Entrevista de Vanessa Mary Labigalini
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 06/10/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV001
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vanessa, qual é seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Eu sou Vanessa Mary ...Continuar leitura
Entrevista de Vanessa Mary Labigalini
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 06/10/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV001
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vanessa, qual é seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Eu sou Vanessa Mary Labigalini, São Paulo e nasci em São Paulo.
P/1 - Em qual data?
R - Ah, sim, treze de outubro de 1972.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R - O meu pai nasceu em Jacutinga, que é Minas Gerais. Logo depois ele foi para Marumbi. Minha mãe é de São Paulo... era de São Paulo, mas como eu acredito muito que ela só fez essa ‘passagem’, não sei se eu falo presente, passado ou futuro, ela nasceu em São Paulo, ‘da gema’.
P/1 - E seus avós paternos e maternos, onde que eles moravam, qual é a sua descendência familiar?
R – Todos do Brasil. O meu pai nasceu... então, o pai dele nasceu em Jacutinga. A minha avó... eu acho que minha avó nasceu já em Marumbi, que é assim... não, não foi em Marumbi. Esqueci. Eu sou péssima de coisas lineares. Eu falo do coração deles, assim. Eles são muito parecidos, na verdade. (risos)
P/1 - Seu avô e sua avó?
R - Acho que a minha família como um todo, como eu acho que toda ancestralidade vem de uma mesma história. Que tem a ver com as histórias. Mas eles são desses lugares, são ou de Minas ou do Paraná, que aí meu pai ficou um tempo no Paraná e logo depois veio pra São Paulo, onde encontrou a minha mãe.
P/1 - Esses avós paternos?
R - É.
P/1 - E os maternos?
R - São de São Paulo.
P/1 - Também?
R - Também.
P/1 - E você teve contato com seus avós paternos?
R - Com a minha avó, muito contato, aprendi muito com ela, muito, muito, muito tempo. Maravilhosa.
(01:56) P/1 - Como é que ela era?
R - Era uma das pessoas mais simples que eu conheci. E bem que você falou que chora, porque ela me ensinou o que é simples. Até hoje eu sei o que é simples por ela. Quase não estudou escola formal, mas ela tinha um ensino de que ela olhava... eu escolhi, desde os quatorze anos, passar minhas férias com a minha avó. Meu pai achava ‘esquisitésimo’, porque como meu pai saiu muito cedo de casa, o vínculo ficou muito incipiente, vínculo afetivo, mas eu sempre amei ter vó. E eu gostava de ‘pirulitar’, que nem diria a minha mãe. Então eu falava pra minha mãe, com quatorze anos: “Eu posso ir pra casa da minha avó?”, porque todo final do ano a gente ia, a rampa, a família inteira. Aí eu fazia umas férias que me levavam pro banco, porque meu pai trabalhava, já sabia trabalhar no banco, eu queria fazer outras coisas com quatorze e eu falei: “Posso ir?” E eu ia pra casa da minha avó. E a minha avó me ensinava, olhando pro teto, pro céu, ela falava pra mim:
‘“Fia’”. Ela falava assim: ‘fia’. “As estrelas todas daqui” - porque as estrelas faziam assim, um caminho – “vão te levar para onde você quiser”. Então ela me ensinava desse jeito, minha avó. Aí a gente ia no cemitério, limpar a lápide do marido dela, que era meu vô, que eu não conheci. A gente matava galinha na roça. Ela me ensinou coisas que só ela pôde me ensinar. Essa é uma recordação muito forte. Se a gente conversar, eu vou lembrando cada vez mais da minha avó, que é a mãe do meu pai, que eu conheci muito. Os outros avós eu não conheci.
P/1 - Que era nessa casa lá em Minas?
R - Não, em Marumbi.
P/1 - Ah, Marumbi.
R - Que é oitenta quilômetros de Maringá.
P/1 - Ah, tá. E como é que era essa casa, lá em Marumbi?
R - Fisicamente?
P/1 - É. Você lembra?
R - Era uma casa interessante. Era uma casa... a gente foi, depois de um tempo, pra ver como que estava, mas estava restaurada, meu pai parece que não se encontrou mais ali, na casa. É interessante que é casa, né? Que é fisicamente a casa. É uma casa que comportava todos os sobrinhos, todos os netos, todo mundo ali. Tinha uns oito quartos, tinha um ranchinho que tinha - bem simples - um forno à lenha, que minha avó matava o porco e ‘coisava’ lá. Tinha um quintal, uma jabuticabeira, que a gente subia. Aí tinha um ‘baracão’, que a minha avó não falava com... o pessoal do sul não fala barracão, fala ‘baracão’. Tinha um ‘baracão’ na frente dela, que eu aprendi a fumar com a Dona Mariana, que era comadre dela, que ela alugava. Tipo: hoje ela alugava por cinquenta reais. Ela fingia que alugava, ela fingia que pagava, mas era pra ela morar ali, entendeu? (risos) A Dona Mariana. E ela fumava uns pitos que, com ela, era uma preta velha, ali eu comecei a ter contato com a preta velha. Aí, por isso que eu gostava de, nas férias, ir pra minha avó. Eu saía às sete da noite, quando acabava de jantar com a minha avó, atravessava a rua e a Dona Mariana contava os causos da vida, com um negocinho assim de fogão a lenha, bem simples, bem pobre, mas com o coração. Aí eu falava, ali eu comecei a concatenar: “Parece que a gente não precisa ter dinheiro, pra ser bom. Parece que a gente não precisa ter dinheiro, pra ser sábio”. Hoje eu sei falar isso, mas antes eu sabia que meu coração... eu gostava de gente assim. De gente com pé no chão, gente que falava não necessariamente empolado e com português correto. E ali eu fui identificando quem era eu na ‘fila do pão do mundo’. Eu gostava de gente assim, das pessoas mais simples, que foi ali que eu fui descobrindo quem era eu com o povão. Lá nessa cidade...
P/1 – Com quatorze anos?
R – Não. Com oito anos eu já descobri que eu gostava de ajudar os pobres. O meu pai, quando me levava pro banco, porque eu devia atazanar a vida do meu pai e da minha mãe, minha mãe falava: “Leva essa menina, pelo amor de Deus, (risos) com você, pro ‘cazzo’ do banco”. Porque meus irmãos eram mais... não sei, homem é meio sem sal nesse sentido. (risos) Aí: “Leva essa menina”. Aí eu conhecia a copeira, eu conhecia ascensorista, eu sabia dirigir o elevador inteirinho. Eu ficava com essas pessoas, eu não ficava - meu pai já era diretor no Banco Nacional, na época - com os diretores, nem... eu já ia, eu tenho um ímã com essas pessoas que são consideradas invisíveis, ou... sempre tive. Aí eu cansei de ir pra lá, essa história toda, eu fui fazendo essa trajetória de ir pra casa da minha avó, que eu estava falando pra você. Mas o que eu estava querendo dizer é dessa aproximação que eu tenho com as pessoas que não necessariamente têm uma visibilidade. Com oito anos, eu já conhecendo as pessoas do banco, que eu sabia que eles ganhavam um bonezinho, era a época do Ayrton Senna, tinha uns kits lá e eu falei pro meu pai: “Por que a gente não dá pras crianças lá de Marumbi?” Porque todo final do ano - oito anos – era: “Feliz ano novo, feliz ano novo”. Passava de porta em porta, todas as crianças que não tinham muita ‘grana’, aí você separava umas coisas e dava pra essas crianças. E eu vivia assim, né? Com, sei lá, já cinco, seis, sete, oito, eu já via que tinham crianças que eram diferentes de mim. Eu lembro algumas coisas assim. E eu falei pro meu pai: “Por que a gente não dá esses presentes aí pra essa ‘galera’”, né? Meu pai gostou da ideia, a gente levou um montão de coisa do banco, a gente fez os kits, levamos pra Marumbi, seiscentos quilômetros, com três crianças, um cachorro. Não sei como que eles aguentavam, meus pais. E a gente brigava, porque a gente ia tomar um café no... numa parada. Quem voltava... quem era o ‘fio de uma égua’ que queria ficar no meio? Ninguém queria ficar no meio, porque era um carro apertado. Então, era uma ‘zona’. Meu pai dava uns croques pra... era uma ‘zona’ aquele... eu falo: “Meu Deus, como que a gente vivia daquele jeito, sem se matar? (risos) O meu irmão era mais... um dos mais... eu tenho dois irmãos. O do meio é mais tímido, mais centrado. Hoje em dia as pessoas falariam centrado. A gente o chamava de bobo, porque ele era o único que a gente deixava no meio e ele... não sei como que ele não se revoltou, não batia da gente. Então, era essa ‘zona’ com os kits, com o cachorro. A gente foi lá pra... a gente sempre, final do ano, era esse tormento. Minha mãe, nossa, a cara da minha mãe era uma cara de infelicidade. (risos) Era uma cara... (risos) eu falo: “Meu Deus, coitada da minha mãe!” Hoje eu olho e falo: “Mãe, onde você esteja, foi ‘foda’”. (risos) Aí a gente chegava lá em Marumbi, eu lembro que tem umas fotos, eu não achei essas fotos. Às cinco da manhã eu já estava com os kitzinhos, fazia uma fila... ali eu tive uma sensação: “Quanta gente a gente tem pra ajudar!” Tinha oito, oito pra nove anos. A cidade da minha avó é uma zona rural maior do que a zona urbana, a minha avó não tinha muita ‘grana’, mas era uma ‘grana’ que já era... comparada a quem não tinha, era uma ‘grana’. E quando ia aos filhos, que são meu pai, meus tios, ali trazia outras coisas, trazia ‘grana’ de outros lugares, ‘grana’ assim, de... movimentava a cidade, comprava no bar, comprava não sei o que, de uma cidade que tem quatro mil habitantes até hoje, quando a gente chegava, chegavam umas pessoas que falavam: “Nossa, chegou o movimento pra cidade”, né? E aí eu vi a primeira vez uma fila que dava volta no quarteirão, pra gente entregar os kits. Quando acabou eu falava pro meu pai: “Não deu pra todo mundo”. Meu pai: “É, não deu”. Mas deu pra muita gente, assim, a gente... e aquilo foi uma sensação... e todo ano que eu ia, todo mundo: “Cadê a menina da bala? Cadê a menina da bala?” Eu já conhecia as pessoas da cidade por um outro viés, não só dos meus primos, porque a gente brincava com os primos de esconde-esconde. Tanto que tem uma história engraçada, não é à toa que a gente é o que a gente é fisicamente. Minha avó fazia pão ‘de mão’, assim, colocava embaixo do cobertor, para poder crescer. E quando a gente brincava de esconde-esconde, eu pegava um cru - é desse tamanho - pra... não ia brincar nada de se esconder. Eu pegava pra me esconder, pra comer o pão inteiro, escondido. (risos) Eu adorava essa história. Então, essas histórias de como que era a casa da minha avó, era uma casa com muita comida, com muita... e ela cozinhava bem, a danada, de lembrar disso. A gente ‘coisava’ o café, que colocava na calçada, pra torrá-lo naturalmente. Fazia assim no moedor mesmo, bem rústico, bem do jeito dela. Cozinhava com banha que hoje, agora voltou de novo cozinhar com banha, que foi execrado, pegava umas linguiças que ela própria cortava o porco. Então, a gente vai lembrando dessas histórias, do que faz a gente, a gente faz... eu estava falando isso: que a gente faz... a gente não é só questão da família, mas a gente vai pegando essas histórias do que tem a ver com a gente, né? É muito bom lembrar de tudo isso. Não para de falar, né?
P/1 - Como que ela era, fisicamente?
R - Ela usava... pra falar dela é mais fácil falar dos vestidinhos que ela usava, porque ela era acho que uns sessenta e pouquinho, corcundinha. Eu fui ficando corcundinha, tanto que eu sei que eu tenho essa tendência, ficar corcundinha. Ela era linda. Minha avó era linda. Parece que nem dá pra falar como ela era. E ela tinha uns vestidinhos que punha a mão assim, então ela andava com a mão (risos) andando assim, sabe? Ela era uma ‘figura’. Ela tinha uns cabelinhos ‘batidinhos’, assim. Nem tinha cabelão todo branco, não. Nem morreu com cabelo todo branco, mais grisalho. Uns ‘oclão’ preto, que quando ela... em vez de arrumar o óculos assim, ela punha a mão na lente, eu: “Vó, assim vai estragar tudo” “Deixa, ‘fia’, está tudo bem”, (risos) toda desconjuntada. Ela era uma ‘figura’. Ela morou um tempo com a gente, com meu pai, minha mãe e eu, porque os meus irmãos acho que já não moravam mais com a gente. Deu um xabu na vida dela, ela tomava quinhentos e cinquenta remédios porque, em cidade pequena, não só em cidade pequena, quem receita é farmacêutico. E farmacêutico sacana, muitas vezes. Não estou falando mal de farmacêutico, na família tem farmacêutico, blá, blá, blá, mas entuchava na ‘véia’ mil remédios, um que cruzava com o outro, que cruzava com o outro, que cruzava com o outro, ela estava tomando doze remédios, deu um ‘game over’ nela, deu muito, aí ela ficou prostrada. Minha avó era ativa, era uma ‘figura’, assim: pegava couve, ia lá pra roça, ia pro cemitério, tarará. Ela, de repente, puuu. Aí todos os filhos... pensou-se em fazer um rodízio. Cada um... um morava em Londrina, outro em Maringá e meu pai, os irmãos todos em São Paulo: “Vamos fazer um rodízio de ficar com a vó, pra ver se...”. Aí levamos lá... eu era muito próxima da minha vó... ficou lá uns três, quatro meses. Olha, eu aprendi tanto com a minha vó ali, foi demais, assim. Minha mãe contava muito as histórias do que eu tinha feito com a minha vó, porque a relação afetiva cura, é remédio. Então, a minha vó comigo, como é meu antepassado, meu ancestral, ali naquele cotidiano a gente se curou. Eu curei de muita coisa minha, de comportamento, sei lá, eu era muito nervosa, sei lá, eu era bem autoritária numa época, eu era insuportável. Com a minha avó, eu acho que, como eu tinha que dar menos, né, a minha paciência surgia com a minha avó. Aí depois eu sei que a ‘véia’ ficou tão ótima, que a minha mãe era estratégica, maravilhosa. Ela falava: “Dona Maria, se a senhora não melhorar a sua casa, ó, puuuu, está lá sozinha”. Aí ela começou a ficar preocupada: “É mesmo! Minha casa está lá, quem que vai pegar minhas coisas?” “É, tem que melhorar pra voltar”. E isso foi uma ‘chave’ pra ‘véia’: “Vamos, vamos, vamos” e a gente fez uma história da minha avó trabalhar essa questão mais... ela, por exemplo, dormia só de um lado direito, porque ela tinha labirintite, coisa cultural, que ela não conseguia dormir... se ela virasse, o mundo acabava. A gente: “Não, vó”. Coisa simples, né? (risos) “Vou morrer”, só que não virava. “Vó, tem coisas que a gente vai tentando diferente. Você vai ver que vai ficar bem melhor sua vida”. Quando ela conseguiu virar - olha que coisa simples! - pra dormir e não aconteceu nada, ela: “Ahhhh” “É, vó, tem coisas na vida que a gente se acostuma e é uma bobeira” “É mesmo, ‘fia’, é tão bom dormir do outro lado!” Então, essas coisas que você vai falando, que está cristalizado, né? Mas na convivência vai... é lógico, tem que ter uma ‘paciência de Jó’, que eu acho que é o que falta no mundo hoje, as pessoas não ouvem. A gente não quer sair da ‘casca do ovo’, a gente não quer ‘sair do nosso próprio umbigo’. Porque tem que ter uma paciência de ouvir o outro, de... e com a minha avó eu aprendi muito isso. Aí depois ela conseguiu, voltou pra casa dela. Ficou ótima, estava maravilhosa. Eu fui dirigindo e a minha mãe e a minha avó atrás. Foi linda a viagem. A minha mãe era extremamente bem-humorada. A minha mãe era, affff, muito bem-humorada. Então, situações ‘bosta’, até ela com câncer, que minha mãe morreu, ‘fez a passagem’ com câncer, até quase o finalzinho, no finalzinho que não deu, mas minha mãe tinha uma força de vida e você fala: “ ‘Porra’, de onde vem, Dona Fátima?” E com a minha avó, ela foi, a gente fez uma viagem, então pega trânsito... ela tinha uma história de ‘vamos desencanar’, minha mãe era, Nossa Senhora! Eu lembro das três mulheres indo pra lá, foi lindo isso. Aí, depois de um tempão, minha vó teve um AVC, mas ela já estava com... na época dela falar ‘já estava com 83’ não é etarismo, mas é uma vida mais ‘pesadinha’, uma vida mais outra. Hoje, com 83, tem muita gente... meu pai está com oitenta, vai fazer 81, é outra história. Acho que a gente mudou muito enquanto humanidade, na expectativa de vida, nesse sentido. Mas ela já estava assim, meio ‘detonada’ nesse sentido da vida, do sol, das coisas do cotidiano mesmo. Mas aí, depois disso, é interessante quando a gente é o lugar de fazer parte do outro, porque eu podia não ter feito parte dessa história da minha avó, mas eu influenciei de trazer, pra ficar com o meu pai, que não teve tanta relação com ela. Sabe quando você sente, que você fala: “Putz, se você faz esse movimentozinho você muda muita coisa?” Mas precisa estar afim, né? Mas eu lembro da minha avó, a sua pergunta era pura e simples como que era a minha avó, né? (risos)
P/1 - E a família da sua mãe, seus avós maternos, você conviveu com eles?
R - Não. A minha avó, a mãe da minha mãe morreu muito cedo, muito... não conheci. Sei das histórias dela, maravilhosas as histórias dela, sei pelas histórias. E o meu avô tem uma foto quando eu estou - eu não trouxe - ainda muito pequena, num balanço, porque meu avô, por ser alcoólico, se ‘detonou’ muito rápido na vida e, quando ele começou a se recuperar, minha mãe contava que foi quando eu nasci que ele começou a pegar gosto pela vida de novo, minha mãe contava muito essa história, porque eu era mais nova naquele momento, só que aí já a questão do álcool estava muito ‘detonada’ no corpo, então ele não conseguiu reverter aí todas as coisas decorrentes do álcool no corpo dele, ele morreu, mas não convivi.
P/1 - Quais são essas histórias que sua mãe contava da sua avó, da mãe dela?
