Programa Conte Sua História – Histórias de Consumo Consciente
Depoimento de Juan Muzzi
Entrevistado por Lila Schneider e Joyce Pais
São Paulo, 27/09/2016
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV543_Juan Muzzi
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Vamos começar, por favor, falando o seu nome, local e data de nascimento.
R – Ok. Meu nome completo é Juan Carlos Calabrese Muzzi. Eu sou uruguaio, nasci na cidade de La Paz, Departamento de Canelones, em 1949.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Maria Estela e _0:00:45_ José, de descendência italiana.
P/1 – Os dois?
R – Os dois.
P/1 – Como você descreveria seus pais?
R – Meu pai, um empreendedor, sempre trabalhou por sua conta, nunca conseguiu fazer nada, trabalhar para algum esquema, algum sistema, sempre foi independente. A minha mãe tinha que compensar e trabalhava para o governo, era empregada do governo porque tinha todo mês certinho entrada de dinheiro que era o que ajudava a criar os filhos. Mas eles conseguiram criar dois filhos e ir até o final da vida.
P/1 – Você tinha mais um irmão?
R – Sim, tenho mais um irmão. Vive na Argentina. Ele é parapsicólogo.
P/1 – Parapsicólogo?
R – Trabalha na Espanha e em Buenos Aires.
P/1 – E o que você lembra da sua infância?
R – Maravilhosa. Se fosse de novo seria tudo igual. Muito feliz, muito livre, brincando naqueles campos, naquela terra e participando de tudo. Sempre fomos, eu e meu irmão, crianças felizes, bem resolvidas, sem dúvida. Isso no panorama geral, depois tem os panoramas particulares.
P/1 – Pode falar.
R – Sei lá, tem tanta coisa específica, não sei.
P/1 – Momentos marcantes.
R – Um momento que mais me marcou, por exemplo, o meu avô era um homem muito rico e ele deu pra cada filho uma fazenda. E para o meu pai e para o meu tio não, porque meu tio, naquela época uma filha tinha que ser freira e um filho tinha que ser padre. Então um tio meu foi pra ser padre e uma tia pra ser freira. Só que eles não queriam e falaram pro meu pai: “Pô, me ajuda a sair do convento aqui”. Ele ajudou, pulou o muro lá, aquelas histórias todas. Só que o avô ficou sabendo e tirou ele da herança: “Você não tem mais direito a nada”, tirou os dois. E o resto da família ficou rica, né, tanto que construíram a igreja que eu te mostrei a foto lá. Mas eles ficaram pobres, os dois. Aí tinha que começar aquela vida, pegaram um dinheirinho pra iniciar alguma coisa. Então ele começou a construir coisas, fazer, tinha ônibus, táxi, canteras, tinha tudo o que podia fazer, mas nunca ganhou dinheiro, não sabia como se ganhava dinheiro, sempre perdia, sempre quebrava. Eu falei a história do ônibus que não cobrava a passagem, o táxi também não cobrava a passagem, e por aí vai. E aí terminou quebrando. O que aconteceu? Eu precisava trabalhar porque a família ficou pobre, aí eu ia arar as terras na fazenda de um desses tios meus. E começava às quatro da manhã porque a gente almoçava às nove da manhã, um trabalho árduo. Aí eu ia de noite, por aqueles caminhos de terras coloradas, longo, eu lembro sempre aquilo lá, ia arar terra lá. Mas no galpão tinha uma bicicleta pendurada, velha lá, anos e anos, aí falava pro meu tio: “Puxa vida, tio, essa bicicleta, não dá pra gente?” “Não, essa bicicleta é importada, é uma relíquia”. Mas tanto, tanto insisti até que um dia ele falou: “Olha, pode pegar essa bicicleta”. Na época eu tinha 12 anos, peguei essa bicicleta e deixei ela um brinco, linda, linda, pintei, arrumei, fiz tudo e comecei a trabalhar de bicicleta. Aí virou uma maravilha, né? Conheci a liberdade. Porque eu nunca tinha tido uma bicicleta, não sabia o que era uma bicicleta, a não ser aquela de criancinha. E pronto, aí minha vida ficou uma maravilha. Só que um dia meu pai falou: “Olha, não temos comida em casa, nós temos que vender a bicicleta”. Aquilo foi um golpe, foi o primeiro golpe que eu senti na minha vida, vender a bicicleta foi a pior coisa que poderia me acontecer, assim não conseguia mais trabalhar, não saía do meu quarto, ficava o dia inteiro trancado, foi um problema. Aí meu pai falou: “Bom, pra resolver isso eu vou te arrumar um emprego numa oficina de bicicletas”. Incrível, né? (risos) Aí fui trabalhar numa oficina de bicicletas. Trabalhei muito tempo lá até que um dia chegou uma bicicleta, sem última palavra, o dono da bicicleta era um grande corredor uruguaio, chamava _0:05:08_, foi o maior ciclista do Uruguai por um tempo lá. E ele comprou uma super bicicleta importada, tal e eu estava lá na oficina e chegou essa bicicleta lá. E eu vi e fiquei encantado, né? Não tinha ninguém, cidade tranquila, eu peguei a bicicleta e saí a passear e esqueci, fiquei andando de bicicleta. Quando eu voltei o homem estava na porta. Aí como castigo ele falou: “Você está dispensado”. Cheguei em casa, meu pai, foi um desastre. E aí começou um pouco esse, aí comecei a andar de bicicleta, correr, tive uma vida muita perto dessa liberdade que eu tinha conhecido, que me cativou, né? E eu sempre fiquei com isso na minha cabeça, talvez até inconscientemente sem dúvida, né? E foi passando, sempre trabalhei, sempre tive bicicleta, até que chegou nesse momento, os últimos 15 anos, 18 anos, que eu resolvi fazer uma bicicleta popular, que todo mundo pudesse ter, que o cara por mais pobre que ele fosse ele podia ter uma bicicleta. São as campanhas que estamos fazendo hoje nas escolas, as crianças recolhem plástico e ganham uma bicicleta pra levar pra casa. O que eu não pude fazer, eu estou fazendo agora com as escolas em programa social. Então você vê, tudo fecha, tudo tem a ver, nada é por acaso.
P/1 – Começou desde cedo, né, essa paixão pela bicicleta.
R – Desde cedo, sim. Essa foi uma das histórias que mais me marcou. Também tiveram outras, né, mas sempre fazendo coisas, sempre, eu puxei do meu pai, do meu avô, que eu vi ele trabalhando no granito e de repente aparecia um anjo, um cavalo, era uma mágica isso pra mim, ele conseguia fazer um cavalo de uma pedra. Incrível, né? E eu ficava assim do lado olhando aquilo lá como se fosse um milagre. E eu comecei a fazer também, só que eu fazia em madeira porque a pedra machucava muito os dedos, enfim, era complicado. E eu comecei a fazer esculturas com dez anos, de madeira. E eu fazia umas garças altas de madeira e vendia nas fábricas de móveis lá no Uruguai. E eu fazia de noite, trabalhava, estudava e ia fazendo essas coisas. Mas foram eles que me influenciaram. Por isso você falou por que o Muzzi, né? Porque ele era Muzzi. E meus tios que trabalhavam com ele também, tudo era o lado Muzzi da família. O Calabrese era o lado vinho, que fabricava, tinha a bodega e tal, e do empreendedorismo. Aí juntou a arte e o empreendedorismo dos dois lados da família, meu pai que nunca trabalhou pra ninguém, nunca conseguiu alugar a inteligência pra ninguém, a inteligência é uma coisa da gente, você não pode alugá-la para um sistema em função da plus valia, né? Ela é tua. E ele entendia assim. E ele me passou isso, tanto que eu nunca consegui me alugar, eu sempre fui independente. Tem seu preço, muito caro, mas é aquela história, a gente faz feliz, tá bom, então vamos embora (risos).
P/1 – Mas explica melhor essa história do Muzzi, Calabrese aqui.
