anos, que eu pedi pra ficar comigo.
P/1 - E que outros costumes familiares vocês têm, tradições?
R - Ah, minha família é esse lugar de festa, de encontro, de relação, também é uma família bem religiosa, do lado evangélico. Então na casa da minha bisavó, onde eu cresci, existiam bastante ritos, os pastores iam em casa. Ela, por causa da idade avançada dela, foi muito querida na igreja, então eu cresci num ambiente muito religioso. A rua que eu morava tinha uma igreja católica e eu brincava muito na rua, nessa igreja católica, cuidava de carro na rua. Então, tinha muita relação com esses ritos também, católicos. Eles fechavam a rua, faziam a procissão, faziam tapete no chão, em Corpus Christi. Então, eu fui me relacionando muito, também, com isso. Mas em questão da religião evangélica, como era muito novo e era um movimento que a minha família sempre ia, eu acabei indo num movimento muito forçado também. E dentro da igreja rolou muita exposição por causa da situação, no momento da separação da minha mãe com meu pai, por causa da relação do meu pai com a droga e a exposição que isso teve na igreja teve um rompante lá na minha família, então a gente parou de ir. E eu era criança, também já era obrigado a ir, já não queria ir mais também. E fui anos depois lá, de novo, num dia de Natal, pra ver minha avó cantar no coral. Mas eu tive uma repulsa na minha infância, religiosa, por causa da imposição que minha família colocava. Era natural para eles e eles não percebiam que estavam fazendo esse movimento comigo.
P/1 - Que outras lembranças você tem da sua avó?
R - A minha avó era bem gordona, ela fez uma bariátrica e ela era muito feliz e depois ela perdeu um pouco dessa felicidade. Então, de infância eu lembro da minha avó bem feliz, bem gordona, bem feliz, comendo tudo, tomando muita água, cantando com diafragma enorme, que tinha um sustentar de fôlego maravilhoso, mas também era bastante tenso de criação mesmo, por causa da ausência da minha mãe, por causa do trabalho; da ausência do meu pai, por causa desse término de relação e daí essa criação com a minha avó é mais conturbada mesmo. Hoje eu olho pra trás e vejo que eu não fui uma boa criança (risos) ali, eu era bem caótico, bem caótico. O ambiente que eu estava inserido era um ambiente bem degradado, que é periférico, muito violento. A gente está falando de, sei lá, eu me entendo ali a partir da década de noventa, que eu vou conseguir ter lembranças de coisas que eu vivi e sempre foi muito violento. Nessa minha primeira infância, o crime em São Paulo não era organizado, como é hoje, com o PCC, então existia muito assassinato, existia muito justiceiro, era uma outra energia do crime e era muito mais violento do que é hoje. Eu lembro quando eu era criança, assim, a morte era uma coisa bem presente no meu dia a dia. Morte, preconceito, racismo, todas essas problemáticas sociais e estruturais eram bem presentes e, olhando para trás, elas ainda são presentes, eu tento ir desconstruindo isso, mas no vocabulário, toda a estruturação que eu me inseri, que eu fui criado, é muito degradado, assim, a periferia era bem complexa. Hoje está super outra ideia. A gente, como sociedade, está melhorando os termos, está conseguindo se rever, conseguindo ver o que era um racismo naquela época, mas a criança é muito violenta também nessa situação. Então, eu fui muito racista na minha infância, fui muito violento, misógino e tudo isso é uma desconstrução que ainda vai a vida inteira.
P/1 - Você foi... passou muito tempo com a sua avó. É isso? Foi criado por ela, ou não?
R - É, na verdade a minha família morava com a minha avó. Eu morei nessa casa até os meus 28 anos e aconteceu um movimento que todo mundo saiu de casa e eu fiquei. Então, a minha mãe saiu primeiro, depois saiu minha bisavó, depois saiu meu irmão e por último saiu eu. E foi um movimento de... a minha avó já estava muito velha e eu achei que ia ter um desgaste de relação com a família por causa da casa, então quando a companhia constrói um galpão no Centro, eu vou morar nesse galpão e daí eu deixo a casa lá em Pirituba pra família, eles se desfizeram super rápido da casa e eu já fiz um outro processo de independência, porque até então eu não tinha pagado aluguel, eu tinha essa garantia da casa da família e depois eu faço esse movimento de morar no galpão e depois eu fui morar no Teatro de Contêiner. Eu fiquei um ano morando no Teatro de Contêiner, assim que a gente o inaugura. Então é o momento que eu começo a entender as regiões do Centro, as populações mais vulneráveis ali, daquela região.
P/1 - Tá. Chegaremos. A sua infância, que recordações você tem desse período, desde brincadeiras, até...
R - Eu tenho muitas recordações, eu sou muito bom de memória. Às vezes eu penso se não é uma memória que eu inventei, sabe? Eu estava tomando banho ontem pensando nisso, porque eu lembro que a minha bisavó, Paulina o nome dela, eu falei um monte, vou falar o nome dela, Paulina Rosa. E a minha avó Paulina contou uma história de quando ela era pequena, que davam Biotônico Fontoura na escola e que ela tomou esse Biotônico Fontoura e tinha álcool, ela ficou muito bêbada. E daí eu estava lembrando dessa história e eu lembro dessa história em preto e branco, porque eu vejo a imagem da minha avó como se fosse uma fotografia em movimento. E daí eu fiquei pensando se era alguma coisa meio subconsciente coletivo da imagem que ela tinha, que passou pra mim, ou se era uma coisa mais da minha criação, que eu estava animando uma foto, sabe? Mas eu ainda acho que é mais uma imagem que eu tenho como lembrança. Eu tenho muitas imagens da minha infância como lembrança. Eu tenho imagens de eu entregando uma caixa de bombom para um vizinho meu, que tinha uma família muito desestruturada, que foi um vizinho meu, melhor amigo de infância, que é o Tetê e daí eu tenho lembrança de pequenininho, falando assim: “Oferece para ele também”. Eu nem sabia o que era oferecer, mas sendo conduzido a fazer esse movimento, bem pequeno, lembrança de colocar água na boca e ficar eu e ele com água na boca, olhando um para o outro, para ver quem vai rir primeiro. Brincadeira na rua, pegar caixa de papelão e ir para uma ladeira de... num parque, onde tinha um gramado meio ladeira e a gente escorregar, ou então abrir a caixa e fazer um homenzinho e brigava com esse homenzinho. Olhava carro. Então, o Tetê é um superamigo meu, de infância. Eu ainda tenho relação com ele, mas hoje muito menos. Mas assim: meu melhor amigo de infância passou anos brincando, fazendo tudo, indo para Playcenter, indo para o Ibirapuera. Grandes aventuras, assim. Pegava ônibus, passava por baixo e ia até lá longe, descalço. Chegava no meio do West Plaza descalço, o segurança falava: “Não pode pedir dinheiro”. Eu falava: “Não vim pedir dinheiro, não. Vim falar com meu tio”, que o irmão do meu pai trabalhava na Playland, do West Plaza, que é um monte de brinquedo, fliperama. E, nossa, era maravilhoso (risos) visitar esse meu tio, porque eu chegava lá, ele passava um monte de crédito, eu passava o dia brincando e descalço e chegava lá por baixo do ônibus, assim. Era bem vida louca, as crianças bem vida louca.
P/1 – Quantos anos?
R - Ah, dez, de oito a quatorze anos, assim, foi muito na rua, muito, muito.
P/1 - E esse seu amigo era do bairro?
R - É, era um vizinho de parede, meu. Ele tinha uma família bem desestruturada, ele morava... a mãe dele era alcoólatra, que eu também chamava de mãe, todo mundo no bairro, as mães dos amigos eram nossas mães também, então: “Oi, mãe” pra todas as mães. No Natal era tipo: passava na casa de umas quatro, cinco pessoas no Natal, comendo na ceia de todo mundo. (risos) E era uma família bem desestruturada, era um ponto de tráfico, consumo de pedra. Daí tinha o Gênio, que é o padrasto; tinha o Divaldo, que é uma pessoa que tinha um problema mental, uma esquizofrenia e daí era bem violento também, junto com o ambiente de droga. O Gênio tomou, sei lá, 22 tiros e não morreu e depois ele tomou uma facada e morreu. Eu lembro, uma vez, ele brigando com outro senhor de bar, o Tetê correndo e batendo no senhor, protegendo o padrasto dele. Bem violento, assim. (risos) Eu morava numa rua chamada João Alves Pimenta, lá em Pirituba. E, sei lá, até 1998, até... foi muito violento. Então, eu lembro de... ah, morreu gente na porta da minha casa. Por exemplo: o Fernandinho, que era um vizinho meu, muito amigo do meu irmão, porque tinha a mesma idade, que tinha entrado nas drogas, tinha ido para um lugar de uso abusivo de cocaína e crack, depois ele foi pra uma clínica de reabilitação, voltou super bem. A gente tentou ainda colocá-lo dentro desse fluxo de redução de danos, naquela época a gente nem fazia ideia, mas pelo vínculo a gente o levava pro Playcenter, colocava na mão pra ir pra escola, tudo, só que ele teve outras recaídas, voltou pra esse universo e uma vez ele vendeu bicarbonato em vez de cocaína e ele apanhou uma surra, que ele deveria ter morrido na surra e ele conseguiu ir andando até a porta da minha casa, que ele era meu vizinho e caiu na porta da minha casa e a minha avó ficou falando: “Fernandinho, pede para Deus para te salvar” e ele agonizando, pedindo a mãe dele. Então, foi... essas cenas, assim, na porta da minha casa, além do Fernandinho, o Barata também morreu. Eu lembro que no... eu já era um pouquinho mais velho na morte do Barata, acho que eu devia ter uns quatorze. Lembro que eu estava passando, na minha rua tinha uma farmácia na esquina, eu estava descendo, eu vi dois meninos vindo de moto, muito suspeito. Eu já sabia que acontecia alguma coisa errada, daí eu voltei, não fui pra minha casa, eu voltei na rua, rolou os tiros, esses dois caras entraram na moto, saíram, daí eu entrei na minha rua e eu vi um... ele não era tão próximo meu, mas era conhecido, que era o Barata, morreu também na porta da minha casa, o IML foi pegá-lo lá e isso duas pessoas na porta, assim, na frente da minha casa, mas até o final da rua tem uma lista, na esquina onde vendiam tem uma lista, pessoas que eram mais distantes e que a gente, quando era criança: “Vamos ver o morto, o ‘cara’ morreu lá, daí a gente fazia tipo: juntava dez amigos e ia andando, pra ver a pessoa morta. Eu lembro que numa dessas situações eu vi uma pessoa que morreu de quatro, entre dois carros e depois ele estava coberto e ainda todo rígido, né? Então, ficava nessa posição. Violências que as crianças não deveriam testemunhar e eu testemunhei bastante.
P/1 - Como era essa relação e essa proximidade com a morte?
R - Hoje em dia é muito mais pesado, muito mais pesado. Quando eu era criança, você não tinha essa noção do que estava rolando, do peso, do impacto que isso tem na psiquê e tudo mais. Então, era quase que naturalizado, assim. Eu sinto que a ingenuidade de uma criança acaba deixando as coisas mais naturalizadas, sabe? A criança ainda não sabe qual são os limites sociais, o que pode acontecer ou não. Sabia que era ruim, sabia que não... mas eu convivia muito com isso, então, ‘vira e mexe’ tinha uma notícia. Chegou uma época a ser semanal as mortes lá, na região e tipo uma morte assim: o Braga morreu - Braga era um amigo da minha mãe - assassinado por justiceiros. Então, era um Opala preto que parava e matava as pessoas na noite, que eram policiais, justiceiros, de um outro timing também, que talvez hoje seja derivado mais próximo do que uma milícia. Mas essas violências estavam constantes, a gente não tinha noção e vivia essas violências. A gente vivia essa violência. Eu era uma pessoa muito violenta, quando eu era criança, muito violenta mesmo, de briga, de ameaçar as pessoas, de me envolver violentamente nesses discursos. De alguém brigar comigo, eu falar: “Está me tirando?”, não é? Bem outra relação social mesmo, assim. Conheci muita gente que matou gente e quando eu era criança isso não tinha uma repulsa dessas pessoas, assim. Era o grande bandido que mata todo mundo e que tem tudo. Então, cria... é muito diferente a relação que vocês, hoje, têm daquela situação, daquela relação, de quando eu era criança e tinha, daquela relação. Eu olhava pra aquilo e falava, tipo: “É meu amigo”. E eu ficava feliz por aquela pessoa que matou todo mundo, que é um grande bandido, ser meu amigo. Me sentia até protegido, também.
