Entrevista de Solange Sobral Targa
Entrevista por Luiza Gallo, Grazielle Pellicel e Nicolau da Conceição
São Paulo/Londres, 23/08/2023
Projeto: Mulheres na Tecnologia
Entrevista número: MTS_HV012
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Solange, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, dividindo um pouquinho da sua história. E para começar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local de nascimento?
R - Eu agradeço, na verdade, a oportunidade, o espaço, acho que um tema super importante. A gente tava batendo um papo um pouquinho antes de começar aqui, são poucas mulheres em posição de liderança, são poucas mulheres negras em posição de liderança, sobretudo tão poucas mulheres negras em posição de liderança na indústria de tecnologia. Então super feliz pelo convite, por a gente construir uma história aí, que eu espero que alavanque muitas outras mulheres pra também seguir um caminho similar, se elas quiserem, né. Então meu nome é Solange Sobral Targa. Onde eu nasci, é isso que você me perguntou? Muito bem! Tenho cinquenta anos, nasci em 20/09/1972, em Cafelândia, São Paulo. Interior de São Paulo.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, não me contaram como foi o dia do meu nascimento. Não sei, sei que…. Assim, minha mãe, é engraçado isso, minha mãe fala muito do nascimento do meu irmão, que foi o primeiro filho, então eu só a segunda filha de dois filhos. E minha mãe conta muito da primeira gravidez, que foi até bem difícil no início. Do meu nascimento, ela fala pouco, então eu entendo que foi suave.
P/1 - E a escolha do seu nome, você sabe, tem alguma história?
R - A história é bem interessante! Na verdade tem uma história muito grande em relação a escolha do nome do meu irmão, porque a minha mãe, minha mãe tinha uma criança que ela conhece… Minha mãe é baiana, quando ela era novinha na Bahia e ela...
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Entrevista por Luiza Gallo, Grazielle Pellicel e Nicolau da Conceição
São Paulo/Londres, 23/08/2023
Projeto: Mulheres na Tecnologia
Entrevista número: MTS_HV012
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Solange, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, dividindo um pouquinho da sua história. E para começar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local de nascimento?
R - Eu agradeço, na verdade, a oportunidade, o espaço, acho que um tema super importante. A gente tava batendo um papo um pouquinho antes de começar aqui, são poucas mulheres em posição de liderança, são poucas mulheres negras em posição de liderança, sobretudo tão poucas mulheres negras em posição de liderança na indústria de tecnologia. Então super feliz pelo convite, por a gente construir uma história aí, que eu espero que alavanque muitas outras mulheres pra também seguir um caminho similar, se elas quiserem, né. Então meu nome é Solange Sobral Targa. Onde eu nasci, é isso que você me perguntou? Muito bem! Tenho cinquenta anos, nasci em 20/09/1972, em Cafelândia, São Paulo. Interior de São Paulo.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, não me contaram como foi o dia do meu nascimento. Não sei, sei que…. Assim, minha mãe, é engraçado isso, minha mãe fala muito do nascimento do meu irmão, que foi o primeiro filho, então eu só a segunda filha de dois filhos. E minha mãe conta muito da primeira gravidez, que foi até bem difícil no início. Do meu nascimento, ela fala pouco, então eu entendo que foi suave.
P/1 - E a escolha do seu nome, você sabe, tem alguma história?
R - A história é bem interessante! Na verdade tem uma história muito grande em relação a escolha do nome do meu irmão, porque a minha mãe, minha mãe tinha uma criança que ela conhece… Minha mãe é baiana, quando ela era novinha na Bahia e ela adorava um menininho que chamava Marcos Maurício. E ela sempre falava que o filho dela, então, se chamaria Marcos Maurício. E naquela época, a gente já começa um pouco dessa história do machismo, mas enfim, meu pai foi sozinho batizar o filho, batizar não, desculpe! Registrar o filho e ele decidiu que ele não ia colocar Marcos Maurício, ele ia colocar apenas Maurício. E minha mãe ficou super frustrada, ela conta essa história até hoje. Ela ficou bem chateada, bem frustrada. Eles resolveram, enfim. E aí na segunda filha, ela deu para o meu pai escolher o nome. Então o meu pai escolheu o nome Solange, era um nome que ele gostava, enfim, não teve nenhum conflito.
P/1 - Você já começou contando um pouquinho da origem da sua família, mas de onde são seus pais, seus avós? Se você puder contar um pouquinho.
R - Bacana Luiza, assim, como muitos brasileiros e brasileiros negros, acho que a gente vê a história se repetir, eu conheço pouco da minha ancestralidade. Meus pais são baianos, ambos se conheceram em São Paulo, vieram bem novos para São Paulo, quinze anos eles tinham. Mas ambos são baianos. Então minha mãe é de Jacobina, na Bahia. E meu pai é de Uruçuca, na Bahia também. Eles contam bastante, no caso da minha mãe, ela conta bastante da família, dos meus avós, e eu sou bem perguntadeira. Então quando era, principalmente criança, perguntava muito, então ela contava muito da infância dela, como era, dos meus avós. Meu avô tinha uma fazenda, enfim, como ele gostava de doar, então ela conta que ele ia buscar leite e voltava para casa, praticamente ele tinha que comprar o leite para a família dele, porque ele doava todo o leite que ele buscava. Isso você vai vendo minha história muito presente na minha família, essa coisa da gente trazer pessoas, oferecer, cozinhar para. Então tem bastante história da minha mãe. O meu avô, ele se casou três vezes, então minha mãe é do segundo casamento, do segundo casamento, então ela tem vários irmãos. Do casamento da mãe dela, ela, claro, tem convivência com todos, eu também tive muito. Mas ela chegou até a conhecer alguns irmãos dos outros casamentos. Da família do meu pai, também super emblemático, era muito emblemática para mim isso, quando eu era nova. Eu só conheci o meu pai, então meu pai veio sozinho da Bahia muito cedo, perdeu o pai também muito cedo. E enfim, e a gente não tem muita história de como era, ele conta algumas coisas, meu pai era muito brincalhão, mas eu não tenho esse registro. Uma coisa que na minha infância, foi emblemático de entender, é a questão de não ter avós, então eu não tive, eu não tive nenhum avô vivo, desde quando eu nasci, ali na infância, também na adolescência. Então, eu me lembro de ter visto uma foto dos meus avós paternos e tenho isso guardado na minha lembrança, mas eu não conheci, então esse aconchego do avô, eu não tive. Isso eu dei muito para os meus filhos, principalmente minha mãe, meu pai, foram muito presentes com eles, eles ajudaram no início ali. Então isso é um pouco que eu conheço da história da minha mãe, do meu pai. E o que eu conheço também, é tudo que tem é bem pouco. Mas foi interessante ter essa diferença. Então ver também a bravura deles de terem vindos sozinhos e ter conseguido construir algo. E teve isso também, a história da minha mãe, o que ela contava ali. No caso da minha mãe eu fui até a Bahia com ela, então eu fui no lugar que ela cresceu, então ela contava muito da fazenda que chamava Suzana, esse nome da fazenda, Suzana era uma coisa emblemática, assim, o que era aquilo. Muito interessante. E eu fui até lá, cheguei a ver uma escolinha que levou o nome da família do meu avô, ali na região, Então, enfim, a minha mãe tem bastante história aí que eu consegui trazer. Curta, mas foi intenso.
P/1 - Não sei, se você quiser contar um pouquinho mais dessa viagem, como foi? Foi só você e sua mãe, para a Bahia?
R - É! Essa viagem foi interessantíssima, a gente pode passar três horas só contando sobre ela aqui. Mas vou tentar resumir ela. Foi muito muito importante para mim, porque minha mãe já fazia sessenta anos que ela não voltava à Bahia. E eu fui com o meu marido para um evento profissional e ela foi junto. E foi muito legal, porque a gente foi na casa dos meus tios, interior da Bahia, então eu me lembro de chegar lá, minha tia tinha cozinhado uma buchada de bode e essa foi a minha primeira lembrança da viagem. Chegando na minha tia, ela me chamou na cozinha com o meu marido: “Olha filha, o que a tia fez para você”. Abriu uma panela, “é uma buchada de bode”. Aí eu já falei para ela: “eu não como não, mas o meu marido come”. Já começa uma diferença de realidade. E exatamente naquele momento que a gente chegou, eles estavam com um momento de falta de água lá, que é muito comum. Então tem ali o reservatório de água de chuva, tudo, mas chuveiro, por exemplo, não estava funcionando. Então entre outras, entre outras cenas ali que eu me recordo, dessa festa, da comida, do que tinha, do churrasco ali que foi preparado pra gente, tudo muito simples, mas com muito carinho. A gente comendo ali no chão batido do quintal, a família toda. E aí vamos tomar banho para dormir. E eu me lembro dessa cena, eu e o meu marido tomando banho, o famoso banho de caneca, então a gente tinha um balde, uma canequinha e nós dois tomamos banho com um balde de água e uma caneca. E isso foi muito, muito, muito forte para mim, porque me fez refletir, eu venho de um background, de família simples, mas eu nunca tinha visto aquele nível de simplicidade. E foi muito bom pra gente refletir o quanto de necessidade a gente gera na vida e que talvez a gente não tenha. O banho, para mim, é uma questão de relaxar o estresse do dia, então eu erroneamente, às vezes eu passo meia hora no banho. E eu consegui tomar banho com um balde em duas pessoas. Então, um balde pequenininho. Então o quanto a gente pode ser mais simples, o quanto a gente pode precisar e necessitar menos, quando a gente traz as questões ambientais e muito mais. Então foi uma viagem ali, me conectei, com… alguns tios eu conhecia, alguns tios eu conhecia só de nome. Histórias que eu ouvia falar, como a história da Suzana, dessa fazenda que minha mãe sempre contava, que ela cresceu ali, o que ela fazia com os irmãos, enfim. Então ver aquilo tudo, entrar nas casas, entrar nas casas no interior da Bahia, muito diferente do que a gente acessa. Então foi muito chocante e muito intrigante, até para a gente balancear o que a gente tem, o que a gente almeja, o valor que a gente dá para as coisas. De novo, acho que a gente poderia escrever um livro dessa viagem. Ela foi bem, bem, relevante. E ver a minha mãe, poder ter entregado isso para ela, ela voltar na Bahia, o lugar que ela cresceu, que ela trazia tantas histórias, ter revisto pessoas ali que ela não via há mais de sessenta anos, ter dado essa oportunidade também foi espetacular. Emocionante até.