R – O Calabrese era o lado empreendedor da família e o Muzzi era o lado artista da família, então a família se dividia, pra mim, nessas duas facetas. Eu era empreendedor porque eu via isso na minha família do meu pai e eu entrei na arte por causa do lado da minha mãe, do meu avô, pai dela, que era escultor, que veio da Itália pra Argentina, Tandil é o nome da cidade na Argentina onde eles foram chamados pra ir lá nessa cidade trabalhar as pedras. Não deu certo, aí veio pro Uruguai e a gente foi morar, eles foram morar ao lado do cemitério, pra ficar pertinho de levar as coisas pro cemitério, o forte era o cemitério, o trabalho pra eles era maior aí. E eu me criei aí, eu e meu irmão, nosso parquinho era o cemitério, porque as esculturas eram muito conhecidas, era meu avô que fazia, então eu achava que eu tinha o direito de participar disso como se fosse da gente. E aí nós começamos a entender a morte muito cedo, a gente começou a ver caixõezinhos pequenos brancos, éramos crianças, tínhamos seis, sete anos. E interessante começar a entender que a vida é muito passageira, era muito rápida. E começamos a ver a dor das pessoas, a gente não conhecia, criança não conhecia isso, das famílias, embalamos corpos das crianças. Tem toda uma história muito longa aí. E víamos a graxa dos sabões feita pro rito dos judeus, que traziam para o cemitério jesuíta que era do lado, porque era um cemitério grande dividido em dois: de um lado tinha a descendência judaica e do outro tinha os católicos, né? E no judeu não usavam figuras no cemitério, eles usavam outras formas mais concretas, talvez, de design. Mas tinha esse lado, digamos, sofrido, eles mostravam muito o que acontecia com as pessoas, sobretudo na época de Hitler, como eram maltratados e isso estava lá, eles traziam e colocavam lá pra todo mundo ver. Então eu não sabia que se poderia fazer sabonete com a pessoa, pra mim era uma coisa assim. Tudo isso me marcou muito quando era jovem. E aí eu comecei a ver que tinha um sistema muito rígido por causa da minha mãe, que trabalhar para o governo com salário fixo, não importava o que ela criasse, o que ela fizesse, não tinha muito que ver com a vida, né? Era só uma necessidade financeira. E por outro lado tinha o lado criativo que não tinha recompensa financeira (risos), era só...
P/1 – Ela fazia o quê?
R – Ela era supervisora numa central telefônica.
P/1 – Mas o lado criativo dela?
R – Não, meu avô era. Ela não, ela era empregada. Uma excelente mãe, cuidava dos filhos e comprava brinquedos e vamos às vacaciones, passear e tal, mas ela trabalhava e ganhava seu dinheiro todo mês, religiosamente, né? Já o outro lado da família do meu pai, digamos, do meu pai em si era empreendedor, fazia, mas como ele não sabia ganhar dinheiro, ele não foi preparado para ganhar dinheiro, foi preparado pra fazer as coisas.
P/1 – E você lembra da sua casa, a casa que você morava na infância?
R – Sim, lógico.
P/1 – O que você lembra da casa?
R – Ah, uma casa muito bonita, um jardim muito grande, cheio de plantas, tudo se plantava lá. E minha avó fazia comida, fazia massas, as massas vendia para as pessoas do bairro, que trouxe esse costume da Itália, né? E aí eu aprendi a falar italiano com ela porque só se falava italiano. E ela, tudo tinha em casa, tudo, não faltava nada, né? É um tipo de uma chacrinha, vai, então tudo se plantava, tudo tinha, uma casa muito confortável, muito cômodo.
P/1 – Como era o bairro?
R – O bairro era muito bom, as pessoas eram todas, era, digamos, uma pequena família o bairro, né? Era um bairro pequeno, as ruas eram de terras, um lugar muito bucólico e todo mundo se conhecia, a gente jogava xadrez. Eu aprendi a jogar xadrez quando criancinha, né, jogo até hoje, porque à tarde a gente ia pra rua, sentava lá e empinava pipa, jogava xadrez, jogava baralho, jogava futebol. E isso foi durante toda a minha infância, né?
P/1 – E vocês brincavam com que tipo de brinquedo?
R – A gente fazia os brinquedos, basicamente se faziam. Sempre fizemos os brinquedos com latas, madeiras, era muito bom fazer os patinetes, os barquinhos. Eu me lembro que naquela época as calçadas, quando chovia, passava aquela água e a gente fazia barquinhos com papel de padaria, naquela época era só papel na padaria. E papel estraza se chamava, era um papel marrom. E a gente fazia os barquinhos de papel e cada um tinha o seu barquinho e soltava o barquinho e tinha aquela quem chegava primeiro lá embaixo, dois três quarteirões ia correndo. Depois pegava por exemplo... você tem que ser criativo pro brinquedo e a rolha de garrafa, por exemplo, você colocava os palitinhos, fazia um cavalinho, né? Colocava os palitinhos de pezinho, um de cabeça e tal, e aí nas valdozas do chão você jogava um dadinho e ia brincando, quantas valdozas iam andando e fazia uma corrida. Todo esse tipo de brincadeira. Foi muito bom, muito bom, deu muito essa parte, tanto meus avós como meus pais, minha mãe, acho que armaram bem isso pra gente ser feliz na infância, foi muito bom.
P/1 – Você tinha ideia do que você queria ser quando crescesse?
R – Não, nunca. Eu só sabia que não queria, eu tinha esse pavor de ser preso a alguma coisa, sempre tive, porque eu via alguns amigos meus, comecei a crescer um pouco mais, e eram obrigados a trabalhar, terem um horário, tinha uma coisa assim que eu falava: “Gente, isso é uma tortura! Será que um dia vai acontecer comigo?”. Nunca tive essa necessidade, nunca. Primeiro porque a gente mesmo sendo uma família de poucos recursos dava pra viver, dava pra comer. E depois eu comecei a estudar, eu tive muita sorte de conhecer pessoas boas e estudar muito, né? Eu tinha no Uruguai uma escola que chamava Universidad del Trabajo del Uruguay. O Pedro Figari, que foi um advogado uruguaio, um grande artista uruguaio, ele foi pra Europa tipo 1900 e viu as escolas lá como eram. Então pegou um pouco de uma escola alemã que chamava Bauhaus, você deve conhecer, e outras escolas na Itália, trouxe e montou uma escola no Uruguai. Pegou um pouquinho de cada uma e fez essa universidade. Essa universidade você entrava lá sem saber nada, com 12 anos de idade como marceneiro e indo, indo, indo, fazia mecânica, tornearia, fresador, engenharia e você saía como perito de engenharia mecânica. Eram sete anos na Universidade do Trabalho e depois mais dois anos faculdade de Engenharia. E era uma escola totalmente gratuita, eu estive lá oito anos e não comprei um livro, eu fiz sete anos na Universidad del Trabajo e depois tinha que fazer dois anos da faculdade de Engenharia, eu fiz um ano só. Depois começaram movimentos sociais muito fortes aí eu: “Chega”, fui embora do Uruguai (risos).
P/1 – E voltando um pouquinho, qual a sua primeira lembrança de escola?
R – Eu sempre tive problema com escola porque tinha uma disciplina e eu nunca aceitei muito a disciplina, né? Então, pelo fato da minha família ser muito religiosa, as escolas eram sempre as escolas que eram católicas. Eu me lembro que tinha uma escola Madre Paulina, outra São não sei o que lá. E a gente tinha que ir nessas escolas. Mas sempre aprontava (risos), eu nunca parava muito, no máximo dois anos era a minha média, até que no último quinto, sexto ano eu fui pra escola pública. Minha mãe falou: “Chega! Você quer ir? Então vai”, e fui pra escola pública e foi uma maravilha porque estava livre. As outras escolas eram muito rígidas, você levava palmada. “Mas por que você está batendo na minha mão?”, eu falava. E eu tinha muito problema também porque eu questionava as coisas, por que eu tenho que acreditar nisso? “Não, porque Deus fez a terra em sete dias”, não sei o quê lá, pá. A gente era criança, né? E como eu fazia muita coisa com as mãos eu acredita no que eles falavam porque eu sempre fiz coisas, eu comecei na ferramentaria com 12 anos de idade eu tinha um torno já e já ganhava dinheiro. Aí eu falava pro padre que falava isso daí, falava: “E Marte? Como Deus fez Marte?” e ele falava assim: “Não, Marte é outra história, isso aí não tem nada a ver, estou falando da Terra” “Não, mas eu tenho curiosidade. Se ele fez a Terra em sete dias, e a lua? Em quantos dias? Em uma hora ele fez a lua?”, eu pesquisava isso. Então era um problema, eu sempre fui um problema, né? E aí eu ia pro castigo, sabe, ficava na parede, olhando na esquina da parede, eles batiam. E eu simplesmente batia neles (risos), não tinha, imagina, moleque de rua ainda. Aí eu fui pra rua também, ele falou: “Vai embora, não venha mais aqui” (risos).
P/1 – Aquele sistema antigo, né?
R – Sim. É, eu passei por tudo isso, mas sempre fui independente, nunca liguei pra nada.
P/1 – E tem algum professor que te marcou?
R – Ah, muitos, muitos. Sobretudo na universidade. Na escola também, mas não tinha nada muito forte porque eu mudei muito de escola. Mas na universidade sim, eram pessoas que, como cada um dava uma matéria, então tinha gente muito inteligente em certas áreas, isso me cativava. Eu fui um bom estudante sempre, nunca repeti um ano, sempre tive boas notas, mesmo sem estudar muito eu tinha um padrão bom de estudo, de notas e tal, tanto que passei com as melhores notas, ganhei duas bolsas de estudo na época também me pagavam para desenvolver máquinas, aliança pro progresso, e aí uma primeira bolsa aliança pro progresso e eu tinha um salário, na época era um bom salário, trabalhava meio período e estudava de tarde até onze horas, chegava em casa meia-noite. E depois desse ano, como eu fui bem de novo me deram essa bolsa.