P/1 - Isso mudou, hoje em dia?
R - Mudou, mudou. Eu tenho muito menos contato com o pessoal de Pirituba, principalmente de criminalidade. Evito muito, acho que com o PCC é uma outra organização, né? E eu vi a implementação do PCC no crime, assim. Quem não era do PCC acabou criando uma rixa, que logo depois foi absorvido, porque é um poder de grana, de organização, muito grande. E eles acabaram conduzindo tudo e criando uma disciplina e hoje o assassinato é muito menor, por causa do número, por causa da disciplina do PCC. Então, eu vi isso sendo introduzido e ao mesmo tempo que eu vi isso sendo introduzido eu comecei a ir, mais afastado. Eu lembro que um amigo meu, quando era criança, um amigo do meu irmão, que é mais velho, falou pra mim: “Ah, esse aqui vai ser o traficante”. Pra mim, né? “Vai ser o mais malandro de todos, é o que vai assumir a biqueira”, porque é o fluxo natural. Em algum momento eu rompi com isso. Rompimento, mesmo, eu acho que me deu quando eu fui expulso de uma escola e daí eu fui pra uma outra escola, que era outra energia. Então, eu cheguei com uma outra relação com as pessoas, sem conhecer as pessoas, muito mais inibido. Daí eu fiz uma reflexão menos violenta, também me aproximei mais da política, conheci, sei lá, Trotsky, nessa época, comecei a ler outras coisas. Teve uma guinada nessa expulsão que eu tive, de uma escola para outra, assim, do meu ambiente, das pessoas que eu convivia. Fui expulso na sexta série. Treze anos, quatorze, por aí. Menos ainda, talvez.
P/1 - Que lembranças, que recordações você tem da escola?
R - A escola é maravilhosa, assim. Eu lembro do prezinho, que eu estudei numa escola chamada Redondinho, que é o apelido, que é Olga Bernardes, que fica lá em Pirituba. Era uma escola maravilhosa. Eu lembro do doce que eles davam lá, que era muito gostoso, era um pudim de chocolate, assim, nossa! E eu saí alfabetizado dessa escola, uma escola superlegal. Várias dinâmicas, pessoas que eu conhecia lá, que eu ainda tenho relação até hoje. Depois dessa escola, eu fui para uma outra, que é mais perto, que é o Quinze, que é o General Liberato Bittencourt. Daí, nessa escola foi onde eu já tinha muita intimidade com as pessoas, que era uma escola do bairro, eu conhecia muita gente. Tive muito problema de disciplina, muitos intervalos que eu não ia para o intervalo, eu ficava na diretoria e foi nessa escola que eu fui expulso. Teve uma situação assim, bem emblemática, da diretora me trancar numa sala pra ler a Bíblia, porque achava que eu precisava de alguma represália, alguma coisa pra me endireitar e eu detonei a sala dela, roubei um monte de coisa, ela nunca mais me prendeu (risos) na sala, chamou minha mãe e minha mãe ficou ‘puta’ quando descobriu essa situação, daí eu fui convidado a me retirar da escola e fui pra essa outra escola, que é o Augusto Ribeiro de Carvalho e que é um divisor de águas mesmo, porque é outra relação, daí relações políticas que foram construindo. Fui pra lá na sexta série, mas na oitava série eu já estava participando do grêmio, já era da APM, já era do... fazia movimento estudantil fora da escola, então já foi bem importante essa mudança com as pessoas que eu me relacionava. Inclusive, no Quinze, nessa escola que eu fui expulso, todos os meus amigos, todas as pessoas que eu me relacionava eu não me relaciono mais. Quem eu menos me relacionava são os meus melhores amigos hoje. Então, eu tenho uma amiga, que é a Natália, que eu fazia alguns trabalhos de escola com ela e hoje ela é atriz, eu a conheço, converso direto. Tem o Danilo também, que é músico e que eu conversava super pouco por causa da sala, mas hoje extrapolou. Então, as pessoas que eu menos conversava naquela época hoje são as que eu mais converso e muitos amigos meus que eram bem amigos naquela época já morreram, também.
P/1 - E professores, teve algum significativo?
R – Teve. A minha mãe é professora, então eu sempre fui muito amigo de professor. Eu quebrei bastante essas barreiras entre relação professor-aluno, que tem pouca troca. A gente tinha muitas trocas, assim, eram bem fluidas as relações. Eu saí da escola e ainda continuo com relações. Eu tenho um professor, o Roberto Rosas, que é vice-diretor da minha mãe, que foi meu professor de história e ainda traço conversas com ele. Tem o professor Antônio, que foi meu professor de geografia, que hoje está na biblioteca da escola que eu estudei. E também é isso: converso sempre com ele, vários tipos de assunto, saio pra beber. Tem professores que me marcaram mais pra um lugar de conhecimento técnico. Eu tenho um professor chamado Chiquinho, de matemática, que me instigava muito, ele levava a gente pra pensar projetos, pensar participação em alguns lugares de visibilidade, projetos fora da escola. Feira de Ciências, Olimpíadas de Matemática. Então, era um professor bem legal que eu tive também. Tive uma professora que é a Beatriz, de matemática. Minha mãe era de matemática, eu sempre tive muita facilidade com matemática. Nunca foi o lugar que eu mais gostei, mas eu tinha muita facilidade, então me dava muito bem com esses professores. A Bia era uma professora mais nova e ela se formou na UNESP, em Rio Claro e eu prestei Rio Claro pra me relacionar com essa história dessa professora, que ela era muito legal, ela trazia umas histórias muito divertidas, de trote, de bicho, do período de faculdade, essa faculdade fora da sua cidade, um ambiente de república, então foi um lugar que ali, quando eu estava prestes a fazer os meus vestibulares, eu tentei esse caminho também, por causa dessa professora. Não deu certo. Tentei geofísica na UNESP, mas não rolou. (risos)
P/1 – (risos) Como foi o colegial, esse momento de escolhas de vestibular, de carreira?
R - Foi bem doido, porque eu queria algum lugar mais científico. Eu tinha uma vontade de... em algum lugar, o que a gente está fazendo aqui tem um pouco dessa vontade de, historicamente, não fazer uma passagem que não marque. E daí, na minha vida, eu sempre tive vontade de ir para um lugar científico, para ter uma descoberta que marcasse algum lugar assim. E todas as minhas escolhas foram um pouco nessa linha. Abriu, no ano que eu prestei na UNESP, eu prestei a UNESP geofísica e na FUVEST eu prestei um curso que chamava Ciências Moleculares, que era um curso que tinha muita demanda, porque muita gente queria esse curso e é um curso que abriu no ano que eu prestei, então errei demais, porque estava muita gente esperando esse curso, o curso abriu, todo mundo se inscreveu, eu não sabia, a taxa de corte foi tipo medicina e a nota que eu tirei eu passaria em História, (risos) em Filosofia, mas não nessa faculdade. Mas me interessava muito, porque eram quatro anos um bacharelado, onde os dois primeiros anos era pesquisa, você aprendia vários métodos de pesquisa acadêmica e depois, os outros dois anos você escolhia onde você queria pesquisar. Então, poderia ser alguma coisa mais biológica, alguma coisa mais no sentido orgânico, alguma coisa mais mineral, de arqueologia. Então, você podia ter uma grade, era mais livre e você escolhia qual que eram os outros dois anos, o que você ia se aprofundar, de pesquisa. E era um curso que, quando eu vi, eu falei: “Nossa, é isso”. Prestei e não rolou. Daí eu entrei no Exército. Daí no Exército eu entrei no CPOR, que é de tenente, que não é soldado e você precisava estar na faculdade. E daí eu consegui bolsa na São Judas, em matemática, eu tinha muita facilidade com matemática e eu falei: “Consigo fazer esse curso”. E daí eu fiz um pouco e daí, o que aconteceu? O Exército não me quis. Tipo: não rolou. Me conheceram, fizeram uma pesquisa. (risos) Aí eu não tinha o poder aquisitivo que aquele lugar do Exército precisava, porque o CPOR é formação militar, é de oficiais. Então, eles já fazem uma seleção a partir do poder aquisitivo da família, de dinheiro, de carro pra conseguir te levar no lugar, dinheiro pra você conseguir comprar o uniforme da formação. Então, eles já fazem uma seleção a partir disso. Eu lembro que eu fiquei de fora e eles tentaram ainda falar assim: “Se você quiser ser soldado, pode ser soldado”. Eu falei: “Ah, não”. Tipo: se não é pra ser tenente, não é pra ir nesse lugar, eu também não quero”. Porque eu tinha vontade, porque o exército do CPOR, depois que você faz um ano aqui em São Paulo, no CPOR, você pode ir pra escola de oficiais, que é no Rio, que é tipo, porra, minha vontade era ser paraquedista lá no Rio, nessa época. Daí não rolou, eu tranquei o curso de matemática na São Judas, fiquei nesse hiato de meio ano e depois entrei na Uninove, com matemática e daí lá eu fui bolsista o tempo todo, então eu consegui bolsa de 100%, porque eu estava num projeto de Jovem Acolhedor, que é um projeto de hospitais, que eles colocam uma pessoa para fazer a intermediação entre os usuários e a unidade. E eu fiz isso no Hospital Psiquiátrico do Pinel, que era bem perto de onde eu morava, em Pirituba e eu fui locado no CAPS infantil e nesse CAPS eu tive bastante relação com autistas. E daí isso foi bem interessante, porque isso também é o porquê que eu parei a matemática, porque eu me aprofundei muito naquela relação da psicologia, comecei a namorar uma pessoa que também estava fazendo psicologia e eu parei de assistir aula de matemática e só entrava em aula de psicologia, aula de psicologia e ‘bombei’ em matemática, peguei umas três DPs, peguei cálculo integral, umas outras coisas e o meu curso era anual. Então, eu tinha que esperar um ano pra continuar a faculdade, esse um ano foi o ano que eu me aproximei do teatro. Então, depois, quando eu poderia voltar pra faculdade, já não fazia mais tanto sentido pra mim. A psicologia fez perder um pouco de sentido e depois a própria arte fez. Depois de anos eu ainda pensei em voltar, mas daí eu já não tinha... minhas vontades já não cabiam, né? Daí ficou mais distante. Ainda tenho vontade de terminar uma formação, agora em outra linguagem, mais artística, para dar vazão para os conhecimentos. Mas é isso: naquela época a psicologia me tirou (risos) da matemática. Mas minha mãe era professora de matemática, ela tinha um aluno autista, esse aluno era atendido no CAPS. O meu TCC na faculdade, mesmo que eu não formei, eu ainda cheguei a fazê-lo e era como ensinar matemática para aluno de sexta série, daí eu pegava o método da minha mãe, pegava um pouco da escola, um pouco da APA, que era a Associação de Pais e Mães de Autistas, que era muito próximo
- não é APA, eu acho que é Associação Mães de Autistas - desse hospital, então eu comecei a fazer simpósio, treinamento, entender um pouco dessa relação do autismo, entender um pouco desse espectro e me interessou muito essa coisa da relação. Fui ler Vygotsky, que me interessou muito essa coisa da fala, dos processos e a psicologia social num todo, porque até então eu tinha uma noção muito vaga de psicologia, de Lacan, Freud. Daí depois eu comecei a entender um pouco mais Pavlov, o comportamental, que eles usavam bastante pro autismo e caí no lugar social e entender mais a psiquê humana como resultado de um ambiente. Isso foi importante para eu também me entender ali, toda a violência que eu vivia, que eu colocava para fora, de onde veio, desse ambiente também. Para mim ficou muito claro, eu falo português porque eu nasci no Brasil e todo mundo fala português, que se eu nascesse na França eu falaria francês, o produto do meio. Então, nesse tempo ficou muito claro essa pesquisa desse produto do meio e também quebrar esses padrões, conseguir reconhecer os erros desses padrões.