R - De que ela tinha um molho de tomate maravilhoso e de que... eles eram muito pobres, né? Essa história da pobreza, do meu aproximar com as pessoas que têm essa vulnerabilidade social absurda vem da minha mãe, porque eles comiam um ovo para cinco pessoas, não tinham comida. E que a minha avó era muito encrenqueira, eles moravam num cortiço, de que se falavam mal dos filhos dela, ela falava que os filhos eram maravilhosos. E que a minha mãe tinha certeza de que ela criou cinco filhos... quatro filhos maravilhosos, por essa autoestima que ela criou nos filhos, então... porque ela falava: “Vavá”. Minha mãe me chamava de Vavá. A gente não tinha eira, a gente não tinha nada, ‘nem era, nem beira’, era tudo uns ‘pés-rapados’. Que é aquela história que é rara, que nem falam: “Ah, você viu como que o Silvio Santos conseguiu, que veio da pobreza?” Tem uma história assim, dessa minha família, que eram muito pobres. Eles pegavam cesta básica com Ademar Barros _________, lembra do Ademar __________? Minha mãe fazia faxina numa escola de freira, com a minha vó. Então, pessoas que ‘batalharam’ muito na vida. Meu avô foi jogador do Palestra, mas aí ele ‘caiu no álcool’, ele era um grande pedreiro, ele jogou no Palestra, ‘caiu’ nessa doença que se chama alcoolismo e não conseguiu reverter, e eles tiveram que se ‘virar’ todos muito sozinhos, nesse sentido, assim, mas a minha vó, essas histórias dela era o tempo de permanência com esses filhos, porque a minha mãe, quando tinha dezesseis anos, a minha avó morreu e criou o meu tio. Esse meu tio é como se fosse irmão nosso, o Jair. E essas histórias que eu acho do afeto, dessa autoestima que ela colocava nos filhos, que os meus filhos são os melhores, e ela... as histórias de todos os meus tios, de que ela bancava de brigar no cortiço, de que meu filho não fez isso, jogou uma pedra na cabeça do outro, coisa de moleque, ela falou que não fez isso, porque meu filho é o melhor e vocês vão ser sempre os melhores. Essas histórias é o que ficavam muito na minha cabeça, da minha vó, sobre a minha vó, que eu queria muito ter conhecido, mas minha mãe falava demais e minha mãe também teve uma aproximação muito pouca, de dezesseis anos com a mãe, mas parece que foi uma mãe muito importante, muito presente para todos esses filhos.
P/1 - E você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Minha mãe era a secretária do meu pai. A gente ficava brincando que ela ‘sentou no colo do chefe’. (risos) Ela... e meu pai trabalhava no Banco Nacional, acho que era gerente, meu pai trabalhou a vida inteira no Banco Nacional, desde contínuo. Acho que não tem nem mais essa função hoje, que é meio... como é? Boy, mas esqueci o nome, contínuo agora é... bom. E aí ele trabalhou um tempão, aí ele já era gerente no Banco Nacional. Eles contavam essas histórias muito fortemente, que a minha mãe falava que ele era bravo, que ela morria de medo, mas ela não podia perder esse emprego, que era ótimo, porque ela ganhava uniforme, porque ela não tinha nem dinheiro - minha mãe era lindíssima, lindíssima, de chamar a atenção - pra comprar roupa. Se ela precisasse trabalhar todos os dias com roupas diferentes, ela estava ‘lascada’. Ela contava isso muito, que tinha uniforme. Uma época que o banco, o gerente fazia coisas, né? Porque hoje o gerente, coitado, pensando que só ‘bate meta’ de ‘pic, poc, puc’. Uma época (risos) que o gerente olhava olho no olho, blá blá blá, tinha uma história. Meu pai ganhava presentes, assim, absurdamente grandes. E aí ela foi fazer a conversa e meu pai contava que, quando ele olhou pra ela, falou: “Nossa Senhora, que mulher é essa?” E aí ele ‘cantou’, ‘cantou’, não foi muito fácil, porque os irmãos ‘encheram o saco’, ela era nova. E a convidou pra tomar um guaraná. Ai, que coisa mais bonitinha, um guaraná caçulinha, num lugar conhecido. Meu pai sempre conta. Eu só não vou perguntar pra ele essas coisas, que vai retomar uma história que meu pai ainda está saindo do luto. Coisa bem conhecida, não era perto do Chopp Brahma, mas é ali, bem no ‘coração’ de São Paulo, ela foi tomar guaraná. E ela contava: “Eu o achava bravo, mas eu fui. Mas eu sabia que, se eu gostasse dele, eu ia perder o emprego, porque era uma época que no banco não podia ter essas relações e não sei o quê. Eu segurei até onde eu pude, pelo menos pra fechar o ano pra conseguir dinheiro”. Era um perrengue a vida da minha mãe com dinheiro, com ‘grana’ mesmo. Pobre, pobre, pobre, de ‘marré, marré, marré’. Foi de lá que eu aprendi muita coisa, nessa vivência da minha mãe. E aí ela contava que começou a gostar do meu pai, mas ela sabia que essa vivência com o meu pai era a saída dela de uma vida tão miserável. Ela falava que o meu pai foi a salvação da vida dela, de conhecer outras coisas, de conhecer uma vida mais confortável, de saber que ela podia sonhar, de ter filho. É uma história linda, muito emocionada. Eu tenho várias fotos com os dois, de andar de mão dada, até a minha mãe ter a doença, até doente mesmo, meu pai não largou no hospital nunca, nem a família. Uma história muito bonita. E eles o tempo inteiro de mão dada, de beijo na boca, de... muito bonita essa relação, muito bonita. E se conheceram dessa forma, do guaraná caçulinha. (risos) Bonitinho, apaixonados, apaixonados.
P/1 - E depois de quanto tempo eles casaram? Como é que foi o casamento?
R - Não, o meu pai falou que o meu avô, que era Palestra, e aí, palmeirense e meu pai corintiano, foi um ‘saco’, porque... um ‘saco’. E era de verdade, que foi um ‘saco’ mesmo, era: “Aí, esse corintiano ‘filho da puta’”, quando ele chegava lá, porque ele estava bêbado e aí, se o Palmeiras tinha perdido e era do Corinthians, ‘ferrou’, meu pai nem podia buscar minha mãe. Assim: meu pai ficava muito nervoso, porque o ‘cara’ era agressivo. Me parece que meu avô sem bebida era um ‘doce de coco’, tanto que meu pai ajudou meu avô, ele que pagou o tratamento do meu avô durante muitos anos. Não tinha nada de contra-ataque do Palmeiras e Corinthians (risos) nisso, mas meu pai conta que o Ari, que era um dos irmãos, ‘enchia o saco’: “O que você vai fazer com a minha irmã?” “O que eu vou fazer? Eu estou namorando”. Então, o tempo inteiro tinha... ele falou assim: “Olha, tive que ‘batalhar’ muito, porque eles só ‘enchiam o saco’. Mas aí depois acho que de um ano: “É, mas você só vai fazer alguma coisa com ela se casar”, essas histórias assim. E aí meu pai: “Não, eu não pensava em outra coisa, eu quero casar”. (risos) Meu pai muito solitário, meu pai aqui em São Paulo conta histórias, eu ficava com dó do meu pai, quando eu era pequena, hoje não tanto, mas que era uma escolha dele, mas aqui em São Paulo, onde tinha São Silvestre, tem ainda, mas era 31 pra 1. Meu pai ficava na rua, porque meu pai morou na Avenida São João, sozinho, vendo as pessoas correndo. Eu ficava: “Coitado meu pai”. Depois a gente tirava sarro, a gente tirava muito sarro do meu pai. É uma família muito de tiração de sarro, mas eu ficava imaginando essa cena, e falava: “Coitado do meu pai”, né? Porque ele fez essa escolha de sair, de vir pra São Paulo, pra conquistar essa história da vida dele, não sei o que, mas sozinho, sem nenhuma relação. Aí, lá no dia 31, em um evento, aquelas coisas. Fiquei pensando nisso sempre, eu fico: “Ué, as escolhas que as pessoas fazem”, né? E depois aí casou com a minha mãe e aí fizeram a vida deles todinha.
P/1 - Você sabe como foi o casamento? Foi na igreja?
R - Foi na igreja, fizeram todo católico e depois foram pro Daime. Mas foi, fizeram até encontros de casais com Cristo, na igreja ali perto da Três Rios, uma igreja bonita que tem ali, onde era a TV Cultura, sabe? Na Cenno Sbrighi... era outro lugar. Era ali perto da Três Rios, Bom Retiro. Foi em 1969, casaram na igreja, tudo.
P/1 - E depois de quanto tempo...
R - Ah, sim, aí na festa meu pai contratou o chopp. Meu pai não era muito bom de logística das coisas, sempre tinha um desencontro. Por exemplo: ele comprou um carro, ele ‘fodeu’ o carro, porque o carro estava com freio de mão lá ‘coisado’. (risos) Carro que eles foram na lua-de-mel. A gente tira muito sarro da cara do meu pai. Foram na lua-de-mel, comprou uma ‘puta’ de uma ‘máquina’: “Vamos tirar” - foi lá (risos) em Poços de Caldas - “Tira foto aqui, Fátima, sobe no cavalo aqui”, tra lá lá. Não tinha filme. (risos) Vamos fazer as fotos tudo de novo. Tanto que a minha mãe falou: “Olha a minha cara nessa foto assim, ó”. Porque já tinha tirado, entendeu? (risos) Vai, de novo no cavalo, de novo beijo. Fizeram... é muito engraçado. E essa aí do civil. Fizeram uma festa no civil. Tinha meu avô e minha avó na foto, tinha... o pai e a mãe dele estavam e parece que o pai do meu pai, que morreu cedo também, amava a minha mãe. Mas logo depois desse casamento, ele conheceu o Juninho, que é o meu mais velho, meu irmão mais velho e depois ele faleceu. Meu pai contratou chopp, aqueles ‘puta merda’ de barril antigamente, fazia voic, voic, estava nas fotos. O chopp não apareceu. Aí, quando apareceu, quebrou o negócio, (risos) ninguém tomou nada. O meu pai... olha, todo mundo tirou um sarro da casa do meu pai, porque meu pai mostra os erros. Então, isso é interessante, da família toda. Ele não tem... e todo mundo lá é meio ‘malinho’. ‘Malinho’ é uma gíria que se fala em italiano, que é: só fica esperando pra ver se você faz uma ‘cagada’, porque vai ser vinte anos contando essa história e todo mundo crescendo a história. Meu pai falava que ia com os cunhados, que são meus tios, que eles gostam de pescar. Meu pai é um ‘zero à esquerda’ pra pescar, mas pra se enturmar: “Tá bom, vamos pescar com os cunhados”. Aí ele foi jogar, a ‘porra’ da vara pegou no óculos dele, caiu ali, aí ninguém mais pôde pescar, porque teve que pegar o óculos do meu pai. (risos) Sempre uma história. Essa história aí. Mas depois se enturmaram tanto, que é uma família muito, muito próxima. Interessante.
P/1 - E depois de quanto tempo vocês nasceram?
R - Então, nesse do casamento civil, depois de muito pouco tempo o Ju já nasceu. Minha diferença com o Ju é três anos e meio e o Marcos...
P/1 – Qual o nome dele?
R – Eliseu Labigalini Junior. O nome do meu pai e Junior. E o Marcos, que é o do meio, o Marcos Vinícius Labigalini e eu. Então, foi uma ‘escadinha’ de dois e meio em dois e meio.
P/1 - E quando eles casaram, onde eles foram morar?
R – Num apartamento em... acho que no Cambuci, ou na Aclimação, com o Juninho. Contavam que o menino pegava papel higiênico e passava pelo apartamento inteiro. Que o moleque, se hoje fosse... porque hoje todo mundo toma Ritalina, ele ia tomar quinhentos litros de Ritalina, pro moleque, acho que tinha TDAH, se a gente fosse diagnosticado, né? O moleque parece que não parava, porque a minha mãe falava: “Não sei onde que o moleque ia parar, de tanto que ele fazia coisa, não via a hora de levá-lo pra uma creche”. (risos)
P/1 - Mas vocês três... você chegou a pegar essa casa?
R – Não. É um apartamento, não. Aí meu pai mudou pra uma casa... não.
P/1 - Quando nasceu o segundo ou quando você nasceu?
R - O Marcos eu acho que já foi nessa casa na Vila Gumercindo, que eu também fui pra lá, quando eu nasci.
P/1 - Vila Gumercindo, o que é? Ipiranga?
R - Não, perto da Vila Clementino, perto ali da Imigrantes, por ali.
P/1 - Era uma casa?
R - Era na Dom Silvério Pimenta, onde a gente morou, que tinha várias recordações, de várias unhas perdidas, porque você ser caçula com dois irmãos meninos antes, é um... você se prepara para a guerra. Então, eu me preparei para a guerra. Até por isso que eu gosto de guerra, eu gosto de problema, porque a gente se preparou. Porque esse meu irmão mais velho hoje é psiquiatra, aí você ‘junta o lé com o cré’. Ele esperava eu passar no corredor, que era uma porta de madeira, para atacar a porta no meu dedo. Eu vivia com esse dedo enfaixado, porque caía a unha, minhas unhas são todas tortas. Era isso, nossa vida era uma guerra. E eles se juntavam contra mim, era insuportável. Eu vou contar só a minha versão, só. (risos)
P/1 – E como era essa casa? Vou chamá-los aqui. O que você aprontava?
R - O quê? Eu?
P/1 – É.
R - Nada, eu era um ‘anjo’ de candura. Não sei como que a minha mãe sobreviveu, porque o meu pai ficava o dia inteiro no banco, né? Eu via muito pouco o meu pai, minha mãe era muito presente. Levava muito a gente pra escola, voltava, já tinha várias atividades, mas a gente brincava muito na rua, então a gente... era uma rua de paralelepípedo. Não sei como que a gente colocava carrinho de rolimã naquele paralelepípedo. Eu perdi a unha do pé. Nossa, era tanta ‘zona’, era tanta... não sei como que a gente sobrevivia. Um amigo nosso tinha um apito que fazia assim, em vez de fazer fuuuuu, era um apito que fazia furrrrruuuuuu, sabe? (risos) Era um apito assim. Quem que inventou esse apito? Estava todo mundo brincando na rua: “Vamos soprar”. Ughhhhh, o moleque (risos) engoliu, a gente falou: “Não”. (risos) Essas coisas. A gente sobreviveu a tanta coisa! Eu lembro (risos) que eu bati a unha no... minha mãe, toda vez, ela tinha que pegar aquela Brasília dela, que o assoalho estava podre, parecia do Flintstone, levava a gente pro pronto-socorro, os caras do pronto-socorro já sabiam o nome do meu irmão: “Entra, Juninho!” O Marcos só ficava assim, porque o Marcos não fazia nada, ele tinha que ficar assim, ó, porque o meu irmão era o mais centrado dos três, tinha que ir todo mundo pro pronto-socorro, porque ela não deixava alguém sozinho, porque ia ‘detonar’ a casa. Vai no metrô, vai todo mundo. Vai no Mappin, vai todo mundo. Porque deixar um era uma coisa de louco, ia pôr tudo no fogo. Mas era uma infância muito gostosa, ali. Tanto que a gente conhece gente até hoje, dali e daquela outra casa, que era três ruas para baixo, né? Quando a gente morou ali, meu pai comprou uma outra casa, três ruas para baixo e a gente conhecia... era brincadeira de rua mesmo, de conhecer todo mundo na rua. Era... não era uma infância dentro de casa, era fora de casa. E já tinha videogame, já tinha telejogo. (risos) Telejogo, já tinha (risos) umas coisas muito boas, né? Mas a gente brincava o tempo inteiro na rua. O Marcos, não. O Marcos era mais indoor. Ele era tão cara de sonso, que ele foi o mais que namorou. Eu fico pensando: Marcozinho, indoor, imagina se ele fosse outdoor, o que esse moleque não ia fazer da vida? Aquela cara de sonso. É bonitão, meu irmão. A gente tinha muita brincadeira na rua, fez muito a nossa vida lá. Muito, muito mesmo.
P/1 - E como é que eram essas casas? Por que vocês saíram de uma e foram para a outra?
R - Porque o meu pai ganhou mais dinheiro e a casa era muito pequena. A gente começou a crescer, a gente é grande. Eu sou grande, meus irmãos também, eles são altos. Eu acho que meu pai também começou a mudar de vida, começou a ter mais perspectiva, e a casa tinha mais quintal, três pré-adolescentes, tinha churrasqueira. Meus pais faziam muita festa, uma casa de muita festa. Então, era churrasco todo fim de semana, ter cachorro, essas coisas, acho que foi uma coisa natural.
P/1 - Sua mãe trabalhava fora?
R - Depois de um tempo, mais ou menos, ela abriu um brechó, hoje considerado brechó, mas não tinha esse nome pomposo. Ela começou a pegar as coisas das amigas em consignação, na garagem. Fez isso anos. Notícias Populares, que uma ex-namorada do meu irmão fez uma matéria de uma capa de um dos cadernos, porque era um “Uoooo, o que é isso que ela está fazendo, essa mulher?” Só que a minha mãe... aquilo foi tudo fachada, o que ela quis fazer era ajudar as pessoas, ela vendia muito pouco. O que a minha mãe fazia era... a minha mãe era pra ser vereadora. Ela conversava com as pessoas do bairro inteiro, as pessoas iam lá, se aconselhar. As pessoas transsexuais, travestis, que não tinha ‘eira nem beira’, que eram extremamente vilipendiados, estavam dentro da minha casa. Meu pai era uma pessoa extremamente preconceituosa com o travesti, lá ele conseguiu ter a relação com a Vânia, que até hoje amava a minha mãe, porque a minha mãe acolhia essas pessoas. E ela, a pessoa estava sem dinheiro (risos) pra roupa, ela dava. Ou seja: ela ganhava muito pouco dinheiro, ganhou, tanto que pagou um tempo da minha PUC, do meu Serviço Social, mas era mais uma história de estar em contato com as pessoas e ajudar, do que uma loja, mas era uma garagem maior que esse estúdio, duas vezes maior que esse estúdio, com muita ‘arara’, tinha provador, tinha um esquema ali, tinha sapato, tinha roupa, tinha tudo, era um mundo ali. Desde os meus, sei lá, dezesseis anos, até... tanto que quando a minha mãe já estava... antes de ficar doente, muito antes de ficar doente, ela falava: “Eu preciso me desmanchar daqui, eu preciso tirar isso aqui, porque eu não estou...”. Com a pandemia já não fazia mais nada, e eram muitas roupas, ela já teve vontade de tirar, mas aí meu pai que fez o processo final de tirar tudo, mas era um mundo ali. Mas ela começou a trabalhar fora depois desse tempo aí.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R - Uma coisa regular, assim. Não lembro quando. Só lembro de uma foto minha com aquela cara ali, do primeiro livro. Mas não lembro. História não tem, não lembro.
P/1 - Que escola você estudou?
R - No São Francisco Xavier que eu estudei.
P/1 - É escola estadual ou particular?
R - É particular. Lá no Ipiranga.
P/1 - E seus irmãos também iam lá?
R – Sim. ‘Onde ia a corda, ia a caçamba’. Onde fazia um, fazia os três. Aí depois a gente foi estudar no Arqui, os três.
P/1 - E como era essa primeira escola?
R - Eu era muito tímida. Aí eu repeti a quarta série e eu ‘virei um demônio’, porque aí eu me adequei. Eu era uma pessoa tímida. Eu olhava para as pessoas... como ser tímida é engraçado. Eu tenho uma certa timidez, mas as pessoas não reconhecem que é timidez, porque eu sou muito expansiva. Mas eu tenho algumas coisas assim de... mas ser tímido é um outro olhar, porque você tem um olhar de... você olha primeiro o que o outro está fazendo, pra você fazer. Hoje não, eu faço. Hoje eu não penso, eu faço. Mas ser tímido é um... ser... porque o Marcos, meu irmão do meio, é muito tímido. Hoje ele não é muito mais, mas eu lembro de uma história, menina, olha só a história! Tinha um jogo (risos) que se chamava Mega Senha, que era um negocinho assim, de plástico, com vários buraquinhos, que você colocava aqui uns pinos de cor, vários coloridos, não sei, não vou saber explicar. Você tinha que colocar uma composição de pinos vermelhos, pretos, azuis, brancos, amarelos. E tinha um negocinho escondido que você tinha que colocar os pinos nos outros para saber se você adivinhou o que estava escondido, mais ou menos isso. Olha o que eu lembrei! Que eu era muito tímida, as pessoas no recreio, pro tímido é a pior coisa do mundo, porque aonde que você vai, com quem você vai, o que você vai fazer, você vai ficar sozinho? Ai, que vergonha! Eu lembro muito disso, da primeira à quarta série. Eu peguei esse brinquedo e eu fingi que alguém estava falando comigo, eu que inventei o celular. (risos) Eu fingi que tinha uma comunicação com esse negócio, de falar com ele. Ali eu comecei a perceber que eu não era muito ‘boa da cabeça’. Porque eu tinha... (risos) as pessoas - acho que na primeira à quarta série mesmo - estavam tudo ou com alguém... não tinha alguém sozinha, a não ser eu com esse brinquedo. Olha só que engraçado! Que aí eu sabia que tinha uma história ‘rolando’, porque eu ia muito mal nas disciplinas, eu não era boa... eu tenho outra inteligência, (risos) provavelmente, mas essa do ‘quais quais’ da escola, menina do céu, eu era péssima. Só sei que a minha mãe chegou e falou... eu tinha quantos anos? Doze? Quando você está na quarta série, quantos anos? Por aí, né?