P/1 – Com que idade?
R – Dezesseis anos. Dezesseis e 17 anos.
P/1 – E como você costumava ir pra escola?
R – Ia de ônibus e depois comprei uma moto, uma Vespa, ia com a vespinha. E me lembro muito de noite, saía de noite, cinco, seis graus abaixo de zero e eu vinha com a minha motinho. Aí eu chegava em casa e não tinha força pra apertar a chave pra virar a porta, né? De tão frio que estava. Aí eu tinha que ficar batendo pra acordar minha mãe pra abrir a porta. Isso me marcou muito também porque eu não queria, mas não dava força, sabe, congelava tanto. Era muito frio lá embaixo, ainda hoje é, mas antes penso que era mais, o clima mudou muito.
P/1 – E o tema de sustentabilidade era trabalhado já, já se pensava?
R – Sempre aproveitei tudo, desde que me conheço por gente sempre aproveitava, aliás eu tinha uma fama meio de acumulador, tenho até hoje por sinal, se você for no meu ateliê você vai boba porque eu acumulo tudo, tudo, eu acumulo, acumulo. Eu criei a primeira antena pra poder pegar onda de direcionabilidade lateral quando eu tinha dez anos de idade, eu fiz com cana, com bambu. Em cima da minha casa eu criei uma antena com pedaços de bambu que eu achava perto do rio, trazia pra casa. Minha mãe falava: “Mas o que você vai fazer com esse bambu aí?” “Vou fazer uma antena”, eu queria pegar ondas curtas argentinas. Eu aproveitava tudo o que eu podia, nos brinquedos, fiz uma arma uma vez com material reciclado, uma espingarda, essas coisas.
P/1 – E hoje o que você acumula você acaba fazendo o quê?
R – Vou te dar uma ideia como funciona pra mim. Todo dia eu tomo água de coco, todo dia eu passo na esquina lá da minha casa, tem um cara que vende água de coco e eu compro uma garrafinha. Agora compro duas porque no outro dia eu não vou. E quando eu termino de tomar as garrafas eu faço uma bicicleta com as garrafas. Eu vou acumulando, acumulando, acumulando, quando tem tantas garrafas eu moo e faço uma bicicleta.
P/1 – Simples assim.
R – Simples, muito simples. Hoje simples.
P/1 – Ele toma uma água de coco e vira uma bicicleta depois.
R – É, mas hoje, né? Mas não se esquece que tem 18 anos pra trás, né? Esses 18 anos foram marcantes.
P/1 – Vamos chegar lá. Você podia falar um pouquinho como você começou, como você escolheu a sua profissão, como você começou a faculdade, onde você fez?
R – Eu acho que eu fui levado, eu não escolhi muita coisa, sabe? Eu acho que era mais ou menos por aí que tinha que ir, sabe? Eu sei que eu me sentia muito bem fazendo o que eu fazia, nunca fiz nada a contragosto. Eu acho que eu nasci pra isto que eu faço, sabe?
P/1 – Mas como foi? Você escolheu que curso?
R – Aí é que está, como tinha essa universidade, era o máximo poder entrar nessa universidade. Por que? Porque aí você tinha tudo. Você queria ser marceneiro? Era aí. Você queria ser pintor? Era aí. Você queria ser torneiro mecânico? Era aí. Você queria ser cientista? Era aí. Você queria tirar Filosofia? Era aí. Você queria estudar História? Pronto. Então você tinha que ir para aí. E depois de lá você ia se acomodar, ia indo pra onde você... pra mim foi Arte, Arte e Ferramentaria, eu me especializei em Ferramentaria, sempre fui um bom desenhista, ganhava umas boas notas e tal, tinha um destaque. Eu tinha um professor muito bom, um alemão, que o pai veio da guerra da Alemanha, tal, trouxe o filho com ele e o filho dele era um excelente desenhista alemão, ele foi um professor que nós tivemos lá que ensinou muita coisa. Depois tive um professor italiano, também fugido de guerra, tinha muita gente fugida de guerra lá, né, muita gente. E aí eu comecei a ter convivência com essas pessoas e eles praticamente te deixam você escolher, onde você tem maior destaque você termina indo. E o meu destaque foi na área de Ferramentaria, de Design, eu era muito bom em Matemática, mas eu não ia ser um matemático nunca porque eu precisava de liberdade, precisava ver as coisas na rua, procurar, eu trazia coisas pra casa, juntava coisas (risos), sempre tive esse lado muito forte. Eu acho que tem a ver com o fato da minha, tanto do meu avô como da minha família, a gente ia, por exemplo, catava uva pra fazer vinho, nada se jogava fora, tudo se aproveitava, sempre foi tudo muito aproveitado, né? E isso fica no inconsciente, hoje eu não posso jogar nada fora, eu não teria coragem de jogar uma coisa fora. Meu filho é um problema, eu tenho três filhos, um pequenininho, porque ele exagera, eu falo: “Não precisa juntar tanta coisa” (risos).
P/1 – Você fala isso pra ele?
R – É (risos).
P/2 – Mas você junta e depois transforma.
R – Sim. Ele leva pra escola porque ele tem a vida dele, eu não participo, eu não deixo de viver.
P/2 – Mas você, você junta e depois?
R – Não, as minhas coisas têm um final, eu fiz muito brinquedo com plástico que estava na rua, lixo. Eu sempre fiz brinquedo reciclado, essa fábrica Muzzi era brinquedo reciclado, só que não podia falar que usava material reciclado porque ninguém comprava, você tinha que falar que o material era novo, né? Mas eu sempre punha um pouquinho de reciclado. Uma vez eu fui para o interior, não me lembro o nome da cidade, eles fabricavam Pinga 51, Louveira, não me lembro o nome da cidade, vou me lembrar. E aí ele tinha muito material pra vender, tampinha de garrafa de pinga, né? Pô, pra mim foi, imagina, jogar esse plástico na rua, fora, ele jogava fora. Aí eu comprei um caminhão desse plástico, trouxe tudo pra fábrica e moí tudo e fiz brinquedos. Só que o brinquedo cheirava à pinga (risos). Não serviu pra nada. É porque você entrava na fábrica e tinha cheiro de pinga no ar, porque ele está impregnado e eu também não sabia disso e no final tive que me desfazer do material. Mas isso aí vem vindo, fica no inconsciente e você aproveita, porque o lixo no Brasil é muito rico, né? Ë um crime isso que acontece aqui, né? O que se joga fora, comida, plástico, ferro. Pô, eu fiz um prédio de material reciclado, estavam jogando fora, iam jogar fora.
P/1 – Conta um pouquinho do prédio.