P/1 - E nesse momento você teve esse clique e conseguiu entender um pouco tudo isso, ou foi…?
R – Não. Acho que isso dá base pra depois você ir elaborando mais, né? Mas essas bases são importantes pra você conseguir fazer essas reflexões. Eu sempre fui muito pouco ligado nas relações, numa coisa fina, de você olhar para o outro e entender um pouco dessas relações. Então, eu sempre fui muito ‘para fora’ e expressava meio sem filtro, assim, as coisas, as relações e tal. Daí há pouco tempo que eu começo a tentar fazer um filtro maior, tentar fazer uma leitura das pessoas. Antigamente era meio sem filtro, assim, sabe? Sem leitura do outro. Eu acho que essa leitura do outro vai dando mais base para eu ir cortando algumas coisas, aparando algumas coisas e redimensionando, conforme os locais que eu estou.
P/1 - Como foi essa experiência no CAPS?
R – Ah, é dura, no sentido da relação da família, assim. Porque a família que chega no hospital psiquiátrico com uma criança... tem níveis de autismo, mas quando chega com um nível muito grave, você vê, a mãe sobrecarregada, de uma sociedade que não entende aquela criança, que julga a criança, a mãe. E a criança, o fato dela existir, né? Então, é muito duro, muito pesado e eu fiz um bom exercício, que me ajuda até hoje, de me colocar na situação da responsabilidade daquilo também. Então, por exemplo: hoje em dia uma pessoa me pede dinheiro e eu não tenho dinheiro, eu não me sinto mal, falo: “Eu também não tenho esse dinheiro pra te dar”, eu não me sinto mal pela situação. A pessoa que está na rua... eu sei que eu tenho estruturas familiares e de trabalho e tudo, mas não é tão distante essa possibilidade de estar na rua. A insegurança alimentar que eu vivo, que minha família vive, é presente. Ela depende de muitas camadas de trabalho e coisas, eu não estou nada assegurado. Então, essas relações eu sempre me coloquei muito em relação e isso me desarma um pouco, tipo: é o que eu posso fazer, eu tenho meus limites, não consigo ir para muitos lugares, então eu via todas as vezes esse lugar de sofrimento, lugar de dificuldade e ao mesmo tempo me colocava em relação, para não pegar aquilo como uma culpa ou como uma coisa que poderia me machucar mais, assim. Colocava como: “Beleza, está acontecendo, o que eu posso fazer, contribuir”. E eu acho que o autismo... tem coisas que eu não conhecia, né? Mas depois, algumas frases, o pai do Lucas, que trabalha comigo na Cia Mungunzá, é neurocirurgião e um dia ele falou pra mim sobre diversidade neurológica. E ele falou que o organismo, por mais que seja aquela folha de papel e que você é produto do meio, cada organismo tem a sua folha, um A3, um A4. É diverso. E isso abriu muito a minha cabeça, pra tentar... para absorver que a diferença é o que é. O que é não é um padrão, o que é, é a diferença. A diferença é fenótipa, genótipa, social. Essas diversidades não são tão claras para a gente e quando você começa a ter mais consciência dessas diversidades, você consegue aceitar melhor todo esse processo, entender que uma criança autista é a diversidade dela e a gente que não tem essa diversidade que precisa abraçar essa criança, numa sociedade. Então, a diversidade e essas camadas mais complexas, tanto da biológica, que é do genótipo, quanto da diversidade fenótipa, quanto da própria social, a social foi a última que eu consegui ter mais noção dessa diversidade. Tipo, a história que a pessoa vive e que essa história vai alterando o posicionamento dela hoje, aqui. Então, eu fiz um processo há pouco tempo com a companhia, que a gente pegou um espetáculo que chamava Epidemia Prata e o transformou no Cena Ouro, que é a mesma base, mas com o pessoal que morava, que estava em situação de calçada, que foi fazer parte desse espetáculo. E as pessoas que tinham passado pelo sistema prisional tinham muita dificuldade com o tempo, com a hora de chegar, no horário. E eu consegui perceber que isso é por causa da história da pessoa, é a diversidade social da vivência dela que faz ela se relacionar com o tempo de uma maneira diferente da minha. Então, essas coisas que a gente vai aprendendo, que está lá no CAPS, que eu aprendi sobre neurológica, depois biológica, fenotipia, social, essas diversidades são muito pouco exploradas, muito poucas visíveis para a gente. E quando você tem uma noção um pouco maior disso, você começa a aceitar e começa não tratar a pessoa com ‘café com leite’, mas absorver as necessidades da outra pessoa, mais eficaz. Tipo, tem problema com o horário? Então como que a gente resolve? Qual é o caminho para isso? Porque o caminho para você ter um problema eu já entendi, qual é o caminho agora para nós resolvermos isso? Como que a gente, em coletivo, consegue mudar o nosso coletivo, para te absorver? É a mesma coisa do autismo: como que a sociedade consegue se modificar para absorver aquela pessoa? E no tratamento no Pinel, o tratamento comportamental trabalha a pessoa em outra ótica, ele trabalha a pessoa moldando a pessoa dentro dessa sociedade, tipo, então você tem a sua rotina, você tem o seu as suas moedas de troca, se você fizer tal atividade você vai ser recompensado. Então, a base comportamental para estruturar isso, para mim é muito mais distante, eu não tenho que ajudar o autista a entrar na sociedade. Nossa sociedade que tem que absorvê-lo. Então, desde lá já vem plantando coisas que ainda hoje eu super uso diariamente na minha vida.
P/1 - Foi um momento bem significativo da vida.
R - Foi super, foi lindo. Eu amei, assim. Abriu muito a minha cabeça o lugar da psicologia. E depois que eu saí desse projeto, eu ainda voltei lá pro Pinel, como voluntário. Ainda fiz, sei lá, uns três meses lá. Mas eu não conseguia muito conciliar. Mas as pessoas que trabalham lá ainda trocam diversas conversas. Ainda pego as pessoas pra perguntar coisas, pra falar assim, por exemplo: um tempo atrás o meu filho foi no Teatro de Contêiner e o fluxo, a Cracolândia está muito próximo do Teatro de Contêiner, está com parede e ele se relaciona muito com aquilo. Ele chega no teatro, ele fica olhando e é muito violento e daí eu fui conversar com uma psicóloga, que era lá do Pinel, pra entender como que eu falo de violência com o Conrado. Quais são os limites, ali. Como eu construo esse discurso? E daí foi bem legal, que ela passou um monte de texto, passou tipo: crianças em situação de guerra, como que elas vivem essa sociedade. (risos) Coisas que eu ainda preciso usar, porque eu ainda vou buscar lá.
P/1 – Hum-hum. E como que você explicou pra ele? Vocês conversaram sobre isso?
R - A gente vai conversando várias coisas, né? Várias camadas, várias camadas. Hoje o Conrado sabe que a culpa é do prefeito, que o pessoal está na rua, ele entende um pouco da relação capitalista. Eu tento ir de maneiras mais lúdicas e passando um pouco dessa situação, assim. Porque, por exemplo: o que deu o start pra eu falar disso é que ele começou a sonhar que ele morava na rua e daí eu comecei a ver quais que eram os limites, o que eu precisava fazer e dentro disso eu comecei a explicar pra ele que a pessoa que está na rua é porque não tem uma casa, todos deveriam ter uma casa. Então, se não tem uma casa, por que uma pessoa não tem uma casa? Daí eu comecei a falar das casas abandonadas, que estão aqui do nosso lado da nossa casa, daí fui explicando: “Aquela casa não tem ninguém morando e tem uma pessoa lá, a pessoa tem duas casas e ela só mora em uma”. Daí eu fui explicando essa coisa da acumulação da propriedade privada, fui falando pra ele: “Você faz cocô? Você faz onde? E a pessoa que mora na rua, faz onde?” E ele vai entendendo a situação que a pessoa está. Eu sinto que, como eu falei: quando eu era criança... hoje em dia é muito mais pesado eu ver o Conrado se relacionando com isso, mas ele não vê isso, sabe?
Ele vê a violência, ele fica com medo, mas ele não tem uma repulsa, ele não tem consciência da gravidade que aquelas pessoas estão, naquele momento. Ele ainda não tem essa visão mais ampla da sociedade e dos problemas sociais. Então, pra ele é mais tranquilo. As crianças tiram de letra a Cracolândia. E a ‘galera’ da Cracolândia também, quando o vê, começa a gritar: “O anjo”. Porque é isso, né? Tem uma certa ordem na Cracolândia, não é tão desestruturada. Ela é uma sociedade autônoma, ali, que acontece. Então, é uma zona autônoma e ela se organiza e quando passa uma criança eles começam a gritar: “O anjo”, porque não pode usar crack quando está passando uma criança. Então, se atravessa uma criança no meio da Cracolândia, a Cracolândia para de usar crack e é uma coisa bem mágica, assim. Ele fica ‘puto’ que as pessoas começam a chamá-lo de anjo. Ele fala: “Não sou anjo, mas está me chamando de anjo”. E tipo: vai todo mundo gritando: “O anjo, ó o anjo”. (risos) E a pedra para de rolar, nessa hora.
P/1 - E nesse momento que você se junta, como que foi? Com teatro, assim, como que teve esse start?
R - É, o teatro vem... o Marcos, meu irmão, sempre foi do teatro. Aí eu ainda estava na matemática, perdido, ele sempre foi do teatro. Ele sempre soube o lugar dele. Desde essa escola que eu fui convidado a me retirar, lá naquela escola ele já fez a formatura, já fazia peça, era o orador da turma. Depois ele foi estudar no [Teatro] Macunaíma e eu sempre fui muito próximo de todas as peças que ele fazia, sempre assistia, ajudava com entrada de público, contra- regragem, sempre muito próximo. Ele formou o grupo dele, eu também assisti todas as apresentações, ajudava no que podia. E quando eu saí da faculdade e entrei nesse ato, eles começaram a me chamar para viajar, porque eles estavam viajando com o espetáculo, com o primeiro espetáculo da companhia, que chama Porque a Criança Cozinha na Polenta. Isso era 2008. E daí eu tinha acabado de sair da faculdade, nesse ato, comecei a viajar com eles e comecei a me envolver nesse rolê. Comecei a trabalhar já nesse tempo e eu lembro que logo assim que eu comecei a gente foi para um festival no Paraná e eu tinha que ir para o festival para ajudar, para trabalhar e ficar lá, para receber os prêmios. E daí eu fiquei, recebi todos os prêmios, mas de lá eu fui fazer um mochilão na Argentina, tipo pedindo carona e tal e pedi para alguém trazer os prêmios para São Paulo, alguém que eu nem conhecia, que estava vindo para cá. A ‘galera’ da companhia ficou muito brava comigo, porque eu fui para receber o prêmio, fiquei lá para receber o prêmio e dei para alguém trazer esse prêmio. E peguei um gancho, assim, fiquei umas três viagens sem ir, mas valeu a pena, a viagem que eu fiz foi ótima. Fiz um mochilão de dois meses, fui até o sul da Argentina, tudo de carona, pedindo dinheiro.