P/1 - Qual é o nome dos seus pais? E como você descreveria o jeitinho deles?
R - Minha mãe se chama Eurides e meu pai se chama Manoel. Meu pai faleceu, minha mãe tá firmona ainda. Olha, eu descrevia Luiza, como dois guerreiros, sabe, dois guerreiros. Então meu pai era açougueiro, também um homem negro, chegou da Bahia sozinho, então toda dificuldade de conseguir conquistar algo, ter uma casinha. Então eu fui vendo isso. Conseguiu comprar uma casa de conjunto habitacional, nossa, que achievement né? Então muito legal ver toda aquela simplicidade, cada conquista que ele ia fazendo. Vou me emocionar algumas vezes aqui. E quanto esse pouquinho era super importante para eles e para a gente também, que a gente tava vendo a melhoria ali. E para minha mãe, minha mãe não trabalhava fora, mas ela… eu falo que muito dessa minha visão de querer ser uma empreendedora, ou de empreender um pouco, de me jogar para as coisas, vem muito dela também. Então ela era do lar, trabalhava em casa, mas ela tinha a atividade dela. Então a minha mãe era boleira, ela fazia salgadinho, fazia bolo para festinha e conseguia o dinheiro dela. Então ela tinha muito orgulho de falar que ela não precisava pedir nada para o meu pai, tudo que ela queria comprar ela comprava com o dinheiro dela. Então essa independência financeira também vem muito dela. E uma coisa que eu acho que eu trago dos dois… E teve muita gente muito relevante na minha vida, mas minha madrinha e meu padrinho, também atuaram muito como segundo pais ali e minha mãe para os filhos deles, a gente tinha uma relação muito próxima. Eu acho que esse conjunto, eles me ensinaram muito que não importa o que eu decidisse fazer na vida, mas que eu buscasse fazer e entregar com muita excelência, sendo muito bom. Então o meu pai era um açougueiro de supermercado, mas ele era o melhor açougueiro da cidade. A minha mãe era a boleira da cidade, mas não tinha um bolo mais gostoso que o dela e nem uma coxinha de frango. Nunca comi na vida, já viajei bastante o mundo, nunca comi na vida uma coxinha de frango tão boa como a da minha mãe. Então eu acho que é isso de você se dedicar, gostar do que você faz, empreender sim, ir atrás, se jogar, parece que é impossível, mas tenta. Isso é muito legal. E aí eu me lembro bem, bem pequenininha, bem pequena, mas enfim, não pequeninha, mas pequena, tinha uma excursão de oitava série, e é claro, a gente não tinha dinheiro para pagar a excursão e oitava série, então eu não iria. E eu falei: “não, eu vou nessa excursão, eu tenho que ir nessa excursão”. E o que eu fiz? Usando ali um pouco do business da minha mãe, eu fiz salgadinho. E no fundo, no começo a minha mãe me ajudava, ela fazia o salgadinho e eu vendia. Então vendia para toda vizinhança o salgadinho e fazia o dinheirinho. E aí minha mãe falava assim, minha mãe combinou o seguinte: “Olha, os primeiros ingredientes eu compro e faço para você, a partir daí, o dinheirinho que você ganhar, você já compra os ingredientes”. E aí foi muito legal isso, porque eu não conseguia fazer todos, mas kibe, por exemplo, que era mais facinho, eu conseguia fazer. Então, aí não só eu conseguia comprar, mas eu conseguia fazer também. E aí eu vendia, ou seja, eu geria todo o business. Eu batia na porta, vendia, entregava. E eu consegui financiar a minha viagem. Trago muito, muito, conhecimento deles dessa audácia, desse empreendedorismo, dessa força, de se jogar, de fazer, de trabalhar, de conseguir, de buscar com carinho e bastante dedicação, entregar com bastante excelente aquilo que você se propõe.
P/1 - E o seu irmão, como é a relação de vocês? Como era na infância?
R - Meu irmão é um fofo. Meu irmão é quatro anos mais velho que eu, então a gente teve… a gente vem de uma família muito próxima, de novo, a família da minha mãe que foi que eu consegui acessar mais e em casa também. Então a gente é muito próximo, a gente se fala com alguma frequência, quando eu vou para o Brasil, fico na casa dele. Hoje minha mãe mora, inclusive no prédio que ele mora. Então muito parceiro, meu irmão foi uma pessoa muito importante também, quando eu comecei a sair de casa para estudar, fazer faculdade, meu irmão foi muito importante, ele já tinha o trabalhinho dele, então ele também complementava financeiramente para me ajudar no começo ali da vida fora de casa, faculdade, cursinho, enfim. Então super positivo, a gente super se ajuda, quando ele tem um perrengue na família, uma questão, ele me liga. E não só financeiro, a gente, sabe aquela família que um mete a colher na casa do outro? Sempre tentando se ajudar. De vez em quando você toma um _______, “é minha filha eu que cuido”. Mas a gente se dá muito bem. Dividi tudo, conversa bastante, troca, quando está passando por um período desafiador profissional, pessoal, com os filhos, enfim, com o casamento, com a vida, a gente sempre troca bastante e conversa bastante. É uma relação bem saudável, bem positiva.
P/1 - E você comentou da sua madrinha e do seu padrinho. Tem algum outro parente, tio, amigo que foram pessoas importantes nesse seu primeiro momento de vida?
R - Eu tive muitas pessoas importantes, meu padrinho, minha madrinha, eu acho que vale um capítulo também, sempre os tive como segundos pais. Eles brincavam que eles eram os meus pais brancos. Era bem legal. Os meus padrinhos, na minha vida, foram as primeiras pessoas que eu acessei que tinha uma escolaridade melhor, então eram formados, minha madrinha era professora, meu padrinho era advogado. São oportunidades que você tem que te ajudam a enxergar um pouco mais, então eu me lembro, por exemplo, da primeira vez que a minha madrinha me levou para São Paulo, junto com ela. Então isso é muito… Eu me lembro andando, entrando na cidade de São Paulo, no carro, olhando tudo aquilo. Então são mundos que se abrem, são portas, são oportunidades que se abrem. Isso para um adolescente, para uma criança que só cresceu no interior, que só viu um lado do mundo, não que ele seja ruim, muito pelo contrário, mas essa abertura de espaço foi bem legal. E mesmo apoio nos estudos. Eu acho que era ali uma possibilidade, é possível você ver alguém fazendo faculdade, eu conheci, eu vi alguém que nada a ver com informática, com computação. Mas, na verdade, na minha infância muito próximo, eram as únicas pessoas que tinham uma faculdade ali. Também tive um tio de consideração, que foi muito especial, que a gente… nessa questão de cidade do interior, de se encontrar e vai almoçar na casa de um, vai jantar na casa de outro. Então a gente era muito próximo e esse tio foi muito relevante na minha vida, porque ele ajudou os meus pais a pagarem o meu cursinho. Então eu estudei a vida inteira em escola estadual, meus pais não teriam condições de pagar um cursinho e eu jamais… sem um cursinho, eu jamais acessaria uma Universidade Estadual em Ciências da Computação. Então esse apoio foi super relevante. Tive também todos os meus tios muito próximos, mas uma tia, tia Terezinha, que de fato, assim, morei na casa dela, isso foi super importante para eu conseguir fazer um colegial. Fiz um colegial técnico, a gente sempre pensa, tem que ter uma segurança, vai que eu não consigo uma faculdade. Então tinha um colegial técnico, em informática. E ela morava numa cidade… a cidade que eu morava não tinha essa formação. E na cidade do lado, que era Lins - eu morava em Promissão - tinha. Então eu morei com ela também, super gratidão. Alguém abrir a casa, tio, mas nem sempre hoje em dia você encontra tios que abrem a casa para receber. E minhas primas também, então só foram pessoas muito especiais. Se eu for contar a jornada toda, sem dúvida, tiveram pessoas sempre ali, jogando para a frente, apoiando, falando: “É possível”. Mas trazendo aqui alguns que foram, de fato, divisores de água aí, onde eu consegui chegar.
P/1 - Na sua família tem algum costume especial? Data comemorativa ou alguma receita da família mesmo?
R - A gente vai criando alguns hábitos e comidas também, então sempre tem. Sei lá, no dia das mães o que a gente pede para minha mãe fazer, que todo mundo gosta. Mas acho que tem uma coisa, que eu vejo que é bem particular, que é bem interessante. Então, eu casei, meu irmão casou e a gente consegue ver que tem umas coisas, que mesmo as outras pessoas chegando, elas não pegam, porque é muito nosso. Então, a nossa família, a gente tem uma coisa de ficar acordado conversando, sabe? Então quando a gente se encontra, e aí você vai vendo, todos os agregados vão dormir, mas a gente fica lá. Então sempre ficava, era eu, meu pai, minha mãe e meu irmão. E agora eu vou vendo meus filhos, eles também vão, também vão ficando. Então é muito engraçado, a gente para na cozinha e vai tomando chá, então vai tomando chá e conversando, tomando chá e conversando. E às vezes a conversa acaba, um cochila, aí a gente volta na conversa que já teve, outro acorda. E a gente fica até tarde, às vezes a gente vai dormir quatro da manhã, conversando. Então isso é uma coisa muito nossa. Mesmo quando eu voltava para casa, quando os meus pais estavam em Promissão ainda, eu saía para a faculdade, ou para o mestrado, enfim. Então era sempre isso, a gente voltava, os agregados, todo mundo ia dormir, aí tava lá, a gente. Até hoje, quando eu vou para o Brasil, to na casa do meu irmão, minha cunhada vai dormir, marido vai dormir, tá lá na cozinha, eu, minha mãe e meu irmão, tomando chá e conversando, cochilando. Então, essa coisa de ficar junto, conversar, bater papo, tomar um cházinho e ficar na cozinha, acho que é bem, bem nosso. Não dormir, a gente fala assim: “Não dorme, fica conversando”, acho que é bem nosso. E assim, se reunir também… e aí comer junto, cozinhar junto, acho que é uma coisa também… eu me lembro muito, na minha infância, da gente se encontrando, não só com alguns amigos muito próximos, como alguns que eu citei aqui, mas com família também, então minha mãe se juntando com os irmãos, ou os irmão se juntando na nossa casa, ou alguns amigos muito próximos, como minha madrinha, esse tio que eu falei. Então sempre final de semana era muito prazeroso. E bacana que não precisava de muito, então era aquela coisa, cada um leva um pratinho, um leva um frango assado, um leva uma carne assada, um leva o arroz, nem essa divide, não, tudo muito simples, cada um levava o que podia e a gente passava o dia ali, almoçava e a molecada brincava junto. Acho que são costumes que a gente vai trazendo. Minha mãe sempre repassou isso muito para gente, então também de trazer os amigos. Claro que ela tinha uma intenção de conhecer os nossos amigos com mais profundidade: “Traz todo mundo para casa, porque aqui eu vejo os seus amigos”. Mas também de abrir a porta e trazer todo mundo. E aí ela cozinhava, fazia bolo, fazia um chá, fazia café. Ou a gente cozinhava todo mundo junto. E são costumes que eu trouxe para mim, então quando eu fui fazer faculdade fora, a minha república, era a república onde eu trazia os amigos para cozinhar também. E fui ensinando para os meus filhos também. Então, “Os amigos? Traz os para cá, traz todo mundo”. E é muito legal, quando eu vejo, o meu filho mais velho, hoje, já acabou a faculdade, mas enfim, quando ele estava na faculdade ele me ligava: “Mãe, esse final de semana meus amigos vão fazer um macarrão aqui, meus amigos vão vir aqui para casa, como é que faz aquele macarrão?” É um gosto tão bom, de você passar uma coisa que é tão saudável. Eu já pensava: se tá em casa cozinhando com os amigos, não tá fazendo merda na rua. Mas dá um quentinho, você vê que passou uma coisa boa para os filhos, que eles conseguem replicar, uma coisa tão saudável no mundo de hoje, isso de trazer os amigos para casa. Por aí!