P/1 – Dez, onze.
R - Aí a minha mãe falou pro meu pai uma coisa meio de: “Ó, pff, essa aí, pff”, porque meus irmãos (risos) eram muito inteligentes. Meus irmãos, tanto que um é médico, outro fez computação na USP. Eu, pff. “Essa aí ó, pff”. Eu lembro de mamãe, falo: “Acho que alguma coisa não está boa pra mim”. (risos) Aí, pumba, levei ‘bomba’ e eu fui fazer o segundo ano nessa mesma escola. Pronto. Eu era a ‘dona do mundo’. Eu não sei se chegou essa outra turma, tem uma inadequação, né? Eu acho que eu pude errar. Errar não morre. Errar é bom demais, gente. Então, é isso que é a vida errando? Quero. E aí a partir dali eu fui outra Vanessa. Parece que eu fui uma Vanessa aqui e uma Vanessa ali. Aí foi. Eu já era líder da escola, minha mãe falou: “Essa aí (risos) é ‘pancada’. Até agora... já era repetente, o que aconteceu com ela?” Minha mãe era muito engraçada. E aí foi ‘outra vida’. Maravilhoso lembrar desse negócio da Mega Senha, coisa de maluca, doida, ‘doida de pedra’. ‘Doida de pedra’.
P/1 - Van, e tinha alguma professora, alguma situação que tenha te marcado?
R - Nessa época?
P/1 - É.
R - Tem da Fátima, que é o nome da minha mãe. Que ela foi a professora lá, de ensino religioso, mas ela fazia música, era ensino musical. Que ela, quando eu vou pro Arqui, ela foi pro Arqui também, por uma coincidência, que eu falei pra ela: “Eu quero ser freira. Quero ser freira”. E a minha mãe falou: “Para com isso”. (risos) Porque eu já tinha essa história muito espiritualizada em mim. Muito, muito, muito, muito. Era uma... via coisa, sentia coisa. Quero ser freira, porque pra mim era o meu contato com as coisas religiosas, porque era católica, escola católica, quero ser freira. Aí a Fátima falou assim: “Não, espera aí. (risos) Vou te mostrar uma outra coisa: você vai fazer Serviço Social, pra ajudar as pessoas”. Tanto que eu sou assistente social, porque a Fátima falou pra mim: “Eu vou te dar um montão de coisas pra você ler”, com quatorze anos.
P/1 - A Fátima era professora...
R - ... de ensino religioso, da escola que eu estudei e repeti e do Arqui, que depois eu fiquei até... depois fui até trabalhar no Arqui, muito tempo na minha vida eu fiquei no Arqui, no Colégio Arquidiocesano Marista, de São Paulo. E ela que me influenciou a fazer Serviço Social.
P/1 - Você queria fazer... você queria ser freira?
R - Sim, hoje eu sou mãe de santo.
P/1 - Por que você queria ser?
R - Porque eu tinha esse chamado espiritual muito forte, muito forte, eu ouvia chamado, sentia chamado, né?
P/1 - O que era esse chamado que você sentia? Como você sentia?
R – (risos) É interessante. Essa história, por exemplo, de que a primeira vez que eu vi algo sobrenatural acontecendo, que tinha Deus do meu lado, em mim, eu estava num quarto, uns treze anos. Estava com a Bíblia aberta, uma Bíblia linda, que eu não sei onde ela foi parar. Por que eu empresto as coisas?
De couro, que abria assim, de um zíper, eu abri, eu gostava muito do cheiro das coisas. Eu pus no chão e veio uma luz absurda pela Bíblia e no meu ori, que hoje eu chamo de ori, na minha cabeça. E falava: “Se solta, que essa estrada já está pavimentada, anda”. Uma história meio... e eu comecei a chorar muito de uma história de uma luz extremamente forte, que abriu um clarão pela minha cabeça, falando pra eu andar, pra eu caminhar, que eu já sabia o que eu ia fazer, pra poder ajudar as pessoas. Foi isso. Ali eu falei: “Meu Deus!” Eu encontrei uma revista que aquilo foi... chamava Sem Fronteiras, uma revista maravilhosa.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Treze. Uma revista, Sem Fronteiras, que aí lá tinha uma seção - era uma revista católica - que eram os presos falando com as pessoas. Aquilo eu achava o máximo, eu falava: “Eu quero falar com essas pessoas”. Tanto que hoje eu trabalho na cadeia, trabalhei com assistente social e trabalho como mãe de santo, na cadeia. Ali eu fui construindo uma história de que as pessoas precisam falar, as pessoas precisam existir, as pessoas precisam se comunicar e aquelas cartas, eu tenho guardado até, dessa revista. Como são importantes as coisas, né? Esses meios de comunicação popular.
P/1 - Vanessa, quando você sentiu esse chamado, você comentou com alguém, você guardou?
R - Comentei com a Fátima, porque a Fátima, como ela tinha sido freira, e ela era muito ligada à juventude, adolescência e tudo mais, ela era preciosíssima, tanto que a gente vai voltar a se falar, tem duas pessoas que estão atrás, pra gente reencontrar todo mundo. Ela é de uma importância, era uma ‘figura’, num colégio extremamente do patriarcado, burguês, branco. Ela era uma negra, que usava turbante, cabelão e falava com todos aqueles burguesinhos daqueles alunos e professores, ‘tirava de letra’, era maravilhosa. Ela que me incentivou. Quando eu falei: “Fátima, você não sabe o que aconteceu comigo”. Eu chorava, ela: “Aahhh, que lindo! O que aconteceu?” “Eu quero ser freira”. Ela: “Calma. Pelo que você já faz...”. Eu já ajudava as pessoas, né? Eu já estava num grupo católico do colégio, que chamava Perseverança, que depois que você faz a Primeira Comunhão, você pode - com mais velho, imagina, seis meses mais velho - fazer esse grupo, ensinando temas. Então, falar sobre sexualidade, isso, isso e aquilo. Eu já fazia isso com grupos, com quatorze anos. Então, eu já... a gente já ia em asilo. O colégio incentivava muito a gente a fazer coisas sociais. Então, a gente ia em asilo, ia em lugares variados, em creche, em Febem. Eu já fazia esse processo, ela já sabia dessa minha história de andanças por aí. Aí eu falei, com esse chamado eu ‘juntei o lé com cré’: “Quero ser freira”. Ela: “Não, de tudo isso que você faz, tem uma outra história que você pode fazer, sem precisar ser freira, porque eu já fui. É duro, (risos) não tem a ver com você. Vai fazer Serviço Social. E, enquanto isso, a coisa da sua religiosidade, vai fazendo Perseverança, vai fazendo as histórias que você já faz, que seu caminho vai indo pra frente”. Ela foi minha guru. Ela é minha guru.
P/1 - E pra sua mãe e pro seu pai, você contava isso?
R - Não. Eu era muito ‘desmiolada’. A gente teve um processo com a minha família, que não era... não foi um processo simples. Demorou muito pra eu ser Vanessa e eles serem meus pais, para além de pais e mãe e mulher e homem, assim, de relação de adulto. Demorou muito. Eu era muito diferente da minha família, como um todo. Então, por isso eu acho, não sei, não falei.
P/1 - E teve alguma professora, com exceção dessa de ensino religioso, em Matemática, Português? Que matéria você gostava mais?
R - Não gostava de nenhuma. Eu gostava do ‘fervo’ da escola. (risos) Gostava de fazer as atividades que eu fazia, como... ou no grêmio, ou... tinha professores que eram... tinha o Montefusco, por exemplo, de Geografia, que era... Meu Deus, como que pode ter sido professor? Então, professor que você fala: “Meu Deus!” As pessoas, tomara que não escutem, mas assim: tem professores, por exemplo, a Suzi, de História, que me ajudou muito a entender essa história, para além dessa coisa babaca, que era OSPB ou Moral e Cívica, porque eu tive OSPB e Moral e Cívica. Então, ela ensinou as histórias que têm que ser mesmo: os indígenas sendo vilipendiados, eles são os donos dessa terra. Então, tiveram professores que marcaram essa perspectiva de olhar, assim. Mas outros que você fala: “Meu Deus!” Cada professor! Eu tinha ojeriza à escola, em si, porque eu achava muito ‘quadrada’, eu era uma pessoa que não... “Hay gobierno, soy contra”, então eu tinha sempre questões, assim, muito complexas. Minha adolescência foi uma adolescência muito intensa, mas eu lembro de fatos, a gente teve um grupo muito forte, que são amigos até hoje, pessoas muito interessantes, que fizeram parte muito da minha caminhada, assim e de muita rebeldia, né? Então, eu fumava, aí estava lá no pátio central, o Arquidiocesano, para quem conhece, é lindo dentro, é um colégio muito maravilhoso, arquitetonicamente falando. A gente estava lá no pátio central, estava fumando e não podia fumar, aí eu vi o bedel lá no terceiro andar, me olhando, eu continuava fumando; no segundo andar olhando, estava fumando; no primeiro andar fumando. Quando ele chegou eu peguei... eu tenho uma marca aqui, (risos) porque eu apaguei o cigarro na minha pele, peguei dentro da calça, daí eu tenho uma marca aqui, de cigarro e apaguei. Essas histórias, todo mundo falando que eu era maluca. Então, são histórias (risos) e vai marcando. Ele falava: “Amiga, amiga, eu vi o que você fez”. Eu: “Viu o quê? Hudson, o que você viu?” (risos) Ainda mais numa época que não tinha câmera. Então, eu ficava o tempo inteiro desafiando. A gente colocou na gruta sabão em pó, que tinha um riozinho.
P/1 - Você fazia isso junto com seus amigos do Arqui?
R - É, que são meus amigos até hoje. Tudo um bando de tonto, né? A gente era rebelde, na verdade. A gente fazia já - imagina: papai e mamãe que pagam escola - manifestação contra a burguesia. Deixava o Manifesto Comunista nos corredores, sabe? A gente tinha essas rebeldias, mas que fez parte da minha trajetória de militância política, que depois de muito tempo com o Serviço Social e tal, a gente foi fazendo essa trajetória. Começa de algum canto, começou no Arqui, né, de alguma forma. É importante.
P/1 - E tinha alguma expectativa na sua casa pra que você seguisse alguma carreira?
R – Eles achavam que eu não ia ser nada. (risos) Eles tinham quase certeza que essa aí, ó, pffff. Aí eu fui... ela, eu acho, minha mãe ia discordar um pouco, mas eu lembro de cenas, quando eu fui dirigir, eu falava pra minha mãe: “Eu nem sei se eu vou conseguir dirigir porque, se eu pego o carro, bato o carro, não sei o quê”, eu falava detalhes do meu medo. Meus irmãos não, por serem homens, o jeito, personalidade, sei lá eu, tudo era muito: “Vou fazer”. E eu não, eu falava dos meus bastidores. Aí a minha mãe ficou com essa história, por exemplo, da direção... aí, no primeiro dia que eu peguei a carta, eu fui de Jabaquara pra Santana. Ela: “Como assim?” Eu falei: “Mas eu fui. Eu falar que eu tenho medo não quer dizer que eu não vá”. Então, era um pouco essa história assim: eu fui me mostrando muito pra minha família no processo da minha vida. Então, quando eu fui fazer Serviço Social, meu pai achava que até o terceiro ano eu fazia Ciências Sociais, tal o desconhecimento do meu pai. (risos) Falava: “Pai, é Serviço Social”. A minha sorte foi querer fazer uma história que era mais vaga do que candidato, porque eu não sou boa do xizinho. Não tenho essa inteligência do meu irmão, por exemplo, fazer medicina, mas ‘nem a pau’ passar nesses ‘bagulhos’. E hoje eu sei que está tudo beleza, mas eu acho que ele... quando eu falei pra minha mãe... se eu falasse pra ela: “Eu vou fazer corte e costura na Sigbol”, ela ia ficar feliz, porque pelo menos ela tem um caminho, essa menina. (risos) Mas eu achava que eles não tinham tanta expectativa. Depois de um tempo que viram: “Olha, ela é boa, essa mulher, hein? Parece que não é tão boba, não”. Mas foi um tempinho pra acreditar que ia fazer o que e tal.
P/1 - E, nesse percurso, desde essa aparição que você teve, essa luz, essa iluminação, esse chamado, você teve outros?
R - Tenho até hoje.
P/1 - Mas nesse período, até você... então foi essa vez, e que outra vez você lembra, lá atrás?
R - Tão marcante assim, não, mas de falas, de guias falando comigo sim, muito.
P/1 - E quando você escutava isso, você tinha noção da sua espiritualidade, ou você achava que podia ser outra coisa?
R – Não, se eu achava que era totoca? Não, eu achava que era espiritual, total. Que eu sempre fui uma pessoa que estava ligada à espiritualidade.
P/1 - Você disse que na infância você já tinha, né?
R - Já tinha esse chamado. De onde que vinha essa criança de oito anos, que, plim, se relacionava assim? Tinha, né? Tinha. Estava ali, ligada às pessoas, que eram mais do que eu. A família ajuda muito, porque minha mãe muito pobre ajudou. Essa perspectiva, meu pai também, de incentivar: “Vamos fazer”. Mas já tinha em mim. Se eu nascesse em outra casa que não incentivasse, eu ia ser assim, porque a ancestralidade é assim. Já era, já era dada. É lindo de ver.
P/1 - E aí você estava no colégio, você fez cursinho?
R - Fiz só pra tomar chopp e jogar truco. Porque o meu pai pagava pra todo mundo: “Vai fazer, Vanessa, cursinho”. Beleza, eu não vou estudar. Eu gostava do cheiro da apostila, mas assim, muito chato. Só de lembrar! Uma que apostila, aquela diagramação pequena, o que era isso, meu Deus? Não dá pra estudar naquele negócio. Eu fazia amizades e ia fazer outra coisa. Mas aí, já era maior, eu falei: “Pai, deixa eu te falar: estou enganando. Parou com esse dinheiro aí, não estou fazendo nada”. Que nem na Cultura. Hoje eu não sei uma ‘bosta’ de inglês. Sei o que eu sei, mas tentaram. Fizeram pros três filhos, era um combo. Vai lá e vamos fazer Cultura. Era uma ‘grana’. O que eu fazia? Tinha um laboratório, (risos) que era um... aqueles fones. É coisa antiga. Aí você tinha que repetir: “Svai guiri girovsk”. E tinha que gravar. Eu só falava ‘bosta’. Eu morria de rir. Eu ficava com chiclete, porque eu escutava, eu e meus amigos: “Ai snhep djosh”. Aí a bola ia no microfone. E falava: “Meu Deus!” Sabe aquelas coisas? É imbecil, é imbecil, mas naquela hora você tinha uma crise de riso, (risos) que a professora tinha que falar: “Vanessa, sai. Vanessa, sai. Você está atrapalhando”. Eu: “Não, mas eu só estou aqui, no meu fone”. (risos) Meus amigos: “Você perturbava a aula inteira, a aula inteira”. Professoras que me encontram hoje lembram. Tem uma amiga minha que mora na Alemanha, ela fala Chucrutolândia, (risos) que ela vê até as minhas lives, ela lembrava de uma história que eu entrava no ônibus e abria o guarda-chuva e eu: “Pra que que eu fazia isso? Pra quê?” Pra chamar atenção, né? Gente doida, ela... até hoje. Tem professoras da Cultura, que me encontraram pra contar essa história. Por quê? Ainda marcou uma história: “Por quê?” Aí ficava no negócio do microfone da Cultura o chiclete todo ali, era uma redinha, ficava todo estragado o negócio. Aí eu falei pra minha mãe: “Ó, eu não estou fazendo nada na Cultura”. Pelo menos eu era sincera, porque eles estavam pagando uma ‘grana’. “Então sai”. Falei: “Estou saindo”. Porque eu só fazia essas coisas. Eu não gosto. Esses estudos, pra mim, tanto que quando chega adolescente pra mim, pra conversar em relação a isso, porque as pessoas se sentem muito mal com... quando não se enquadram nos lugares. Eu falo assim: “Você não precisa se enquadrar nos lugares”. Está errado. Agora, estudar é interessante, porque te dá ‘asas’ também, educação é interessante, que te dá ‘asas’, mas se enquadrar... eu sempre fui uma pessoa totalmente desenquadrada num lugar que precisava estar enquadre, era um desconforto. Ainda bem que eu encontrei um montão de gente doida, aí a gente faz um hospício na vida, graças a Deus, pra gente não ficar sozinho nesse mundo, senão eu ia ficar assim, ó, Encaixotando Helena, não ia ter lugar pra mim, ia falar: “Meu Deus, onde que eu vou?” Aí era melhor ir num convento. Minha mãe: “Você, num convento, ia ‘detonar’ aquelas freiras”. (risos) Ia mesmo. Ia gostar delas.
P/1 - Ô, Vanessa, e na adolescência, já se encaminhando aí nessa fase do cursinho, você passeava por São Paulo, o que você fazia?
R - Muito! Eu e meu amigo Ricardinho, que vai até no meu aniversário, semana que vem, a gente gostava de brincar de bola em bola, bola em bola. A gente adorava cabular aula do Arqui, adorava. Quando a gente cabulava, a gente ou ia pra igreja que tem ali, da Saúde, que é muito bonita, que parece até um castelo de areia, feito de areia, assim, ou a gente ia pro Centro da cidade. Tanto que a mulher, a Tânia, não sei se ela já faleceu, falava: “Labigalini e Mucciolo”. Ela sabia que a gente ia embora, nem avisava os pais. Olha só que mamata que a gente tinha! Porque, ‘meu’, é melhor eles fora do que dentro dessa escola. (risos) Eu o conheci com doze, ele fala que... às vezes ele fala que é onze, eu não achava que era tanto, mas está bom, doze, treze, jogando bafo. A gente jogou bafo, ficamos amigos até hoje, somos muito amigos, e a gente ia pro Centro da cidade, na Santa Ifigênia, a gente fumava, eu fumava um cigarro que chamava John Player Special. Por quê? Porque era preto e eu achava legal. Era um cheiro... ele fuma até hoje, o Ricardo, eu que não fumo. Aí a gente gostava de jogar bola em bola, que era um jogo imbecil, tem hoje até, que são três... uma bolinha com três negocinhos assim, que eles montavam no viaduto da Santa Ifigênia, um negócio de caixote de madeira, e fazia bola em bola, bola em bola, onde está. A gente era tão imbecil e tonto, que a gente achava que a gente ia ganhar esse negócio aí. Sempre tinha um comparsa. Até a gente perceber isso foram anos. Eu: “Hoje a gente vai ganhar”. A gente só perdia, até era um dinheiro, sei lá, cem ‘paus’. A gente: “Nossa, dessa vez a gente perdeu”. A gente ia lá e ‘enchia a cara’ de Rabo de Galo. Era isso que a gente fazia na vida, a gente passeava pelo Centro inteiro. A gente adorava ir em sebo, a gente ficava horas em sebo, pegando livros maravilhosos, principalmente de ocultismo, de hipnose. Eu lembro eu e o Ricardinho lendo, lendo, lendo. Passeava por São Paulo inteiro, era muito bom. (risos)
P/1 - E aí você já sabia ali, por aquela sua professora de ensino religioso, que você ia fazer Serviço Social?