P/1 – Sozinho?
R - Eu e uma companheira minha, na época, a Jéssica, que era minha companheira na época. E a gente foi assim: duzentos reais, passamos dois meses. Então era trocando desenho, pedindo, mangueando. Foi uma experiência muito massa.
P/1 - Pô, conta aí uma história.
R - Eu, história de carona, tenho várias, assim, eu tenho várias histórias de carona, porque eu gostava de pegar carona, quando eu era moleque. Eu peguei uma carona pro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, acho que foi a primeira carona que eu peguei. Foi eu e um amigo meu e a mãe desse meu amigo era muito religiosa, ela começou a ligar pra todo mundo, falando assim, falou pra minha mãe: “Seu filho sequestrou meu filho, o Pedro sequestrou meu filho e sumiram”. Daí nós, lá de Porto Alegre, ligamos e falamos: “Chegamos aqui, está tudo bem”. (risos) A minha mãe já era mais tranquila, inclusive tinha bastante gente que conhecia a minha mãe lá e eu consegui ficar na estadia de uma conhecida dela, tomar banho. Eu também pedia dinheiro pra comer. Comi bastante com o pessoal do MST, que tinha uma cozinha aberta e daí eles já sabiam que a gente estava lá numa situação mais precária, eles davam bastante comida pra nós. E uma viagem bem legal, bem legal a política, né? Foi o início do Movimento Passe Livre. Então, eu fiz algumas contribuições ali, nessa estruturação do Passe Livre, inclusive que historicamente eu reavaliei como ruim, porque quando eu estava lá, nesse... no dia do Passa Livre nacional, que foi o primeiro encontro, teve uma discussão sobre sindicalização entre partido e sindicato, entre programa e tal e eu falei assim: “A gente tem que ser mais distante do que um partido, acho que a gente é como se fosse um sindicato dos estudantes”. E daí foi uma situação mais apartidária. Essa situação apartidária que a gente iniciou ali vai crescendo, vai crescendo, vai crescendo. Quando tem 2013, eles não têm um programa revolucionário, porque lá no começo a gente já tinha estruturado como não programa partidário, mas um lugar sindical. Então, esse movimento é captado muito fácil em 2013 e nasce o MBL e faz uma invertida nesse movimento, que estava ali dentro do governo da Dilma, que vai gerar o golpe e que vai gerar o Bolsonaro, mais pra frente. Então, eu analisando historicamente, falei assim: “Coloquei o dedo no lugar errado, dei uma ideia que não deveria ter dado”. Deveria ser uma coisa mais estruturada, pra quando chegasse num movimento como chegou, em 2013, com a potência que teve, tivesse mais solidez revolucionária ali, envolvida. Mas também fui pro show do Rolling Stones, no Rio, de carona, fui sozinho pra praia de Copacabana, peguei e fui pra estrada, peguei uma carona, fui até o Rio, passei duas noites lá, pra ver Rolling Stones, voltei e fui pra Argentina, nesse rolê também, a dedo, foi bem legal, bem ‘massa’, daí já foi mais longa, já com barraca, mais estruturado. E aí cheguei em casa e a minha avó falou: “Nossa” - perguntando pra minha mãe – “ele está magro, como que ele está? Está sujo?” Achando que eu fiquei morando na rua, né? Mas eu estava super bem. Voltei até com ombro mais largo, de ficar carregando mochilão. (risos) Depois já encolheu de novo, mas na época foi ótimo.
P/1 - Tem algum aprendizado que você carrega dessa experiência, na Argentina?
R - Da língua, né? Foi a primeira vez que eu saí para fora do país, então você se relacionar com outra língua, com outras culturas... tem uma coisa que também, quanto mais longe eu fico da cidade de São Paulo, mais legal é falar que eu sou de São Paulo, mais orgulho eu tenho dessa relação. Então, eu consegui ter uma dimensão disso também viajando, de como é importante reafirmar de onde você é, mas eu sinto que foi um lugar muito despretensioso, sabe? Tem um conhecimento que ainda também me ajuda muito hoje em dia e que pra mim fez muito sentido naquela época, naquela viagem, que era o bom de ser mendigo, que é assim: a pessoa que está numa situação muito difícil precisa de outras pessoas, ela precisa se relacionar para melhorar aquela situação. Então, quanto menos coisa você tem, mais você se relaciona, por necessidade mesmo. Então, o fato de eu não ter cigarro, eu me relacionava com todo mundo, para ter cigarro. E quando eu tenho cigarro, não me relaciono com as pessoas, por causa que eu já tenho aquilo. Então, quando você tem alguma coisa, você já coloca seus pré-conceitos, suas relações e limita isso. Quando você não tem nada você não se limita e você se relaciona vertical, com todo mundo. Então, o não ter nada e o se relacionar com todo mundo, naquela época, pra mim fazia muito sentido entender isso, sabe? Tipo: a liberdade que dava de eu chegar num lugar e manguear a cidade inteira, pedir tudo pra tudo que é lugar e conversar com todo mundo, de todos os lugares, porque todas essas trocas eu precisava. Então, conheci pessoas maravilhosas e o estado de necessidade dá essa liberdade de conhecer essas pessoas. Eu fui de avião com a minha atual companheira e foi outra relação, entendeu? Outra relação. Eu me relacionei com pessoas, ‘massa’, conheci gente, mas conheci muito mais turista do que da vez que eu fui. Da outra vez eu conheci, eu fiquei, no mochilão que eu fiz, no Uruguai, com uma ‘galera’ punk morando na rua. Então, uma relação muito mais visceral do que quando eu fui, que daí eu já tinha outros nichos de contato, fui para museu. Da primeira vez que eu fui, de mochilão, eu dormia em cemitério, fazia uns bagulho vida louca. Da segunda vez não, era tipo uma estrutura que você se relaciona menos com as pessoas, porque você já tem, você tem o dinheiro, você tem onde você quer ir, você tem o que você quer comer. Quando você não tem cada ação dessa precisa de uma relação. Então, um ensinamento. E daí eu olho pro fluxo hoje, que eu estou muito próximo com ele e você vê que a ‘galera’, a sobrevivência deles é a partir dessa relação que eles precisam ter. Então, eles vão se relacionando com todos, com todo mundo que vai aparecendo, sem um lugar de... você precisa de todo mundo, então você não tem um preconceito, ali, para se relacionar com as pessoas.
P/1 – Hum-hum. E a companhia te aceitou de volta, depois de dois meses? (risos)
R – (risos) Me aceitou. A companhia depende de mim, porque... assim como eu dependo dela, é uma relação mútua. Mas o trabalho físico exercido é muito importante. Você tem camadas de trabalho intelectual, que é mais subjetivo e tal, mas o trabalho físico presencial é muito importante, o meu trabalho físico, técnico… é um conhecimento técnico, então quando você vai analisar uma indústria, o conhecimento técnico do trabalhador é muito importante dentro da indústria. E é esse o papel que eu exerço na companhia: um papel braçal, técnico, presencial. O teatro já tem muito dessa relação do presencial, mas essa coisa é expandida no máximo. Então, quando a gente foi construir o Teatro de Contêiner, quem tinha recurso financeiro deu recurso financeiro, eu dei trabalho físico. Então, essa relação. A companhia sempre precisa de gente para trabalhar. Eu era uma pessoa que estava disponível, que tinha os conhecimentos técnicos e a vontade. Então, um pouco da faculdade de matemática me deu uma base, um pouco, em física, porque a minha licenciatura era uma licenciatura curta em física, eu comecei a entender de circuito, eletricidade. Ao mesmo tempo, a companhia entrou num processo novo. Eu fui convidado para ajudá-los tecnicamente nesse processo novo e fui trabalhar numa empresa muito grande de iluminação. Então, eu consegui absorver muitos conhecimentos técnicos que foram fundamentais para a companhia. Então, por exemplo: hoje o Teatro de Contêiner, toda a estruturação elétrica fui eu que fiz. Sem uma faculdade, sem nada. Nessa lida, de aprender tanto lá na empresa, um pouquinho da faculdade, juntando tudo isso, fui ligando o fio com o fio e fiz um teatro.
P/1 – Hum-hum. Você chega antes do teatro existir?
R - Chego antes do Teatro existir.
P/1 - Como que... conta pra gente um pouco dessa história?
R - Tá, vou contar. Eu chego na companhia em 2008 e a gente ainda tinha um lugar itinerante, mambembe de circo, sem uma sede, sem um espaço. E tinha esse espetáculo, Porque a Criança Cozinha na Polenta, que era uma família de circo, uma história que trata sobre... é um texto autobiográfico da Aglaja Veteranyi, que é uma escritora romena e ela narra a história do pai dela, que é o Tandarica, que é um grande palhaço da Romênia e que foi um palhaço que roubou caixa do circo e fugiu da ditadura stalinista da Romênia para o ocidente, achando que o capitalismo ia ser diferente, mas daí ele vê que o capitalismo é pior ainda do que ele vivia, aquela situação e vai degradando a família, tudo e essa história a gente faz uma adaptação com o diretor, com o Baskerville. É o primeiro espetáculo da companhia e eu sou chamado para ajudar em produção, quando está viajando. E daí um dia o iluminador falta e eu fiz a luz e daí, a partir desse momento que eu fiz a luz, eu nunca mais parei de fazer a luz, não só desse espetáculo, mas de todos os espetáculos da companhia. Daí é nesse momento que eu também vou pegar essa construção técnica nas empresas, vou aprender. Daí a gente entra num novo processo com Luiz Antônio-Gabriela, que é com o mesmo diretor, com Nelson Baskerville. E nessa história o Nelson traz a história de uma irmã que nasceu homem, nasceu o Gabriela... nasceu Luiz Antônio e morreu Gabriela, fez essa transição durante a vida. E a gente vai pesquisar a história dessa irmã e trazer essa história para a cena. E nesse momento eu entro no espetáculo, para dar conta da técnica, porque eles estavam com volume de interpretação e de ações cênicas muito grande. E eu acabei compondo a encenação com o meu corpo, fazendo a operação em cena. Daí eu vou tocando guitarra, fazendo outras coisas e a gente vai fazendo esse espetáculo, um espetáculo muito ‘massa’ e esse ganhou uma projeção muito grande. A gente viaja para Portugal, faz o palco giratório no Brasil, de vários estados, apresenta muito esse espetáculo, estrutura o grupo e a gente consegue mandar um fomento. Daí a gente é contemplado no fomento, que é uma importante política pública da cidade de São Paulo, que estrutura todo o fazer artístico, teatral, é uma política estruturante e nesse momento a gente consegue ter uma estrutura salarial e de espaço. Então, a gente aluga um galpão, que fica do lado do Complexo Prates, que é na Rua Prates. O Complexo Prates é um centro de acolhida, onde tem várias casinhas de acolhida. Então, tem pro pessoal de situação de rua, tem para as mulheres trans, tem para imigrantes e eles ficam sendo acolhidos naquele lugar. E ali, nesse galpão, é o primeiro lugar que a gente começa a se relacionar com uma sociedade, com vizinhos, porque eu tenho minha casa e tinha meus vizinhos, mas eu, grupo, com os meus vizinhos, daí é como que o grupo se relaciona com a sociedade, com o entorno. E é muito legal, porque é o embrionário do que é o Teatro de Contêiner. Era um galpão onde era particular, a gente alugava, mas todas as atividades ali eram gratuitas. A gente fazia festa com as portas abertas, ensaio, um monte de atividades que fluiu aquele espaço e que trouxe todo mundo que estava ali no entorno para dentro daquele espaço. Mas teve um momento que a gente começou a se questionar o fato de pegar um recurso público do edital, do fomento e colocar na especulação imobiliária, uma pessoa que é dona daquele terreno. Então, a gente começou a questionar essa lógica e falou assim: “Por que a gente não consegue pegar esse dinheiro público e colocar num espaço público?” Então a gente mapeia alguns terrenos que estavam ociosos na cidade de São Paulo, ali no Centro, que é a região que a gente já trabalhava e entre esse mapeamento a gente acha aquele terreno da Gusmões, que era um terreno que foi... tinha pessoas que moravam lá, daí veio o Kassab, desapropriou aquele lugar, fez um espaço livre e deu aquele espaço para o Instituto Lula, para fazer o Museu da Democracia. Tudo isso dentro do planejamento do Nova Luz. Por causa de vícios políticos nesse processo entre o Haddad e o Instituto Lula, esse processo não vai para frente e aquele terreno começa a ser ocupado pela GCM, que estava ali do lado, como estacionamento. A gente vê a enorme potência daquele espaço para a cidade e acha que é um crime ser aquilo como estacionamento para a GCM, que não era nem de viaturas, era de carro particular e a gente pede o espaço para a prefeitura, para fazer um teatro, a prefeitura não libera e daí a gente pede para fazer uma performance e a performance era um festival de arquitetura da estrutura na cidade. E a performance foi construir o teatro. Então, a gente pensou numa maneira que a gente conseguisse construir o teatro rápido. Então, a gente vai para o lugar de contêiner, para não ter uma construção de parede, alguém passar lá e falar: “O que vocês estão fazendo?” e a gente vai para esse lugar modular dos contêiners, faz todo o projeto, recorta os contêiners, estrutura tudo lá em Santos.