P/1 - Você lembra de como era a sua casa de infância? Você consegue descrever um pouquinho para a gente? Tem alguma história muito importante?
R - Bacana. Tive algumas, e sim, acho que elas foram capítulos interessantes. Eu acho que a primeira casa, que eu morei até mais ou menos nove anos, era uma casa bem simples, era uma casa mais central. Em cidade do interior você tem muito isso, se é central, se é mais bairro. Eu me lembro que era perto do mercado municipal da cidade, onde o meu pai trabalhava, era perto da escola também. Mas era uma casa simples, uma casa geminada. Então, esse foi um momento bem interessante também, onde você divide, então era uma casa geminada, cada um tinha sua casa, mas o terreno tinha só uma balaústre que dividia. Então basicamente a gente…. E é interessante que era uma família que tinha vários filhos, mas tinha uma menina da minha idade, e a gente, naquela época, naquela época que eu vivi ali, a gente cresceu muito como irmã. Era muito interessante isso, que uma ficava doente, outra ficava também. Então, a Rosana, essa amiga, faleceu e foi uma amiga irmã da minha infância, uma pessoa muito especial. Era muito muito interessante isso, uma ficava doente, a outra ficava, tudo que a gente fazia, a gente fazia junto, então foi um presente ali durante a minha infância. Quando eu tive nove anos, foi quando meu pai conseguiu comprar uma casa, na época era uma casa de conjunto habitacional, chamava Nosso Teto. Isso… é bem, bem interessante essa coisa, de você vai morar, agora vai morar na vila, então foi um período de você entender isso, vai morar na vila, vai morar longe. E com isso algumas coisas vem junto, então, era realmente um bairro bem afastado, um conjunto habitacional. E quando a gente se mudou, lá as ruas não eram asfaltadas, então eu me lembro que eu ia para escola de bicicleta com meu pai e quando chovia muito, fazia muito barro, então já teve dias que eu tentei ir para a escola e não consegui. Eu era muito CDF. A gente tentava ir, aí tinha muito barro, tinha que voltar para casa. Então histórias que… É muito legal. Histórias que fazem a gente ser quem a gente é, as dificuldades da vida. Outra passagem interessante também nessa casa… a casa não era coberta, então não tinha forro, era só telha, então quando chovia, respingava dentro de casa. Então eu me lembro, claramente, de uma cena, eu consigo ver, deu deitada na cama e minha mãe abria guarda-chuva em cima da gente, pra não chover. Porque de fato, se você ta numa casa que só tem telha, como chove no Brasil essa nossa chuva, então respinga dentro de casa. São algumas algumas histórias ali que eu me recordo. Aí depois a gente voltou a morar mais próximo da cidade, região mais central. E aí, enfim, cada casa foi tendo uma história. A primeira casa que a gente morou, depois que a gente saiu ali do Nosso Teto, eu me lembro que uma coisa interessante também, tinha uma família americana que morava na frente da minha casa, uma família bem de vida. Nossa casa era bem simples, mas na frente era uma casa bem grande, uma família americana. E era muito interessante para mim, foi o primeiro contato que eu tive com alguém falando uma língua muito diferente da minha. Então, enfim, cada casa vai trazendo uma história e uma lembrança. E aí também acho que muito forte, eu me recordo de que a gente sempre tinha uma cozinha, ou uma varanda, onde eu me lembro dos meus amigos ali. Como minha mãe cozinhava, então eu tava sempre ali fazendo os meus caderninhos de receita, testando uma receita nova com a minha mãe, ou provando uma receita que ela tinha, então minha casa sempre foi essa casa de trazer, então também tenho essas lembrança desses quadros, da gente na cozinha, da gente na sala, na varanda com os amigos, enfim. E minhas amigas até hoje… minha mãe é meio a mãezona da turma, “E a dona Eurides, como que tá?” Então, muito legal.
P/1 - O que você mais gostava de fazer quando você era criança?
R - Brincar, né gente. Criança gosta do quê? De brincar. Ah, eu gostava… interessante isso, eu tenho algumas recordações, assim, eu falo que eu… Eu fui conseguir comprar uma roupa nova, minha, quando eu comecei a ter o meu primeiro trabalho. A minha vida inteira eu fui usando roupa de doação, roupa usada, roupa que alguém me deu. E eu me lembro que tinha uma amiga da minha mãe, que todo ano ela vinha passar algumas semanas na nossa casa. E sempre que ela vinha - ela tinha uma irmã, que eu não conhecia, mas que ela trabalhava com artesanato - e toda vez que ela vinha, todo ano, ela trazia uma caixa para mim, então eu esperava o ano todo para ver o que ia ter naquela casa. E aquela caixa, às vezes tinha uma bolsinha de crochê, uma pulseirinha, eu amava aquilo. Então eu sempre estou cheia de penduricalhos, adoro. Sempre tive essa coisa de que roupa eu quero vestir, mas também não comprava roupa, mas gostava muito de roupa. Então essa coisa de se emperiquitar, de vestir, de por um vestidinho, de ver o que tinha ali disponível para usar, e uma bijuteria, era uma coisa que eu gostava bastante. Brinquei muito de boneca, então fazia aniversário de boneca, gostava muito de casinha, passei por tudo isso. E meu pai tinha muito essa coisa de música, sonata, vinil, então era uma coisa também que eu gostava muito de acompanhar com ele. Canto todas as músicas do Roberto Carlos de cor. E acho que isso, assim. De novo, o que eu gostava fazer, gostava muito de brincar, então… Me lembrei, essa casa que eu morei até nove anos, a gente morava numa rua, onde a gente conseguia juntar toda meninada ali dos quarteirões próximos, então essa coisa de brincar na rua, era muito, muito bom. Então a gente ia para rua brincar, brincava de bets, brincava de pega-pega, esconde-esconde, tudo isso. Eu lembro que o meu irmão andava de carrinho de rolimã, então era uma frustração, porque ele me usava para fazer, ele me sentava no carrinho de rolimã e eu fazia a estradinha, sabe? Que eu ia com duas pedrinhas, aí na hora que era para de fato… era uma rua de descida, era uma delícia brincar de carrinho de rolemã lá, perigoso, mas era bom. Aí na hora de brincar, ele brincava com os meninos e não deixava eu brincar junto. Olha o machismo aí, né. Então ele me usava para fazer a estradinha do carrinho de rolimã, eu adorava, mas depois eu queria dirigir o carrinho de rolimã e não podia, era a vez dele. A gente brincava muito de baralho também, adoro até hoje jogar buraco. E aí a gente juntava um monte de molecada, jogar buraco, passa anel. Enfim, essas brincadeiras. Brincava de bola. Acho que essas brincadeiras todas que eram muito presentes, eu acho que na minha geração, principalmente morando em cidade do interior, brincando na rua. Eu acho que passei por tudo isso, na casa do vizinho, trazendo todo mundo para a minha casa. Acho que é um pouco disso que eu trago.
P/1 - E você pensava o que você queria ser quando crescesse?
R - Yes! Sempre pensei no que eu queria ser quando crescesse. Até os nove anos eu queria ser psicóloga. E com nove anos eu decidi que eu ia trabalhar com tecnologia. É isso! Na época falava processamento de dados, que a gente falava, enfim. Mas até nove anos eu ia ser psicóloga e com nove anos eu decidi que eu ia fazer tecnologia.
P/1 - E como surgiram esses interesses?
R - Muito interessante, eu acho psicologia, essa coisa meio humanas, é meu lado frustrado, porque eu não consegui. Gosto muito dessa coisa mais de entender comportamento, de entender as pessoas. Acho que veio daí querer fazer psicologia. De onde, com nove anos, veio a decisão por computação, sorry! É a hora que eu frusto, não sei! Eu acho que naquele momento a gente começava ouvir alguma coisa de tecnologia, que isso poderia ser muito disruptivo para o futuro. Então essa abertura de poder mudar o futuro, de poder mudar o cenário, acho que veio um pouco disso. Mas não tem uma cola perfeita de alguém, ou de algo que eu vi, não tem, não tem essa cola perfeita.
P/1 - Mas pelo que eu estava entendendo, discos, música, esse tipo de coisa fazia parte da sua casa?