R - É, com uns quatorze anos eu já sabia e sabia que eu queria ser voluntária do CVV. Quando eu fui fazer dezesseis anos, eu falei: “Vou lá”. Dezesseis não pode, tem que ser dezoito. Então, a primeira vez... o primeiro dia que eu fiz dezoito anos eu fui lá no curso do CVV. Depois eu fui tirar a carta. Eu lembro bem esse encadeadinho, assim, de vida.
P/1 - E como é que foi esse curso?
R - CVV? É bem maravilhoso, eu recomendo muito, assim. Parece que mudou bastante agora, porque, putz, eu estou com 51, faz as contas, é bastante tempo. Você ficava dois dias, sábado e domingo, com pessoas bem mais velhas do que eu. Imagina, com dezoito anos! Era muito raro alguém querer fazer esse voluntariado e ainda você escolhia... são vários ensinos, tem cenas dramatizadas da pessoa fazendo atendimento, tem orientações de como que você tem que falar, muito bem-feito. Assim, é maravilhoso. Eu fiquei acho que dois anos como voluntária, meu pai ficava ‘maluco’, porque eu escolhi fazer o turno da madrugada. (risos) Onde era mais difícil? Uni, duni, tê. “Você pode fazer no horário do almoço, depois da escola?” “Não, à noite”. (risos) À noite, onde não tem ninguém. Minha mãe falava: “Deixa, Eliseu”. (risos) Era assim os ‘papos’. Aí eu fiquei dois anos numa galeria, na rua... na Ana Rosa. Eu esqueci, acho que era na Domingos de Moraes, mas é uma galeria na... nem sei se existe ainda. Aí eles me davam a chave, porque eu ia sozinha, entrava. Uma sensação tão interessante, o primeiro toque de... “O que eu vou falar”, né? E você poder ajudar alguém ali foi essencial na minha vida, o CVV. Maravilhoso.
P/1 - Tem algum caso que tenha te marcado?
R - Tem. De pessoa que falou que tentou agora e não conseguiu se matar. Eu tinha dezoito anos. ‘Porra’!
P/1 - E o que você falava?
R - É bem rogeriano o conteúdo deles, né? De aporte, de suporte.
P/1 - O que é rogeriano?
R - Rogeriano é um pouco uma linha psicológica, que você não enfrenta, você escuta, você dá continente, assim. É muito, muito interessante, assim, é... e como que... você quer contar mais sobre o que te aconteceu? É... e aí eu lembro que eu consegui falar: “Que bom que você está aqui!” E eu tinha muita vontade de chorar. Talvez o choro tenha vindo agora, assim, de ‘que bom que você está aqui’. Porque a vida é mais forte. Mas depois que a pessoa contou, que ainda bem que eu não consegui, porque você não fala ‘de prima’ assim, de que: “Ah, que bom que você está aqui!” É, mas de repente a pessoa pode falar: “Mas eu vou tentar de novo. Então, eu só estou te ligando pra...”. Não, tinha todo um... você deixa a pessoa falar, ali eu aprendi a escutar. No CVV eu aprendi a ouvir, porque você tinha que ouvir muito mais do que falar qualquer coisa. O CVV é pra quem precisa ouvir. A gente tem ouvido muito pouco, no mundo. Olha eu falando que nem uma louca, eu cansei. Tem que ouvir. Falta muito isso, no mundo. As pessoas às vezes se matam por isso, porque ninguém ouve. Não é questão de concordar, é de ouvir, só. Eu tenho enfrentado muita gente que não é ouvido, é triste. O amor é silêncio. Quando a gente tem muita intimidade com alguém, o silêncio não atrapalha, ele preenche. Já pensou se oito bilhões de pessoas pudessem ser ouvidas, assim, de: “Espera aí, agora é a sua vez. Agora é a sua. Calma”. Muito ódio, né? Affff, está muito ódio nesse mundo, meu Deus. Se a gente ouvisse! E às vezes, olha, é um ouvir que a pessoa está precisando, lá no terreiro é assim, um ouvir de: “Me fala. Me fala o que você precisa falar, só isso”. E dá um abraço. Só isso que às vezes precisa.
P/1 - Van, e aí você prestou outras faculdades, você fez PUC?
R - Fiz PUC, Serviço Social, graças a Deus, é a única que eu podia passar. Ela tem mais vaga do que candidato.
P/1 – Mas você prestou?
R - Ah não, prestei FMU, passei, bem lembrado, passei FMU também, aí eu fui fazer PUC.
P/1 - Como foi sua entrada na PUC?
R - Maravilhosa, primeira pessoa que eu falei oi, quem foi? Daniela Greb, primeira pessoa, que entrei na faculdade, fui fazer de manhã. Tinha uma freira já, com hábito. Eu falei: “Ixi, olha só a freira!” Aí tinha vinte e poucas alunas. Foi uma sensação interessante entrar na faculdade, assim. Eu tive aula com uma ‘puta’ de uma professora. Eu tive várias. As professoras da PUC são maravilhosas. Aí você sentava assim, já era diferente o modo de sentar. As pessoas fumavam na sala. Eu: “Uau! Revolucionário esse negócio”. Aí tinha lá um cartaz escrito Conselho Nacional de Estudantes de Serviço Social, Brasília, tal e tal e tal. Eu gostei daquilo. Aí veio uma tal de uma menina falar comigo: “Oi, oi”, era a Daniela. “Ué, vamos nesse negócio aqui?” “Ué, vamos”. (risos) Foi assim, nossa... que era esse Conselho. Aí já tinha o Centro Acadêmico da PUC, passou uma menina que se chamava Rosana, Rosana Paiva: “Ó, vai ter esse Conselho, pra quem quiser ir, a gente está fazendo uma caravana”. Ah, vai ter todas as pessoas com All Star, tudo ‘ripongo’. Era muito legal. E aí a gente foi, eu lembro que eu morava na casa dos meus pais, tinha o telefone, a Daniela me ligou, não tinha celular: “É a Daniela da PUC, vamos mesmo?” Eu lembro do telefone, um telefone grande: “Ué, vamos, como que a gente faz?” “Assim, assim”, fomos de ônibus lá para Brasília. A PUC foi maravilhosa na minha vida, mudou muita coisa. Lá eu era inteligente. Lá eu passava com onze, em vez de dez, porque você está enquadrada no sentido, não do enquadro, mas você está no seu mundo, você está na sua perspectiva, você está respirando o que é seu. Aí eu comecei a falar: “Então, a escola que era uma ‘bosta’!” Quando você faz o que você gosta, está aí, está feito o negócio, está tudo beleza. Tanto que, de metodologia, pesquisa, eu sempre fui uma ‘bosta’. Então você faz o que você consegue, né? O que você... você é bom em algumas questões, em outras não, mas a PUC me mostrou um pouco isso também, como é interessante fazer o que gosta, que privilégio ter feito uma faculdade que a gente gosta, né? Faria de novo, muito bom.
P/1 - Uma professora, quais que te marcaram?
R - A Elisabete Borgianni era uma professora maravilhosa. A Aldaíza Sposati não me deu aula, mas foi vereadora duas gestões. Eu trabalhei no gabinete dela, eu amo a Aldaíza, tanto que está na ativa até hoje, falou com o Lula recentemente, maravilhosa. Maravilhosa, maravilhosa. Então, a PUC... a Erundina, nossa paraninfa, pessoas muito vinculadas à vida, à existência, o que é questão social, questão da justiça social. Foi lá que a gente aprendeu esse ‘caldo’ todo, né? Professoras maravilhosas, até hoje, muito boas.
P/1 - O que você aprendeu na PUC que te marcou?
R - Então, essa questão da vulnerabilidade social, de entender de onde que vem, né? Entender a historicidade da pobreza. Qual é essa questão, né? E as soluções que se pode dar, os caminhos que se pode dar, a escolha de qual lugar que você ocupa nisso tudo, né? Então, o que me deu a certeza histórica do meu processo. Então, foi muito, muito importante, muito importante.
P/1 - E qual foi seu primeiro... foi estágio, antes de emprego? Qual foi a sua primeira experiência de trabalho?
R - Foi na penitenciária feminina da capital.
P/1 - Você estava na faculdade?
R - Estava, no terceiro ano da faculdade, foi maravilhoso. E ali eu tinha certeza de que, se eu fosse trabalhar mesmo como assistente social, do próximo, o próximo, que a gente tem esse... o Serviço Social tem várias frentes de trabalho, uma delas é o mais regular, que é trabalhar com filas de pessoas, de fichas, de socioeconômico etc. E aquilo me deixava um pouco angustiada, de que uma vida com muita rotina de enquadrar, de novo enquadrar as pessoas numa tarja socioeconômica pra receber cesta básica. Tanto que eu fui trabalhar com coisas de entregar cesta básica, eu ‘ferrei’ todos os lugares, porque eu dava pra todo mundo. Eu falei: “Não, o ‘cara’ vai me perguntar, ele não está enquadrado, está com fome, eu vou dar”. Então eu não ficava nesses lugares, eu era totalmente desenquadrada desses lugares. A pessoa está com fome lá no... porque faltou cinquenta centavos do socioeconômico dela, ela não vai comer? Vai. Aí eu voltava por uma porta, lembro da igreja que eu trabalhei, entregava tudo. Aí lógico que eu não ficava nos lugares, né? Mas, é... esqueci.
P/1 - Como foi a experiência na penitenciária feminina?
R - Foi maravilhoso. Foi lá que eu tive certeza que eu gostaria de trabalhar.
P/1 - No Carandiru?
R - É. Tem até hoje, é perto do Shopping Center Norte.
P/1 - Como você fazia? Você entrava lá? Como era? Descreve o trabalho.
R - Uma sensação...
P/1 - Você chegava lá...
R - ...você era revistada, né? Mas uma revista que não era de familiar. Você entregava as coisas todas. Tem uma coisa que eu não posso falar aqui, mas um dia eu te falo. Aí você entregava as coisas, te revistava, você entrava. E aí chegava na sala do Serviço Social, tinha lá as assistentes sociais assim, ó. Falei: “Meu Deus do céu, eu estou ‘frita’”. Porque as pessoas se acostumam com a história. (risos) Eu falei: “Meu Deus, se for depender delas...”. Mas tinha uma diretora muito interessante, que era a Penha, que ela colocava fotógrafos para fazer oficina, coisas interessantes, e eu fui conhecendo as presas. Eu falava para as assistentes sociais: “Eu posso estar lá dentro?” “Não”. Falei: “Eu vou estar lá dentro”. (risos)
P/1 - Dentro das celas?
R - É, porque você tem... não, das celas não, mas dos pavilhões tem várias coisas de trabalho, de conversa, de oficinas, que eu gostaria de estar nesse convívio, do que somente o convívio... aí uma assistente social falou pra mim: “Você vai estar, mas primeiro recebe os relatórios e aprende a fazer”, que é muito importante mesmo. Aí eu aprendi a forma de como é chegar, a gente fez muito alvará de soltura, que era muito emocionante. A gente fez muito casamento. A nossa relação era muito com o mundo de fora, então pra receber ‘jumbo’, as presas, pra receber alimento e tudo mais, a gente que conversava com a família, de fazer visita, de fazer essa relação de: “Eu estou com muita saudade do meu filho”, numa época que a lei não permitia que elas estivessem com o filho, então não tinha visita íntima, como não tem até hoje. A presa mulher é mais presa do que os presos, assim, é absurdo. Era um... e eu escutava muito as histórias, aí começaram a entender que eu ‘passava a mão na cabeça’ das pessoas, então: “Dá homicida pra ela, dá não sei o que pra ela”, porque elas tinham um processo muito rudimentar da escuta, que elas já não estavam mais querendo escutar. Estava um tempo... sabe quando você se desgasta com históricos? Aí eu escutava muitas histórias, eu amo escutar histórias, até hoje. Amo saber da vida das pessoas. Então eu sentava com essas presas, que muitas vezes eram já execradas por x, y questão. Aí eu fazia o relatório de entrada dela, que eu precisava sair, saber o psicossocial dela, eu escrevia, escutava, escutava, escrevia, escutava, escutava. Aí depois eu a acompanhava, dentro da cadeia.
P/1 - E elas te contavam o motivo pelo qual elas estavam lá?
R - Sim, porque já estava no prontuário, né?
P/1 – Ah, você sabia.
R - É, já estava, mas ali era uma outra forma dela se expressar. Então, vários...
P/1 – Fala um assunto entre você e ela.
R - Quando você é muito de verdade dentro da cadeia, ela já sabe que o que ela vai falar, ela pode fazer... quando você está numa instituição total, cadeia, hospital etc, você responde aquilo que te pergunta, porque você está querendo ou ‘jumbo’, ou a visita...
P/1 – O que é ‘jumbo’?
R - É a comida que o familiar te traz, ou um dinheiro. Você... mesmo as pessoas em situação de rua respondem pra você o que você quer, pra ela ganhar a marmita. Agora, quando você é próximo, quando você tem uma outra relação, você escuta de outra forma a conversa, porque o relatório eu posso colocar ali, formalmente, mas a conversa, quando eu fecho aquele relatório e já pego uma proximidade, que ela já sabe que eu posso ser próxima dela, não para conseguir qualquer outra coisa, mas simplesmente porque eu quero falar e eu sei que você vai me ajudar em alguma coisa, de pensamento, elas me chamavam. Por isso que eu fui começar a ser chamada de pessoa que ‘passa a mão na cabeça’ delas, porque elas me chamavam pra conversar. Elas tinham necessidade de falar comigo: “Não, você é o máximo”. Não, porque eu ouvia. (risos) Pouca gente ouve nesse mundo, então eu ouvia. Aí ela vinha e falava das histórias dela o que ela queria dizer, que era pra fora do relatório, entendeu o que eu estou querendo dizer? Porque quando a gente é de verdade, mesmo na rua, com as pessoas, as pessoas sabem que o que você tem pra dar é pra além da marmita. Isso é uma relação que você faz com as pessoas.
P/1 - Você pode contar alguma história que tenha te marcado?
R - Essa mulher que tinha questão, ela era pra estar onde a gente faz trabalho lá hoje, que era pra ser paciente de um sistema de custódia psiquiátrico. Ela estava num lugar errado. Que ela veio contar a história de que tirou os dois olhos da mulher que traiu, que foi amante do marido dela, tirou os dois olhos com a mão e colocou no estômago dela. Era assim a história. Aí a gente já não sabia mais se ela fazia isso porque era um jeito agressivo de mostrar que ela fazia isso, ou se de fato isso tinha acontecido. Para mim pouco importava. Tanto que eu chegava para ela, eu lembro quem era ela, o cabelo dela, o jeito dela. Eu escutava meio assim, porque parecia muito que ela queria chocar. Estava no prontuário, estava lá. Estava nos autos dela, estava lá. Tanto que eu fui ver depois. Tanto que ela fechou e eu falei: “Tá, você já contou isso para todo mundo. Por que você está querendo que eu saiba de novo?” Aí ela via que... “É pra ter medo de você? Não tenho o menor medo” “Porque eu vi que você não deixou a moça aqui dentro, porque você é o do sistema penitenciário”. Falei: “Não, não deixei”. Eu lembro de eu - ali naquele momento, eu era muito nova, né? - ‘sacando’ qual era o processo com as pessoas, era ouvir. O que você fez? ‘Foda-se’, estou nem aí pro que você fez. Eu estou muito interessada em saber quem é você aqui, agora, como que você está. Aí ficava... ali eu comecei a perceber que o que importa é aqui. O que a pessoa fez... tanto que eu tenho convívio com pessoas... no meu aniversário a gente vai chamar as pessoas que vão servir na minha festa, são pessoas egressas do sistema penitenciário, que se chama Responsa Pro, que eles pegam essas pessoas para colocar no mercado de trabalho. É isso que eu estou interessada, não estou interessada no que você fez. Agora, se você quiser contar, eu também posso contar o que eu fiz na vida, você o que você fez na vida. Aí a gente aprende um pouco a ter essa relação, que é uma relação outra, né? Aí elas ficavam - eu lembro muito disso na sala, quando eu voltava, depois de uma entrevista, elas nem olhavam para a minha cara - as assistentes sociais, porque normalmente elas pegavam essa conversa em dez minutos, eu ficava lá uns quarenta minutos, porque a pessoa estava conversando. E eu era muito recriminada na penitenciária, de ouvir. Eu falei: “Eu não estou aqui... se é certo ou errado, ela já está sendo julgada pelo crime que ela fez. Não sou eu como assistente social, que vou... Está certo 121 homicídio; está certo 171. Eu pouco me importo pelo crime. Sei do crime, a tipificação, porque eu trabalho nesse sistema, você tem que entender o que acontece. Código 12, 16 etc, mas eu não acho que a pessoa é um código”. Ela pode ser... que as assistentes sociais chamavam a pessoa de 12, 16, 121. “Pessoal, elas têm nome” “Ah, mas você chegou agora” “Tudo bem, eu cheguei agora, mas elas têm nome”. Então, acho que ali eu fui já mostrando pra mim mesma qual era a história de que eu ia começar a olhar pras pessoas.
P/1 - Lá você foi enquanto estágio ou você já era formada?
R - Estagiária e depois eu fiz um trabalho lá como assistente social e agora como mãe de santo. E como assistente social a gente é chamada também para fazer grupos com o pessoal do sistema penitenciário de saúde, ‘vira e mexe’ a gente faz, ‘vira e mexe’. Eu amo, amo.
P/1 - E aí, depois desse estágio, quando você foi... o seu trabalho com a Aldaíza Sposati foi o primeiro emprego?
R - Não, meu primeiro emprego foi como palhaça. (risos) Eu fazia festa infantil. Eu comprei meu primeiro Fusca fazendo festa infantil, como palhaça. E a gente fazia uma história, (risos) eu e um amigo, Celso, que era uma construção do palhaço, que a gente tinha fantasia, tinha tudo, só que a gente fazia com que as crianças, estimulasse as crianças a fazer a gente, montar a gente como palhaço. Tinha muitas crianças, tem até hoje, que têm medo de palhaço que já vem pronto, então a gente mostrava pra elas a gente, como que era, então elas montavam a peruca, isso no meio da festa, no começo da festa e depois a gente ficava fazendo palhaçada ali. E o Arqui, que tinha uma mãe que montou um buffet, convidou a gente pra ser os palhaços fixos. Então eu fazia festa, quinta-feira, sexta-feira, sábado e domingo, duas, três festas, e eu ganhava um dinheirão, pra quem tinha, sei lá, era quase dezoito, porque eu lembro que o Fusca foi o primeiro carro que eu comprei, fazendo palhaçada. Tanto que eu lembro que meu pai sempre desconfiou das coisas que eu queria fazer. Eu falava: “Estou a fim de comprar”. Eu tenho um caderno que está escrito tudo lá, do Maria Mole. A Debora, que é a minha amiga, que faz os logos todos dos meus projetos, até hoje, fez da Maria Mole. Eu tinha dezesseis, dezessete anos. Chama Maria Mole Festas Infantis. Eu lembro que estava o preço da fantasia 250 CZ$. Recentemente a gente foi ver esse negócio, está tudo escrito. É tão legal registrar as coisas, gente! Isso é importantíssimo. 250... Eu falo pro meu pai: “Pai, empresta pra mim 250 ______, que é pra comprar ali na 25 de Março o tecido”, que era tafetá, sei lá eu o que era, pra costureira fazer. Nada a ver. Meu pai assim: “Pfff”. Minha mãe: “Vai, Eliseu, deixa ela”. Minha mãe (risos) sempre falava: “Deixa ela, depois isso aí não sei o que, não vai nem em nada. Deixa”. Tanto que foi, eu trabalhei anos como palhaça, anos. Comprei um Fusquinha. E ali foi meu primeiro ‘trampo’. De ‘grana’, assim, foi meu primeiro ‘trampo’.