P/1 – Vocês fizeram tudo?
R – É. Sem arquiteto, engenheiro. Até mesmo porque a gente tinha, em 2013, viajado pelo Brasil, no palco giratório, então a gente tinha conhecido muitos teatros e a gente carregou esse conhecimento do fazer mesmo o que daria certo e a gente desenvolve esse projeto. E daí a gente traz de Santos, em uma noite a gente monta o teatro. O pessoal estava trabalhando na Santa Ifigênia, foi pra casa dormir, quando volta se depara com o teatro. A gente tem as filmagens de time-lapse, da coisa sendo construída. Foi uma noite de aprendizado pra todo mundo, porque o ‘cara’ do guindaste nunca tinha feito um teatro; o ‘cara’ do contêiner nunca tinha feito teatro; a gente nunca tinha feito isso, daí todo mundo fez um grande laboratório, assim, na prática, e fez. E o teatro se estruturou assim, meio que num golpe, ali ainda no final do Haddad e aí a gente vai conversar com o Haddad para ele liberar o termo de uso do espaço. Como aquele espaço era do Museu da Democracia, o Haddad não conseguia - pro Instituto Lula e o Haddad, na gestão do PT - fazer essa manobra. Então ele adia, não responde à gente, a gente fica nessa ilegalidade e a gente vai conseguir a primeira legalidade no Dória, porque o Dória, por mais que seja esse pensamento liberal, pra ele interessa muito a PPP, que é o público privado, que ele pega as instituições públicas e dá pra iniciativa privada lucrar ali em cima. E esse pensamento de PPP é o que estrutura todos aqueles prédios no Centro, onde antes eram todos com espaços culturais ali, do Nova Luz, agora são moradias. E essas moradias é uma política de Estado que pressiona muito forte a Cracolândia naquela região, cria muita tensão. E daí é nesse momento que a gente chega ali, antes dos prédios, mas nesse momento de gestão do Dória, que era um momento bem caótico na cidade e muitos coletivos que estavam atuando na Cracolândia, que não era tão próximo, se sediavam no Teatro de Contêiner. Então, o Teatro de Contêiner acaba criando um espaço de respiro lá no Centro, principalmente para as pessoas que estavam em situação de vulnerabilidade, ou para as pessoas que trabalhavam no território. Então, a gente começa a ter um trânsito de todos esses articuladores ali, da região. Os serviços, tanto da saúde, assistência social e os artistas da cidade começam a transitar naquele espaço e também a gente começa a ter mais consciência sobre, de fato, o que a gente estava fazendo ou o que a gente poderia fazer naquela região, no aspecto da redução de danos.
P/1 - Vocês já tinham esse interesse, a princípio, ou foi...
R - Não, ninguém tem esse interesse, até hoje, não é o que motiva a ‘galera’ a um trabalho social com o pessoal em situação de rua, no coletivo. É muito doido, porque essa é uma coisa que atualmente a gente discute, porque o motivador nosso é o motivador de um grupo de teatro, artistas que querem dar passagem para as linguagens na cidade. Mas hoje, na conjuntura que a Cracolândia está, muito próxima ao teatro, as lógicas se misturam. Não consigo fazer um teatro para a cidade enquanto não consigo dar conta naquela situação que está ali, do lado. Não consigo ampliar, fazer uma divulgação no Instagram, no Facebook, que é a linguagem que a gente sempre utilizou, não impacta aquela ‘galera’. Aquela ‘galera’ não está conectada. Eles têm estruturas caóticas, bem desestruturado o pessoal e daí o teatro, quando tem esse foco, ele acaba... estamos num momento bem delicado, no teatro, mesmo. Um momento de que os cinco anos que a gente... estamos há sete anos lá. Os cinco primeiros anos, o fluxo, a Cracolândia já era um pouco distante. Então as pessoas vinham ao teatro como um espaço de respiro mais distante lá, do fluxo. Quando o fluxo está do lado do teatro, o fluxo de público normal já é afetado e a necessidade da Cracolândia, de ter espaço de apoio, banheiro, essas coisas, é muito grande ali. Então, o teatro, que sempre teve os portões abertos para a cidade, não dá conta do fluxo. E ao mesmo tempo a gente não quer ser como foi a Sala São Paulo, que passou anos do lado do fluxo e nunca se relacionou com ele. Então, a gente está tentando reestruturar um teatro mais comunitário e que trabalhe a partir da chave da redução de danos, o que pode ser feito com aquela situação ali, com o pessoal que está naquela situação. Mas, ao mesmo tempo, a gente entende que aquela situação é gerada por causa do capitalismo, das opressões, do racismo estrutural que tem na sociedade e que a gente não vai dar conta. Quem pode fazer alguma coisa é o Poder Público e daí é isso: a gente cobra do Poder Público alguma coisa mais efetiva quanto aquilo, que não seja a força policial, entendeu? Porque o fato da Cracolândia estar do lado do teatro tem muito a ver com essa força militar, que foi empurrando a Cracolândia por qualquer lugar do Centro e todo mundo empurrando. Então, os moradores: “Tira de perto de mim”. Os lojistas: “Tira de perto de mim. E não sei, bate, mata, tira daqui”. E esse é o pensamento de todos. Quando para do lado do teatro, tipo: “Você vai tirar daqui pra colocar onde? Você vai bater nele? Então, deixa ele aí, está ligado?” E esse pensamento é diferente de todos os outros órgãos que estão ali. Então, é um grupo de teatro lidando com a sua vizinhança, é um outro pensamento e a gente está tentando, nesse momento, fortalecer a conjuntura, fortalecer o que precisa ser feito ali, na hora, dar passagem para as coisas que precisam da saúde, do social. E nesse lugar o artístico do teatral acaba entrando não como um fim, mas como um meio, mais como um lugar de redução de danos, ou uma possibilidade da pessoa ter um tempo de respiro, ou então uma outra atmosfera, que não o fluxo.
P/1 - Acho que eu estou entendendo. Enquanto as coisas estão acontecendo, vocês estão repensando como lidar com esse entorno? Bem orgânico.
R - É. As coisas acontecem e a gente corre atrás. Então, o fluxo muito próximo do teatro gera problemáticas. E a gente corre atrás para resolver essas problemáticas. Eu sempre achei que, como Teatro de Contêiner, como Cia Mugunzá, a gente tinha uma bola colorida linda para nós brincarmos. Era uma super bola ‘massa’. E essa bola nunca vai parar de crescer, porque a gente é artista, a gente está nesse processo, a gente debruça a nossa existência para a poesia, para as sutilezas. Então, eu sinto que essa bola está aí e a gente está jogando com ela, tal. Só que, desde a pandemia, o rolê social ali no Centro, do teatro, também começou a virar uma outra bola, que foi crescendo e vai crescendo cada vez mais. E hoje está difícil equilibrar essa bola do nosso fazer artístico com essa bola da necessidade social daquele momento. E daí a gente está digladiando ideias pra achar um processo onde a gente consiga dar conta dessas duas bolas, que estão muito grandes. E uma meio que impede o crescimento da outra, porque se eu estou divulgando esse espetáculo na internet, eu estou tirando essa ‘galera’ desse espetáculo. Se eu trago uma ‘galera’ de extrema vulnerabilidade para assistir ao espetáculo, tem uma camada aqui que não está interagindo com essas pessoas. Então, é bem complexo.
P/1 - Sim. Que programas, produções, vocês foram construindo nesses sete anos? Espetáculos, enfim, coletivos, parcerias.
R - É, muitos atravessamentos no todo da cidade, do lugar dos artistas, de urbanismo, de arquitetura. E assim: nesse processo, assim que a gente chega lá no teatro, a gente faz um espetáculo, que é a Epidemia Prata, que fala da nossa relação com o entorno. Então vai falar mais da nossa falência, da nossa incapacidade de lidar com aquilo. E é muito duro, um espetáculo muito duro, porque ele não vê uma solução dentro daquela situação, a não ser acabar com o capitalismo. Então, ele tem uma premissa - é uma direção da Georgette Fadel - de ser uma coisa meio difícil do público absorver aquilo, pela dureza daquela história, daquelas imagens, daquilo que a gente traz. E o espetáculo é baseado na nossa relação com as pessoas que estavam lá. Depois desse espetáculo a gente faz o AnonimATO, que é quando a gente pega um fomento pela segunda vez. E o AnonimATO é um espetáculo que a gente estava vindo do pós-pandemia e querendo ir para a rua. Então, é o primeiro espetáculo de rua do grupo, onde a gente vai tentar uma utopia, acreditar em algum lugar.
P/1 - Escrevem juntos?
R - É, a gente tem uma das pessoas do grupo, que é a Verônica Gentilin, ela é dramaturga, escreve superlegal, mas a gente vai propondo, todo mundo vai propondo os textos e as narrativas e ela vai fazendo um acabamento em cima de tudo isso, mas todo mundo propõe bastante textos, no grupo. E esse ano que passou, em 2023, a gente fez um processo junto com o Sesc Bom Retiro e nesse processo a gente revisitou a Epidemia Prata, chamou um pessoal da região, que já esteve em situação de rua, que hoje está numa relação mais avançada de redução de danos, já estão reinseridos na sociedade e essas pessoas compuseram esse espetáculo e o Epidemia Prata tinha essa relação eu e os outros. E nesse espetáculo os outros estão em cena. Então, a gente conseguiu tirar um pouco da nossa fala, um pouco do nosso protagonismo e esse protagonismo não é pela própria pessoa na situação. Então, a gente contava história e eles contam relatos.
P/1 - Como foi essa experiência, pra você?
R - Ela foi muito ‘massa’, assim. Nela eu aprendi muito sobre diversidade social. Para mim é bem importante esse aprendizado, de entender as vivências de cada um até chegar ali, como isso vai formando a psiquê das pessoas e vai deixando diversas e múltiplas as limitações e ao mesmo tempo um processo muito educacional, porque eu tive outras experiências teatrais que eu fui trabalhando e eu fui aprendendo. E nesse espetáculo a gente estava com umas pessoas que estavam chegando ali, naquele espaço, pela primeira vez. E a gente foi apresentando aquele espaço no fazer e foi um grande processo de troca, um grande processo educacional. Então, foi um processo didático, assim, muito legal. Em todos os sentidos: didático de chegada, de horário, de comprometimento, didático de técnicas, didático espacial, de terminar o espetáculo e limpar, de coletividade. Então, ele foi muito amplo e ele é bom, porque ele também acaba dando base pra gente entender o que é essa didática, porque a gente constrói uma didática a partir do fazer e daí agora a gente consegue olhar e falar assim: “Ah, legal, a gente fez isso, isso deu certo, isso é um caminho didático”.