R – O prédio tem sua história. Tudo tem história na vida da gente, imigrante é cheio de história, né? Eu estava montando uma ferramentaria no terreno de um amigo meu. Ele falou: “Constroi porque vai ficar pra você, já estou velho, tal”. Eu construí, isso na esquina lá bonitinho, dois andares e tal. E depois de 20 anos de eu estar lá a filha dele, chamava Regina Pitoscia, era uma jornalista – é até hoje, trabalha no Estadão – e falou: “Juan, nós queremos vender isso daí” “Eu compro, seu pai já falou” “Tá bom”. Ela falou: “É 200 mil”. Imagina, 200 mil, não custava nem 30. “Mas a obra é minha, eu que fiz” “Então vamos pra Justiça”. Eu não tinha experiência nenhuma, nem falava português direito, fui na Justiça. Aí o juiz falou assim: “De quem é o terreno?”. Eu falei: “Juiz, é dela” “Então, tudo o que está no terreno é dela” “E eu?” “Você não tem nada, você 60 dias pra abandonar o prédio”. Aí eu fiquei totalmente desolado porque era a minha ferramentaria, né? E aí eu fiquei lá. Em frente colocaram uma placa “Vende-se”, um terreno de 250 metros quadrados. O que eu fiz? Não tinha dinheiro nenhum, estava devendo no banco, devendo pra um agiota, a minha vida financeira sempre foi um desastre, nunca tenho dinheiro pra nada. Eu falei: “Preciso comprar esse terreno”. Eu fui, tirei a placa e guardei, falei: “Bom, ninguém vai comprar, né? Ninguém sabe. Agora vou juntar dinheiro”. Aí comecei a juntar, juntar, vendi carro, comprei uma bicicleta. A bicicleta sempre estava comigo, por isso que eu te falo a liberdade, porque é até impressionante quando você conhece ela. Depois que eu juntei um pouco de dinheiro peguei a placa e liguei pra pessoa: “Estou vendo uma placa assim” “Ah sim, tudo bem”. Aí eu comprei, comprei esse terreno. E aí, como faço pra construir? Eu falei: “Bom, vou usar minha experiência, minha expertise, coisas velhas”. Mas não queria fazer uma coisa feia, sabe, queria fazer uma coisa melhorzinha porque já tinha uma certa idade. Comecei a procurar vigas de ferro nos ferros velhos. Aí tinha a _0:27:41_ aqui perto, não sei se você já ouviu falar, _0:27:42_ era uma empresa alemã que estava fechando, destruíram tudo e tinha um monte de viga no chão. Eu fui lá e comprei essas vigas, ia nos ferros velhos e comprava as vigas. Eu nunca vou esquecer um ferro velho que eu fui, que tinha um monte de vigas no chão jogadas na grama lá, eu falei: “O senhor vende esses pedaços de ferro?” “Mas está tudo enferrujado, você quer isso aí pra quê?” “Ah, é que eu estou fazendo um prédio”. O homem ficou com tanta pena de mim que ele me deu as vigas, nem me cobrou (risos). Hoje é um pé direito lá, tem o nome dele lá. Então tudo é aproveitado. Eu ia pra Itu nas olarias e pegava os pedaços de tijolos deles que tinha, tal e fui construindo o prédio que hoje é meu ateliê, tem 1 mil e 100 metros quadrados. E ainda falta a última laje, tudo com laje, bonitinho e tal, super forte porque nunca tinha feito um prédio, né? Mas eu queria fazer um. Só um, não queria mais, eu não queria pagar aluguel, eu não conseguia pagar aluguel, eu tenho um trauma contra aluguel. Pra você ver como são as coisas, né? Eu estava lá nesse prédio, meu dinheiro tinha acabado e daí a gerente do Brou, do Banco do Uruguai falou: “Olha, a diretoria do banco está aqui no Brasil e nós falamos da sua arte. E eles são colecionadores e querem conhecer o seu ateliê”. Eu falo: “Bom, pode trazer”. Aí eles vieram ao ateliê e eles viram minhas obras de arte e falaram: “Nós queremos comprar esse, esse”. Eu falei: “Só que tem um problema, eu não vendo obra de arte, pra mim não é um produto a arte, eu faço a arte pelo amor ao ser humano, pela liberdade, eu não trabalho com galeria. Galeria é patrão, galeria vai te mandar fazer o que vende, então eu sou independente, só exponho em lugares culturais, museus, eu não vendo”. E aí eles viram a bicicleta no chão. E falou: “E essa bicicleta aí?” “Está em desenvolvimento. Ela está parada porque tivemos alguns problemas, já fazia 12 anos que eu estava fazendo”. Ele falou: “E por que não termina?” “O dinheiro acabou”, eu falei. “Não pode, isso é um projeto sensacional, nós vamos investir no seu projeto”, ele falou. Eu falei: “Tá bom. Então investe” “Você tem que vir no Uruguai pra conversar lá no banco”. Eu peguei o avião e fui pro Uruguai. Aí: “Quanto você precisa?”. Eu: “Um milhão e 300 mil dólares” “Com isso você termina?” “Termino”. Aí o Mujica veio pra cá na época falar comigo, que era o presidente do Uruguai: “Mas você faz mesmo essa bicicleta de plástico se te arrumar um milhão e 300 mil dólares?” “Faço. Não tenho dúvida nenhuma que eu faço”. Ele olhava nos meus olhos assim pra ver se estava mentindo. “Não, eu faço. E tem mais, além de fazer, presidente, eu vou lhe mandar, eu ia fazer 250 por dia, as primeiras 250 eu vou mandar de presente pra você dar pras comunidades carentes lá, pode fechar o negócio”. Daí me colocaram na minha conta 1 milhão e 300 mil dólares. O dólar naquela época custava 1 e 20, era um milhão de reais, um milhão e pouco. Demorei dois anos, fiquei trabalhando dois anos, porque já era honra, não era outra coisa. E aí funcionou a bicicleta e eu peguei um caminhão, o banco pagou o transporte e eu fui lá pro Uruguai e levei pra eles as primeiras 230 bicicletas que nós começamos a fazer. Foi uma maravilha. E aí começou a produção, começou a andar. E aí o que eu falei, o projeto era ecológico, reciclado. Você tem um problema, cada material você tem que ir pro laboratório ver o que pode usar, qual é a porcentagem, não pode perder a resistência. É complicado, não é simples. E isso tem um tempo, mas um tempo qualitativo, não é um tempo linear. E o banco só quer saber de tempo linear, né? Os meus amigos lá, um morreu, o Mujica saiu fora, outro também, de repente eu fiquei lá sendo um desconhecido, um uruguaio que pegou um milhão e 300 milhões e não está pagando, quem é esse cara? Eu já tinha pago 300 mil dólares, mas ainda faltava, né? Ah, não deu outra, caíram matando em cima de mim, agora o prédio já é do banco. Eu dei de garantia porque achava que não ia ter problema nenhum, imagina, né? Aí eu dei o prédio pro banco, hoje o prédio já foi pra leilão duas vezes, ninguém comprou, vale seis milhões de reais. E agora o banco já mandou o oficial de justiça para eu abandonar o prédio, eu tenho que sair semana que vem de lá. A história sempre se repete, mas eu não abandono o meu trilho, né? (risos) É uma situação que tem que ver com o quê? Em você acreditar que você faz, o fato do prédio é um problema, não tem a ver com o panorama geral, é um problema particular só. O que mais?
P/1 - No final você virou um sustentável por necessidade ou por preocupação?
R – Acho que eu nasci sustentável. É, porque eu comecei a brincar com brinquedos feitos por mim a vida inteira, tudo, a minha avó aproveitava tudo, não tinha nada em casa que não se aproveitasse. Até os caixões deles eram cadeiras, era tudo. Era uma família italiana de escassos recursos, então não podia se dar ao luxo de jogar nada, hoje se jogam coisas foras que você fica impressionado, né? Porque uma sociedade de consumo tem que jogar fora porque o capitalismo tem que andar e precisa faturar de novo, precisa fazer mais e o plus-valia pra você crescer e o cara tem que ficar mais rico e acumular dinheiro. Eu acumulo ferro velho, o cara acumula dinheiro. E tem que acumular cada vez mais dinheiro, senão não funciona o sistema, né? Então esse sistema é o que não deixa o acúmulo de verdade acontecer. Porque esta terra que nós vivemos tem adiante, não vai mudar, só que morre menos gente e nasce mais gente, chega uma hora que não tem mais onde pôr gente, você não pode produzir como estávamos produzindo, sem lógica, e é o que estamos fazendo hoje, estamos criando coisas sem a mínima lógica só porque o sistema fala pra você fazer e consumir porque o sistema precisa de plus-valia. Essa é a grande tristeza, esse é a pior tortura do homem, a pior escravidão do homem é o sistema.
P/1 – Conta um pouquinho da trajetória da Muzzicycle, quando surgiu a ideia. Se você quiser começar falando da mola...