P/1 - Como que era trabalhar como palhaço?
R - É maravilhoso. É muito bom. Criançada é muito bom. Só tem umas crianças que é meio da ‘pá virada’, que põem a mão, o guache dentro do olho. Mas assim, (risos) nossa, saía tudo ‘ferrada’. O Celso bebia e fumava minha maconha, tinha piscina de bolinha, o ‘filho de uma puta’ se escondia dentro das bolinhas e eu ficava brincando com as crianças malucas. Eu: “Pode sair daí, Celso! ‘Filho da puta’, ‘cara’! Vá trabalhar”, porque ele ganhava a mesma coisa que eu. Ganhava a mesma coisa, só que ele ficava lá escondido, na piscina de bolinha, fumado. “Pode, sai daí”. ‘Foda’! Mas era divertidíssimo. Era bom, era... e foi uma independência de saber que eu tinha meu dinheiro, de conquistar as coisas e fazer uma coisa que é boa. As pessoas riem. Você trabalhar com coisa de rir é bom demais. Faz bem. Muito, muito bom. Eu adorei, foi meu primeiro ‘trampo’. Com a Aldaíza foi já no terceiro ano da faculdade, eu sempre amei a Aldaíza. Eu sempre admirei demais essa mulher. E aí a gente fez a campanha dela, trabalhei na campanha, trabalhei no gabinete. Eu a acho... tanto que ela não está na política, ela não desistiu, mas ela está com o instituto, está ligada às coisas do Lula aí, ela é maravilhosa. E ali eu trabalhei ‘pesado’ também, foi muito bom trabalhar em campanha política.
P/1 - O que você fazia na campanha?
R - Ia com ela em todos os lugares, pra fazer... e ela era muito do pé no barro, então ia em todos os lugares, na ‘cochinchina’, pra mostrar qual era a plataforma política dela. Então, conversar com a população mais necessitada, que não tinha casa, qual seria o pensamento que a Aldaíza estava querendo chegar. Ia conversando com a população o tempo todo.
P/1 - Com a população em situação de rua?
R - Não. Com a população em geral, que eram cidadãos que poderiam votar na Aldaíza. Então, ela tinha já pessoas ligadas na Habitação, que a conhecia e tudo mais e todas as pessoas que ela chamou pra conseguir votos.
P/1 - Mas ela chegou a ser secretária do...
R - Da SMADS, que hoje é a SMADS. Chegou, era SAS, na época. Tanto que a gente fez um trabalhão com ela, de psicodrama, a Marisa Greb, Daniela e eu, pelo Relacionais, sempre foi.
P/1 - E depois, durante esse período, você continuou tendo essa relação com a espiritualidade? O que aconteceu? Você teve mais chamados?
R – Sim. Os chamados, em si, são marcantes, mas já estava dentro de mim uma luz, uma necessidade de ter um foco grande na espiritualidade. Eu trabalhei no Arqui, numa produtora que o Arqui abriu, durante anos, que a gente fazia programas para Rede Vida de televisão. Ali eu comecei a trabalhar em TV, que foi um ‘trampo’ que eu tive, depois eu fui trabalhar em TV profissional, na Bandeirantes, no Futura, na Record, e aí eu dirigi o programa A Fazenda. Eu fiz tudo isso na vida, mas fui e aprendi a partir do Arqui. No Arqui a gente foi entrevistar a Tia Dag, da Casa do Zezinho. Eu apresentava um programa que chamava Um Outro Mundo é Possível. A entrevistei, papapi papapa, corta a cena, acabou. Um amigo meu, depois de uma semana, falou: “Van, eu estou com uma vontade de ir num terreiro de umbanda, que faz tempo que eu não vou, você quer ir?” Eu: “Nunca fui, quero”. Fui. Onde era o endereço? A Tia Dag, minha mãe de santo hoje. Aí eu fui. Nunca mais saí.
P/1 - A Tia Dag é mãe de santo?
R - É. Minha mãe de santo. Aí eu pisei lá, depois que eu fiz a entrevista com ela, fui na assistência tomar o passe. Ela faz uma preleção, uma conversa com todo mundo, ela parou e falou: “O que você está fazendo aí?” (risos) Eu falei: “Eu que te pergunto, o que você está fazendo aí?” Aí, depois de um tempão frequentando lá, fui chamada para o desenvolvimento, desenvolvimento fiz todo, minha iniciação inteira lá. E é a minha mãe de santo até hoje, me dou muito bem com ela, mesmo. Fiquei lá 23 anos.
P/1 - Mas você foi lá para conhecer?
R - É.
P/1 - E aí como é que ‘rolou’ de você ter... de te chamarem pra desenvolver?
R - É que, normalmente, em terreiros de umbanda você vai frequentando, até você ser chamado pra fazer parte do desenvolvimento. Cada casa é uma casa.
P/1 - Mas quando você é chamada é porque alguém sente que você tem que desenvolver, ou todo mundo pode desenvolver?
R - Todo mundo pode desenvolver, mas cada casa tem uma metodologia. Ali a própria entidade que chama você pra entrar dentro pro desenvolvimento.
P/1 - Como que foi esse chamado de entidade?
R - Ah, já estava há uns três anos e meio e me convidaram: “Você quer desenvolver sua mediunidade?” Porque já estava desenvolvendo ali, na fila do passe, já estava incorporando. Ah, eu falei: “Quero, como é?” Aí eu comecei a frequentar.
P/1 - Quando foi, como foi ser incorporada?
R - Foi lindo. Lembro até hoje da primeira incorporação.
P/1 – Como foi?
R - Foi o poder que a gente tem do que a gente é. A certeza que a gente é poderoso. Foi lindo de sentir que: “Eita, o que eu estou falando? O que eu estou mexendo? Quem que está fazendo isso em mim?” Hoje é muito mais orgânico o que eu faço, porque faz muito tempo que eu faço. Mas o primeiro é ahhhhh, embasbacante. Fala: “‘Caraca’, o que é isso aqui? Deus existe dentro de mim”. É lindo.
P/1 - Mas é uma entidade que entra em você ou é você falando, você?
R - Não entra. Somos nós e a absorção que a gente tem da espiritualidade na gente. A gente fala até em acoplar a energia, né? Porque dois corpos não ocupam o mesmo lugar, né? A gente tem uma vibração energética, que aí a gente tem uma conexão que faz com que a gente tenha essa comunicação. Só fazendo, pra saber.
P/1 - E era umbanda?
R - Ela é umbanda. Minha mãe de santo é umbanda.
P/1 - E você sabia já, e você foi aprendendo essa diferença, por exemplo, de umbanda, candomblé?
R - Não, é que já faz 25 anos que eu estou nessa ‘estrada’. Tanto que eu sou de Ifá, eu fui fazer outras iniciações, fui iniciada em Exu, aí eu fui fazendo várias outras iniciações paralelas, no decorrer dessa minha história espiritual.
P/1 - Voltando só um pouco lá atrás, você falou assim: “Meus pais eram, ou sua mãe, muito católicos e depois foram pro Daime. Como foi isso? Quantos anos você tinha?
R - Eu fui com eles. O meu irmão mais velho já frequentava o Daime, só que ele não falava nada pra ninguém etc, tarara e um dia ele falou pra mim: “Você está a fim de ir?” Eu falei: “Estou sem fazer nada, posso ir. Você falou pro pai e pra mãe?” “Não”. Eu falei: “Por que não falou?” “Ah, vou falar, então”. Aí fui eu, uma amiga minha, a Priscila, meu pai e minha mãe e o Ju, que já estava no Daime há um tempo. Eu fui a primeira vez, passei por essa experiência e meus pais nunca mais saíram. Faz já vinte e tantos anos.
P/1 - Qual foi a experiência que você teve? Como foi?
R – Tomei o Daime. Aí eu estava no ritual. Aí eu senti a vibração forte do chá, das emanações. Eu tive várias ‘mirações’. É muito forte, viu? É lindo de ver o ritual, a conexão, os cânticos, é bonito.
P/1 - Você não teve medo, bad trip?
R - Não, vomitei e caguei o tempo todo, é muito forte. Não é a minha medicina, menina do céu, não é a minha medicina. É para os fortes, Daime é para os fortes, assim. E você abre as portas do inconsciente, vai vindo os guias e pen, pen, pen, é intenso, o negócio é pros fortes mesmo, porrada, assim. A minha mãe, todas as vezes que ela tomou, nunca vomitou. Eu falei: “Mãe, eu quase me esfacelei”. Minha mãe era...
P/1 - E seu pai também tomava?
R - Toma até hoje. Meu irmão é um padrinho de Daime. Meu pai toma até hoje, passa meio mal, até hoje. (risos) Minha mãe nunca... e ficava ali, bem forte, ela puxava bem os cânticos, assim, ela era bem da medicina, assim, minha mãe, bem bruxa, bem. Família ‘maluca’. E o meu irmão também, todos eles são do Daime, eu não. Sempre quando estava indo pra direita, minha família vai pra esquerda. Sempre. Sempre, a qualquer momento. E a gente é muito próximo, tem muito essa perspectiva espiritual, muito parecida. Mas é um... sempre. É incrível perceber isso. Tanto que eu achava, quando eu era pequena, que eu era adotiva, de tão diferente que sou. Mas está na cara que não é, porque eu sou a cara do meu pai. (risos)
P/1 - Vanessa, e aí, quando você acabou a faculdade, você tinha uma ideia, você... como foi essa relação com a Dani, já começou lá na faculdade, de fazer coisa junto?
R - Já, porque a gente foi nesse congresso juntas, a gente começou já no Centro Acadêmico a fazer coisas muito juntas, a gente já entregava marmita na rua, a gente já fazia muita coisa junto. Só que no paralelo com o Serviço Social eu trabalhava em TV, então o Serviço Social e o psicodrama, que eu já também comecei a fazer psicodrama com a mãe da Dani, a Marisa, a minha lindeza. No paralelo eu já trabalhava em TV, era o que dava mais ‘grana’ pra mim. Então, muitas coisas do Serviço Social, do psicodrama, eu fui fazendo bem pouco, bem no paralelo, porque quem me dava dinheiro era a televisão. Até eu conseguir esse voo, pra conseguir me subsistir com a ‘grana’ do Serviço Social e do psicodrama, demorou um tempo.
P/1 – Mas vem cá, você ia para televisão como entrevistadora, ou você era roteirista?
R - Dirigi, fiz roteiro, trabalhei com o Otávio Mesquita, trabalhei com vários ‘caras’ de televisão como roteirista, assistente de direção e diretora e produtora durante muitos anos, quase vinte anos da minha vida. Grandes amigos meus são de TV, que vão lá no terreiro hoje em dia, é muito interessante.
P/1 - Quais foram os programas que você participou?
R - Jura? A Fazenda, fiz A Fazenda, que é agora esse coqueluche desse reality. Fiz Otávio Mesquita, vários programas dele, que eu não lembro o nome. Estou tentando lembrar, vários. Dirigi as externas do Otávio Mesquita, fiz produção, fiz roteiro, muito roteiro. Fiz da Daniela Cicarelli. Vários outros que não estou lembrando, hein? Meu Deus!
P/1 - Qual foi o que mais você aprendeu, te desenvolveu?
R - Eu tinha muita crise com televisão aberta, por causa do conteúdo. Então eu tinha quase vergonha de A Fazenda. Aprendi bastante, eu acho que é interessante o manejo da televisão, fazer televisão, mas o fim dela me deixava muito em crise. Eu comecei muito fazendo televisão educativa, fazia bastante coisa no Futura, que isso me preenchia, era bom, bem bacana, mas quando eu fui fazer... eu fiz Silvia Poppovic. O que mais me ‘coisou’ na vida pra escutar os outros foi a Poppovic, como eu esqueci? Falei com ela recentemente, tanto que ela colocou nos stories o Banho pra Geral, que eu falei pra ela: “Você não vai lembrar de mim, provavelmente, mas eu fui sua produtora”. A minha primeira vez que eu fiz TV profissional foi na Poppovic, tenho amigas até hoje de lá, que ela fazia ‘na raça’, sem internet, sem nada, histórias extremamente íntimas sem ser barraco e ser muito instrutivo. E ela era muito classuda, pra chamar desde médicos muito legais pra conversar, até histórias, por exemplo: ‘saí do armário e eu era casado’, sem virar um ‘puta’ de um ‘barraco’. Então, a gente ia atrás dessas pessoas, sem internet. Era uma loucura, sem pagar cachê. Então, eu aprendi a fazer televisão, entendendo televisão, a escutar as pessoas, porque a gente tinha que fazer uma entrevista com as pessoas: “Qual é a sua história sobre essa história de você ter ‘saído do armário’? Me fala. A sua história tem que ‘parar de pé’, ela tem que ser de verdade. A gente não paga o cachê”. Então, essa história de escutar veio me permeando a vida inteira. E na Poppovic foi maravilhoso, porque era um programa muito sério e ali eu aprendi a ser produtora. Você precisa de uma girafa que canta em japonês Aleluia, tem que ir atrás. Então era isso que eu fazia. (risos) A gente ficava quinze mil horas trabalhando naquele lugar. Tinha um prédio do lado, que se chamava Champs-Élysées, ali no Morumbi, que eu olhava pra aquele... eu ficava horas ali, eu falei: “Meu Deus, eu não saio daqui nunca”. Olhava pro lado. Tinha uma cozinheira cozinhando, que era um prédio muito rico. Eu tinha um crachá, um cartaz que falava: “Me leva aí. (risos) Me leva pra jantar”. A gente não jantava, a gente não fazia nada. Eu falei: “Meu Deus, eu vou morrer esturricada nesse lugar”. Mas foi um lugar que eu aprendi muito. Depois eu fiz muita TV, até eu conseguir ir pro psicodrama, pro Serviço Social, e pro Relacionais.
P/1 – No psicodrama, que você contou essa história da televisão, aí voltando, como é que foi essa história do psicodrama, que você fazia com a Marisa Greb? Você fazia enquanto ela, a sua terapeuta, ou foi outro tipo de encontro?
R - Não, eu fiz o curso de especialização em psicodrama com ela. Aí depois eu fiquei muito próxima.
P/1 - Onde que ela dava esse curso?
R - Na Rua Tefé, ali na Pompeia... Perdizes.
P/1 - Ela te levou? A Dani que te levou?
R - Não, a Dani, na faculdade de Serviço Social, a gente conversando sobre técnicas, a gente tinha disciplina de psicologia e uma das coisas também, a gente começou a falar sobre psicodrama, aí ela falou: “Minha mãe é psicodramatista”. Ela aproximou a Marisa de todo mundo, eu amei a Marisa desde que eu conheci e fui fazer o curso de especialização e fiquei muito, muito, muito, muito, muito próxima, depois ela foi minha terapeuta, eu trabalhei com ela, fizemos psicodrama da cidade, aí virou o amor da minha vida.
P/1 - Como foi esse encontro com o psicodrama? Como é o psicodrama?
R - Eu já fazia algumas coisas na escola, com grupos de jovens, que a gente tinha de grupo de vivência, de dramatização, de terapêutica. Eu já tinha essa proximidade, a gente fazia teatro, eu já gostava muito disso. Quando trouxe essa história do psicodrama para a minha vida, ela foi um... amalgamou, assim, fez: “Nossa, como tem a ver isso comigo”. Da história de se outrar. Então, psicodrama você também tem que ouvir, pra você se colocar no lugar. Então, tem muitas coisas que fazem parte do meu ser, assim, da minha forma de existência, de olhar os outros. Eu gosto muito dessa alteridade, então fez muito sentido pra mim o curso, fez muito sentido trabalhar com isso, como é até hoje, com os grupos terapêuticos que a gente faz, eu gosto demais.
P/1 - Como é a Marisa Greb, e como foi esse encontro com ela, que te encantou?
R - Ela faz parte da minha cura, que eu tive, em relação a alguns processos com a minha família. Porque o problema não é a família, o problema não é o outro, o problema é a gente, os outros em nós. Então, tanto que eu tenho três irmãos, meus três irmãos tiveram pais e mães diferentes, porque a gente tem a percepção das pessoas diferentemente. Então, quando eu falo da minha família... lógico, se você tem uma família que é extremamente violenta, tem casos de feminicídio etc, isso é coisa de polícia. O que eu estou falando são relações familiares. Então, eu não entendo que, hoje, mais que o meu pai é um problema, a minha mãe foi um problema, a questão é a minha relação com eles, que fez com que eu tivesse algumas questões para ajustar, que aí eu não conseguia. E coisas muito profundas dentro de mim, que eu precisei curar. O psicodrama, através da Marisa Greb, da forma que ela me acolheu. Que a Daniela, como ego auxiliar, em cenas muito específicas da minha vida, que eu estava muito excluída de mim mesma, do processo de acolhimento, de não me sentir no mundo, de quem sou eu. Elas fazem essa cura com falas, com segurança, com amor, e me trazem de volta. Elas trouxeram a Vanessa de volta. A Daniela e a Marisa me trouxeram o que eu sou, a minha luz, quem eu sou, de fato. Eu vir falar aqui, hoje, no Museu da Pessoa, eu falava: “Mas o que eu vou falar?” Ela falava pra mim: “Você vai falar desde que você foi lá como palhaça, da sua vida de você ter se encontrado, da sua forma de ouvir os outros”. Ela me deu o roteiro inteiro.
P/1 - Van, mas deixa eu te falar: a Dani fazia psicodrama ou essa descoberta vocês fizeram juntas com a Marisa? Ou a Dani já tinha essa formação?
R - Não, ela não tinha formação, ela fez um... ela já estava fazendo a formação antes que eu fiz, mas ela já estava nesse ‘babado’ todo por causa da Marisa, já ajudava a Marisa em algumas questões, mas da formação em si a gente se juntou e fizemos um processo bem específico, da Marisa ensinando para a gente algumas coisas, de começar a atender uma pessoa com a gente, sem ser somente grupo, foi juntas que a gente aprendeu.
P/1 - Como que é a característica da Marisa?
R - Ela é perspicaz, ela olha para além de você, ela consegue entender o ‘lé com cré’. Ela consegue disparar em você coisas adormecidas sem... sem... sem ir para além, assim. Ela é continente. A Marisa é maravilhosa, assim, de entender filosoficamente e psicologicamente o que você está encalacrado e as suas soluções. Ela é uma ‘descobridora dos sete mares’. Ela é muito fenomenal.
P/1 - E aí vocês foram trabalhar juntas? É aí que nasce o Instituto de Políticas Relacionais?
