Entrevista de Mônica Anjos
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 11/07/2023
Projetos: Vidas em Costura: Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista número: VDC_HV008
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Querida, para começar gostaria muito de te agradecer, por estar recebendo a gente aqui, no meio dessa agitação toda. Queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Ok. Meu nome é Mônica Silva dos Anjos, eu sou soteropolitana e estou gravando aqui na Rua Girassol, número 231, na Vila Madalena. É isso que você quer?
P/1 - Que dia você nasceu?
R - Eu nasci... então eu completo agora, falo tudo de uma vez só.
P/1 – Fique à vontade!
R - Meu nome é Mônica Silva dos Anjos, eu sou soteropolitana, nascida no dia 27 de outubro de 1968, em Salvador e estou na Vila Madalena nesse momento, na Girassol, número 231.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Me contaram, mas eu não lembro, acho que foi na beira-mar, no início da manhã, mas não lembro o dia da semana, mas eu lembro que foi à beira-mar, em uma maternidade que chamava Aurora Leitão, no período da manhã, acho no primeiro momento, no primeiro horário.
P/1 - Você sabe por que você se chama Mônica?
R - Foi a minha irmã que colocou, devia ser fetiche, não sei. Eu não teria escolhido para mim esse nome, por exemplo, (risos) teria escolhido um nome africano. Então eu não sei, não imagino qual foi a imaginação dela em me colocar, ter dado esse nome, mas fiquei apaixonada por ele, assim.
P/1 - E você tem quantas irmãs?
R - Tenho duas irmãs de criação. Na verdade, uma irmã que já faleceu, uma irmã de criação e um irmão.
P/1 - E você está onde, nessa ‘escadinha’?
R - A caçula. Acho que só a caçula para assumir moda, que é uma geração que a arte se distanciou um pouco da realidade da gente, a arte ia para outro caminho, de quem não queria...
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Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 11/07/2023
Projetos: Vidas em Costura: Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista número: VDC_HV008
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Querida, para começar gostaria muito de te agradecer, por estar recebendo a gente aqui, no meio dessa agitação toda. Queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Ok. Meu nome é Mônica Silva dos Anjos, eu sou soteropolitana e estou gravando aqui na Rua Girassol, número 231, na Vila Madalena. É isso que você quer?
P/1 - Que dia você nasceu?
R - Eu nasci... então eu completo agora, falo tudo de uma vez só.
P/1 – Fique à vontade!
R - Meu nome é Mônica Silva dos Anjos, eu sou soteropolitana, nascida no dia 27 de outubro de 1968, em Salvador e estou na Vila Madalena nesse momento, na Girassol, número 231.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Me contaram, mas eu não lembro, acho que foi na beira-mar, no início da manhã, mas não lembro o dia da semana, mas eu lembro que foi à beira-mar, em uma maternidade que chamava Aurora Leitão, no período da manhã, acho no primeiro momento, no primeiro horário.
P/1 - Você sabe por que você se chama Mônica?
R - Foi a minha irmã que colocou, devia ser fetiche, não sei. Eu não teria escolhido para mim esse nome, por exemplo, (risos) teria escolhido um nome africano. Então eu não sei, não imagino qual foi a imaginação dela em me colocar, ter dado esse nome, mas fiquei apaixonada por ele, assim.
P/1 - E você tem quantas irmãs?
R - Tenho duas irmãs de criação. Na verdade, uma irmã que já faleceu, uma irmã de criação e um irmão.
P/1 - E você está onde, nessa ‘escadinha’?
R - A caçula. Acho que só a caçula para assumir moda, que é uma geração que a arte se distanciou um pouco da realidade da gente, a arte ia para outro caminho, de quem não queria estudar, sabe? Era esse lugar que a moda…. então eu assumi há muito tempo esse prazer, mas sobretudo era uma moda muito inclusiva, então eu queria dar uma contribuição para uma pauta racial da minha época, a partir do Movimento Negro, dessa liderança, então construir uma narrativa, uma contribuição para esse movimento.
P/1 - Esta pauta racial vocês falavam na infância, era dito sobre isso na sua família, ou não?
R - Olha, eu acho que era dito, pela postura dos meus pais. Acho que nós tínhamos e nós temos uma família muito empoderada e eu acho que a atitude disse e dizia muito mais do que a palavra. Naquele momento a gente não sabia como se comportar diante da fala desse processo, mas as ações deram uma direção muito importante na nossa família.
P/1 - Você tem alguma história, algum exemplo de alguma postura assim?
R - Tenho da minha infância inteira ter sido... na época o meu pai, engenheiro do Derba Estradas e Rodagens da Bahia, acho que dentro da pirâmide social nós éramos consideradas uma classe média. Então, eu vivi a minha infância em escolas particulares e em muitas dessas escolas sendo a única negra e eu sempre me posicionei. Eu lembro que a minha mãe fazia aquela maria-chiquinha para eu ir para escola toda linda e na metade do caminho eu já tirava a maria-chiquinha, eu já chegava na escola com os cabelos que hoje a gente chama de black power, mas naquela época era algo que, para mim, hoje, diante do retrato da minha infância, era realmente um ato revolucionário. Então, eu já tinha uma estética muito marcante, isso com inúmeras colegas brancas, inúmeros colegas e eu já tinha definido que a minha estética seria a de uma menina negra, assumindo o cabelo, toda a minha atual trajetória, porque eu fico pensando que eu tive uma infância tão livre, que reflete no que eu sou hoje: uma mulher livre, pra assumir as consequências, inclusive, do que é ser livre diante daquilo que eu escolhi, que é fazer moda.