R – A mola, são muito parecidas as duas coisas, por incrível que pareça, né? A mola, eu fabricava um óculos que a lente saía, não sei se você lembra, você andava assim, você mexia a cabeça e o olho ia pra fora e vinha. Eu sempre expunha aí no Anhembi e eles falaram pra mim: “Juan, quando você vier na exposição traga uma caixa de óculos”, porque a gente dava de brinde pras crianças. E aí eu levava a caixa de óculos, levava a caixa de óculos. Um dia eu cheguei lá e tinha uma fila enorme em um stand que não dava pra ver o stand. E eu pensei assim: “Puxa vida, esse cara acertou em alguma coisa. Um dia, talvez, eu consiga ter uma fila assim no meu stand”. E fui andando, fui andando e onde era a fila? Era no meu stand. Eu não acreditei. O que as crianças faziam? Pegavam o óculos, tiravam a lente a ficavam com a molinha. Eles que me alertaram, né? Eles que falaram pra mim: “Você tem que fazer uma mola”. Aí eu vi isso e falei: “Bom, eu vou começar a trabalhar com essa mola”. E pronto, sempre tem um toque. Na natureza, ela nos ensina, é só olhá-la, só prestar atenção na natureza, não precisa ser muito inteligente, ela fala tudo o que você tem que comer, o que você tem que beber, quando você vai dormir cedo ou tarde, ela que diz tudo, é só observar. Nas crianças é a mesma coisa, elas te falam com o quê elas querem brincar, é só você prestar atenção no que elas querem, como querem. A gente geralmente tem que impor pra criança, mas aí é que está o grande erro, elas que sabem o que elas querem. Aí eu falei: “Bom, elas querem uma mola, eu vou fazer uma mola”. Comecei a fazer uma mola, só que era difícil fazer uma mola porque era uma mola pequenininha assim, com três espiras ou quatro, tinha que fazer uma mola grande com 80 espiras pra poder brincar, descer escadas. E aí comecei a trabalhar. E a mola não funcionava, e a mola não saía. E foi um mês, dois meses, cinco meses, seis meses, um ano. Um dia minha mulher, minha primeira mulher, eu casei seis vezes (risos). Casar mesmo duas, que estou há tempo, a primeira 20 anos, a última agora 22 anos, o resto foram algumas que ficaram dois, três anos, ninguém me suporta muito tempo, né? Porque fala não dá pra viver assim (risos), a mulher quer uma coisa mais segura, mais certinha, tem que criar os filhos, não pode ficar brincando com esse negócio. E a gente já é mais perdido, né? Aí minha mulher falou assim: “Olha, não dá mais. Adoro você, mas viver com você não dá. Ou essa mola funciona”, eu tinha dois filhos, “ou pego os meus filhos e vou embora pro Uruguai”. Aí eu falei: “Bom, tem que funcionar a mola”. No fim de semana ajeitei a mola pra funcionar, mas só funciona na minha mão, sabe? Eu ajeitava assim e a mola funcionava. Eu cheguei em casa todo feliz: “Olha, a mola funciona, você vai ver que agora...”, porque não tinha comida, a minha filha fala: “Pai, outla vez aloz, aloz”, ela falava aloz em vez de falar arroz. Eu cheguei, mostrei a mola pra ela, falou: “Deixa ver” “Não, não, não, tá aqui, ó, tá funcionando” “Não, mas deixa eu ver a mola, vamos ver se desce a escada”, porque eu falava que tinha que descer escadas. Aí ela pegou a mola, imagine, a mola fez blou blou blou, não funcionava. E ela falou: “Olha, não dá mais, desculpa”. Aí no domingo foi embora. Eu fiquei arrasado, chorava que nem uma criança, ela levou os filhos pequenos. Eu tinha escolhido a mola e não a família. Eu não sabia isso, nã estava entendendo bem. Eu sei que eu tenho esse problema, quando eu entro em um projeto eu tenho que terminar isso daí, não tem, sabe? O resto é o resto. Hoje eu sou um pouco mais cuidadoso, mas no começo não. Mas enfim, depois de um ano e mola ficou pronta. E uma miséria espantosa. Perdi meu telefone, comprei outra bicicleta, andava de bicicleta outra vez (risos), dá risada mas era triste, viu? Perdi o carro, fui despejado da minha casa. Mas a mola ficou pronta. Pronto, acabou. E aí? Eu tinha cinco mil molas no estoque e ninguém comprava uma mola. Ninguém queria mola, ninguém conhecia a mola, né? Pessoal conhecia uma boneca, uma bola de futebol, mas uma mola? Eu fui vender a mola, fui num atacadista que me comprava brinquedos e falou: “Me manda 200 só porque é você”, falou, “mas não quero esse negócio. Isso aí não vende”. Aí eu mandei 500 pra ele. Ele falou: “Você me empurrou mercadoria, né? Agora vou te dar cheque pra 90 dias”, falou. E foi assim. Aí um amigo falou: “Juan, se não tiver televisão não vende, só vende o que tem em TV. Dá um jeito, vai na Xuxa, conversa com a Xuxa. Você vai ver que se a Xuxa colocar na televisão tudo vai dar certo”. Aí fui na Xuxa, fui falar com a Xuxa, né? (risos) Ela falou assim: “O que você quer?” “Eu quero que você mostre isso na televisão” “Fala com o meu irmão”, ela falou. Eu fui falar com o irmão dela. “Eu vou mostrar pra você na televisão, você tem que pagar alguma coisa” “Tudo bem, eu pago. Quanto você quer?” “Um milhão”. Eu falei: “Quanto? Um milhão?”. Eu falei: “Posso pagar no sucesso?” “Não, paga primeiro” “Não tenho condições” “Então esquece”. Aí eu voltei desolado, né? “Gente, como eu vou fazer”. Aí eu fiquei fazendo que no domingo estava no Olímpia aqui na Lapa, né? Eu falei: “Olha, sabe o que eu vou fazer?”, peguei umas funcionárias que eu tinha lá: “Vamos pegar cada um uma caixa de mola e vamos pro Olímpia. E vamos ficar lá fora no Olímpia, dando uma de camelô”. Todas crianças que vinham a gente dava uma mola de presente, pra todas as crianças. Aí chegou um ônibus com as paquitas, né? Aí pela janela a gente dava as molas pra elas, elas pegavam as molas e tal. Aí tinha uma senhora lá que falou: “Pode parar com isso”, não deixou, pegou todas as molas. Mas o que aconteceu? Todas as crianças entravam no teatro com a mola. E as crianças que estavam lá dentro do teatro falavam: “Onde arrumou isso daí?” “Estão dando na porta”. Eles corriam pra fora, foi uma loucura, o teatro foi na rua, né? Até que acabaram as molas, todo mundo entrou. Aí a Xuxa chamava as crianças pra subir no palco, né? E elas subiam com o quê? Com a mola na mão. Aí falavam: “Olha aqui, tia, o que eu tenho”. Uma hora ela teve que pegar a mola e começou a brincar, achou a mola maravilhosa e tal. Bom, pronto. Na segunda-feira tinha fila de caminhões na minha empresa querendo mola. E aí começou a mola, aí não parou mais, foi uma loucura, uma loucura.
P/1 – E você economizou um milhão.
R – Sim, muito mais, né? Muito mais. E aí foi pro mundo inteiro. Eu fiz mola em 22 países, fui pra Europa, Estados Unidos, foi uma loucura, aí deslanchou.
P/1 – E a mulher não voltou?
R – Eu que fui lá buscar a mulher. Mas já não era a mesma coisa. Sabe que nem cristal? Depois que dá aquela fissuradinha o som já não é o mesmo. Porque ela foi quando eu estava na pior miséria, eu entendi por que ela foi, eu achei certo, os meus filhos estavam comendo pelo menos, por isso que eu voltei. Mas já não ia mais, já não tinha mais, estava difícil, o relacionamento estava difícil. Aí eu sei que eu tinha muito dinheiro, muito dinheiro, aí comprei sete propriedades, gastei uma fortuna com eles lá, tal, mas fiquei morando lá um tempo. Aí o que aconteceu? Eu conheci o mundo e vi como isso funcionava, né? E quando a China copiou? Foi um desastre. Eu estava na França, eu instituí os camelôs na França, é muito difícil trabalhar na França, mas eu montei os camelôs no metrô. Foi um sucesso esse projeto. Mas aí o que aconteceu? Aí me chamaram e falaram: “Juan, nós estamos com um problema” “Que problema?” “A China veio” “Eu não acredito que a China foi fazer essa porcaria” “Fez”. Aí eu fui no porto de Aveiro, vinham os navios com containers cheios de molas, eu não acreditava, eu falei: “Gente, o que é isso? Uma molinha!”.
P/1 – Mas não tem a história de patentear?