R - É, aí nasce... ela já tinha muito envolvimento com as pessoas de setor público, ela era muito chamada para trabalhar em grupos de servidores, ela foi muito revolucionária, já juntou grupos de pessoas que trabalhavam como empregadas domésticas, como prostitutas, então ela já fazia muita história, então ela tinha... ela era um polvo, assim, de muita criatividade, muito trabalho terapêutico com grupos. E aí ela chama a gente pra fazer, através da Marta Suplicy, chegou pra ela quando ela foi ser prefeita, aquela Marta Suplicy, (risos) chegou pra Marisa - agora parece que ela está retornando ao que ela era (risos) - e falou: “Vamos fazer um psicodrama público, ali no Pacaembu?” Aí a Marisa falou assim: “Lá no Pacaembu não dá, porque é muita gente e talvez não dê o efeito. Mas pela cidade a gente pode fazer”. Aí a gente ‘bolou’ juntas essa história do que você pode fazer, para ter uma feliz cidade, em 2001, em 170 lugares diferentes da cidade, no mesmo horário, meio-dia. Biblioteca, Praça da Sé, em Marsilac, em Parelheiros, no Morumbi, em tudo quanto é canto, todas as bibliotecas possíveis de São Paulo, a gente juntou as pessoas, 700 psicodramatistas voluntários nessa época, nesse dia, pra perguntar o que você pode fazer pra ter uma feliz cidade, ter uma radiografia. Isso é uma ‘escutatória’, né, que nem diz Rubem Alves, do que você pode fazer pra ter uma feliz cidade, né? E ali a gente começou a entender desse nosso alcance com os psicodramatistas, com a cidade, com a polis, com o poder público, de falar: “Parece que aqui tem uma história que a gente tem que aprofundar”. E a gente foi aprofundando e aí, depois de três anos, surge formalmente - ali foi a gênese - o Instituto de Políticas Relacionais. E assim a gente caminha até hoje.
P/1 – O que é Instituto de Políticas Relacionais, esse nome?
R - É uma OSCIP, uma organização social, uma OS, que a gente trabalha com essas questões que tem muito a ver com os direitos humanos, com cidadania. Agora a gente está muito focado com as questões indígenas, mas a gente faz também muitos trabalhos com servidores públicos, trabalhando essa questão que muitas vezes as pessoas falam dos servidores como vagabundos, e na verdade a gente sabe, com casos da história: os servidores foram peças-chave para identificação de corrupção, então a gente generalizar isso, essa proximidade com a privatização, como querem privatizar água, querem privatizar o mundo e querem tirar os servidores como peças-chaves significativas das pessoas. E a gente trabalhando com eles sabe que, passa ano, passa gestão, volta gestão, quem mantém a história acontecendo são os servidores. Então, com essa proximidade, a gente aprende muito e nós somos bastante chamados também para esse tipo de trabalho. Tem muito a ver com cidadania, ouvir a população, ouvir a população sendo grupo X, grupo Y. E a gente tem todos esses ‘braços’ como apoiador, como Relacionais, do Banho Pra Geral, Selo da Rua, Rádio da Rua, e agora Vela Social, para a gente poder expandir essa questão de estar em contato com essas pessoas com vulnerabilidade social, com os talentos diversos e tudo mais.
P/1 - Quando nasce essa questão de trabalhar o Banho Pra Geral?
R - Nasce da minha história com as pessoas em situação de rua, que eu sempre tive muito perto, desde pequena e de escutá-los. A gente começou a fazer um café da manhã na Casa de Oração, que é um prédio público doado pelo Lula e pelo Cardeal Arns, e que o Padre Júlio, por participar da Pastoral da Rua, participa ali, frequenta e faz muitas atividades ali. Eu comecei a fazer um trabalho lá... eu sempre fui fã do Padre Júlio, desde muito tempo. Tive proximidades desde menina, muito fã mesmo. Desde a Casa Vida, com as crianças com HIV. Então eu sempre tive, por causa da coisa da Rede Vida, o convidava muito pra fazer entrevista, muita proximidade mesmo. E, com essa história, lá estava precisando de uma... eu fui conversar com ele e ele falou assim: “Fala lá com a Ana do que ela está precisando”, porque eu estava querendo fazer: “Padre Júlio, eu queria fazer uma história com pessoas em situação de rua, o que você acha que seria legal?” Primeiro ele falou pra mim uma casa com cuidados, de pessoas convalescentes, porque as pessoas vão pro hospital público, na hora que elas saem do hospital público, elas ficam na rua. Ou seja: elas ficam doentes depois de dois dias. Então, um lugar pra essas pessoas se convalescerem seria maravilhoso. Eu vou ficar com isso aqui registrado. “Mas vai lá falar com a Ana”. A Ana Maria é o braço direito dele, eu: “Ana, assim, assim, ‘assado’” “Ah, ele falou de você, tarará, tarará. Ó, pra começar uma coisa simples, quem sabe? Uma coisa simples, que é maravilhoso”. A gente juntou as nossas ideias, a gente começou a fazer um café da manhã para as pessoas em situação de rua, que elas frequentam lá, tem uma missa dominical e depois, às vezes faltava recurso de oferecer um brunch, porque é o meio almoço, meio esse nome. É um café da manhã, na verdade é uma festa. E aqui a gente estava precisando da gente fazer festa para eles, para cantar parabéns. Olha que coisa simples, que foi revolucionário durante três anos e meio. A gente juntou as vontades e foi crescendo. Antes era meu pai, minha mãe, eu, Rute, algumas duas amigas, três. E a gente fazia pão, salsicha, presunto, ovo, leite, um arsenal de coisas. Um bolo, brigadeiro, dadarara. Quem faz aniversário hoje? Tal, tal, tal, tal. Cantar parabéns, as pessoas choravam: “Eu esqueci o que é meu aniversário. Eu esqueci o que é minha vida”. A gente pedia um depoimento: “Fala pra mim do seu dia hoje” “Ah, é muito bom me parabenizar, porque eu estou vivo. Muito obrigado”. As pessoas ficavam extremamente sensíveis com uma coisa que a gente fala: “Como a gente tem que se colocar no lugar do outro!” A gente faz isso três anos e meio. Aí a gente, no meio disso tudo, fez o Bloco Unidos da Rua, porque eles: “Seria legal uma coisa aí de percussão, tarará, tereren”. A gente bolou o bloco, saímos três anos com o Bloco do Unidos da Rua, que é maravilhoso, que é uma forma do invisível se tornar visível, e no carnaval todo mundo é igual. A gente está pra retomar isso aí, que é muita coisa que a gente está fazendo.
P/1 - Onde saía o bloco?
R - Foi na frente do Rancho Nordestino, na Bela Vista, durante três anos, que a gente alugou um carro de som, o mais recente que a gente fez foi antes da pandemia, que pra tirar essa ‘galera’ de cima do carro de som foi um ‘auê’, que eu falava pro ‘cara’ que eu aluguei: “Ó, espera mais uma hora, que a gente não tira nunca esses ‘caras’, porque eles amaram”, porque era a possibilidade de: “Estou aqui, eu existo”, tocando e é muito bom, é muito bom. Vou retomar esse ‘trem’ aí. Só que, no meio desse processo, o que eu ouvia deles? Porque eu conversava muito com eles, eu converso muito com eles, eu aprendo muito com eles. Pra mim, quando eles me tratam... eu vou na rua, me chamam de mãe, me dão beijo, falo: “ ‘Puta’, eu consegui meu mundo”. Ser legitimada por esse povo, pra mim, é um absurdo, não é ser legitimada por qualquer pessoa, é pessoas que me ouvem, que falam: “Aí, você veio aí”. Não, eu que te falo que você está aqui. Que eu falo pra eles: “Mantenham-se vivos”. Assim, eu tenho um amor, assim, por várias histórias, são seres humanos iguais, assim, mas tem...
P/1 - O que você conversa?
R - Converso sobre a vida, sobre essa história do ________ online, quem me falou foram eles. Eu conheço coisas que eu não conheceria nunca. (risos) São pessoas que me dão a ‘chave’ de um conhecimento que eu não teria nunca. Nunca, são eles que me falam. É ‘muito louco’. Aí eles falavam pra mim: “Não tem um copo d'água na rua. As pessoas… a gente precisa pedir pelo amor de Deus pra um copo d'água. E a gente não consegue tomar banho. E no albergue é um filete de água. Quando a gente não está lá, não tem onde tomar banho”. Aí fecharam todos os chafarizes - era na época do Dória, acho. Acho que antes, até - e eu plim. Banho, água, pleim. Aí aquilo, pom. Tempo deles me falarem: “‘Porra’, mas não conseguem...”. Não é na pandemia que a gente está falando, eu falo muito antes. Agora é a mesma história, que agora estão falando no restaurante, que agora vai ter que ser obrigatório dar água, como ‘na gringa’ é, né? Na Europa, pre, pre, pre, pre, pre. E os ‘caras’, blá, blá, céu, sei lá, esqueci o nome da associação, blá, blá, blá, de restaurante, bló, bló, bló não estão querendo, porque o custo, porque o impacto... mas os ‘caras’ não conseguem um copo de água. Aquilo me atormentou. Não consegue tomar um banho. Mas me atormentou dias. Fui atrás. Aí eu falei: “Dani, posso te confessar um negócio?” (risos) É assim que minhas histórias começam. Assim, assim, ‘assado’, eu conheci um ‘cara’ em Curitiba, que eu fui pesquisar. Fui até Curitiba, coisa mais linda. Esqueci o nome dele, é um ‘puta cara’ próximo meu, que fez a carreta em Curitiba, fui até lá pra conhecer a carreta. Ele me deu todas as dicas, me deu etc. “Dani, assim, assim, ‘assado’” “ ‘Bora’, ‘bora’”. Aí a gente fez a carreta. Aí esses voluntários que a gente já tinha aprendido desses três anos e meio, começam como voluntários: meu pai, minha mãe, todo mundo aí, já era trinta e tantas pessoas. Hoje são cem voluntários. Desde dezembro de 2019 que a gente está fazendo a carreta. E aí a gente começa a fazer, o Padre Júlio faz o primeiro banho, a pessoa, a carreta levou sorvete, levou comida lá no primeiro banho, foi maravilhoso, maravilhoso. Padre Júlio é vida. E aí a gente está fazendo.
P/1 - Como é que foi adquirir a carreta?
R - O quê? A forma?
P/1 – É.
R – Pra construir?
P/1 – É.
R - Então, esse ‘cara’ de Curitiba que deu todas as dicas.
P/1 - Eu sei, mas ele veio aqui, vocês investiram?
R - O Relacionais deu dinheiro, por isso que é o apoiador maior e agora a gente já faz três anos de uma... pra retornar essa ‘grana’, a gente está fazendo Catarse, o crowdfunding, para as pessoas ajudarem a manter também o projeto, mas o Relacionais é que deu o dinheiro maior.
P/1 - E como é essa carreta?
R - É uma carreta com dois chuveiros, uma casa de máquinas com 440 litros, com aquecedor, um chuveiro maravilhoso com uma parte seca, aí tem um box a parte do chuveiro e é puxada por um carro, que a gente também recebeu de doação, recentemente. A gente começou a puxar por uma Kombi maluca, que o Leandro ‘doido’, (risos) que puxava aquilo não sei como que a gente sobrevivia, (risos) porque caía o parafuso da Kombi e a carreta atrás, falei: “Meu Deus, como dá certo, né?” No começo a gente pode perceber, se a gente vai, vai, as coisas vão, as coisas vão, vai meio torto, mas vai, e a coisa é tão pro bem, é tanta gente nessa energia boa que vai puxando uma carreta. (risos) Aí depois a gente foi pra um carro emprestado pelo Leandro, um Sandero pequenininho, um Clio 1.0, bebebe. Aí depois agora a gente ganhou um Corolla. Nem é o carro adequado, mas é um baita carro, é automático, os ‘caras’ que dirigem falam: “Nossa, é um supersônico”, e estamos levando a carreta. Amanhã, que é sábado, dia sete de outubro, a gente vai levar pra Aricanduva, no território, primeira vez que a gente vai levar, porque a gente vai em vários territórios. A gente chega através de lideranças que já estão nesse território. Por exemplo: Padre Júlio, no Jardim Rincão, que as pessoas moram num córrego podre, que as pessoas não chegam lá, o Poder Público mal chega lá. É um grupo católico que está lá, que chama Emaús, que é o Hernandes que é a liderança, que entrega, há 22 anos, almoço e jantar para essas pessoas. Olha isso! Padre Júlio falou para mim: “Vai lá no Jardim Rincão dar banho”. Faz dois anos que a gente está indo, porque ninguém chega lá. Então a gente gosta de chegar quando as pessoas já estão nesse território, conhecendo as pessoas. E, mesmo assim, a gente chega, as pessoas já ficam meio assim, até a gente se conhecer, quem somos nós, conhecer por nome, conversar. Lá no Jardim Rincão está indo pro prelo agora o livro do Jaci, que mora no Madeirite, que escreveu um livro que chama O Psicopata, que o prefácio é feito pelo Padre Júlio, que a gente vai lançar em dezembro. Então, a gente vai conhecendo as pessoas, os seus talentos, e esse ‘cara’ é um baita escritor, eu o encontrei no meio de uma ‘zona’ ali, sujo pra caramba, com um livro, lendo um livro, eu falei: “Gostei desse ‘cara’ aí, vou conversar com ele”. Aí conversando, conversando, falei: “Você gosta de ler?” e ele: “Mas eu escrevo também” “Você escreve também?” E assim a gente foi se conhecendo, escreveu um livro, que é essa ficção aí, que a gente vai e está num outro território, que é no Parque Novo Mundo, fluxo de drogas. Que aí às vezes fala: “Ah, fluxo de drogas”. Tem tanta gente boa, você fala: “‘Caraca’”. (risos) Mas aí você tem que ultrapassar, né? Você tem que ter um além, pra conhecer as pessoas. Aí a Andréa (01:46:49) está escrevendo o livro dela também, que vai ser outro... o que é isso? Quem são as pessoas que estão ali? É, Banho pra Geral.
P/1 - Vanessa, você contou dessa abordagem e como é esse processo de entrar na carreta e tomar o banho?
R - É simples.
P/1 - Mas vocês falam pras pessoas: “Aqui tem isso, vem tomar um banho?”
R - Sim. Elas já sabem, já. Já é muito explícito, porque a gente trabalha com as pessoas no território, elas já avisam que o banho vai chegar. Então, não há surpresa, a gente não chega colonizando ninguém: “Aê, vamos aí!” Já as pessoas são preparadas para tomar esse banho, entendeu?
P/1 - E tem um tempo, elas entram?
R - Tem, é um tempo que é um... para dar 32 banhos tem um tempo que é manual, que o voluntário faz. Primeiro, tira a roupa, - a pessoa lá está dentro, está dentro lá - a pessoa entrou no banheiro, fecha o box, vamos primeiro passar a primeira água, deixa um minuto e meio, a pessoa chua screc. Foi? Foi. Passa shampoo, sabonete, aí vai que nanana, aí tem a outra, se a pessoa precisa de mais uma, é mais uma. Mas é mais ou menos três minutos nas duas enxaguadas com água, pra cada um, pra fazer 32 banhos.
P/1 - E a roupa?
R - Aí a gente, antes disso, tem esse processo, que é uma tenda, com várias roupas que são doadas, que eles podem escolher que roupa é, que isso parece simples, mas não é porque, normalmente, quando você ganha de doação, é essa que tem, é essa que vai. Quando você pode escolher se é sarja, se é jeans, se é bermuda... qual é o seu estilo? Muitos têm uma dificuldade absurda naquele momento de: “Não sei”. Então, a gente vai estimulando essa coisa da autoestima, do gostar, do saber o que quer e tal: chinelo, tênis etc. Todo mundo sabe o que quer em dois segundos. Tem alguns que ficam... porque perdeu, né? E perde a fala. Tem o Cândido, que é o meu ‘amuleto’, que está na rua há muito tempo, ninguém conversa com o ‘cara’, ele não conversa com ninguém. Quando eu chego lá... não sei se vocês já assistiram o filme Enigma de Kaspar Hauser, que é um cara que nunca falou com ninguém, que fica... pfff, não se comunica, você perde, por que, né? Aí eu faço questão de toda semana eu encontro o Cândido, porque aí eu dou uma ‘grana’, dou uma roupa, e é meu ‘amuleto’ mesmo. O ‘cara’ que fez com que eu fosse fazer todas essas histórias de me entrar de ‘cabo a rabo’ pra estar perto de quem está na rua, foi o Cândido, que ele ficava perto da minha casa. O Cândido é o grande amor da minha vida. Perto da minha casa, com sete sacos de lixo, andando pra lá e pra cá. Eu chegava perto dele, ele não me falava um ai. ‘Puta merda’. Aí, quando ele conseguiu falar comigo, eu falava pra ele: “Você quer alguma coisa?” “Eu não preciso de nada”. Só me dava mensagens. “Não preciso de nada, a vida está ótima”. ‘Puta merda’! Aí eu voltava de novo. (risos) Depois de muito tempo ele: “Eu quero um café”. Aí a gente foi se conhecendo, foi conversando, hoje eu já sei mais da vida dele etc, mas foi o ‘cara’ que fez com que eu me disparasse para essa história. Então, ele me autorizou a estar nesse mundo das pessoas que estão em situação de calçada, na verdade. Foi ele que falou: “Estou abrindo a porta para você, você é nossa”. Então, assim que eu entendo espiritualmente, assim que eu entendo esse caminho, assim que eu entendo de ouvi-los, sempre peço licença, eu não chego chegando. Eu quero conhecer as pessoas, na verdade, quero conviver com elas. Tem gente ruim, gente boa, e tem... quando a gente mostra essas coisas, as pessoas tratam a gente sempre bem, né? Como se a gente fosse o suprassumo e não tem nada a ver, né? É uma convivência que a gente faz. Eu acho um absurdo eu estar bem e você não estar. Tem alguma coisa muito esquisita no mundo, que é chamado capitalismo, que isso tem que acabar, de fato, né? Essa é a podridão do nosso viver na existência, né? Não é possível que eu esteja bem e você não está. Essa é a ‘chave’ da história. E eu converso muito com eles, quando eu vou. Tanto que eu faço muita amizade, muito conhecimento mesmo das pessoas. E é isso, aí as pessoas escolhem a roupa, tem um kit, uma sacola maravilhosa, que uma pessoa maravilhosa, do Absolutamente Necessaire, com as suas costureiras, fazem pra gente desde o começo do projeto, um pouquinho depois, mas há muito tempo, já, uma sacola linda do Banho pra Geral, pra colocar lá tudo, prestobarba, tudo, condicionador, a gente põe álcool em gel, tem todo um kit de higiene pessoal e uma sacola pra que eles possam levar, colocar as coisas que eles queiram etc. Eles adoram essa sacola, é muito legal.
P/1 - Como foi o período da pandemia?