P/1 - Nesse momento, o que você conta dos horários, que você estava falando anteriormente, repensando...
R - Isso. É, assim, então várias camadas, né? Dos horários é o que aponta do sintoma, né? Daí a gente vai vendo outras camadas, mas, por exemplo: o Nego Bala, que está com a gente, passou no sistema prisional e ele comenta muito sobre essa dificuldade que ele tinha de horário e ele também vai trazendo outros conhecimentos pra gente, que a gente ainda trabalha muito numa esfera do patriarcado capitalista, mesmo dentro do grupo, que a gente tenta desestruturar essas coisas, mas muito na chave, tipo, se você chegou pra trabalhar, você vai ter o seu salário. Se você não conseguiu chegar, você não vai ter aquele dinheiro e daí o Nego trouxe a questão assim, tipo: “Beleza, e a pessoa que não consegue andar pra pegar água, vai ficar com sede? Ou alguém vai lá, vai pegar água, que é garantida dele, vai dar pra ele, mesmo que ele não consiga?” Ele vai trazendo essas outras formas da gente entender essas estruturas capitalistas que a gente vai reproduzindo, entendeu? E é isso: o aprendizado vai se dar muito mais em como a gente vai absorver essas diferenças e como caminhar junto com essas diferenças, mais do que um formador de... um achatador de todo mundo igual, é um pra organizar e ver as diferenças e como trabalhar a pessoa, o indivíduo.
P/1 - Teve algum relato, alguma troca com alguém, alguma conversa que foi muito significativa pra você, nesse momento?
R - É, eu tinha bastante conversa com a Ludmila Frateschi, que é uma psicóloga que também estava no processo para ajudar esse outro núcleo, esse outro coletivo que estava ali, junto com a gente, inexperiente. Porque, é isso: experiência de teatro mesmo, de fazer, eles não tinham esse tato ainda e começaram a fazer ali, junto com a gente, e daí é muito rico, assim, conversar com ela, principalmente nesse lugar de arte como elaboração da psiquê, você tem esse processo de elaborar aquilo que você passa e o processo artístico, como que é a elaboração artística e como que você cuida da sua psiquê através dessa elaboração artística, então foi bem rico esses processos, entender essas conversas.
P/1 - E a pandemia para vocês, como foi?
R - A pandemia é ruim socialmente, num lugar maior. Eu, particularmente, tive uma outra vivência com a pandemia, que foi muito boa, por mais desse lugar social, foi quando meu filho chegou. Então, ele chega em 2019 e eu consigo... e eu estava num ritmo muito, muito, muito grande de apresentação. A gente estava - quando para pra pandemia - fazendo mostras de repertório. Então, a gente estava circulando por cinco espaços distritais, com seis espetáculos. Então, eu estava num fluxo de trabalho muito grande, parou num teatro que é próximo onde eu moro hoje, que é o João Caetano e daí eu consigo ficar muito mais em casa, com esse primeiro momento do meu filho. E isso é muito importante, olhando pra trás foi ótimo que tenha dado essa pausa com todo mundo e que eu esteja naquele lugar, naquele momento. E, ao mesmo tempo, abriu umas camadas de trabalho pra mim, que eu ainda não tinha explorado, porque eu nunca tinha explorado o audiovisual e daí, durante a pandemia, eu e minha companheira, a gente funda a Vudoo Filmes, que é uma empresa que eu tenho com ela, uma produtora de arte. Daí a gente funda a Vudoo Filmes nesse momento, pega um edital, começa a trabalhar e daí a gente vai para esse lugar mais do audiovisual, que eu tinha explorado muito pouco e que eu vou me maravilhar, quando eu chego, com as possibilidades, com a indústria, com os caminhos de financiamento, porque nesse tempo todo a gente é artista e trabalha, mas a gente vai pensando nesse lugar da própria indústria, do próprio fomentar projetos e, quando eu chego no audiovisual, que ele já tem tudo muito estruturado, eu aprendo muito nesse universo. Então, ali, na pandemia, é quando a gente começa a pesquisar isso, eu pego junto com minha companheira um Aldir Blanc e a gente faz um espetáculo, que é um filme cênico chamado Babel e a gente vai discutir o patriarcado dentro da sociedade, a partir do patriarcado bíblico, ali, é um espetáculo muito ‘massa’ para o momento bolsonarista que a gente estava vivendo, da bancada da Bala Bíblia Boi e o espetáculo vai discutir um pouco isso. E com a Cia Mungunzá a gente também faz um espetáculo muito no timing, que a gente faz uma adaptação do espetáculo nosso, que é o Poema Suspenso para uma Cidade em Queda e a gente o faz virtualmente, pelo Zoom. Então, é um espetáculo, essa narrativa virtual vira o Poema em Queda online, que a gente dividiu em três espetáculos e é coisa gravada, com intervenção ao vivo, com o público se relacionando, essa coisa da intimidade das nossas casas, essa câmera que acaba invadindo a casa, as reuniões que acabam indo para vários outros horários. Então, esse momento pandêmico foi muito... teve muitos lugares de expansão de linguagem, de trabalho. Teve muita expansão, mesmo.
P/1 - E essa produtora faz parte, de alguma forma, da companhia, do teatro, ou é uma coisa paralela?
R - Ela é uma coisa paralela. No teatro, a gente não consegue sobreviver do fazer só teatro. Ninguém lá consegue sobreviver. O dinheiro é escasso. E daí a gente precisa de outras funções na vida, outros serviços, que deem conta da sobrevivência financeira mesmo, bem básica. E daí no grupo, cada um tem outras funções. E no caso meu, eu... minha parceira é atriz e o que a gente sabe fazer é a arte. Então, acaba ficando muito próximo do que é o Mungunzá. A gente está prestes a estrear um espetáculo, que estreia dia primeiro de fevereiro agora, que é um espetáculo que vai falar sobre o meio ambiente. Era o case da polenta, entendeu? Então, muito da linguagem da Cia Mungunzá foi o que me formou, porque eu aprendi na lida e é o que eu coloco lá. Então tem muitas correlações. Eu, Pedro, que estou no Mugunzá e eu, Pedro, na Vudoo tem muitas correlações. Mas, ao mesmo tempo, é uma maneira de eu, dentro de casa, também conseguir sobreviver, dar um ofício... minha companheira conseguir exercer o ofício dela, conseguir fazer. Então me aproximo para dar essa base, para a gente conseguir também fluir ‘grana’, fluir serviço em casa.
P/1 – Nomes Vudoo e Mungunzá, conta um pouco pra gente.
R – Conto. O Mungunzá é quando o Marcos e a Sandra... eles eram um casal. E o Marcos é meu irmão e eles estavam no Macunaíma, juntaram o pessoal do Macunaíma pra fazer o grupo e naquela época eles gostavam muito de Terça Insana e daí tinha uma esquete da Terça Insana, que tinha uma baiana, que tinha tudo ali naquele... na bancada dela e ela falava: “Mungunzá, não sei o que lá, Mungunzá” e era muito engraçado. E nasceu daí (risos) o Mungunzá. E a gente nem gostava tanto desse nome, depois de um tempo, mas depois de alguns anos a gente foi fazer um estudo, fez um livro de dez anos, a gente convidou um teatrólogo brasileiro, um crítico, o Alexandre Mate, pra ajudar a gente nessa escrita e o Alê vai falar sobre munguzá como oferenda a Oxalá e a gente acaba vendo outras hiper conexões com esse nome e que acabam fazendo mais sentido hoje, que não foi o objetivo inicial, mas que hoje ainda faz mais sentido. E a Vudoo vem mais por um lugar que a gente vai pesquisar um pouco temáticas não tão, sei lá, sombrias, vamos dizer assim. E daí a gente traz esse Vudoo mais para pesquisar esses apocalipses, pesquisar esses lugares energéticos, não tão normatizados e daí a gente vai fazer tipo um curta sobre uma bruxa, daí a gente faz um ______, que é de zumbi, entre outras coisas. A gente vai para um lugar ficcional, cria algumas coisas ficcionais que fazem sentido com esse Vudoo. E outros lugares não, outros lugares mais políticos, assim. Então, a gente faz um documentário sobre... chama De Portas Abertas, uma escola antirracista, é um grupo, uma escola na periferia, que pintaram as portas com personalidades negras e a gente foi lá documentar e esse curta acaba ganhando uns prêmios. Ele ganhou um prêmio do Museu da Cidade, de território educacional, e ele ganhou o prêmio Paulo Freire, de educação. E a gente também faz trabalhos com Mugunzá, como precisa de audiovisual, gravação, a gente vai lá com Mugunzá. Quando Mugunzá faz o estúdio, porque agora, lá no Teatro de Contêiner tem uma sala pedagógica, um estúdio multimídia, daí a gente faz a cobertura, constrói um vídeo sobre isso. Quando a gente constrói uma bicicleta para linkar as atividades do teatro com o pessoal de rua, uma bicicleta a partir de uma parceria com o Instituto Goethe, na Alemanha, a gente faz também um documentário sobre essa bicicleta, sobre a utilização dela no território. Então, a Vudoo e a Mungunzá são muito próximas, elas vão, ali, se apoiando, principalmente a Vudoo se apoiando na Mugunzá e a Mugunzá, quando tem demandas, passa pra gente e a gente vai dando conta. O ano passado a gente fez um projeto Mugunzá, que é o Circo Contêiner, que acontece na época do Dia das Crianças, ali em outubro, que é contêiner na parte de fora... circo na parte de fora, para as crianças, aluga brinquedo, distribui brinquedo, pula-pula, essas coisas e daí a gente também fez a cobertura, gravou, tirou foto. Então, a Mungunzá vai desenvolvendo um monte de projetos por causa do Teatro de Contêiner também. Então, a gente fez a mostra de diretores. Então, eu chamo um diretor, pego um monte de obra dele e faz uma mostra daqueles vários espetáculos, que é bem legal, que você consegue ver a linguagem do diretor e os espetáculos, um do lado do outro. A gente fez também Mostra Solo Mulheres, que é de espetáculo solo de mulheres, daí teve mulher trans, teve uma boa diversidade, umas mulheres indígenas, bem legal. A gente faz o Circo Contêiner, faz um projeto chamado Negras Melodias, que é bem ‘massa’, que o curador é o Hever, que é um artista da música que consegue estar bem atento às pessoas que estão produzindo umas coisas interessantes e daí ele vai ‘amarrando’ essas pessoas e foi fazendo esses shows. É um pocket show, onde a pessoa toca umas músicas e depois tem uma conversa, fala um pouco sobre o processo dele, que é bem legal. Vai pra esse lugar mais hoje em dia, de que o artista não é consumido só a parte musical, mas a vida dele inteira. Então, esse show traz um pouco desse aspecto, porque você tem a música, mas você tem também o artista e a posição dele no mundo e os processos dele. Então, é um projeto bem ‘massa’ que aconteceu já acho que tem... estamos na terceira edição do Negras Melodias, esse ano indo pra quarta, entre outros projetos. O Teatro de Contêiner sempre deu muita passagem, muita vazão para o artístico da cidade. Sempre foi muito importante, porque você tem, primeiro: uma pauta grande nos teatros por causa da própria sobrevivência dos teatros, de aluguel, de contas, água, essas coisas, que no Teatro de Contêiner você não tem esses gastos. Então, a nossa pauta já é muito mais acessível. Então a acaba dando possibilidades das pessoas ocuparem, com menos poder aquisitivo, menos estrutura. E também a gente acaba virando um ‘guarda-chuva’ institucional pra toda aquela região. Porque a partir de 2013, que a gente teve um avanço de produção por causa do Luiz Antônio-Gabriela, esse avanço nunca mais para, a gente vai se estruturando. Então, a gente vai criando CNPJ, associação, vai estruturando burocraticamente o grupo. E hoje, quando a gente capta uma emenda, a gente consegue executar uma emenda, consegue executar Lei Rouanet, leis federais de incentivo, consegue executar os PROACs, que são os editais diretos e os indiretos, que são as leis de incentivo. O grupo vai executando essas coisas e não só executando para o grupo, mas executando para o todo o território. Daí, junto com a gente, no Teatro de Contêiner, a Dona Carmem, na pandemia, chegou pra ficar lá e ela toca o Tem Sentimento, que é um coletivo de mulheres cis e trans, que estavam numa situação de vulnerabilidade ali, por causa do fluxo e que fazem esse trabalho de costura e de geração de renda e ela foi lá pro teatro durante a pandemia e só vai crescendo, assim, sabe? Hoje ela está com oitenta pessoas do POT, tem um monte de menina lá trabalhando, tem as máquinas de costura, tem o ateliê que eles fazem silk, um monte de coisa, assim. É bem ‘massa’, bem ‘massa’. Esses dias elas estavam jogando bola lá, na quadra. Nossa, campeonato do Tem Sentimento, rolando dinheiro, todo mundo tomando cerveja, foi bem divertido. Eu me divirto. Elas fazem desfile lá. Nossa, é muito ‘massa’, muito ‘massa’, com muito carinho.