R - Isso fazia bastante parte, eu gostava bastante. Tem uma coisa… as decisões que você tomou e as que você tomou por não seguir. Essa questão da dança, da arte, são coisas que me pegam muito. Então ouvir uma ópera, ouvir um concerto, consumir essa arte, é uma coisa que me arrepia, eu não preciso nem saber de quem é a ópera, de quem é a obra. Sentar e ouvir é uma coisa que me arrepia, me arrepia mesmo. Eu tenho muita conexão, a dança também é uma coisa que eu tenho, até cheguei a fazer balé, com quarenta anos, depois de velha, então nunca consegui ser bailarina. Mas isso também é um sonho frustrado, então, quando eu era bem pequenininha, que morava ainda nessa primeira casa que eu falei até os nove anos, do lado da minha casa, tinha uma aula, tinha um espaço ali, que tinha uma aula de balé. E eu me lembro, sentadinha, quietinha, olhando ali pelo vidro, as meninas fazendo aula de balé. Mas eu não tinha dinheiro para fazer aula de balé, não podia fazer. Mas chegou um certo momento que eu comecei a fazer umas aulas de violão, tava mais acessível e tal. Eu consegui, era um preço acessível, tinha ganhado o violão, fui fazer aula de violão. E aí eu queria fazer o balé, mas eu tinha que escolher, e eu, em geral, quando eu começo uma coisa, é difícil de eu desistir. Então, eu falei: “Cara, não vou desistir do violão”. Então, não fui fazer o balé. Por fim, eu acho que eu não tinha tanta vocação para música, mas eu tinha… eu acho que eu tinha mais para dança, mas infelizmente eu acho que eu segui o caminho ali errado. E aí mais para frente a minha vida, como eu disse, eu fui fazer umas aulas de balé. É muito prazeroso para mim ver dança, é muito prazeroso para mim ver arte, é muito prazeroso para mim consumir um conserto, consumir uma apresentação. Mas isso hoje é mais hobby, é mais para alimentar a alma e para te dar fôlego para trabalhar com uma coisa que é completamente diferente, que é a tecnologia. E também passa por comportamentos, com certeza, no final do dia tem sempre seres humanos por trás das máquinas, mas uma profissão bem diferente da…
P/1 - É, pensei… você comentou das músicas, das partes mais artísticas, mas assim, computador, televisão, fazia parte da vida de vocês?
R - Não. Televisão sim, sempre aquela televisão mais simples possível, preto e branco, que quase não pegava. Computador, não, nunca tive computador. Assim, quando eu fui fazer… fiz meu colegial técnico, eu não tinha computador em casa. Mesmo na universidade, fiz minha universidade toda sem ter computador, então eu me lembro quando eu tinha que fazer trabalho, ia para a faculdade de fato, ficava até a madrugada lá, enfim, ou ia a tarde, mas nunca tive.
P/1 - E escola, que recordações você tem desse período, professores, matéria, alguma história, algum amigo, enfim?
R - As minhas recordações de escola, elas são bem positivas também. É claro que tem um lado de ser um dos poucos, ou a única menina negra. Eu tinha pé chato, então usava botinha, então eu sofri muito bullying quando era pequena, pra caramba. Mas assim, o que eu trago é uma recordação ainda positiva da época de escola. Eu sempre era ali a primeira aluna da classe, então sempre estudei muito, sempre tirava as melhores notas, sempre tirava nota A, sempre era muito admirada pelos professores, até porque eu me saía muito bem na aula. Eu me lembro também que sempre que tinha uma oportunidade para exercer alguma liderança, “Quem quer ser o presidente da classe?” Eu já tava lá, sempre. Eu falo que essa coisa de liderar muito cedo aparece. Então tenho uma recomendação boa. De um espaço sim, que eu sofria bullying com alguns, mas também tinha muitos amigos. E sempre uma referência de uma pessoa que se dedicava bastante, mas sempre tirava as melhores notas. Então sempre ajudando os amigos também a estudar, enfim, a entender melhor a matéria. E tem uma professora em particular, tinha algumas, tinha uma professora de ciências, dona Cida, que eu me lembro até hoje, assim, era aquela, sabe aquela professora que todo mundo quer perto, sabe, assim? A forma como ela explicava, a didática que ela tinha, paciência que ela tinha, a completude como professora, então era super admirada. E tinha uma outra professora também, que eu trago, que era a dona Regina, que essa era uma professora muito rígida. E eu me lembro que ela chegou nova na escola, então chegou assim abalando, ela era muito rígida, ela dava nota baixa pra todo mundo. E eu me lembro que uma vez ela falou para minha mãe, ela falou: “Olha, eu não entendo o que acontece com a Solange, porque…” E eu conversava em aula pra caramba. “Ela conversa na aula e eu faço pergunta para ela e ela me responde, e aí chega na prova ela me tira nota dez, ela tira A, não consigo”. Ela não conseguia me encurralar, porque eu tava sempre… E a gente tinha uma relação espetacular também, porque ela era muito exigente, muito ríspida ali com todo mundo, mas eu conseguia sempre tá além do que ela estava esperando. Então, enfim, são dois professores ali que eu… da minha… Aí tem a minha primeira professora de primário, tia Dair, que também eu me recordo, um período legal, acho que essa coisa de menina negra, e ali com a minha botinha, cabelinho diferente, uma roupinha diferente, indo para a escola. Quando você tinha um professor que você via que te suportava, dava um quentinho, um aconchego. Ou que de alguma forma, professores que conseguiam ressaltar o que você conseguia fazer, te colocava num lugar mínimo ali de protagonismo, isso sem dúvida nenhuma ajuda. Então eu acho que forma, sei lá, lembrando rapidamente aqui, três pessoas interessantes.
P/1 - E juventude, o período de descobertas, enfim, como foi esse momento para você?
R - Bacana. Bem bacana, assim, quando eu falo de juventude, o que me vem é sempre amigos, diversão, eu gosto muito, até hoje, sair, balada, sair para dançar, sair para dançar com os amigos. Então, eu já contei, eu sou quatro anos mais nova do que meu irmão, meu único irmão, e minha mãe não deixava sair de casa, com quinze anos eu queria sair para baladinha, minha mãe não deixava. Então, a única forma de eu poder sair, era meu irmão ir junto. Então eu me lembro de, convencendo meu irmão, trazendo meu irmão para a minha turma, para ele poder me acompanhar e eu ir para a balada. Então, isso que eu trago, coisa de… E pra mim, assim, sem julgamentos, nada, mas também foi muito saudável, eu não bebia, nunca usei drogas, também sem julgamentos, mas era essa coisa mesmo de se divertir, de encontrar os amigos e sair para dançar, dançar a noite inteira, dá muita risada, voltar para casa… Eu me lembro que a minha mãe não dava a chave pra gente, porque ela queria ver que horas que a gente chegava em casa. Então… Mas foi muito bacana, então eu trago muito isso. De novo, que eu tento passar muito para os meus filhos. Eu me lembro, o Ranon, o meu filho mais velho, quando ele começou a universidade, eu ligava sexta-feira para ele: “E aí Chico, onde você tá? Tá na balada? Porque se tiver em casa tá com depressão! Pelo amor de Deus, vai para a balada!” Então sempre provoquei os meus filhos, claro, com esse equilíbrio, de conseguir se divertir de uma forma saudável, mas ir para a rua, sair, ir para barzinho, ir para a balada, restaurante, enfim, o que for possível com os amigos. Então eu me lembro, me lembro muito disso. Também me lembro de momentos, então pega um momento ali, colegial, então… Eu contei aqui que meu pai teve um apoio de um tio para eu conseguir fazer o cursinho, então esses três anos de cursinho, foram para mim… Desculpa, um ano de cursinho, foi um ano muito muito denso, porque eu não via a situação de eu ter essa ajuda financeira e ver o esforço do meu pai - eu fiz um cursinho em Bauru, Objetivo - e eu não passar na faculdade. Então foi um ano muito intenso ali, onde eu só estudava. Eu me lembro das amigas, da minha mãe perguntando: “Mas Eurides, a Solange vai ficar louca de tanto estudar.” Ela: “Sola você vai ficar louca.” “Não mãe, eu vou passar nesse vestibular.” Então foi um período bem denso pra mim, onde eu também abri mão de sair, de passar com os amigos, para estudar e, de fato, conseguir tomar proveito desse esforço que meu pai, que meu tio ali faziam. E deu muito certo, porque eu consegui entrar na universidade que eu queria. Então eu acho que tem essa coisa de muita festa, sair com os amigos, baladinha, festa, mas também esse lado, de agora é estudo, tem que tirar nota. Tempo todo ali, mesmo colegial, estudar muito, tirar nota, estudar muito e tirar nota, sempre foi meio parte de mim. E que eu trago para o trabalho também, essa super dedicação. Isso tem um link também, quando a gente volta na realidade, nas histórias de mulheres negras, no trabalho, essa coisa da gente ter que se provar. Para os outros e para você também, de que você consegue, de que é possível, de que você entrega, de você entrega com qualidade, que não necessariamente espera-se de você no primeiro encontro.
P/1 - Como foi receber a notícia de que passou na faculdade? E onde você fez, em que cidade você tava?
R - Olha, eu me lembro, assim, quando você vê no jornalzinho o seu nome, é uma mistura de felicidade, alívio. Me lembro da minha mãe contando pros amigos: “Nossa, minha filha passou.” Federal de São Carlos, em Computação, era muito concorrido. As pessoas perguntavam: “Mas o que você fez, Eurides, para a sua filha passar?” “Não sei. Ela estudou igual uma louca.” Então foi espetacular.
P/1 - Você foi a primeira da sua família a entrar na faculdade?
R - Sim! Sim! Na verdade o meu irmão já tinha ingressado, aí sim, o primeiro. Mas numa universidade estadual, sim.
P/1 - E como foi esse período de vida? Tiveram estágios, enfim, algum trabalho muito marcante, descobertas? Não sei. Você começou a trabalhar por aí, nessa mesma época?
R - Não, não. Minha faculdade eu consegui focar inteira, então era uma faculdade integral. Eu tinha, o que me ajudava, eu tinha a bolsa de iniciação científica, então não era um estado fora, mas sim era um trabalho. Então eu tinha bolsa de iniciação científica, na época, tinha bolsa da FAPESP, que era uma bolsa, que de fato, tinha um valor um pouco melhor. Então isso foi o que me proporcionou conseguir focar 100% ali. O que eu acho que foi muito bom, essa vivência de universidade estadual, ou federal, de você estar o tempo todo ali dentro, consumindo, aprendendo. Como a gente sabe, eu acho que a faculdade, tem, claro, tem o conteúdo, mas essa vivência, é super importante. Então tinha bolsa, a FAPESP, então isso me ajudava. Só depois da faculdade que eu começo… Na verdade eu fiz o mestrado, e aí no final do meu mestrado, aí eu engato já CI&T e começo, de fato, a trabalhar. Então minha primeira experiência profissional, foi no final do mestrado, e praticamente já foi na CI&T, que é a empresa que eu estou até hoje.