R - A gente não parou, a gente parou vinte dias. Eu só me recobrei do que a gente vai fazer, a gente ganhou o edital que era para a pandemia. Tinha que ir, porque a gente ganhou o edital. Mas, mesmo assim, a gente ficou vinte dias distribuindo comida para o Padre Júlio, porque ali foi um desaguador de vários, então a gente entregava muita coisa para o Padre Júlio, na Casa de Oração, para a Ana Maria. Aí, em vinte dias a gente: “Vamos se embora, quem tem coragem vamos”, falei. Vinha sete, voluntários ‘porretas’. Eu nunca estive só. Assim: como tem gente boa no mundo! Eu falo isso no terreiro, quando eu vou conversar: “Quem acha que tem mais gente boa do que ruim no mundo levanta mão”. A maioria fala gente boa. Tem muito mais gente boa. Depende do olhar que a gente tem mesmo, né? Eu lembro de uma situação, numa segunda-feira nublada, em São Paulo, todo mundo com muito mau humor, eu conto muito essa história, o tempo inteiro, que me ensinou pra ‘caraca’. E eu falo: “ ‘Puta merda’”, aquele mau humor, que era a cara de São Paulo ‘detonada’. E eu falei: “Putz”. Eu olho pro lado, no canteiro que tem na 23 de Maio, tinha um girassol maravilhoso. E eu falei: “Realmente, é a escolha pra onde que eu estou olhando”. E acho que é isso que a gente precisa: pra quem que a gente olha? Qual lugar você está nesse mundo? Porque não é possível que a gente não esteja nesse lugar do todo mundo bem. Não pode ter alguém mal nessa história. Não pode ter alguém que é chamado de vagabundo, sendo que você nem conversou com a pessoa, né? Então, acho que é um pouco isso. Aí o Banho faz isso na minha vida, faz essa alegria de saber que eu tenho um... eu estou presente num ‘hospício’ de gente boa. É um grupo extremamente amoroso, extremamente amoroso. Cada dia de aniversário das pessoas não é só um parabéns, parabéns, parabéns, mas as pessoas muito junto. As pessoas querendo muito estar com as pessoas, de fazer esse movimento das coisas, de achar a roupa, de entender que a função do Banho é um band-aid, que quem deveria fazer isso é uma política pública, é um Estado que não faz. Mas, mesmo assim, por a gente ter coração, a gente acha que tem que fazer de fato alguma coisa, mas a gente tem plena noção de que há uma sacanagem institucional explícita, de uma aporofobia, de uma aversão ao pobre, que é grotesco, de uma saúde pública que não se olha para essas pessoas que são adictas, que é uma questão imobiliária muitas vezes, no fluxo, é de uma sacanagem, assim... tem gente que vai escolher x coisa, tem gente que vai escolher outras coisas, como falam pra mim: “As pessoas nunca vão morrer de fome”. Ué, isso impede de você dar um prato de comida? Não entendo onde vai chegar o conceito, porque tem muita gente ajudando. Questionamentos assim: “É, mas as pessoas, muitas vezes, querem ficar na rua”. Você chega perto dessas pessoas, você conversa com essas pessoas? Tudo parece umas desculpas pra você não chegar na realidade. Assim: as pessoas colocam uns questionamentos, né? De para que você faz, porque... eu faço. Porque, na faculdade de Serviço Social, muitas vezes é considerado assistencialismo esse tipo de história, esse tipo de trabalho, esse tipo de ajuda. E eu falo: “A fome não espera”. Ver as pessoas numa situação de fome... “Não, mas as pessoas não morrem de fome”. Sempre tem um cientista pra me falar essas coisas. Eu só sei que há alguma coisa muito errada, que é muito mais profunda do que o Banho. O Banho é só um... quando as pessoas falam: “Nossa, que trabalho maravilhoso!” É maravilhoso, pessoal. Tem muita gente fazendo muito trabalho maravilhoso, nesse sentido, mas é um absurdo a gente achar isso maravilhoso, de tanta coisa que a gente sabe que é necessário, que é importante. Então, a gente inverteu. Achar que isso é o ‘ohhhh’, de tão importante, eu acho... a gente inverteu. Isso tem que ser assim. Não é possível que alguém esteja passando fome. Trinta e três milhões de pessoas, no Brasil, passam fome. Que isso? Que isso? Sendo mil programas de reality culinário, restaurantes e fala de comida, comida, comida, comida, comida e gente passando fome, jura? A gente vai achar isso normal? “Ah, mas a pessoa está na rua porque quer”. É mesmo? Desde que esse mundo da escravidão jogou negros, negros, negros, negros na rua, aí foram pra favela, que é uma gramínea que cresce no morro, né? E de lá, jogados, sem ‘eira nem beira’, até hoje. É muito fácil a gente juntar o ‘lé com cré’: qual que é a situação, né? Essa história da necropolítica, que há a certeza de que não vai ser possível fazer nada com essas pessoas. Vamos deixar morrer. Vamos deixar morrer? A gente vai resistir. Não é possível.
P/1 - Vanessa, como é essa relação, quer dizer, o que você conhece de política pública? Você falou de situação de calçada. Não é situação de rua, é de calçada?
R - É o mais politicamente correto de falar, porque as pessoas não moram na rua, elas estão em calçadas, né? Eles próprios falam: “Eu não moro na rua, não, eu estou na calçada”. Então a gente aprende com eles também, mas é uma forma até que está se falando.
P/1 – Estou aprendendo muito. E como é essa relação, em termos de política pública, com iniciativas como essa, organização não governamental, tem um convênio, como é que você... como está, hoje, essa relação e como já foi?
R - Mas em relação à carreta com o governo, você está falando?
P/1 – É. Nenhuma?
R - Não, não tem. Eu fui, a gente ia amanhã num lugar, que é na Brasilândia, que é um lugar que eu gostaria muito de chegar lá. Não conseguimos chegar, porque deu errado a logística do território. Normalmente faz o contato pelo Consultório da Rua, que é uma parceria do governo público com eles, que é o BomPar, que é uma organização social, que tem agentes sociais que se identificam, identificam as pessoas em situação de rua e atende essas pessoas medicamente.
P/1 - Mas qual é a relação com o Poder Público?
R - Eles são parceiros, são uma parceria, uma organização social que faz uma parceria com albergues, por exemplo, os albergues...
P/1 - Mas o quê? Com município, secretaria...
R - ... municipal.
P/1 - Secretaria do Bem-Estar? É isso?
R - É da SMADS. Aí tem um convênio que é feito, uma licitação e eles atuam com agentes sociais, na rua. É bem-feito, muito bem-feito, com o CEAS também, que vai ser trocado CEAS pela Vila Reencontro, que são esses lugares que as pessoas vão morar etc. Tem coisas sendo feitas, mas sendo feitas sem serem ouvidas, mais uma vez. As pessoas não ouvem as pessoas que estão em questão. As pessoas ouvem outras histórias. Então, as pessoas da rua não são ouvidas. As pessoas das calçadas não são ouvidas. Esse é o pior erro crasso de todos os governos, tirando o da Aldaíza e da Erundina. Que aí, a partir da Erundina, que se constrói o Boracéia, se coloca os lugares para cachorros, porque ouviu a população.
P/1 - O que é o Boracéia?
R - Boracéia é um dos primeiros albergues existentes, enormes, muito bem-feitos, esquematizados com a realidade deles. Então, tinha lugar para colocar o carrinho, tinha lugar para colocar o cachorro. Foi construído a partir da escuta, né? Coisas que não se faz. Já faz de uma história que já sabem, e aí vão fazendo. Isso é um erro do Poder Público como um todo. Aí o Consultório da Rua ia fazer esse, na Brasilândia, por um erro do convênio, do sacolão que a gente ia, não fez. Aí eu falei pra pessoa: “Então vamos” - mas tem uma praça do lado – “pra praça”. É, mas aí deram a documentação pra prefeitura. Eu falei: “Mas por que vocês deram a documentação pra prefeitura? A praça é pública, a gente vai e pronto”. Eu nunca - que você estava falando da relação - pedi permissão nenhuma pra estar na Praça de Santo Amaro, nem em qualquer lugar. Eu vou. As várias carretas que tem, algumas pedem. Eu não peço. As pessoas precisam tomar banho, pronto e acabou. Se o governo não faz, a gente faz, acabou. Agora, tem algumas coisas em relação a seminários de população de rua, a conversas que existem, que algumas coisas a gente participa, outras não, mas não tem nenhum incentivo, nem monetário, nem nada em relação a tudo isso que acontece. O meu desejo era juntar as carretas existentes, porque tem algumas organizações não governamentais, organizações sociais, que acham - você já assistiu Quanto Vale ou é Por Quilo?, do Sérgio Bianchi - que a pobreza é uma concorrência, então se você tem tantos pobres pra cuidar, eu tenho tantos, então eu preciso ter mais, pra ganhar mais, virou um dinheiro, faz muito tempo, não é de agora. Dinheiro feio de lucrar com a pobreza, isso é uma realidade existente. E aí fica essa história, o meu desejo de juntar as oito carretas, seis, sete, oito, sei lá agora quanta são, na cidade de São Paulo, e a gente juntos fazer um mapa pra... na cidade como um todo, em qual lugar que a gente vai atuar, para não atuar junto, pra que a gente possa abarcar a cidade como um todo. Quando que você faz? Não faz. Por causa dessas histórias. Tem o próprio ‘umbigo’ de quem trabalha com o social e com a pobreza. É um problemão isso. Quem se ‘ferra’? É quem está precisando (risos) ajuda. Essa é a história. Então, eu acabo lidando, junto com os nossos voluntários e com essas pessoas que estão no território, eu escuto muito as pessoas que estão ou como liderança, ou como as pessoas mesmo que estão lá, em situação de rua, que às vezes, quando têm celular, já me ligam e me pedem, eu dou uma grana e incentivo a militância e o ativismo. Eu acho que é muito importante as pessoas que são líderes de Pop Rua incentivar essas pessoas. ‘Grana’ mesmo, porque eles não recebem, para que elas possam se locomover. Eu acho que o Estado tinha que fazer muito isso, de ouvi-los e o Banho é um pouco por aí, de crescer nesse sentido, de estar mais articulado com o Poder Público.
P/1 - Como que você acha que, com toda essa experiência que você tem, devia ser uma política pública?
R - A primeira história é que você tem que ouvir essas pessoas e entender onde elas estão e as necessidades delas, porque não adianta, se você falar para a pessoa que está em situação de calçada: “Eu vou te dar uma casa”, você vai dar uma casa para a pessoa, a pessoa não vai saber nem onde é o ferrolho da porta. Você acha que você tirar a pessoa de uma situação e colocar na sua, porque você acha que é importante fazer desse e desse jeito, colocar o liquidificador, colocar... você não ouve quais são... qual é a questão da pessoa. São feitas várias questões de entrega de projetos, que não têm realidade com o que a pessoa vivencia. “Ah, mas assim: você está falando que tem que fazer uma coisa customizada, do jeito que as pessoas querem?” Não. O que a gente tem que pensar é que habitação é essa. Não adianta você... a política pública das pessoas em situação de rua é integrada: habitação, saúde e assistência. Primeiro, pra começar, isso já não existe, já há muito tempo. Sair com essa história é fazer habitação e ‘trampo’. As pessoas têm que ‘trampar’. As pessoas têm que existir. Então, a partir de que talento? Às vezes está ‘detonado’, ou por uma questão de droga, de álcool, ou por uma x questão: “Não sei nem o que eu gosto de fazer”. Precisa incentivar que essas pessoas existam. Essa produção é necessária, senão você passa os dias sem saber da sua existência. Existir é saber da sua produção, o que você faz, o que... não se fala sobre empreendedorismo nas pessoas em situação de rua, a não ser o Barba, em Brasília. O ‘cara’ é a minha maior inspiração. Ele não teve pai, não teve mãe, quem o batizou foi um juiz. Hoje ele é um líder absurdo do Pop Rua, que vocês têm que conhecer. Em Brasília ele me chama de tia, eu amo esse ‘cara’, amo. E hoje ele está fazendo muitas coisas em Brasília com as pessoas, com a Pop Rua, com um ‘trampo’: fazendo chinelo, fazendo... ele está com uma fabriquinha de... fabriquinha que eu estou falando é pequena, mas com chinelo, com uma outra coisa que eu esqueci agora, de conserto de celular. Tem que tirar esse pessoal para fazer coisas e o cotidiano desse trabalho é que faz a pessoa acordar, levantar, recair, vai embora, não ‘trampa’, vai embora, bebe, vai embora, se droga, mas vai. Tem que cumprir uma jornada, tem que trabalhar. E ao mesmo tempo você descobrindo os talentos, que não seja simplesmente arrumar celular, nem fazer chinelo. Mas o que mais você quer? Mas a partir do momento que você está fazendo isso, porque não adianta, muitas vezes você tira de uma situação, coloca em outra e depois fala assim: “Também quis ajudar, nem quis”. Mas que tipo de ajuda é essa, que você nem ‘engatou’ a pessoa? Tem um... essa saída, essa travessia é complexa, muitos anos de ‘detonada’, mesmo. Tem gente que não quer? Óbvio. Tem gente em presidência que não quis trabalhar, quis ‘foder’ os outros. Tem em todo... gente é gente, em qualquer lugar. Não existe ‘mocinho’, nem bandido, existe gente. Você propõe uma história, mas pra você propor uma história, você tem que ter uma força política e um investimento que não se faz em pop rua. Não se faz. Tem um interesse em não se fazer. Tanto que, quando se constrói um albergue perto de um lugar e as pessoas não querem, é um preconceito absurdo de não fazerem esse albergue, esse centro de atendimento, porque não querem perto da gente. O que a gente quer é que as pessoas... a gente... o que as pessoas querem, muitas vezes, é que as pessoas estejam, sem a gente ver. Muitas vezes as pessoas ajudam esses projetos, para não olhar a realidade. Essa que é a grande verdade. Então, a gente quer tornar essas pessoas cada vez mais ‘invisíveis’, porque pra gente é grotesco, como ser humano, saber o que a gente construiu. O que a gente construiu? Uma pessoa passando fome. É nosso! Esse problema é nosso! Essa questão é nossa. Quando eu falo assim: “Eu vou jogar fora”. Jogar fora de onde? Você está jogando fora de onde? Não existe fora. Não existe fora, pessoal. Essa pessoa que está na rua, essa pessoa que está na cabeça, a pessoa que está na presidência, a pessoa que esteve na presidência, o problema é nosso. “Não tenho nada a ver com isso”. Tem? Tem, porque é nosso. O mundo, como está indo, é nosso problema, é nosso. Então, a gente precisa, de fato, dessa política pública que você pergunta, é uma vontade política e de orçamento. Precisa investir nas pessoas, não precisa investir no carro, no piche, na parede, é em gente. E isso custa caro. Gente é o maior orçamento que existe no mundo. Custa caro. O capitalismo quer? Não. Óbvio que não. Então, a gente precisa inverter isso tudo.
P/1 – Van, e a vela?
R - Chega, né? (risos)
P/1 - Não. Você cansou?
R - Não. Vela. Você cansou, já chega. Se é ar-condicionado, não pode ligar vela. Ah, vela!
P/1 - Você quer parar um pouco, ligar o ar?
R - Não. A vela. Como começou a vela. É assim? Eu respondo assim: “Como começou a vela?”
P/1 - É.
R - A vela.
P/1 – Do jeito que você quiser.
R - Sim. Eu, por ser mãe de santo e estar na religião um tempão, a minha religião é uma religião que usa muito vela. É um movimento grande de uso de vela religiosa. E muito tempo eu fiquei pensando - já há sete anos que eu estou com um terreiro, né? – “Se a gente colocar uma máquina de vela, a gente pode até empregar pessoas pra fazer vela”. Isso passou na minha cabeça. ‘Puta’, ‘mó trampo’, tem que ter um lugar, vela. Esqueci, passou. Beleza. Recentemente escreve pra mim uma das minhas amigas que são mães de santo e falou pra mim: “Van, você tem um fornecedor de vela? O meu está vendendo a fábrica”. Eu, plim: “O quê? É? Eu tenho um fornecedor, eu compro desse, desse, desse. Vendendo a fábrica, fale-me mais sobre isso”. Aí a pessoa falou: “Vou te mandar o post dele”. Ficou duas horas e eu: “Dani, (risos) você não sabe da maior! Sempre tive um sonho - fiz um textão - assim, assim, ‘assado’”. Ela mandou áudio: “É meu sonho também. Eu sempre quis ter coisa de vela. Eu amo vela”. Eu conheço a Dani há trezentos e cinquenta mil anos. Eu nunca soube, eu sabia nas festas dela, ela já tinha até comprado vela minha, prateada etc, porque gosta de vela. Tipo: nas festas e tal. Mas assim, esse amor, essa paixão, eu não sabia. “Menina, está vendendo a fábrica” - plim, ston, plem – “e se a gente construísse essa história social com isso, tá?” Fechou. Aí foi. A gente foi conhecer (risos) a fábrica, entender...
P/1 – Onde é?
R - No Brás, zona norte de São Paulo. A gente foi conhecer a fábrica... zona leste de São Paulo. A família muito interessante, ‘bateu o santo’, eles são umbandistas, fizemos essa transição toda. A gente não é empreendedora comercial, mas a gente tem um tino. Então, a gente está sofrendo, está aprendendo. Mas virou essa história da Vela Social, que a venda das velas vai manter a história dos projetos sociais, porque a Dari fala que o projeto social é um pouco ‘enxuga-gelo’, e o Relacionais acaba bancando umas histórias, que a própria vela pode manter essa história como um todo e é o que a gente está focado agora, como plano de negócios mesmo, né? Estudando, fazendo acontecer com funcionário e tudo mais. Está ‘virando’. Vela Social vai ser uma realidade, daqui um tempo.
P/1 - E quem trabalha lá?
R - São funcionários. A pessoa que... uma das pessoas... era o pai, a mãe, o filho e um funcionário. Eles eram donos, iam vender tudo. Quando a gente conversou, as máquinas das velas têm uns carreteis de barbante. Parece umas engenhocas que ficam embaixo das máquinas. A Dani falou assim: “Meu Deus, você vai morrer enforcada. Desse jeito a gente vai fazer isso nunca” - porque eu sou totalmente desajeitada. Aí morre de rir etc – “Eu estou pensando se esse ‘cara’ que está vendendo, que era o filho, fica com a gente, pelo menos pra ensinar, né?” Interessante, eu nem tinha pensado, que ela estava interessada era na coisa concreta, né? ‘Maluca’. Fizemos uma reunião. Aí a Dani: “Andressa, não quer ficar com a gente?” “Ah, não estava pensando”. Aí a mulher fazia uma cara. Ela: “Ó, na verdade quem quis vender são eles” “É? Você está com a gente agora”. Solange, que é a coordenadora de produção, ela que ‘mete a mão na massa’, está com a gente todo esse tempo aí. Então, aí a gente... foi uma paixão à primeira vista, ela é libriana também, como eu, vai fazer aniversário no dia dezesseis de outubro. Foi um... no engate ali, né? Difícil ainda dela como dona e agora funcionária, mas acho que todo mundo se resolveu e estamos aí. Vela Social.
P/1 - E a Rádio da Rua?
R - Rádio da Rua é uma web rádio, que o interesse que a gente tem cada vez maior é que as pessoas, os coletivos organizados com vozes diferentes possam ter um programa. Então, a gente começou, através da minha família, meu irmão, que tem dois filhos e um filho típico do espectro autista, teve uma vivência da paternidade muito diferente com cada filho, ainda mais quando você tem filho com espectro autista. Esse meu irmão que eu sempre falava que é tímido, mas o menino é bem bom. Eu falei: “Marcão, você não quer ter um programa na rádio que fale sobre essa questão?” “Não sei”. O programa dele está ‘bombando’, chama Paternidade Neurodiversa, que fala com outros pais que têm espectro autista, colocou os filhos para trabalhar, falar etc. Tem a Responsa Pro, que é da Karine, que é assistente social, que já foi presa, que hoje tem uma organização social que seleciona profissionais que já estiveram presos, para trabalhar no mercado de trabalho. Tem o nosso programa, meu e da Daniela, que a gente faz o Cenas da Rua, que é uma cena de psicodrama na rádio. Tem o Programa do Véio, que é o meu pai fazendo programa aí para quem tem mais de setenta anos. Tem o Rubem, que é um psicólogo que faz meditação e fala sobre essas técnicas. Vai ter o Tom, que é uma pessoa que já esteve em situação de rua, falando ali. E a gente está crescendo e queremos que as pessoas cada vez mais tenham um espaço para se comunicar. Então, ela tem muito alcance, porque é web. Então, dá para você alcançar muita gente. A gente teve um programa de ciganos, que as pessoas falavam nos seus lugares, assim, tão difícil o acesso, as pessoas ouviam o rádio. Eles pararam um tempo, mas parece que vai voltar, os ciganos. Esse é o desejo que seja - tanto o Selo da Rua, como a Rádio da Rua, a Vela Social e o Banho - essa história para que as pessoas possam, a partir da comunicação, existirem. A comunicação é um poder absurdo. Isso dá visibilidade para todo mundo, é importante que as pessoas existam, com a sua fala, com o seu talento, com o seu jeito, com a sua organização. A gente entende que essa viabilidade é importante para as pessoas existirem enquanto grupo, e que possa expandir para a gente conhecer a vivência, o jeito de cada um, conhecer o outro. Acho que a gente entende que aproxima as pessoas, o modo de ver.