R – Não, mola não tem patente, mola está no meio público. Mola existe já, aquela mola de metal existe desde 1900, que foi feita na Rússia. Simplesmente eles copiaram, ficou mais bonita e mais barata. Pronto. E como eu admiro chinês, eu tiro o chapéu pra eles, eles inventaram 90% das coisas da terra, né? Fala que chinês copia, ele não copia, imagina, ele que inventou tudo, ele vem buscar, as coisas que ele fez com um pouquinho mais de tecnologia talvez, mas o princípio, que é o que interessa, foi criado por eles. Eu aprendi muito com eles, muito com os chineses. Só que aí tocou a minha vez, né? E aí, o que eu faço, acabou a mola. Sabe quando a adrenalina sua está a 20 mil e de repente, de um dia pro outro, não tem mais nada, acabou? Aí foi uma tristeza. Eu falei: “Bom, preciso criar outra coisa, preciso fazer alguma coisa”. Porque eu estava vazio, me sentia vazio. E eu preciso fazer uma coisa que o chinês não copie, eu tenho que usar o que tem aqui. O que tem aqui? O reciclado, matéria prima barata que já foi usada pelo que tem dinheiro. O pobre não usa embalagens, quem usa embalagem é o cara que tem dinheiro, que pode comprar alguma coisa com embalagem PET ou de polipropileno, poliestireno. E aí eu comecei a pensar nesse assunto, demorei um tempinho para eu armar isso na minha cabeça, até que eu sabia qual era o material porque já tinha trabalhado com ele, mas não sabia como fazer e o que fazer certamente, até que eu fui visitar uma fábrica de bicicletas. Duas coisas que me aconteceram: a visita a uma fábrica e eu fui comer num restaurante gourmet, foi muito importante pra mim esse restaurante gourmet. Porque na salada tinha osso, sabe? Gourmet tem aquela comida pra intelectual, bem pouquinha e bem cara, né? Aí tem um osso. Eu fui comendo a salada e falei: “Isso aqui está duro”, aí fui ver e estava tampado pela alface e um osso. E eu peguei esse osso e falei: “Gente, que genial!”, era um osso oco, lógico. Aí eu falei: “Por que oco o osso?”, aí comecei a analisar por que o osso é oco? Porque vivemos mais 20% da vida, porque nosso coração trabalha 20% menos, porque se não fosse oco o braço entortaria. Porque o oco tem uma força igual e contrária na parede da espessura. Comecei a analisar na Medicina por que o osso era oco. Aí falei: “Ótimo, pronto, já entendi por que o osso é oco. Agora vou ver o que eu faço com esse osso oco”. Fui na fábrica de bicicleta, é um desastre ecológico. Por quê? Porque tinha 200 pessoas trabalhando, aquela fumaça, um consumo de CO2 tremendo, soldas, tintas, sabe? Impressionante. Você extrair alumínio é um crime ambiental hoje, né? Pouquíssima gente entende isso, dá valor pra isso. Você tem que extrair bauxita, você fura a terra inteira atrás de bauxita. Depois você tem que fabricar a alumina, a alumina é pó elétrico, você precisa de muita energia pra produzir alumina. E ele usam isso como se fosse pão, não têm noção do que estão fazendo. E ferro também, né? A solda, o consumo. Eu falei: “Eu vou juntar duas coisas, o osso oco e o consumo de CO2 excessivo. E juntei as duas coisas. Aí que eu comecei, no ano de 1998, fiz a primeira bicicleta de madeira, pensando em eliminar o ferro e o alumínio e o carbono e fazer ela como osso. E comecei a desenvolver, desenvolver, cada ano fazia uma, muito tranquilo porque era uma coisa que não existia no planeta, uma coisa totalmente fora. Ninguém acreditava, as pessoas que iam no ateliê viam e achavam que eu estava delirando. E aí foi meio a contragosto de muita gente eu fui fazendo. Foram 12 anos de desenvolvimento, até que consegui fazer a primeira bicicleta que mais ou menos funcionava, mas ela me aguentava e eu sou pesadinho, peso 100 quilos, ela me aguentava. Mas minhas pernas tremiam quando eu descia da bicicleta, dava aquele tremor lá e eu não sabia o que estava acontecendo, eu estava absorvendo tudo o que tinha no chão, a trepidação vinha pro meu corpo e eu tinha que eliminar isso da bicicleta, o meu problema era fazer mobilidade urbana que absorvesse o chão. Porque bicicleta quando você anda, ela é rígida, você não treme. Então eu tinha que eliminar isso da bicicleta. Aí foram mais uns anos até que isso acabou. Você anda com a bicicleta hoje, você não se prejudica na próstata, não prejudica a coluna vertebral e você não sente nada, ela é suave.
P/1 – Não precisa de amortecedor.
R – Não precisa de amortecedor, ela desliza.
P/1 – Mas o que faz não precisar?
R – O plástico, o material, ele absorve. Tem uma blenda, uma mistura de vários materiais, isso também tem uma coisa que ver com o fato de eu ter pilotado muitos anos, por isso que eu falo que a bicicleta é um conjunto de coisas que se deu, né? Eu pilotava há muitos anos e é gostosinho ser piloto, você pensa, um livro que estou escrevendo eu comecei a escrever no avião, sabe essas coisas? E a asa mexia, do avião. Eu falei: “Gente, como é que pode”, eu já tinha estudado no curso de piloto como era resistência dos materiais, comportamento, por que disso, por que de outro, mas eu nunca tinha pensado em uma outra coisa. Aí eu falei: “Olha, mexe a asa para ele não mexer aqui dentro, a asa absorve os movimentos de trepidação”. Aí levei isso pra bicicleta. Eu falei: “A bicicleta poderia ser assim também, eu poderia fazer a bicicleta de tal forma que quando chegasse a trepidação ela fosse absorvida pelo material. E quando chegasse no corpo não tivesse nada”. E apliquei esse princípio na bicicleta, que é o Princípio de Venturi. E pronto! E saiu. O que está ainda vai ser muito melhorado, porque essa bicicleta ainda é combustível fóssil, né? Agora já estou usando casca de arroz. A ideia é fazer totalmente da fotossíntese, a ideia é construir uma mobilidade urbana proveniente do sistema, do processo de fotossíntese, entendeu?
P/2 – Não entendi, como assim, processo de fotossíntese?
R – Isso aqui não vai pro concorrente não, né? (risos). Não, piada. É o seguinte, tudo o que é verde é fotossíntese, não é? Concorda?
P/2 – Hunrum.
R – Até aí tudo bem. Pronto. Então a cana de açúcar é fotossíntese, não é? O processo da fotossíntese faz com que esse material vai evoluindo, crescendo e pronto, aí sai o início tudo daí, daí tem outros fatores, né? Esse material verde você pode transformar ele em polímeros. Você vê, a Brankem tem o plástico verde, a Coca-Cola já usa 30% de algumas garrafas, já usa plástico verde. Não é proveniente do combustível fóssil, então o que acontece com esse plástico verde que sai inicialmente do processo da fotossíntese? Ele vira um plástico e esse plástico você pode injetar alguma coisa, com esses polímeros. Só que quando injeta eu coloco sementes dentro. Então esta bicicleta eu dou garantia vitalícia pelo quadro, você pode ficar cem anos com ela. Mas se você não quiser mais, você cansou de olhá-la, você enterra ela e nasce uma planta. Então o que acontece? Isso chama economia circular, nada do que você produzir pode ter detritos, a gente não pode mais se dar a esse luxo de fazer coisas e jogar milhões de coisas fora pra fazer algumas coisas por causa de um sistema. A terra não quer mais isso, acabou, chega, vamos parar. Só pra meia dúzia ganhar dinheiro e ficar arquibilioniário e bilhões e trilhões de dólares e o resto fica todo mundo olhando e vivendo mal? Vamos aproveitar tudo. Então tudo o que tem que ser feito daqui pra frente, eu penso que uma hora vai acontecer, tem que ser economia circular. Você não pode fabricar nada se tiver detrito, tudo tem que ser reaproveitado. Essa ideia eu tive na bicicleta: “Bom, vamos reaproveitar então, você planta e tem outra planta. Outra planta pode ser outra bicicleta amanhã ou depois”. Isso não é pra nossa geração. Quando você faz coisas não tem por que ser pra seu tempo, nosso tempo é limitado, a terra já temos um tempo, em tempos universais, é que a gente não se enxerga universalmente, é esse o nosso grande erro, né? Não temos cinco segundos de luz, de vida, não somos absolutamente nada. Então se a gente entendesse inicialmente qual é o nosso tempo você começa a valorizar mais onde você está, né? Porque é uma dádiva do destino você viver como você vive, estar onde você está. Só que a gente não respeita, né? Então a criação e a economia circular faz com que você comece a criar elementos pra você aproveitar as coisas. Tudo aproveita. Essa blusa que você está usando é garrafa PET, é poliéster, saiu do PET já, só que é combustível fóssil. Também é da fotossíntese, só que é fóssil. Então é mais difícil ele voltar a ser o que era, fontes renováveis não, o tempo é mais curto. Vamos imaginar o seguinte: você não quer mais essa bicicleta, pronto. Não é esta que está, ainda está nos combustíveis fósseis. Vamos plantá-la. Nós plantamos essa bicicleta, pronto. Você morreu, acabou, nossa vida é muito curta, né, mas alguém daqui mais duas gerações vai ver nascer uma planta, ele começa um ciclo novo, é importante que se faça as coisas não para nós, mas para os que vêm atrás (risos).
P/2 – Vou tirar o chapéu pra você.
R – Imagina.
P/2 – Que história maravilhosa! O quê que é isso?
R – Obrigado, obrigado.
P/2 – Nossa, que coisa mais linda isso.
R – Mas você sabe que tudo, quando você faz coisas você não tem noção onde você vai parar, isso vem vindo, né, vai te levando.
P/1 – Mas precisa ter essa cabeça de inventor que você tem, né?