P/1 - Você já engatou direto o mestrado da faculdade?
R - Exato! Eu terminei a faculdade e engatei direto no mestrado. Aí fiz mestrado também em Ciências da Computação, na Unicamp. E no finalzinho do mestrado eu falei, nossa, preciso começar a trabalhar. Aí andando na Unicamp eu vi um cartaz da CI&T, E aí eu falei: “Pronto, vou trabalhar na CI&T”. Fiz entrevista, comecei como a quinta colaboradora da CI&T. E aí fiz meu último ano de mestrado já trabalhando, também foi super complexo, assim, de carga de trabalho, fechando tese de mestrado. E fiz a minha carreira toda na CI&T, comecei como ______, desenvolvedora de software, na CI&T e fiz toda a minha carreira.
P/1 - Solange, se você puder dividir um pouquinho dessa sua trajetória. Acho que se quiser comentar um pouco dessa junção de mestrado com início de trabalho, não sei, o que você fez de mestrado, se quiser também dividir. Mas um pouquinho dessa trajetória dentro da empresa.
R - Perfeito, perfeito. Quando eu fazia faculdade, a minha bolsa de iniciação científica aconteceu em Inteligência Artificial, esse era o assunto. Meu mestrado eu fiz nessa mesma área, redes ATM [Asynchronous Transfer Mode], então um pouco mais complexo de explicar agora o conceito. Mas fiz a minha tese nesse mesmo tema. O mestrado foi muito interessante, assim, mas eu sou uma pessoa muito prática, então foi legal o mestrado, mas depois ali, no segundo ano, eu queria muito ver as teses se transformando em realidade e também vendo a aplicação disso no mundo corporativo. Então no finalzinho ali, eu já engatei na CI&T. Na CI&T, como eu comentei, eu começo como desenvolvedora de software, muito rapidamente, depois ali do primeiro ano, quinta colaboradora, então uma empresa pequenininha, isso é bom, de certa forma abre oportunidades. Depois de um ano, um ano e pouquinho, eu já comecei a assumir um pouco de posição de liderança, e aí você vai crescendo, liderança de pessoas, liderança de contrato, liderança de um time inteiro, de uma região. Enfim, então fui fazendo a minha carreira, passei por vários papéis, dentro do que a gente chama de desenvolvimento de software, eu passei por vários papéis. E fui sempre desenhando a minha carreira para estar muito próximo de cliente, próxima de cliente. Acho que uma outra coisa interessante também, nesse crescimento de carreira, é que eu fui sempre pedindo desafios. Então eu conto, acho que todo o salto de carreira que eu dei, ninguém me trouxe de mão beijada, eu sempre fui pedindo esse próximo passo. Como, sei lá, região do Rio, uma região ali que a gente não estava com um resultado tão interessante, ao risco de fechar aquela região. Falei: “Me dá aí o Rio de Janeiro que eu vou desenvolver”. Poxa, mercado financeiro, talvez não bata com a nossa proposta de valor. Aí eu olhei, falei: “Poxa, mas eu tenho várias empresas de mercado financeiro aqui na minha carteira, então vamos desenhar uma estratégia para desenvolver o mercado financeiro”. E tá lá, deu certo. Tô aqui agora. Poxa, não falo inglês direito, poxa, a gente precisa expandir para a Europa. Por que não? Vamos para Europa, vamos expandir a Europa. Então acho que a minha história de desenvolvimento de carreira, foi sempre muito de olhar um desafio que parecia muito impossível, “poxa, quero”. Tive muito suporte também, de falar: “Não to pronta”, mas tive muito suporte. Mas acho que todos esses desafios eu pedi. Eu pedi, fui atrás. Cá estou agora no meu desafio mais próximo, que é o desenvolvimento dos nossos negócios, da CI&T, na Europa. Aceitei! Hoje cresceu bastante, é uma empresa de quase sete mil pessoas, distribuídas aí em Brasil, Estados Unidos, China, Japão, Canadá. Mas na Europa, a nossa operação ainda não é tão expressiva e aqui estou nesse desafio de expandir as nossas operações para Europa, já tem dois anos e meio e posso dizer que a gente já tem colhido resultados bem positivos aí, depois desse foco, vamos dizer.
P/1 - Você tá liderando aí?
R - Sim, sim!
P/1 - Você tem um costume de celebrar as conquistas, esses passinhos, isso faz parte da sua vida ou não tanto?
R - Faz super. Na verdade eu acho que tem duas, eu falo, que a magia… Eu aprendi isso, a magia não acontece na zona de conforto, então essa saída da zona de conforto… Te colocar numa situação que dá aquele medo, de falar: “Poxa, não vou conseguir”. Então, isso é interessante. Então é um misto de dar aquele medo, dar aquele frio na barriga, “será que eu vou conseguir?” Mas aí passa um tempo… Então sim, é uma questão de celebrar, mas é uma questão também de falar: “É possível”. Eu falo que eu adoro ver o ser humano extrapolando as suas barreiras e indo além do que a gente acha que é possível. Eu acho que na minha história… Luiza, eu brinco que eu nasci com muitos não, não por ser mulher, não por ser negra. Por estar numa cidade do interior, talvez os meus pais não tivessem todo esse acesso, a me colocar no mundo universitário, então eu precisava acreditar que era possível, precisava ser muito positiva para conseguir ver que era possível uma outra realidade. Então isso eu trago muito até hoje, eu acho que se tá tudo ok, se não tem muito desafio, não é para mim. Eu gosto de projetos que são rotulados como impossíveis. “Isso não é possível de fazer.” Então me dá que eu vou. Esse é o desafio que eu gosto. Então isso naturalmente é um misto de muito medo, muito frio na barriga, mas por outro lado, quando você consegue, não é só uma celebração, sabe? É também uma questão de falar: “Olha, como o ser humano pode”. E quando ele fala que quer, quando ele pede ajuda, quando ele consegue o suporte. Nada do que eu consegui, nem na minha vida pessoal, nem na minha vida profissional, eu consegui sozinha. Mas todos esses projetos só foram possíveis… Primeiro, porque eu falei: “Eu vou!” Segundo, porque eu pedi, também, muita ajuda. E terceiro, esse olhar positivo de falar: “Vai dar certo!” Com o que a gente joga para chegar do lado de lá? Eu acho que isso foi muito importante também. Então, sim, tem uma celebração muito grande. Mas eu vou te falar a verdade, que quando eu consegui, em geral, eu falo: “nossa, alívio, agora eu preciso de um dia para me refazer, porque como a batalha… foi uma guerra”. Aí falo: “Nossa, agora eu preciso de um dia ou uma semana para desligar e recarregar as baterias”. Por exemplo, o desafio de ter vindo para a Europa liderar o nosso crescimento aqui. Eu não tinha, o meu inglês não é espetacular hoje e não era a dois anos e meio atrás. Então… Também nunca tinha liberado uma operação internacional, então se você fosse checar as caixinhas, tava longe de estar pronta para liderar a expansão da CI&T na Europa. Mas essa é a hora que eu falo: “Esse é o conhecimento que eu quero complementar na minha vida”. A minha última etapa no Brasil, ela tinha sido super interessante e desafiadora, de apoiar grandes empresas num processo de transformação digital, sobretudo empresas do mercado financeiro, bancos, então esses foram meus seis anos no Brasil, meus últimos seis anos no Brasil. É claro que sempre tem espaço para aprendizado. Mas eu tinha uma coisa da língua também, que desde pequena… Lembra que eu contei que tinha uma família que falava inglês… Então, tinha um mundo para ser explorado ali. E eu sempre tive muito desafio para falar inglês, fui começar a aprender inglês, depois de velha já, depois da faculdade. Então tinha um impossível ali. Aqui na Europa. Me jogar nesse projeto é mais uma vez essa prova de que o ser humano pode fazer tudo o que ele se propõe. Mas por outro lado também, acho que a gente precisa aprender a gerenciar as nossas fragilidades, as nossas vulnerabilidades, chorar no dia que você não consegue, pedir ajuda no dia que você precisa. Falar: “Cara, acho que eu não vou conseguir, mas vamos lá”. Eu sei que quando eu terminar essa batalha… Talvez eu não chegue onde eu quisesse, mas eu estarei melhor do que de onde eu partir. Então é sobre aprendizado, é uma jornada de aprendizado e eu quero trilhar. Então, acho que quando fecha um ciclo, eu acho que tem um misto de celebração, mas tem isso também, de “nossa, agora eu preciso recarregar as baterias para achar um próximo desafio”.
P/1 - Você consegue dizer o que representa, para você, ser uma mulher negra, mãe e ocupar esse espaço, ter uma posição de liderança, conquistar e ter crescido junto com uma empresa. O que isso significa, representa para você?