P/1 - Vanessa, e esse fato das pessoas, dos voluntários do Banho pra Geral terem feito curso de formação do Museu da Pessoa para fazer o Museu da Pessoa da Rua?
R - Então, isso é muito legal. Agora está com mais gente, agora são três mais que estão fazendo diferente. É difícil as pessoas entenderem que a escuta é uma aproximação importante. Quando você fala de você, você se recupera, você se relembra, você se cura de algumas coisas que ficaram ali, paradas. Olha eu aqui. É importante, né? Então, essa forma do Museu e a parceria com o Relacionais, com o Banho, naquele momento que as pessoas estão ali, de serem ouvidas, eles amam, eles amam poderem falar das suas histórias e os voluntários se prepararem, treinarem a partir da forma que vocês fazem, que vocês são maravilhosos nessa técnica, essa forma de abordagem, eles estão amando e que a gente cresça cada vez mais. Eu tenho muito interesse em colocar, além dessa história que os voluntários vão fazer cada vez mais, uma mesa no Banho escrito: “Quero te ouvir”. Porque é bom. É importante fazer com que as pessoas se comuniquem. É muito bom.
P/1 - Vanessa, quando você criou, constituiu seu espaço espiritual? É um terreiro?
R - É um terreiro.
P/1 – Um terreiro de umbanda.
R - É um terreiro de umbanda. Como?
P/1 - Quando que você achou que era esse momento e como é que aconteceu isso?
R - As entidades vão falando pra gente, eu vou ouvindo-os de que: “Ó, está na hora de você começar a alçar mais voos, conhecer as pessoas, ensinar pra mais gente”, e aí a gente vai ouvindo, eu sou uma boa ouvinte. E aí a gente vai fazendo. Foi assim, simples.
P/1 – E Vanessa mãe de santo da rua?
R – É. A gente faz a bênção da rua, a bênção das águas.
P/1 – Como é?
R - A gente chama um pastor, que foi difícil, hein? Pastor pra ficar ali foi difícil, hein? Sabe como eu conheci o pastor? O pastor que está indo na bênção das águas? Eu vou primeiro explicar a bênção das águas. A gente já faz há um tempo, eu comecei a dar bênção nas águas com o Padre Júlio. A gente levava os ramos de arruda, a gente ia lá na Cracolândia, eu e ele dávamos bênção. Levava os atabaques, conversava. O Padre Júlio dava uma bênção, eu conversava. Dava uma bênção, tocava atabaque, dançava e passava arruda, passe em todo mundo. Fiz isso algumas vezes, com o Padre Júlio.
P/1 - Você junto com o Padre Júlio?
R – É. Maravilhoso. O Padre Júlio é maravilhoso. Maravilhoso. (risos) A gente fazia essa arruda na Cracolândia. Ele não está mais conseguindo, o Padre Júlio. Eu chamo. Mas ele está... é muita coisa que esse homem faz. O homem cresceu de muita coisa, graças a Deus. Então ele é... mas a gente ia lá na Cracolândia ‘da vida’, na pandemia, ele ia com aquelas ‘mascrona’ lá. ‘Figura’. Aí a gente agora tem... a gente chama muçulmano; uma rabina maravilhosa; eu; pastor, que eu vou contar a história do pastor; um espírita; já teve budista; muçulmano eu falei? E muçulmano. Então a gente, cada vez mais, entende que, na rua, a possibilidade é geral, pra todo mundo, a gente faz numa praça, depois do banho a gente faz numa praça, quem está no banho, se quiser juntar, a gente faz uma roda. É lá esse ponto de encontro nosso, de dois em dois meses e a gente faz uma benção das águas. Todos os representantes religiosos têm uma fala, uma benção, a gente dá um passe, tem um atabaque e pronto. Essa benção que a gente faz é interessante porque, por ser praça, a ‘galera’ vai chegando, vai se juntando às pessoas do banho e assim se faz uma igreja a céu aberto, um templo a céu aberto. É fenomenal, é muito importante. E aí eles falam que é muito importante e tudo mais. O pastor que eu tentei, uma questão complexa essa relação dos evangélicos com as religiões de matriz africana, é complexo no cotidiano, tá? A facilidade é que eu sou branca, tenho um terreiro que não é na periferia, mas a gente sabe o quanto de intolerância existe em relação a todos os terreiros. A morte da ialorixá recente, Bernadete, que todo mundo ficou sabendo, isso infelizmente aparece um, mas são vários casos, que a gente tem grupos, a gente tem conhecimento dessa intolerância. É um absurdo e é vivenciado isso no nosso cotidiano, quando a gente chama um pastor e o pastor não chega, né? Mas tudo bem, a gente é insistente, a gente é persistente, a gente estava lá, em um dos banhos, um ‘cara’ passou em um carro e falou: “Que trabalho é esse aí que vocês fazem? Porque eu também dou umas comidas, não sei o quê”. Aí eu falei pra ele assim: “Ah, é um trabalho assim, ‘assado’”. Eu olhei pra ele, do nada. Pode perguntar, porque tinha gente perto. “Você é pastor?” “Sou. Como você sabe?” “Eu sei”. Aí abri a porta e sentei do lado dele: “É o seguinte: já que a gente já se conheceu desse jeito, assim, assim, ‘assado’, você ‘topa’ fazer parte?” “Sim”. Aí ele foi na benção, agora vai ser sempre, ele é ‘figuraça’. Então, foi assim que a gente se conheceu, eu e ele, e agora não larga mais, nem eu nem ele, porque é necessário na rua, em qualquer lugar também tem pessoas evangélicas, umbandistas, candomblecistas, budistas, ateias etc. É importante a gente ter esse momento que a gente vá nos lugares, é muito bom. Eu amo fazer isso aí.
P/1 - E como é a recepção das pessoas?
R - Maravilhoso! A gente vai lá com os galhinhos de arruda e todo mundo quer tomar, até os ‘caras’ que não querem, tomam. (risos) É bom, é bom, fica um clima bom, as pessoas gostam. Aí o budista fala, o muçulmano fala, a rabina, a rabina tem setenta anos, vai de kipá, ela canta em hebraico, todo mundo meio que canta, é lindo, lindo, muito bom.
P/1 - Quando você começa a ter namorada, namorado, quem você quiser, (risos) assim, tipo: sem...
R - Eu tive um namoradinho com quatorze anos, que me deu até uma centopeia de presente, depois ele foi preso. (risos) Eu falei: “Nossa!” Eu tenho sempre história com preso e tudo. E aí...
P/1 – Como é que ele foi preso?
R - ... eu era muito... o ‘cara’, sei lá, não lembro, mas ele foi preso várias vezes.
P/1 - E era seu namorado?
R - É, encontrei com ele até no Facebook: “Ai, meu Deus! Pé de pato, mangalô três vezes”. (risos) Aí depois de um tempo eu namorei com homem, ‘trepei’ com o homem. Então, e foi na faculdade, fez beeeeeem. Já sei. Aí eu vivi uma Lagoa Azul lésbica. Maravilhoso, meu primeiro amor, minha primeira paixão. E depois abriu as porteiras da mulherada, aí foi que foi. Até eu encontrar com a Rute, que eu estou há 21 anos, vai fazer dia 31 de outubro agora. Mas é uma questão, foi muito difícil pra eu me entender como lésbica, me entender gostando de mulher. Uma correspondência, uma expectativa que eu fazia de mim, em relação aos meus pais. Ser a única filha mulher, blá, blem, blom. Foi um tumulto, tumulto dentro de mim, até eu me sentir, demorou. E eu ajudo muita gente que demora. Eu ajudo muita gente e acolho muitas mães, mães de trans, mães de LGBTQI, eu ajudo muito. Eu acho que o que a gente passa é pra ajudar o outro. As dificuldades que a gente passa é pra acolher o outro mesmo, então não agradeço que eu passei, porque passei, ainda bem. Mas agradeço por saber que a gente pode acolher. E hoje eu sou muito feliz com a Rute. É um grande amor da minha vida, eu aprendi, aprendo a ter esse afeto. A gente brinca, duas librianas, mas a gente se constrói juntas. É um amor bem vivido, bem tranquilo, já quis separar 720 vezes, agora sosseguei, com 51 anos... cinquenta anos, parece que algum bicho em mim foi alimentado. Eu alimentei certos bichos e agora eu sigo mais tranquila, com ela.
P/1 - Como foi quando você se descobriu lésbica, contar para os seus pais? Foi um processo natural?
R - Não, não foi nada natural contar. Não contei. (risos) A vida foi contando, eu fui contar depois de um tempo, que já estava muito claro de que estava tudo certo, aí eu precisei falar textualmente. Não foi, mesmo textualmente, um processo super bem acolhido, não foi esse, não senti que foi festas etc, mas teve um momento interessante, que foi nas bodas dos meus pais, que faz quatro anos, mais ou menos, que aí eles montaram um esquema cenográfico... não, cênico, interessante, que os filhos entrariam com os respectivos ‘conjes’...
Moro, que é ______ ‘conjes’. Por que eu falei desse ‘cara’? Aí entraram... (risos) ‘conjes’, meu Deus! Cada coisa que a gente tem que passar nesse mundo! E esse ‘cara’ é senador, né? Não, deputado federal. Não, senador, né? Não, vamos voltar. Bom, (risos) aí foi uma história interessante, faz quatro anos que foi, que eles montaram uma história de todos os filhos virem com seus cônjuges e falou: “E você vem com a Rute”. Eu chorei. Minha mãe chorou. Meu pai chorou. E minha mãe falou: “É lógico, você esperava o quê? Lógico que tem que ser desse jeito”. E foi assim que foi feita a cerimônia. E ali foi uma coisa muito interessante pra mim, pra família como um todo, pra sociedade como um todo. Ali coroamos a certeza de que socialmente é muito importante esse acolhimento. Então, você já sabe, a sua família já sabe e não se conversa, alguém precisa saber conversar sobre esse assunto. Às vezes espera da própria pessoa, mas às vezes a própria pessoa não está tão preparada assim, pra dizer. E se você é da família e já sabe, fazer esse encontro acontecer é importante também. Muitas vezes a verdade já está ali, mas as pessoas não conversam por x, y coisa, e que não é um assunto que precisa estar ‘adormecido’ em ninguém. Ninguém está errado. É a vida da sexualidade. Hoje a gente vê crianças com quatro anos extremamente tranquilas com isso. Como que a gente evoluiu enquanto humanidade! Isso eu fico muito feliz. Não é um tabu. Apesar de ser muita história com homofobia e violência muito forte com trans, na rua a gente encontra muita população trans que foi ‘jogadas às traças’ pelas famílias e as pessoas ficam na rua, por um preconceito absurdo, de não acolhimento. É uma questão importante.
P/1 - Tem muito na rua?
R - Tem. Tem muito na rua e as histórias são histórias muito ruins, muito violentas. Muito violentas, de não acolhimento, tristes.
P/1 - Como você conheceu a Rute?
R - Pela internet. Tinha um site UOL Lésbicas. Eu estava num momento maravilhoso. Naquele momento da vida, eu tinha... eu ia fazer trinta anos. Eu estava num momento de: “Opa, conheci essa, conheci aquela, conheci aquela outra... oi, que delícia!” (risos) Aí era um site... eu não sei nem se tem ainda, mas nunca... eu não peguei nem o negócio do Tinder. Minhas amigas têm o Tinder, nunca peguei. Mas é, e dá bem, porque eu falo assim ó: “Sou feia, mas me dá cinco minutos”, porque Tinder você tem que olhar, aí você fala: “Até me escolher, tem que gostar muito”. Não estou me autodepreciando, mas Tinder é uma coisa que ‘bateu a imagem’, né? Seria mais difícil, porque eu, me dá cinco minutinhos, que a lábia é boa. E no chat, que foi quando eu conheci a Rute, estava bom aqui. Aí a gente foi se conhecer, foi no dia 31 de outubro, e aí foi, nunca mais separou. (risos) Foi assim, pela internet. Por isso que eu falo que a internet é interessante pra muita gente, possibilita encontros, né? Bom demais. Onde eu ia encontrar com ela? Núcleos muito diferentes, muito distantes. Talvez não encontrasse. A internet facilitou.
P/1 - Vanessa, você perdeu sua mãe recentemente.
R - Sim.
P/1 - Como que ela era? Como era a sua relação com ela?
R - Foi uma relação intensa, muito forte. Mas ultimamente era uma relação maravilhosa. E a ‘passagem’ dela, eu estava na ‘passagem’. Então, vixi, é duro, pessoal. Ela era... eu nunca vi assim... você conhece as pessoas no momento de dor, né? Muitas vezes. A gente sabe quem... e a minha mãe... câncer é história complexa de ser vivida. Desde o momento que ela soube, ela chorou, chorou, juntou a família toda e falou: “Vamos pra frente”. E a coisa foi difícil, foi bem difícil, uma luta de nove meses, dura. A gente aprendeu muito, muito, muito, muito, muito. Aí eu comecei a ver que, de fato, esse tempo é curto, é breve, só que foi com muita dor, então é mais difícil a gente recuperar. Hoje está um pouco mais simples, mas eu fico pensando sempre o quanto que a gente perde tempo do convívio, de qualquer história. Mas hoje eu estou muito aliviada de saber que essa relação que a gente já teve mais distante, um tempo atrás, a gente foi se encontrando enquanto mulheres, eu e a minha mãe, muito parecidas, muito de ir pra frente com as coisas, de resolver as coisas, de olhar muito pro outro. A minha mãe amava o história do Banho, amava. Amava assistir minhas lives, ela... uma pessoa muito inteira, ela era fenomenal com isso, assim. Três filhos que são muito diferentes, entre a gente, de atividades que a gente faz. Por mais que a gente tenha proximidade, muito da perspectiva da vida do bem comum, do estar bem com as pessoas, são pessoas muito ‘gente boa’, mas são pessoas muito diferentes. Ela tinha uma vivência diferente com cada filho, ela era interessantíssima. E era uma mãe que não dava muito pitaco. Ela ‘surfava na onda’ do filho, é interessante, foi uma baita mãe. Uma baita mãe, assim. Encontrei uma mulher que me ensinou muito. E nesse processo final, que foi o mais difícil, que eu tive que inverter um pouco a posição e falar: “Putz”. E ela confiava muito em mim, aí ela falava pra mim: “Me dá um passe”. E eu sabia que cada passe que eu dava, a gente ia fazer a ‘passagem’, né? Ela me colocava nessa situação, mas acreditava muito no meu passe, aí eu como filha, então foi um processo... depois disso fica mais fácil de eu fazer qualquer coisa. Depois do que eu passei fica mais simples. Me entender como mãe de santo, entender esse processo da ‘passagem’, que eu tive que: “Respira, Vanessa e vamos seguir”, pra poder fazer essa travessia com a minha mãe, juntas, né? E foi. Mas ela era - perdeu quem não conheceu - ‘figuraça’. Ela era engraçada. Ela era divertida. Dificilmente tinha ‘tempo ruim’ com ela. Ela tinha um humor elevadíssimo, conexão astral. ‘Figura’. Ela era ‘figura’. E veio de uma história muito ‘pesada’. Ela podia ser uma pessoa toda nhec, nhec, nhec. Não. Ela tinha uma proximidade grande com a Daniela. Eu fico falando que, se ela tivesse morrido antes, a Daniela era a encarnação da minha mãe, parecidíssimas, mesmo signo. Pessoa muito ‘alto-astral’, querendo resolver a coisa. Ela era fenomenal. E hoje espiritualmente já tenho conexão com ela, já escuto outras coisas, já sei de vivências da minha mãe, já está me ensinando outras coisas, já tenho outras perspectivas com ela, assim, já estou com a minha mãe, com outra história. Então, é bem interessante saber, quando a gente tem essa vivência espiritual do antepassado, do nosso ancestral tão perto, de aprender aí tudo isso que eu falei agora, que você fala: “Ah!”, que faz parte. É muito recente, não faz nem dois anos esse luto, mas quando a gente já tem essa perspectiva espiritual, não é uma crença, que é a vivência mesmo espiritual de conexões que a gente já ouve, já acolhe, já aprende, aí fica muito mais tranquilo. Quando a minha crença é essa de acreditar nessa história cíclica, me deixa mais tranquila, que ela está bem, estou bem e ela está entre a gente. Isso é fenomenal.
P/1 – Vanessa, tem alguma coisa - deve ter milhares, né? - que a gente não falou, mas que você acha importante deixar registrado?
R – Não, acho que já falei, chega, né, Rosana? Não tem. Você foi maravilhosa.
P/1 - Olhando sua trajetória, existe alguma coisa que você faria diferente?
R - Não. Tudo igualzinho. Não tem nem como, como que eu faria? (risos) Não, faço igual. Daqui pra frente até... os chineses não falam que a gente passa parece que 64 situações iguais e que a gente... eu já devo ter passado por várias outras e eu quero viver. O que essa vida apresenta pra gente, a gente tem que ver no momento que ela se apresentar. Não tenho nem... o que eu gosto é saber no gerúndio. Eu sou um eterno gerúndio, que a gente possa ir se conhecendo, se apresentando, aprendendo, vivendo, amando. O que eu quero é isso, amar. Agradecer as pessoas que me ouviram, ouvir é o canal do amor. O silêncio é o amor presente. A gente precisa ter esse tempo da escuta. Esse preenchimento que a gente faz o tempo inteiro não está bom. Então, eu quero cada vez mais ouvir. Saber ouvir.
P/1 - O que você achou de ter contado ______? (risos)
R – ‘Caralho’, não acaba nunca essa ‘porra’? Ela morre de rir.
P/1 - O que você achou de contar sua história? Como foi, pra você, contar essa história?
R - Eu vou gostar mais quando eu me vir. Mas eu acho um absurdo o que vocês fazem, de ter esse tempo pra ouvir o outro. Quando eu soube da existência do Museu da Pessoa, eu falei: “Uau, que coisa mais linda!” E fui atrás da Karen Worcman. E aí vocês estão aqui, nesse tempo de ouvir. É a essência do mundo, tem que ouvir. Eu achei... não de mim, assim, eu me cansei um pouco, não do tempo, mas de ficar imaginando: “O que tem? O que eu estou falando? Não acho que seja...”. Então, eu falei: “Queria que terminasse logo, porque eu nem acho tão fantástico as coisas. Eu acho que é a vida. A vida, como ela é. Ela é linda, pronto, acabou”, mas... entendeu? Gostei. Mas eu gosto mais de te ouvir do que eu falar. (risos) Acho que é isso. Me lembrou muito Eduardo Coutinho, que num dos projetos nossos, quando a gente o conheceu, eu amava e amo o Eduardo Coutinho. Muito! Isso tudo me lembra o Eduardo Coutinho. E quando eu conheci o Eduardo Coutinho, eu ficava embasbacada, e logo depois de uma semana ele faleceu. Então, é pela memória dele que a gente possa estar aqui, né? Ele era um grande ouvinte. Maravilhoso.Recolher