R – Acho que não, você vê as necessidades e você cria coisas. É que nem com o seu filho, você vê o que ele quer e você faz. Você inventou? Não, é que você é forçado a ir por esse caminho. Chinês me ensinou, a bicicleta me ensinou muito mais ainda. O chinês me ensinou a pintar meus quadros. Por quê? Porque ele guilhotinou a minha vida e chegou um momento que eu falei: “Gente, o que eu vou fazer?”, eu já pintava, há muitos anos já pintava, mas a pintura não era bem, não me convencia. Aí quando chegou o chinês na minha vida eu vi como eles viviam, como eles trabalhavam, como faziam as coisas, a criatividade deles, tal e tal, eu falei: “Eu preciso aprender muito com esse pessoal” e eu comecei a melhorar o meu trabalho, eles me complicaram e ao mesmo tempo me ajudaram. Depois nasceu o meu filho pequeno agora, minhas coisas melhoraram mais ainda, né? Então hoje eu posso falar que eu posso me considerar um artista no sentido mais amplo por causa do que eu faço, que é produto de uma somatória de coisas, assim como a bicicleta é uma somatória de coisas. Não dá pra fazer essa ideia numa coisa só, ela tem muita coisa, né, que juntou, tem Filosofia, tem Design, tem Química, tem Matemática, tem tudo o que se juntou e deu isso aí. Isso aí vai ser aproveitado pelas futuras gerações. Uma coisa eu tenho certeza, daqui 200 anos não vai mais se fazer bicicleta de ferro, nem de alumínio, vai ser de plástico, isso ficou claro pra mim.
P/2 – E onde você busca o plástico?
R – Hoje já não busco mais, hoje já vem sozinho. Mas antes eu pegava nas ONGs, pegava na rua, sei lá. Porque eu uso pouco plástico, também tem isso, né? Não é muito plástico. Uma bicicleta pesa um quadro e meio, dependendo do material que usar, ela vai de três quilos e meio a seis quilos e meio. Se a pessoa é muito pesada eu uso um plástico mais forte, mais resistente, pesa seis quilos meio, não é nada. Eu te falo que com garrafinhas eu faço uma bicicleta, isso é muito pouco, né? Se eu comprar mil quilos de madeira eu faço muita bicicleta.
P/2 – Quantas garrafas você precisa pra fazer?
R – Pra fazer um quadro de bicicleta, 50 garrafas, 60 garrafas, dependendo da garrafa. Tem garrafas que são mais, outras são menos. É uma coisa muito econômica, além do mais ela é econômica. Porque ela não pede muita coisa, ela usa 96% a menos de energia do que fazer uma bicicleta comum, então ela é uma maravilha como mobilidade urbana. Não é uma bicicleta de competição, não é pra você fazer mountain bike, é pra você passear, ir no supermercado, dar uma volta com seu filho no parque. Dá pra fazer a outra também se quisesse, mas não é a minha prima.
P/2 – E além disso ela evita que se gaste mais matéria prima, né?
R – Sim, você aproveita matéria prima que alguém já gastou, geralmente são as classes que podem gastar, o pobre se aproveita do que alguém já gastou, essa é a ideia. Por isso que tem esse esquema de você fazer nos colégios intercâmbio, as crianças trazerem o material e cada tantos quilos se sorteia uma bicicleta, a criança ganha uma bicicleta, ela aprende cidadania, aprende dignidade e leva pra casa. É livre, ele pode sair pela rua andando. O que acontece com a criança que ganha bicicleta logo de cara? Ganhou uma bicicleta no primeiro mês. Ele tem que continuar a trazer material pros amigos dele, companheiros de classe, ganharem a bicicleta. Isso aí é cidadania, ele tem que aprender isso, é importante. Só vai ter isso no futuro, não vai ter mais nada, porque o resto está corrompido, está deformado, acabou. Se você não trabalhar com a criança você pode se despedir porque não tem mais o que fazer, está claríssimo isso. Hoje 90% respiramos ar contaminado. E aí?
P/2 – Tem que conscientizar desde cedo, né? Em todos os sentidos.
R – Em todos. Ele vai aproveitar o material que alguém jogou fora e ele vai respeitar o próximo, ajudando que também tenha. Se começar com isso novinho, ainda dá pra ajudar um pouco. Não sei se vai dar tempo (risos), mas ajuda, ajuda.
P/2 – Não sei se vai se corromper no processo, né?
R – É que isso faz parte do ser humano, né, é no mundo, não é no país. É outro assunto.
P/2 – E hoje qual é a capacidade de produção da Muzzicycles?
R – Olha, cada molde faz de 10 a 12 mil bicicletas por mês, é impressionante. A gente está aprendendo muito. As primeiras bicicletas que eu fazia demorava nove minutos pra fazê-la na injeção de plástico, com uma máquina de duas mil toneladas. Aí fomos aprendendo, tal, hoje são três minutos e 40 segundos pra tirar um quadro de bicicleta. É uma maravilha, né, é gostoso de ver entrar o material e sair um quadro de bicicleta sozinho. Com uma pessoa. Antes pra fazer isso você precisava de toneladas de alumínio, CO2 assim, estragadíssimo todo o ar, era um caos, era um caos. É um processo muito contemporâneo. Só falta agora as pessoas entenderem que é possível porque é difícil, muito complicado as pessoas, quando se fala em plástico é um problema.
P/2 – Acho que hoje em dia isso está mudando, né? Pelo contrário, é um chamariz.
R – Tá, tá. Sim, mas é complicado, é complicado. O cara vai comprar uma bicicleta e compra, é uma lavagem cerebral quando vai ver uma bicicleta, tem que ter 27 marchas, tem que ser essa marca ou aquela marca, entendeu? É difícil você chegar num cara e falar: “Olha, esta bicicleta só tem sete marchas” “Mas como? Sete marchas não funciona”, ele fala. “Mas pra quê? Você nunca vai usar 25 marchas, 21 marchas”. Mas há todo um trabalho de marketing de 50 anos, de 100 anos, como você quebra isso em um ano, dois anos, três anos? Não quebra, não.
P/2 – A bicicleta feita de alumínio é mais leve?
R – Depende do material. Depende da bicicleta pode até pesar a mesma coisa. Não é porque é plástico que é muito mais leve, não é bem assim, o peso específico é quase o mesmo. E às vezes precisa de mais plástico pra compensar a rigidez do alumínio. Mas tem bicicleta com vários quilos de alumínio, ela pesa muito mais do que a nossa. O importante é que ela é leve ao andar e que ela não te prejudica o organismo. E qual é o grande? Que você não tem que extrair minerais. Pra mim não é tanto usar material fóssil, nem o de fontes renováveis, é que você não extrai minerais mais. Porque o grande problema é a extração de minerais, o que custa o CO2 extrair, tem minas com um cento, seiscentas mil pessoas trabalhando pra extrair minérios, você tem que furar a terra toda pra extrair bauxita. É um atraso milenar, né? Mas como o capital está aí, interessa isto, então não se mexe com isso porque o lucro está aí. Essa bicicleta seria bom para uma sociedade socialista, que também não tem mais (risos). Um dia, talvez. Que nem um sapato que eu inventei que crescia com o pé. Você apertava um botão e ele ia crescendo com o pé. A fábrica comprou o sapato e quase fecha a fábrica porque era um sapato só, então não pode. Depois você corta essa parte se quiser, está autorizada.
P/2 – Você falou que hoje todas as bicicletas têm semente?
R – Não, não.
P/2 – É uma ideia sua.
R – Já estamos trabalhando pra chegar lá, já está no processo.
P/2 – E hoje você faz o quê com os resíduos da bicicleta?
R – Não tem.
P/2 – Não tem resíduo.
R – Não existe resíduo, não tem resíduos. Não tem porque ter porque nem o canal de injeção tem, já foi feita pra não ter resíduos, já é economia circular ela, eu vou usar seus resíduos. Você não sabe o que fazer com esses resíduos, você me dá esses resíduos e eu faço a bicicleta pra você. Está no meu site isso. Só que ninguém traz os resíduos.
P/2 – Eu vou levar (risos). Pode escrever, eu vou levar (risos). Quer perguntar alguma coisa?
P/3 – Eu acho que mais se você está envolvido em algum outro projeto nesse sentido além?
R – Imagina, projeto é o que mais tem, tem milhares de projetos. Tem muito projeto pra pouca vida, viu? Eu tenho muitos projetos, eles ficam na cabeça, sabe assim, na nebulosa, eles ficam andando. De vez em quando pinço algum e como estou agora na bicicleta, eu já fiz muita coisa, eu já fiz aquele sapato que você acende a luz e você pisa e acende a luz, eu fabriquei aquilo lá, ideia minha nos anos 80, foi pra China, aquele que tem um patinzinho, aquele lá foi inspirado no trem de pouso do meu avião. Sei lá, tanta coisa.
P/2 – Sério que isso também foi você que inventou?