R - Hoje eu consigo. Há um tempo atrás, não. Na verdade o meu entendimento como mulher negra, mãe, esposa, filha liderando uma empresa, co-liderando uma empresa de tecnologia, essa ficha toda, essa liga toda, ela caiu não faz tanto tempo, quando eu comecei a me aprofundar mais no assunto de diversidade e inclusão. Até aí, eu diria que eu era simplesmente mais uma mulher, com toda essa diversidade que a gente acabou de falar, mas sem entender tudo que tinha por trás de estrutural, de machismo estrutural, de racismo estrutural por trás disso. Eu vivia sim, todas as micro agressões, mas eu não sabia que aquilo era sobre gênero, era sobre etnia, eu achava que era sobre mim. Então, por várias vezes, eu tava numa reunião e a ideia que eu dei ninguém entendeu. E a ideia que o meu colega, e colega mesmo, colega… Contei que eu trabalho numa empresa, onde eu entrei como a quinta colaboradora, então eu tenho amigos, amigos de vida, trabalhamos juntos. Meu marido, inclusive, trabalha junto. Então você vê que várias vezes, isso não era intencional, para me prejudicar, mas por muitas vezes, eu dava uma opinião, ninguém entendia. Às vezes era o meu próprio marido que dava a mesma opinião, ou a sugestão, e todo mundo entendia. Eu me lembro por várias vezes, voltando para casa com ele, falando: “Mas porque é que eu falei e ninguém entendeu? Você falou a mesma coisa, com outras palavras, talvez, e todo mundo entendeu”. E a ideia é a sua. Então isso eu vivia. Talvez os homens consigam articular, eu sempre liderei com homens, sempre trabalhei com homens. “Poxa, talvez eles saibam articular melhor”. Eu entendia que tinha algo, mas eu não sabia da complexidade, o quão estrutural era isso, entende? Mas eu vivia. E aí chegou um determinado momento que eu falei: “Não vou virar homem. Eu não vou deixar de ser quem sou. Eu não vou falar diferente, eu não vou…” E a partir daí, eu comecei a usar saia para trabalhar. Até hoje eu quase não trabalho de calça, eventualmente. E percebe, eu não entendia nada das questões de diversidade e inclusão. E eu comecei a usar muita saia para trabalhar, porque eu não queria perder o que eu era. Inclusive, a simplicidade de onde eu vim, da minha família. Eu não queria articular de uma forma diferente, eu queria articular de uma forma mais relaxada mesmo, sabe? Às vezes brincando, às vezes mais tranquila, mesmo se eu tivesse falando com a liderança executiva de um banco. Claro que você tem que trazer o vocabulário, mas eu não queria mudar muito quem eu era. E aí mais para frente, ali perto de quando eu comecei a estudar sobre diversidade e inclusão, aí foi quando eu comecei… Aí a ficha começou a cair. Eu me lembro do dia que eu estudei micro agressões de gênero, eu estava numa aula de inglês. Eu chorei esse dia. Porque esse dia, foi quando de fato eu entendi, de uma forma didática, que tudo aquilo que eu tava passando, tinha nome, tinha estudo, tinha literatura por traz. E que infelizmente, não era só eu que sofria, eram muitas mulheres. E aí dá um alívio, que fala: “Poxa, não é sobre mim”. É sobre todo… uma pressão que acontece sobre um gênero, sobre um etnia, não é sobre mim. E aí eu comecei a fazer vários toques, com duas mulheres, com três mulheres, quatro mulheres, com oitenta mulheres, pra entender como aquilo acontecia. E vai dando bingo, as histórias vão se repetindo. E aí isso, claro que começa… e junto com isso, pra mim, foi muito importante começar a olhar um pouco de números na nossa sociedade brasileira, então ver que mais de 50% da população é mulher, mais de 56%, 54% da população é negra. E essas populações, eu diria, mas essas pessoas não estão, ou nas empresas, ou em posições de liderança, caindo aí para 14%, me lembro dos números na época, 14% de mulheres na liderança de grandes empresas, 7%, 4%, desculpa, de pessoas negras na liderança de grandes empresas, 0.4% de mulheres negras em liderança, ocupando posições de liderança em grandes empresas. Isso me chocou muito! Esse choque bateu também, e aí algumas pessoas foram bem relevantes nesse momento. Eu contei para vocês, acho que antes da gente começar essa entrevista, o meu filho mais velho, ele é professor de história, ele é historiador. E em alguns momentos ele começou a me provocar, então ele falava: “Mãe, e aí, você, uma mulher negra, numa empresa de tecnologia”. E eu no auge da minha ignorância… E aí vou trazer um pouco do que a gente veio falando, de super dedicação, de tentar achar um protagonismo. O que eu respondia para ele, de uma forma muito, muito equivocada, naquele momento, era, “mas é isso mesmo filho, eu sou esse exemplo, eu sou esse contra exemplo, então se eu cheguei até aqui, qualquer mulher, qualquer pessoa negra pode chegar, é sobre super esforçar.” E ele queria me matar. Você imagina um professor de história ouvindo esse absurdo. E ele falava: “Não mãe, isso não é sobre você”. E eu falava: “Como não é sobre mim? É sobre mim sim. Eu me dediquei, eu cheguei até aqui. É sobre mim”. Então para um pouquinho essa história. Mais para frente ali… Uma pessoa do nosso marketing também me provocou para falar: “Poxa Solange, você é uma mulher negra, posição de liderança, que tal você começar a falar um pouquinho sobre isso. E a minha resposta foi… Natália, maravilhosa! “Natália, eu topo falar sobre isso, mas eu não vou correlacionar nada, eu não vou correlacionar com o fato de eu ser mulher, negra, isso não tem nada a ver uma coisa com a outra, se eu tô aqui é porque eu me esforcei”. Então, de novo, no auge da minha ignorância. Quando eu comecei a estudar diversidade e inclusão e sim olhar esses números, e sim olhar essa realidade, entender o que é uma micro agressão de gênero, isso me fez entender aquilo que o meu filho tentou me explicar tanto, que de fato não é sobre mim. Tudo bem, eu fui uma heroína que consegui vencer. Com apoio sim, lembra aquele meu tio que me ajudou, que eu fui parar na universidade. Mas quantas pessoas tiveram essa oportunidade que eu tive? E todas precisavam. Lembra? Eu estudei quase como louca para conseguir entrar no vestibular. A gente tem que exigir isso sempre? Só porque você nasceu mulher, só porque você nasceu negro? Não, não é sobre isso, não é sobre essa sociedade que a gente precisa construir. Então ali me caiu a ficha do que o meu filho me falava tanto. Isso não é de fato sobre mim, não é nada sobre meu super esforço. Ok, eu fui um caso à parte, mas isso é nada. Isso é sobre um racismo estrutural e sobre um machismo estrutural. E hoje sim, agora respondendo a sua pergunta, hoje eu entendo a minha posição como uma mulher, mãe, e aí é uma coisa importante também, porque quando a gente estuda pay gap, a gente entende que o principal pay gap, ele não é de gênero, ele é de maternidade, porque a mulher, em geral, ela entra numa situação pior de pay gap quando ela é mãe. Então sim, como mulher, como mãe, como negra, como filha também. Hoje, com cinquenta anos, então começando a entrar em menopausa e aí vem outras questões, então você vê os seus pais envelhecerem, ou perder pessoas, então você entra numa outra complexidade, seus filhos também estão adultos, então eu tô com um filho no Brasil agora. Uma filha que tá com dezenove, que agora está na Austrália, que foi pra estudar Medicina. Uma outra que tá começando agora: “O que eu vou fazer de vestibular?” Então a vida vai trazendo complexidades e tudo isso você não separa do profissional que você é. Então como que você faz toda essa complexidade de mulher, de negro, de mãe, certo? De filha, e você consegue ser uma profissional no ambiente corporativo, não é simples, não é simples. Então exige sim com que as empresas pensem nesse tema, pensem em ações afirmativas, não só para trazer mais pessoas de grupos menos apresentados, mulheres, pessoas negras, lgbtqia+ ou lgbtqiapn+, pessoas com disabilities. Então para que a gente traga todos esses recortes, mas não só para que a gente traga, que é a diversidade, mas também que a gente se prepare dentro das empresas, como a gente faz uma inclusão de verdade, não só criando espaço, onde de fato eu posso ser quem eu sou, eu posso trazer o meu background de uma pessoa simples e mesmo que eu traga hoje uma bagagem técnica muito bacana e todo meu background de tudo que eu já entreguei em tecnologia e hoje eu entendo o valor que eu tenho numa empresa. Mas que eu ainda assim consiga ser um ser humano, que mostro minhas fragilidades, porque isso também tem a ver com a minha missão. É essa empresa que eu acho que a gente precisa criar, uma empresa que acolhe seres humanos, que são super competentes, que são super inteligentes, que contribuem. E que a gente também tenha diversidade, que a inteligência ela vem, não só inteligência acadêmica, ela também vem nessa soma de realidades diferentes. Então hoje eu entendo sim, que eu trago vários recortes, que infelizmente a gente não tem os grandes números na empresa. Então isso me traz sim, eu tive muita oportunidade para chegar até aqui, mas me traz também uma responsabilidade de hoje trazer essa pauta ativa, a pauta de diversidade e inclusão, de ___ no ambiente corporativo, sim, provocando as empresas, a empresa que eu tô e outras empresas, para que a diversidade aconteça, mas sobretudo que a inclusão aconteça de verdade, com ambiente saudável para os grupos menores representados e para que eles consigam também chegar nessa posição de liderança, nessa posição de poder. Quando a gente tá aqui, sem dúvida essa representatividade é importante para mostrar para esses grupos de que é possível, mas também para que eles saibam que tem gente trabalhando ali para que isso se torne de verdade possível, talvez não amanhã, mas num prazo aí ainda palpável. Porque, de fato, isso exige ações afirmativas, exige intencionalidade nas empresas, exige mudança na governança, exige budget, exige uma mudança das empresas trazerem esse assunto de fato como cultura, pra que fato ele seja realidade. Então, hoje sim eu posso falar que eu tenho uma consciência muito boa, não perfeita, mas muito boa do que ser uma mulher negra, mãe, filha, ocupando uma posição de partner numa empresa de tecnologia. E hoje sim, empoderada, eu vou usar essa palavra, de liderar uma operação global que está indo, inclusive, muito bem e crescendo. Há um tempo atrás, até baseados nos meus próprios valores, eu nem falaria muito de cargo, “sou partner da empresa”, não usaria isso. Mas hoje, voltando na sua pergunta, eu entendo que é preciso falar. A gente tem tão poucas lideranças de mulheres negras, nessa posição, principalmente em empresas de tecnologia. Então é preciso falar, parte de eu estar aqui com vocês, é porque sim, se eu não venho aqui, não conto essa história, a gente, infelizmente, só terá história de homens brancos. E tem muita mulher, tem muita mulher negra construindo muitas histórias, inclusive nos ambientes corporativos. E muitas vezes, elas não contam. Então, hoje eu tenho essa consciência. Mas ela é recente.
P/1 - Virar referência, né?