P/1 – E foi meio sem querer?
R - Na verdade é isso: quando a gente chegou lá no teatro, a gente começou a fluir com as pessoas dali, da região. E ela, na pandemia, falou assim: “Tem como eu ficar mais nesse espaço?” e foi maravilhoso pra gente. E daí depois chegou um contêiner pra ela, a gente começou a estruturar mesmo essa sede. A Mugunzá acabou fazendo, não sei, uma aceleração, um embrionamento ali, desse coletivo, que foi super ‘massa’, que agora ele está numa estrutura ‘massa’ e outros coletivos, que vão se aproximando. Você tem o É de Lei, que trabalha com a redução de danos do pessoal lá, do entorno. Você tem a própria Craco Resiste, que é formada dentro do Teatro de Contêiner, dentro de um simpósio ali e ela atua e é muito próxima à gente, nesse início. Depois ela se afasta, mas ainda continua mais próxima. Ano passado a gente teve bastante ações do TTT, que é Teto, trampo e tratamento. Tem psicólogo da Casa Aberta, que fica lá. Tem o Birico Arte, que é um outro coletivo de artistas plásticos lá, de pessoas que estão em situação de calçada ou não, que estão nesse coletivo, que um acaba dando uma força para o outro, para vender as obras. Tem o Mangueio, que é de cinema e de audiovisual, que eles estão ocupando agora o estúdio, também. Então, na verdade, a gente dá passagem pra muitos coletivos, a gente tem muita parceria e em alguns coletivos a gente é a estrutura burocrática.
P/1 - E a partir da sua experiência de estar perto e no meio de tudo isso, o que você acha que precisa ou deveria ser feito para ajudar essa população?
R - Muitas coisas, muitas coisas. Eu acho que, por exemplo: a primeira coisa que a gente precisava entender, pra... eu acho que está na casa, né? Habitação primeiro, casa primeiro. Porque a pessoa que está numa situação de rua não tem organização. E ela está a todo momento naquele estado de alerta de sobrevivência. Então precisaria ter esse pensamento de moradia. Eu também acho que a moradia não é para o pessoal do fluxo. Acho que todos os prédios deveriam ter um dependente químico em cada prédio e a sociedade absorvesse essa pessoa. Então, não é uma coisa tipo: “Esse é o prédio dos usuários e eles que aprendam a lidar com a sociedade”. Não, a sociedade absorve aquelas pessoas e cada prédio faz ali o trabalho social mesmo, cada condomínio cuida das suas vagas, que poderiam ser outras, não precisa ser só dependente químico, pode ser de outras vulnerabilidades, outras coisas e isso deveria ser absorvido num lugar maior, de sociedade. Uma outra coisa que eu acho que é fundamental ali, naquele espaço, é a relação social do trabalho. O trabalho é fundante para nós, seres humanos, na nossa psiquê, no desenvolvimento da nossa mão, tudo. Desde a pré-história até hoje o trabalho move a gente, evolui a gente. E eu sinto que a estruturação do trabalho lá, as pessoas ficam naquela região da Cracolândia por causa da reciclagem, porque o lixo tecnológico que tem ali, na Santa Ifigênia, é muito valioso. O lugar da reciclagem ali, no Centro, é muito potente e é onde eles tiram a ‘grana’ de sobrevivência deles. E eu sinto que é um espaço que poderia ser de atuação de cooperativas, uma maneira de valorizar um pouco mais essa pessoa que está fazendo esse trabalho e ao mesmo tempo ser, sei lá, créditos. Em vez de só pegar o dinheiro e já ter a possibilidade de gastar em droga, ela pega em créditos pra habitação, pra aluguel, ou então pra comida no mercado, ou numa farmácia popular. Acho que isso faria esse dinheiro dela valer mais e ser aceito em lugares, mas com outro tipo de gasto, limitando o uso desse dinheiro pra droga. Porque hoje em dia é isso que acontece: a pessoa pega o dinheiro na reciclagem e já quer usar a droga. Inclusive, quando eles mudam o fluxo de lugar, você os vê vindo da reciclagem e cadê a droga? Cadê a droga? Porque já estão com dinheiro e já... então acho que o trabalho, o serviço tem uma correlação com tudo isso que acontece ali, com aquela... que poderia melhorar a situação das pessoas. E principalmente que não é só um problema da droga ali, né? Porque a droga, historicamente, na sociedade, você vê que a droga está em vários outros nichos econômicos e o que gera ali, na Cracolândia, é também uma relação da pobreza, da extrema vulnerabilidade social que a ‘galera’ tem, de grana. Então, existe um movimento de polícia, de guerra ao tráfico, de violência estatal, que é totalmente errado. Deveria ser um outro viés, muito mais social, de assistência social, para esse lugar de habitação, de casa, de pobreza e um lugar também de saúde, por causa do vício compulsivo, do uso constante. Então não é uma atitude ou outra atitude. E mesmo tudo isso que eu falei ainda é uma micro pincelada de muitas ações que precisa fazer. Há pouco tempo eu li um texto, que foi uma CPI que abriram sobre a Cracolândia. Foi de 2019, chamava Epidemia de Crack e um dos relatores foi o... um dos participantes que fez lá todas as pesquisas é o Suplicy e ele faz uma boa explicação, esse texto faz uma boa explicação sobre os problemas, sobre a múltipla camada, esse prisma de problemáticas que estão ali e que soluções isoladas não têm impacto nesse problema e que as soluções são complexas e em várias instâncias. E daí é um texto ‘massa’, assim, ele é bem complexo, mas dá uma base do quão complexa é aquela situação e de como que a solução precisa vir de muitos e muitos e muitos lugares.
P/1 - E você sai de casa e vai para o galpão?
R - Para o contêiner. É, eu saio de casa, vou para o contêiner e sou impactado diariamente. Há pouco tempo eu vi uma cena assim, marcante, muito pesada: tinha um menino tendo uma overdose de K2, K7, sei lá, uma parada cardíaca na calçada e uma das pessoas da saúde que estão sempre no entorno do fluxo começa a fazer pra ressuscitar e daí vem uma moto do resgate, pega o aparelho e dá um choque na pessoa no meio da rua e a pessoa toma umas injeções. Tudo isso acontecendo ali, na frente do teatro. É muito... é um tipo de situação que mexe bastante, com tudo.
P/1 - Como separa?
R - Ah, a ‘galera’... na verdade, é isso: você precisa passar com isso sem ser indelicado àquela situação, se relacionando com aquilo, mas ao mesmo tempo com aquilo que eu trabalhei desde o lugar do hospital psiquiátrico, de me colocar naquela situação e saber da possibilidade de eu estar naquela situação. Eu sou extremamente viciado, em várias coisas. Eu nunca experimentei o crack por causa que eu sou adicto a muitas substâncias e o meu pai era adicto, então tem uma questão genética nesse processo. Então, quando eu vejo uma pessoa com problema, com droga principalmente, pra mim é muito próximo. Eu consigo me enxergar muito facilmente naquela situação. Então, eu não... eu me solidarizo e ao mesmo tempo é isso: eu não carrego uma culpa daquilo, eu me coloco numa correlação. É difícil, né? Você não sai dessas coisas ileso. É bem marcante. E é isso: o que o Conrado, meu filho, vive lá, vendo essas situações, vendo o cara quebrar a cara da mulher na porrada, lá no fluxo, cenas extremamente machistas, violentas e ele vendo aquilo. É a nossa sociedade, é o lugar que a gente está. São situações que não eram legais de ver, que ninguém quer ver e que estão acontecendo, a todo momento.
P/1 - Como foi se tornar pai?
R – ‘Cara’, foi ‘massa’, porque a paternidade me deu camadas que eu só entendia no papel. Você lê o Manifesto Comunista, você vai ver um pouco da sociedade, essas coisas, ‘massa’. Mas quando você é pai, você tem uma outra relação com a sociedade. Uma outra relação com a mulher, uma outra relação com a maternidade, com as questões de gênero, com a sobrecarga da mulher em casa, das tarefas domésticas, do serviço doméstico, a relação da criança na cidade, a falta de relação da cidade para a criança, porque a cidade é feita para as pessoas grandes, para os adultos, não é feito para as crianças e isso expandiu muito a minha consciência. Eu acho que eu já tinha um olhar para as questões de gênero, mas quando eu chego nesse período de paternidade, é ampliado muito maior. Inclusive, minha companheira, no pós-puerpério e eu falar: “Não vou sair, porque eu quero estar aqui”. Ela falou: “Não, mas você pode sair”, mas eu: “Se você não pode, vou estar aqui com você, está ligado?”, porque poderia ser diferente. E ter camadas mais sutis, assim, que fez impacto na minha vida. Entender o lugar do olhar mesmo. O olhar é outro, ele fica muito mais sutil com as crianças, você consegue entender. Você está no metrô, você já vê de outra forma o metrô, as pessoas que estão no metrô. É outra relação mesmo, amplia demais e tem uma questão também da paternidade dentro da nossa sociedade, que é muito ausente. Você tem a maioria das famílias onde esse pai está ausente e como que é reconfigurar isso, repensar o que é essa paternidade, o que eu preciso falar pro meu filho, como que eu falo as coisas pra ele, como que eu discuto as coisas. E tudo vivendo e aprendendo, errando e aprendendo, coitado dele, que eu estou errando bastante com ele, mas vai dar certo.
P/1 - Como você conheceu a sua companheira?