R – É, foi pra China. Tem o sapato que fala: “Mamãe me chama”, você aperta o botão e faz coisinha no pé, o que cresce junto com o pé, imagina, fiz tanta coisa. Lacre, faço muito lacre, faço muita coisa pra indústria, empresa técnica que é a minha área. A minha área é técnica na verdade, isso aqui é mais hobby, né? Mas eu trabalho mais com engenharia pra empresas que precisam de desenvolvimento de alguma coisa. Mas agora estou fazendo uma bicicleta que não enferruja, você pode jogar dentro da água do mar e tirar e sair andando, esse é o próximo projeto. É tudo com alumínio forjado, o câmbio dentro do cubo, chama anexos, né? Câmbio dentro do cubo, é conhecido já. E ela não tem corrente, a corrente é corrente de carro, aquela correia de borracha de carro, sabe? Eu tirei e coloquei aquela lá. Tem moto que tem isso já.
P/1 – Por quê?
R – Porque ela pode se molhar e não vai enferrujar nunca. A ideia, além de ser muito macia, muito suave, você anda na bicicleta de plástico e você não acredita, você fala: “Gente, o que é isso?”, porque você não sente a bicicleta. Se você andar muito você nunca mais anda na outra depois, de tão rígida que é. E com essa correia a gente melhora muito isso. Estamos fazendo também, falando de coisas novas, sobretudo na bicicleta, né? Fazendo uma bicicleta de plástico também que dobra pra pôr numa sacolinha pra você levar no carro, levar no metrô, sei lá. Que mais? Sei lá. Tem uma de cristal, totalmente de cristal, como se fosse de vidro.
P/1 – Você está desenvolvendo sozinho ou você tem...
R – Não, sempre sozinho. Eu faço tudo sozinho.
P/2 – Não, vamos procurar um patrocinador pra você (risos).
R – Não, o patrocinador é capitalista, ele quer data e hora do lucro, então o sistema é a pior tortura que nós temos.
P/2 – Só dando uma resumidinha nessa ideia de como você acha os 4R, Reduzir, Reutilizar, Repensar, Reeducar muda a sua vida e a das pessoas.
R – É, minha vida não muda porque a minha vida é essa, nunca mudou, eu já nasci com os 4Rs (risos). Muda quando eu não faço isso, aí eu me sinto culpado. Outro dia aconteceu um negócio comigo que eu fiquei puxa vida. Eu separo o lixo nos sacos grandes de papel e moo tudo o papel lá dentro da firma, né, pra reaproveitá-lo. E eu tinha juntado garrafas de água de coco durante uns dois meses, uma garrafinha, outra garrafinha ali, tal e coloquei nesse saco azul. E o rapaz que leva o papel pra reciclar viu aquele saco azul e levou embora minhas garrafas, ou seja, me levou embora a bicicleta. Eu não ia atrás do cara nem, mas eu senti, foi uma falha minha, eu joguei plástico fora. Ele vai terminar aproveitando, lógico que vende mas... então os 4Rs são coisas que já fazem parte. Se eu puder mostrar para alguém como se faz e alguém achar ótimo, vamos fazer isso, maravilhoso, mas é difícil, é um processo lento.
P/2 – E qual é a sua preocupação com o futuro?
R – Com o meu futuro ou com o futuro da humanidade?
P/2 – Da humanidade?
R – É difícil, é uma pergunta muito difícil, né? Eu penso assim, eu estou escrevendo um livro de contos que chama “O Hóspede do Tempo”, você chegou a ler esse livro? Está no meu site. O primeiro conto que chama “O Hóspede do Tempo” está lá no meu site, na parte de Literatura. E eu conto a historinha do que nós somos, está nesse conto. Eu não vou falar o conto pra vocês porque não tem graça, vocês vão lá e leem o conto. É um pouco isso que eu acho, o que está lá nesse conto. Ou quer que eu fale?
P/1 – Eu quero que você fale porque nem todo mundo vai poder ler.
R – Eu vou resumir, vai.
P/1 – Isso.
R – Eu vou resumir o conto. Tem que ver com a minha experiência nas coisas. Quando você faz muitas coisas, não é especialista em nada, mas sabe um pouquinho de cada coisa. E eu voei muito e eu voei muito sozinho porque é difícil alguém ir: “Vamos pra outro país?” “Tá louco? Eu não vou com você no avião”, sabe isso? Pronto, aí eu ia sozinho. E nesse ínterim de você voar, passar pelas cidades, ver o problema de cidade lá embaixo, que você escuta na frequência, você fala: “Que pobreza, que coisa pequena. O que nós somos?”. Tudo isso vai. E aí eu comecei a escrever no avião esse livro, é “Hóspede do Tempo”. É alguém que se perdeu, estava voando que nem eu estava voando e se perde na galáxia e não sabia pra onde ir. E o combustível da nave dele estava acabando. E ele usava hidrogênio de combustível, água. E aí ele pede socorro na frequência livre, eu usava muito frequência livre, aí eu ligo na frequência livre e falo com alguém, tal. Eu falo assim: “Olha, me ajuda, eu estou sem combustível, eu estou perdido, o que eu faço?”. Aí depois de muito aparece uma voz meia metalizada assim e fala: “Olha, eu posso te dar uma dica. Tem um antigo depósito de combustível, de hidrogênio, que se chama Terra, está nessas coordenadas aqui. Não é de ninguém, não tem dono, porque é muito antigo. Mas tem muito hidrogênio lá. Tem umas coisinhas que moram lá e tal, mas você pode ir lá encher a sua nave” “Ah, você enche lá?” “Eu não encho mais, eu não uso mais hidrogênio, eu estou andando na velocidade do pensamento, então não preciso de hidrogênio”. Esse cara que usava hidrogênio, que andava pelas galáxias era muito atrasado, né? E ele colocou as coordenadas no transponder dele, tal, e chegou aqui nesse depósito de hidrogênio antigo, abandonado, sem dono. E passou numa lagoa que tinha lá e ele começou a sugar o hidrogênio pra nave dele e compactá-lo. Ele pegava assim, 50 milhões de litros, compactava em um centímetro cúbico e jogava dentro da nave. E ele demorou 15 segundos-luz pra fazer isso, no tempo dele. Só que 15 segundos-luz no tempo dele aconteceu que na terra passaram 300 gerações de pessoas. Então ele ficou olhando 300 gerações de pessoas do lado dele, nesses 15 segundos dele. E ele falou: “Que pobreza, que pobreza! Os problemas deles, quais são? As relações, a posse da terra. Eles comem terra! Não acredito que eles comem o produto da terra! Ou se não, eles criam animais que nem eles pra comê-los! Gente, o quê é isso? Que bicho é esse?”. Aí ele falou: “Eu vou mostrar pra eles que se pode viver com outra energia, com a energia cósmica, com a energia do Sol, tem o Sol aí, a maior fonte de energia e não sabe usá-lo! Eu vou ensinar pra eles como que usa o Sol e vou mostrar pra eles como que faz pra não se alimentar da terra, a terra acaba com a vida deles. Imagina, comer cenoura? É terra!”. Aí ele falou: “Eu vou resolver isso aí”. Voltou pra nave, já estava terminando o combustível, aí escuta um apito na frequência livre e aquela voz metálica falou: “Você terminou? Você carregou já a sua nave?” “Já” “Então faz um favor pra mim? Pode ir embora porque você está atrapalhando o nosso experimento”. E ele vai embora. Essa é a minha resposta pra sua pergunta. Respondido? Mais ou menos.
P/2 – Demais essa história (risos).
R – Esse é, nós somos muito pobres, muito pouco evoluídos. Nós estamos na fase primária da evolução. Em tempos universais nós não temos nenhum segundo, dois segundos de vida, né? E por isso que nunca espere nada de um ser humano, nunca um ser humano vai te dar nada, porque ele não sabe como dar, ele não sabe, não está preparado para isso, né? Ele está preparado para querer e para possuir, ter posse. Mas não pra dar. Esse é o nosso destino. Pronto.
P/2 – O que você achou de contar a sua história aqui?
R – Ah, achei muito estranho (risos) falar de mim. É gozado, né, falar da gente.
P/2 – Mas você já deve ter falado muito.
R – Mas não assim, tão profundo. Não. Eu falo superficial. Mas tem uma coisa que eu gostaria que cortasse, pode cortar?
P/3 – Você quer falar fora da gravação?
R – Sim, sim.
P/1 – Quer perguntar alguma coisa, Ana?
R – Pronto?
FINAL DA ENTREVISTA
Dúvidas:
Maria Estela e _0:00:45_ José, de descendência italiana. – Página 1.
Aí fui trabalhar numa oficina de bicicletas. Trabalhei muito tempo lá até que um dia chegou uma bicicleta, sem última palavra, o dono da bicicleta era um grande corredor uruguaio, chamava _0:05:08_, foi o maior ciclista do Uruguai por um tempo lá. – Página 2.
Aí tinha a _0:27:41_ aqui perto, não sei se você já ouviu falar, _0:27:42_ era uma empresa alemã que estava fechando, destruíram tudo e tinha um monte de viga no chão. – Página 7.
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