R - Sim, sim. E é interessante isso de virar referência, porque, de novo, só nessa jornada de diversidade e inclusão, é que eu fui entender o quanto essa referência é importante. Já tive casos de executivas incríveis, que estavam ali optando por não seguir a carreira, ou porque queriam ficar em casa, ou porque iam cuidar dos filhos, não que isso não seja uma opção importante que a mulher pode tomar. Mas depois de algumas conversas, ela falou: “Opa não, eu consigo conciliar e eu quero sair”. E hoje é uma executiva brilhante. Então como essas conversas, ou muito interessante quando eu converso com mulheres negras, então todas as dúvidas que eu passei na minha história de carreira, na minha história de vida, vendo essa pessoa passar e você, hoje, consegui dividir armas que me ajudaram. É claro que cada ser humano tem uma história e ele vai encontrar suas próprias armas. Mas é interessante que quando você fala com outras mulheres, sobretudo com outras mulheres negras, ou até com outras pessoas negras, tem muita história que se repete. Então essa divisão de que armas que eu usei, o que me ajudou, que alavanca me trouxe até aqui. E nem sempre é uma alavanca técnica. Então isso é muito legal e você vê que, de fato, as pessoas olham, emocionante. Mas tava numa reunião com uma mulher incrível que trabalha comigo e a gente tava falando, a gente chama de _____, quando a gente vai apresentar o que a gente está fazendo para o cliente, ou para um prospect, para uma empresa que a gente quer que seja o nosso cliente. E a gente tava fazendo esse _____, apresentando na nossa, a gente tem um escritório em Portugal, delivery center em Portugal. E era uma empresa super importante, aqui de UK, os executivos voaram para Portugal para a gente fazer essa apresentação. E essa mulher incrível, espetacular, uma liderança nossa, tava fazendo a apresentação. E foi bem legal. Semana passada eu tava em reunião com ela, ela me contando. E a gente estava exatamente falando sobre diversidade e inclusão, questão de gênero, e ela falou, falou: “Olha, Sola, parece que não, mas o fato de você estar lá, me deu segurança para fazer aquela apresentação”. E ela foi brilhante, ela faz um trabalho fantástico, não tinha nada a temer. Mas ela tava cheia de medo. E ela falou, ela falou: “Olha, você sabe o que me ajudou, eu olhava para você e eu não tava nem aí, aquela sala cheia de homem, eu não tava nem aí para o que eles estavam achando, olhava para você e você me dava força”. E eu falei: “Então eu tô mandando bem”. Então olha isso, assim, o quanto você transforma vidas quando você suporta, mesmo sem saber. Então é verdade, toda mulher… Eu diria que toda pessoa de um grupo menos representado, que tá hoje numa posição de liderança, seja ela qual for, não parece, mas a gente tem um papel muito importante de trazer outras pessoas. Tem uma amiga que dividiu comigo uma vez uma frase, que fala: “A mão que eu puxo também me alavanca”. Isso é muito forte. É claro, mesmo eu hoje, eu ainda tenho vulnerabilidade. Também falo: “Cara, será que eu vou conseguir? Não é para mim”. As pessoas, às vezes, me perguntam: “Você tem medo?” Claro, claro que eu tenho. E eu brinco, eu falo: “O que separa a pessoa que atravessou a ponte da pessoa que não atravessou, não é o medo, que o medo todo mundo tem, é a forma como você enfrenta o medo”. Então eu tenho, é claro, até hoje eu tenho. Será que eu vou dar conta? Mas quando você ouve um feedback desse, então essa mão que você tá puxando, ela também me alavanca, porque essa pessoa me dá força para falar: “Eu não posso desistir”, porque tem dia que dá vontade. “Eu não quero mais, eu vou parar”. Mas não, eu preciso por essas mulheres, por essas pessoas negras. Então a mão que eu puxo, alavanca, te dá uma força, te dá uma energia de falar: “Se eu desistir eu serei mais uma mulher que desistiu”. E eu conheço várias que desistiram, várias que desistiram. Então, eu acho que hoje sim eu entendo essa responsabilidade. E se eu tô aqui firme e forte é porque ela é parte da minha jornada, dessa transformação das empresas. Não para que elas sejam mais diversas, inclusivas, mas para que elas sejam mais humanas também, para que a gente entenda… Eu falo que o que separa o profissional do pessoal, é só um terno e uma gravata, é muito pouquinho, então essa separação não existe. Então a gente, de fato, precisa fazer com que as empresas sejam mais humanas. E o interessante disso, é que quando elas conseguem ser mais humanas, elas são mais inteligentes, elas têm acesso ao problema mais rápido e elas conseguem resolver os problemas com mais agilidade também. No final das contas, elas mudam mais rápido, elas têm resultados melhores e elas impactam muito mais. Então é positivo até para o negócio.
P/1 - Olha a psico lá de trás. A psicologia lá de trás. Tá aí!
R - Tá vendo. Eu te falo, ela tá presente o tempo todo. Eu me lembro quando meu filho, o Ranon, ele falou que tava decidindo que curso ia fazer, ele primeiro falou que ia fazer Engenharia. E começou a fazer um cursinho até Engenharia e depois, no meio do cursinho, ele falou: “Não, vou fazer humanas”. E aí a gente foi na universidade de portas abertas na Unicamp e a gente foi sentar na área de humanas com várias áreas para entender um pouquinho. E eu me lembro da conversa na sala ali de Ciências Sociais. Todo mundo sentado no chão, gente, eu me achei. “É aqui que eu deveria estar. O que eu estou fazendo lá na tecnologia?” Mas, sim. Fazendo um link, tem muito de comportamento, tem muito. E de falar a verdade, essa é a parte, acho que do meu trabalho, que mais me encanta. É claro que entregar um projeto desafiador é maravilhoso, mas a parte que eu gosto disso, de novo, é ver que o ser humano, ele sempre pode superar, parece que é impossível, mas se é em grupo, em time, você vai, consegue, entrega.
P/1 - Eu vou, então, caminhando para o fim, contra minha vontade (risos), mas é isso. Eu queria te perguntar, como você conhece o seu companheiro?
R - Que delícia de pergunta. Eu acho que a palavra é companheiro, parceiro, sabe? Eu conheci o Célio no mestrado. Ele conta que no primeiro dia de mestrado, eu cheguei na Unicamp de ônibus, ele me viu e ele falou: “Eu vou casar com essa mulher”. Eu não vi ele, então não posso dizer o mesmo. E foi engraçado que ele falou que de repente eu entrei na mesma sala de mestrado que ele, ele falou: “Então eu vou casar mesmo”. E a gente ficou amigo, como eu contei, eu adoro passear, sair, encontrar os amigos, chamar todo mundo para a minha casa. A gente ficou amigo, nas festas, nas baladas, eu vi que ele vinha sempre querendo dançar comigo, tudo bem. Dançar com todos os amigos. Eu comecei a perceber que quando ia dançar com outro amigo, ele não deixava, ele sempre entrava na frente. “Pô, que amigo mala. Não deixa nem eu paquerar”. E aí foi bacana, a gente… Me lembro um dia que a gente foi num show, em São Paulo juntos, foi eu, ele e uma amiga e aí a gente indo ele pegou na minha mão, “opa, que bacana”. E aí a gente deu o primeiro beijo… Não, ele só pegou na minha mão nesse dia. E aí depois a gente foi para… um dia lá na Unicamp, a gente fazia mestrado juntos na Unicamp, a gente foi almoçar, voltou e tudo. E aí tem um jardim bem gostoso, que era do lado do departamento de Ciência da Computação na Unicamp, um lugar bem arborizado, e aí, foi ali que a gente deu o primeiro beijo. E é um companheiro de vida, assim, sabe? O Célio é uma pessoa incrível, ele me complementa muito em tudo, então é muito legal. Eu sou bem acelerada, dinâmica, o Célio é a paz em pessoa. E é muito bacana, que quando alguma coisa acontece, ele trava e aí eu fico muito calma, então até nisso a gente se complementa. E o pique, a gente gosta de fazer as mesmas coisas, a gente gosta de sair, gosta de receber amigos. O Célio ama música, então assim, é um amigo, é um parceiro de vida, é um companheiro. A gente trabalha junto, então a gente fez mestrado junto, a gente fez entrevista junto para começar a trabalhar na CI&T, a gente trabalha junto, a gente trabalha aqui ainda mais junto agora. E eu brinco que ai dele quando a gente chega em casa que ele vai tomar banho e não me chama para tomar banho junto. Então, assim, é um companheiro de vida, a gente, de fato… a gente divide tudo, então os conflitos, as história, as alegrias, os perrengues. Dificilmente eu faço uma coisa que eu não troco com ele, o contrário também. Em geral, a gente viaja junto, mesmo que o propósito da viagem seja um só. Então hoje eu atuo também como conselheira na Vivo Telefônica, a nossa última reunião foi em Madrid. Jamais, é claro, ele falou: “Vou para lá também. Eu trabalho remoto, mas eu vou também”. Ele não precisaria. Então é uma história super fantástica. E acho que o bacana, o Célio também vem de background de uma família um pouco melhor que a minha, mas também muito simples. E quando a gente começou a fazer o mestrado, a gente começou a namorar, na verdade, e depois de um ano e meio a gente falou: “Vamos casar?” “Vamos”. “Então vamos casar”. “Vamos!” Fomos lá casar, certo. Aí chegamos no cartório: “A gente quer casar”. O rapaz: “Não, vocês tem que registrar, espera ver se alguém…” “Ah, tá bom. Então vamos esperar um pouquinho, vamos esperar um mês”. E a gente se casou e foi bem bacana que a gente não tinha nada. E a gente não tinha nem dinheiro para fazer festa de casamento, a gente fez a nossa festinha ali num barzinho, com os amigos. O dinheiro que a gente ganhou na festa de casamento, a gente comprou os nossos primeiros móveis, então a nossa cama, por exemplo, ainda é aquela cama, meu sofá, ainda é aquele sofá. Então a gente tem ainda algum desses móveis, que os amigos ali fizeram uma vaquinha e nos deram. E tudo que a gente foi construindo a partir dali foi muito junto. Então não sabíamos dirigir, vamos aprender a dirigir, “vamos comprar o primeiro carro”. “Agora vamos comprar casa, será que a gente consegue?” “Não, vamos fazer um financiamento”. “Será que a gente paga?” O Célio… “Não, a gente vai pagar, se não conseguir pagar a gente devolve a casa, mas vamos comprar”. Então, bem bacana essa, acho que essa parceria que a gente conseguiu conquistar. Voltando num ponto que você me perguntou lá atrás, da minha adolescência, e aí trazendo um pouco também dessa coisa de menina, de mulher negra e tal. Eu sempre me achei feia, porque nos ambientes que eu vivia era muito disso, meu cabelo não era mais bonito, a cor da minha pele não era bonita. Hoje eu entendo de uma forma diferente e vejo os meus filhos maravilhosos e vejo que eles também se acham bonitos. E hoje eu também me acho incrível. Mas muito trabalho para chegar aí. E eu acho que o Célio também foi uma pessoa muito importante nisso, de falar que eu era linda. Gente, acho que ele tá casando… acho que ele tá vendo outra pessoa. De falar que eu era linda, que eu era incrível, que tudo que eu fazia era espetacular. Então até hoje ele é essa alavanca, que mesmo quando eu acho que nada que eu fiz é bom, ele vem e fala: “Não, mas foi fantástico” “Mas e aquela reunião?” “Foi fantástico!” “Mas aquela apresentação?” “Foi ótima”. Então mesmo que ele minta, eu acho que às vezes ele mente, mas a intenção e o resultado é tão positivo na minha vida, que dá aquele calor. Então, conheci no mestrado, a gente está esse tempo todo juntos e é uma pessoa incrível. Parceiro de trabalho, de balada, enfim. E super importante, também, acho que na criação dos filhos, trazendo essa questão também de mulher, mãe, na nossa vida acho que nunca teve muito quem cuida, quem não cuida, então a gente sempre dividiu tudo. Vamos no médico, vamos juntos levar no médico. Tem que fazer a comida, “você que vai fazer, ou vai cuidar, você que vai cuidar”. Eu vou dizer que hoje tem algumas coisas que ele faz até mais que eu com as crianças, sabe? Com os adultos. Então, uma parceria super bacana e super positiva. Aqui também, se hoje eu estou aqui, sem dúvida o Célio foi um, é uma alavanca.