R - A minha companheira eu conheci no Teatro de Contêiner, ela foi assistir um espetáculo, porque a gente tem um amigo em comum, ela foi assistir e eu me apaixonei por ela e conversei com ela e ‘abri meu coração’. (risos) Ninguém acredita nisso, porque eu comecei a namorar com ela em uma semana que eu a conheci. Foi uma coisa muito... em dois meses eu já estava morando com ela. O Conrado ainda demorou um pouquinho, acho que foi uns dois anos depois que a gente estava junto, mas foi muito rápido, assim. Foi num momento que eu estava morando no Teatro de Contêiner e estava muito difícil pra eu conciliar aquele ambiente 24 horas. Então, eu não conseguia ter limite entre relações pessoais e relações trabalhistas. Era muito, muito, muito esfumaçado. O Teatro de Contêiner era todo de vidro, então eu me sentia num Big Brother, de exposição. Essa relação de que as pessoas chegavam no espaço para trabalhar, mas era minha casa, então eu tinha que acordar cedo, eu tinha que estar lá trabalhando, o trabalho fica full time e tinha uma sensação muito ruim quando estava com o teatro cheio e todo mundo ia embora e eu ficava. Então, eu me sentia numa situação muito... um sentimento muito ruim desse... parecia que eu era esvaziado, de repente, porque todo mundo tinha lugar para ir e eu ficava naquele lugar que estava cheio, que esvaziou. E, nesse momento, minha companheira já morava sozinha, então ela foi tipo uma válvula de escape daquele espaço que eu estava e quando eu ia para casa dela era tipo uma paz, era um momento que eu tinha de me relacionar, de intimidade. Então, ela veio com uma coisa que eu estava necessitando muito, que era esse espaço de intimidade, que eu não tinha lá, naquele espaço. Então, assim que ela chegou, já foi muito natural eu estar junto com ela, daí eu assisti vários espetáculos dela, a admiro demais, é uma ‘parada’ muito mágica e foi bom eu ter bancado assim desde o começo, sabe? Eu falar: “E daí se eu te amo e está tudo certo, vamos que vamos”. (risos)
P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Tem coisas que são importantes do ponto de vista do individualismo, do individual e tem coisas que são importantes para além do que eu quero, do que eu acho que me serve, do individual mesmo. Por exemplo: estar no Teatro de Contêiner e trabalhar uma redução de danos e trabalhar com a situação não é uma... nunca foi uma vontade minha, mas ao mesmo tempo tem um porquê de importância em uma outra atmosfera para a sociedade. Então, eu sinto que eu faço um trabalho que extrapola a minha vontade mais para um lugar de necessidade da sociedade. Eu estou fazendo uma coisa, um trabalho para uma outra esfera. Então, acho que o trabalho com Teatro de Contêiner está nessa coisa que sai do meu indivíduo e está muito mais numa necessidade da sociedade. Então, o meu trabalho não é uma necessidade minha, mas uma necessidade da cidade. Das minhas, individuais, estão sempre numa chave de buscar um gozo na vida, para além de uma sobrevivência e para além dessa exploração que a gente vive. E daí eu consigo achar esses espaços de gozo na minha família. Eu há pouco tempo comentei com o pessoal, muitas vezes, porque eu comecei a ter essa consciência que eu passo pouco tempo pelado, porque eu fico muito tempo trabalhando, porque eu fico muito tempo fazendo mil outras coisas e que eu deveria ficar pelado com a minha companheira, só isso da minha vida, ou mais tempo da minha vida nisso. Então, do ponto de vista do individualismo, as minhas relações de gozo, de vontades, isso é importante, só que isso também é prejudicado pela própria sociedade. Mas, para mim, as coisas mais importantes hoje estão entre ficar pelado e brincar com meu filho, pra além... pra mim, né? Individual.
P/1 - E quais são os seus sonhos?
R – (risos) Eu, quando fumava muita maconha, (risos) ali, perto da época da faculdade, tive uma crise ‘ativacional’. Acho que é assim a palavra. Eu não tinha motivação, porque eu sentia que estava tudo certo, entendeu? Não precisava chegar em um lugar ou ter um grande sonho. E ainda hoje eu tenho um resquício disso, sabe? Eu não tenho mais um grande sonho, algum lugar de objetivo, ou alguma coisa distante, difícil de alcançar. Na verdade, eu critico muito essa coisa ainda. Por exemplo: quando eu vejo o Conrado, que é meu filho, dificilmente está feliz com a atividade que ele está fazendo. Ele está ali, mas ele quer já buscar uma outra atividade e ele não consegue dar o tempo de ‘curtir’ aquilo que já está lá, entendeu? Então, acho que eu tenho dificuldade de enxergar um sonho lá, por causa do que eu vivo hoje. Eu já vivo um sonho em algum lugar, entendeu? Que não é o melhor e também não é o pior, mas eu consigo olhar dentro do que eu vivo e falar assim: “Ah, isso aqui é ‘foda’, me basta”. Tipo: eu fiz um processo ano passado, de um ano, de uma temática superdifícil com minha companheira, de arte-ambientalismo e que eu olhava pra ela e falava assim: “Eu estou vivendo o melhor momento da minha vida, porque eu estou com conta paga, eu estou trabalhando, eu estou linkando uma pesquisa artística, uma linguagem junto com uma temática necessária”. Então, as coisas vão fazendo sentido e você vai vivendo aquilo. Claro, tipo: vontades ainda, você tem um milhão, dentro desse mundo capitalista, todo mundo está te metendo vontade toda hora. Mas você já ter consciência que as coisas já estão aqui, que você não precisa mais prospectar outras coisas. Tem que ser feliz com o que está aqui também, né? O meu sonho é estar vivo agora, aqui. É, quando era menor, ainda tinha o sonho de ficar pra eternidade e eu acho que esse vídeo cumpre um pouco disso também. Um museu de histórias de pessoas. Acho que tem essa hiper camada nisso presente aqui, também.
P/1 - Você gostaria de deixar, acrescentar alguma coisa que eu não tenha te perguntado? Contar alguma história, deixar alguma mensagem?
R - Eu acho que do recorte temática população/vulnerabilidade, quando eu cheguei aqui a gente falou o nome do Lancellotti. Tem uma coisa que vale a pena falar: o Papa Francisco fez uma carta, chama Carta da Fraternidade e ele debate a propriedade privada e eu acho que vale a pena... é uma coisa que, se eu pudesse e se eu posso e sempre que eu posso contestar alguma coisa, eu vou contestar esse lugar da propriedade privada, porque eu acho que a gente não pode colocar uma propriedade ou um bem acima... o direito à propriedade à frente de outros direitos. Então, a Carta da Fraternidade fala sobre isso e ajudou a estruturar uma lei, no Vaticano, que é: se uma pessoa está com fome e ela entra no mercado e pega uma coisa e come, ela não pode ser presa, porque o direito à vida, o direito a comer está antes do direito da pessoa vender aquilo. Então, eu acho que a gente deveria ter muito essa noção de qual o direito passa na frente. É o direito de você ter sete casas, é o direito de você ter as suas propriedades, ou é o direito de uma pessoa ter a casa dela? Você pode ter sete casas se todo mundo tiver uma, pelo menos. Começar a ter uma análise diferente sobre como é a gestão da propriedade privada do solo. Por exemplo: os indígenas não têm propriedade sobre isso, eles ocupam, eles têm uma diferença entre você estar, ser o proprietário ou quando você loca e está ocupando aquele espaço. Então, acho que quando você está aqui, nesse momento presente, você está ocupando e precisa ter esse espaço. Mas depois que você partiu, deixar esse espaço para o seu filho, legal, ele está aqui presente, beleza, ele tem que ter o espaço dele, mas não precisa ter dez espaços que eu acumulei, que eu vou manter e essas estruturas que vão gerando essa desigualdade. Então, acho que, se é pra ficar em algum lugar, pra falar alguma coisa importante, eu acho que o mais importante é a gente rever sobre a propriedade privada, que ela não é... ela é importante pra gente sobreviver, mas ela é tratada de uma maneira muito errada. Muito errada o jeito que a gente trata a sociedade, que a gente trata a terra, as pessoas. E, sei lá, as casas tudo abandonadas, paradas e a ‘galera’ na rua. Tipo: é uma gana por nada. É você ter uma casa abandonada e uma pessoa morando na rua e você não está nem aí. Se tem alguma coisa que a gente tem que mudar, é isso.
P/1- E tem tudo a ver com o jeito que vocês escolhem estar nessa região, né? O teatro. E como vocês lutam pra ter esse espaço. Acho que tem tudo a ver com o que você está trazendo. O que a arte representa na sua vida?
R - Ela é... é difícil essas definições do que é a arte, o que a arte representa. Eu acho que ela conseguiu dar a possibilidade de sobrevivência em algum lugar, né? Ela dá a sobrevivência da psiquê, de conseguir jogar essas coisas pra fora, que tem a ver com a elaboração que a arte te ajuda a fazer e da maneira mais básica de sobrevivência minha, financeira, é através disso. Então, tipo: o fazer arte está relacionado totalmente com prato de comida, pra mim. Não é distante pra mim, não é uma coisa tipo: “Ah, eu faço arte, ganho dez milhões” e não me relaciono com as minhas necessidades básicas. O meu trabalho se relaciona com as necessidades e eu ainda estou numa chave muito pequena dentro disso, mas que bom que eu ainda consigo sobreviver dentro desse lugar.
P/1 - Hum-hum. Como foi, pra você, dividir um pouco da sua história com a gente?
R - Fácil, foi prazeroso, foi legal.
P/1 - E uma última pergunta: qual é a sua primeira lembrança da vida, que você consegue resgatar, aí?
R - Lembra quando eu falei que eu crio lembranças, né? (risos) Uma vez eu falei pra minha mãe: “Nossa, eu lembro de mim dentro da sua barriga”. Ela falou: “Impossível”. Mas eu, na minha cabeça, tenho uma lembrança de imagens pretas e vermelhas e que eu acho que é isso. Então, eu não sei se eu carrego uma lembrança do útero da minha mãe. E uma lembrança da primeira, não sei se eu criei ou se eu carrego, mas eu consigo enxergar essas imagens pretas e vermelhas, pretas e vermelhas, quase que uma... você vendo por trás de uma cortina. Preta e vermelha.
P/1 - Uma boa costura.
R - É. (risos)
P/1 - Eu queria te agradecer muito e só queria te dizer que é interessante isso de trabalhar com luz e poder dar luz a questões tão importantes que você trouxe hoje pra gente.
R - Legal.
P/1 - Muito obrigada.
R - Legal. Eu posso fazer uma coisa, pra finalizar?
P/1 - Por favor.
R – ‘Massa’. Vou cantar uma música.
P/1 - Porra! Por favor.
R - Está aí uma coisa que eu gosto de falar: no processo do Cena Ouro, eu fiz uma música que se relaciona com o pessoal dali do Centro, da Luz. Eu acho que, como diz com o que se espera nesse projeto todo maior, ela é assim:
“O fluxo é acolhimento
De quem vive no Centro
Acorda, dorme no meio da rua
Nesse hotel de mil estrelas e com lua
Onde o pensamento não se organiza
E a sobrevivência rouba a brisa
A janela do mundo, o horizonte e mundo
Mas aí, cadê o padê?
Celebração para os meus irmãos
Que estão no mundão, atrás de um tostão
Rachando uma marmita, fumando um baseado
Fugindo da polícia, vendendo um cigarro
Ano após ano, refugiado urbano
A maldade humana, matou mais uma mana
A morte bate à porta da tia da água
Um piripaque no peito, no meio do Centro
Racha a cabeça no meio da rua
Cai desacordado, alguém fala da água
A boca baba, o bico berra, já era, a tia já era
Chama a ambulância pelo amor de Deus, de Jah
Pra acabar, bala de prata no ar
Sem medalha de ouro, no ralo do esgoto
Ali no meio-fio, no asfalto frio
Cadê o levante dos cadeirantes?
O milagre da cruz, no bairro da Luz
Pra acabar com a dor e a pobreza
Mesa farta de comida, em abundância
Na mente liberdade de vício e vaidade
Com mic na mão, rap revolução
Revolução armada que fala na cara
Que pula na bala, para de matar meu povo, porra
Vidas na Craco importam, vidas trans importam, vidas pretas importam
Vida bem vivida, vida da hora
Chegou minha hora, eu também vou embora
Mas a semente que eu plantei um dia vai brotar
O povo vai sonhar e o capitalismo acabar”.Recolher