P/1 - Quanto tempo vocês estão juntos?
R - A gente está juntos há 28 anos mais ou menos, uma coisa assim, já perdi as contas.
P/1 - E Solange o que a maternidade representou na sua vida?
R - Muito, muito. Ser mãe, pra mim, acho que é uma coisa muito incrível. Talvez assim, um dos principais projetos, sei lá se eu poderia falar isso, ou iniciativa da minha vida. Eu acho que essa arte de criação, você teve um ser humaninho e você dar a luz, ela é muito incrível, a gravidez, ela te traz uma força sobre humana, você se torna tão poderosa para defender aquele bichinho. E depois você vê aquele bebê e ele depende de você. E eu amamentei os meus filhos, tive o privilégio de conseguir amamentar todos os meus filhos até um ano ali, então seis meses só com leite materno, depois entrando ali com água, suquinho e tal, até um ano um pouco continuei a amamentação. E mesmo trabalhando. E aí entra a minha mãe também, então super feliz. Eu falei que não tive essa coisa da vó, mas de ter dado para os meus filhos. Então a minha mãe vinha para ajudar a cuidar, porque eu também não queria mandar para berçário pequenininho, só queria o cheiro da vó e de casa. Então, nossa, quantas vezes tirava leite e deixava em casa e minha mãe da ali no copinho. A maternidade, acho que desde o início ali, ela foi muito importante para mim. E ter três filhos, eu acho que é mágico, porque eu acho que eles conseguiram me ensinar o quanto o ser humano é diferente, por natureza, porque você vê, é claro que os filhos vão nascendo os contextos vão mudando um pouquinho, até a sua condição, a sua maturidade, enfim, o seu momento, mas os valores foram os mesmos, mas são pessoas tão diferentes. Então isso também me ensinou muito, de como o ser humano, ele é complexo, é denso, num sentido positivo também, mas como ele é diferente, como a gente precisa tentar compreender. Falho miseravelmente, tá? Eu falo que falho em todas as minhas missões, de mãe, de filha, de profissional, tomo porrada, tomo invertida de todo lado, mas me dedico bastante. E tive muito essa coisa de estar próxima deles, o que eu conseguia quando estavam pequenos, ou no máximo de deixar a minha mãe. Não parei a minha profissão, muito pelo contrário, então voltava para trabalhar, minha mãe tava ali, o leitinho tava próximo. Mas eu acho que a maternidade e os filhos, eles trazem uma sabedoria que é incontável. Inclusive de relativizar o que é um problema de verdade, eu falo que poucas coisas, por exemplo, me dão medo na vida, mas filho doente me treme as pernas. Esse medo assim de, né?
P/1 - Você comentou que mudou, foi para Londres há uns dois anos, no meio pandemia, como foi esse momento?
R - Foi isso mesmo. Eu vim pra cá na pandemia, o mais velho ficou no Brasil, as duas mais novas vieram, no momento fazendo aula no Brasil ainda, remoto aqui, mas também sem poder sair de casa, porque tava em lockdown. Então o desafio de língua, liderar business aqui completamente… Então eu diria que não foi um momento simples, mas também foi um momento prazeroso, a gente fez algumas escolhas, a gente ficou cinco semanas na casa do professor de inglês, o que foi bom, também, para a gente se ambientar, entender e estudar bastante inglês. Depois a gente optou por morar numa região um pouco mais central de Londres, mais próximo, porque a gente queria entender um pouco a cidade. Então foi bem bacana, porque conforme foi abrindo, as meninas começaram a ter muita autonomia de sair, pegar metrô sozinha, então elas experimentaram também uma liberdade que não tinham, então foi um momento legal também. Hoje a gente mora num bairro um pouco mais tranquilinho de Londres. Então, assim, acho que foi um momento de muito desafio para elas também, de pandemia, os amigos estavam no Brasil, as aulas eram remotas, elas também não podiam entrar numa escola aqui ainda. Mas acho que a gente foi conseguindo calibrar também, “poxa, vamos viver como turista, vamos passear bastante, fazer alguns passeios aqui na Inglaterra mesmo, tentamos morar numa região central para bater perna muito e conhecer Londres”. Então foi interessante. Uma experiência bem, bem interessante que eu queria ter, de sair fora, bem desafiadora, mas foi bem legal. Tem sido.
P/1 - E qual é o seu maior sonho hoje?
R - Meu maior sonho hoje? Eu tenho um legado que meu pai deixou, o meu sonho é ser feliz. Então eu acho que tudo que a gente busca na vida, eu acho que no final das contas você quer viver bem, você quer ter boas relações no seu trabalho, com os seus filhos, com a sua família. Eu acho que a gente está vivendo uma experiência bem diferente, foi a nossa primeira saída em família do Brasil, para viver fora, tô gostando muito da experiência de viver aqui. Adoro o Brasil também. Mas está sendo legal esse complemento. Eu acho que sonho eu tenho vários, mas sobretudo isso, como ser humano mesmo, de conseguir aproveitar a vida, a sua beleza, esses momentos que a gente tem em família, ou mesmo no trabalho com os amigos que você vai fazendo, para que tenha uma construção sim, profissional, que seja interessante, que isso também traz complemento de felicidade. Mas que eu continue encontrando e melhorando esses caminhos de paz com os filhos, com os amigos no trabalho, com os colegas de trabalho, acho que isso que no final do dia faz a gente viver essa completude de ser humano, profissional, pessoa profissional. Simples quanto isso: ser feliz. Simples e tão complexo, tão difícil. Mas acho que eu tô num momento agora de… eu ainda tô no começo de uma jornada bem diferente, então tem uma iniciativa muito grande pela frente. Eu preciso fechar essa página antes de abrir outra, por enquanto é conseguir escrever esse livro.
P/1 - Ia te perguntar justamente isso, que você já deu uma palinha. O que você quer deixar como legado?
R - Eu acho que tem perspectiva essa pergunta, quando eu trago ela para o ambiente profissional, hoje eu acho que eu atuo muito, me esforço muito para essa construção de empresas mais humanas, empresas onde realmente a gente consegue equilibrar business, negócios, com evolução também pessoal, com pessoas saudáveis, emocionalmente, fisicamente falando. Então acho que isso, sem dúvida nenhuma, é um legado. E de vida, como pessoa, acho que isso, uma pessoa que sim, nasceu com muitos nãos, mas que eu consiga mostrar que é possível, quando a gente se dedica e quando a gente pede ajuda e quando a gente se propõe. Então isso eu tento passar para os meus filhos também, “não desista”. Você quer? Se você quer, Go for it! Tenta, não desiste não. Eu acho que, pessoalmente falando, esse era um pouco do legado que eu queria deixar, como que a gente torna o impossível possível. Um pouco dessa pessoa que quebra barreiras e que transforma os ambientes, transforma os espaços para melhor.
P/1 - Gostaria de saber se você quer se atentar a mais alguma coisa, alguma história, deixar alguma mensagem, algo que eu não tenha te perguntado?
R - Acho que não. Acho que a gente passou por bastante coisa, Luiza. Acho que tá bem completo. Acho que a mensagem final é essa mesmo, eu acho que o ser humano, ele é um potencial indescritível. Então não existe nada que a gente não possa tentar, e de novo, nem sempre a gente vai conquistar 100% do que a gente queria, mas a gente não abandonar os nossos sonhos, muito pelo contrário, a gente pegar os nossos sonhos e buscar essa conquista, mesmo que a gente não consiga, mas esse movimento de busca, ele é muito importante. Então eu acho que a minha mensagem é isso: não deixe os seus sonhos, profissionais, pessoais, então busque o que você quer, no mínimo, no mínimo, entenda isso como uma história de aprendizado, porque algum aprendizado a gente sempre tira de tudo. E eu acho que é um outro, um complemento disso também, a gente aprender a ser grato pelo que a gente tem, então talvez você nunca vai ter tudo o que você almeja, mas também aprender a ser grato ao que você tem, eu acho que é uma questão importante para nossa felicidade. Então, vá atrás dos seus sonhos, busque e se você não conseguir tudo, seja grato e consiga aproveitar o que você conseguiu.
P/1 - Como foi dividir um pouquinho da sua história, algumas lembranças dividir com a gente, como foi esse momento para você?
R - Muito bacana, emocionante. Você falou, a gente vai ficando aqui e vai conversando. Super bacana. Muito gostoso. E de novo, hoje eu entendo muito que isso não é só um momento bacana da gente de conversa, eu acho que tem um tema muito importante que a gente volta, de diversidade, inclusão, de gênero, de etnia, toda uma questão estrutural que a gente tem que vencer na sociedade brasileira. E eu acho que essa dedicação, e entendendo esse link todo, isso não é só prazeroso, mas tem um propósito. Então é espetacular. Super agradeço.
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