P/1 - Como você descreveria o jeito dos seus pais?
R - O meu pai livre e a minha mãe conservadora, o meu pai de religião de matriz africana e a minha mãe católica apostólica romana. Então, é muito interessante isso. O meu pai mais livre. Eu acho que a liberdade, inclusive, de expressão da religião de matriz africana, inclusive naquela época e eu estou falando de cinquenta anos atrás, definia muito o caráter, a personalidade e sobretudo o respeito à decisão do outro, com relação a ser aquilo que ele pretendia ser ou pretende ser. Respondi?
P/1 – Sim. E tem alguma história que você se lembra muito deles, assim, alguma coisa que vocês gostavam de fazer juntos?
R - Ah, lembro, eu lembro... minha mãe era costureira, costurava para a classe média alta de Salvador, costurou para a Primeira-Dama do estado, durante muitos anos, então o ‘rolê’ com a minha mãe era sempre mais a pauta do consumo, de passear, sair para conhecer as lojas da época, e meu pai mais a pauta da ancestralidade, mais os passeios para os terreiros, algo mais... era muito bacana, eu conseguia viver os dois momentos da relação, inclusive também em família, mas nós tínhamos esses dois lados, o meu pai sempre proporcionou mais a vivência com relação a minha ancestralidade.
P/1 - E você tem recordações de terreiros? Suas irmãs iam também?
R – Tenho. Engraçado, eu lembro de ir muitas vezes com o meu pai e com o meu irmão já fui algumas vezes. A gente transitava pelas nações, pela Angola, pela Jeje. Eu lembro que o meu pai era de Angola e meu irmão já era de Jeje, e eram tradições que era muito interessante essa vivência, que permeia pelas religiões de matriz africana, seja Angola, seja Jeje. É bem interessante isso.
P/1 - Você chegou a conhecer os seus avós?
R - Não, não os conheci.
P/1 - E histórias deles?
R – A história é que nós morávamos em uma fazenda, que moramos até hoje, nós temos aí um quilombo urbano no Rio Vermelho, em Salvador, e a história é de que era uma fazenda de gado e que nutria muito a região ali, do Rio Vermelho e de bairros próximos, que iam comprar o leite e minha infância é de muita correria, muita brincadeira, muito sobe e desce, muitos primos, era muito legal.
P/1 - Você cresceu nessa fazenda?
R - Eu cresci nesse lugar.
P/1 - E quais eram as brincadeiras da época?
R – Eu lembro que o primeiro viaduto que foi construído a gente brincava de pular o viaduto, porque ficavam então os barros e a brincadeira era sempre, nossa, de correr, de pular, sem medo da altura. Era muito mais gude, corda, bola, bicicleta... não, rolimã na época, brinquedos que eram construídos com o que a gente tinha, era lata de sei lá e aí a gente fazia os brinquedos da época.
P/1 - Já estava construindo.
R - Já estava construindo.
P/1 – (risos) E tem algum outro parente, alguma pessoa muito importante na sua infância? Vizinhos, amigos?
R - Olha, eu tenho uma rede de pessoas, que são as minhas referências e que são importantes. Eu tenho uma prima advogada e ela já tinha algo que eu admirava muito na época, que era a militância, alguém para além do seu tempo e que me conduziu também, junto com a minha irmã. Eu lembro que frequentavam amigos da área de dança, então eu acho que naquela época eu vivi um movimento que não foi da minha geração, mas que contribuiu muito para a minha formação.
P/1 - Um movimento específico, ou não?
R - O movimento da arte.
P/1- E tinha alguma data comemorativa muito importante para a sua família? Vocês tinham o hábito de comemorar aniversários, outras...
R - Olha, em Salvador, na Bahia, a gente comemora muito os festejos juninos, especialmente no dia dois de julho a minha família, há mais de cinquenta anos reverencia São Lázaro, com a missa de São Lázaro, no dia dois de julho, com café da manhã, o almoço, que serve uma feijoada e que se reúne a família, para preparar o caruru, que é servido à noite. Então, durante toda a minha vida e trajetória o dia dois de julho é um marco, inclusive de estarmos todos juntos, celebrando aí essa data, que é tão especial pra todos nós, além de ser a independência da Bahia, mês de julho, acho que sim. Senão a gente cancela.
P/2 – É isso mesmo.
P/1 - E você participava da organização desse evento?
R – Participava não da organização, eram os mais velhos que cuidavam da organização, mas nós participávamos da movimentação, isso sim e era muito interessante que o café da manhã era uma doação da família, que levava os pratos: uma levava uma canjica, a outra levava uma coisa, um bolo de milho, um fubá e fazíamos assim a ceia.
P/1 - E a sua família tinha algum costume específico?
R - Tinha o costume da fartura, de sermos fartos, de recebermos bem o outro, as pessoas, nós tínhamos esse hábito. Tínhamos não, temos, do acolhimento afetivo.
P/1 - Ainda na infância, como era a sua casa?
R - A minha casa era uma casa - graças a Deus, isso eu agradeço muito ao meu pai - com uma estrutura boa. Eu lembro que nós fomos a primeira família a termos televisão na rua inteira, eu não estou falando só da comunidade, eu falo da rua inteira. Então, a gente se reunia para assistir televisão com todas as famílias, o primeiro som foi lá em casa e a primeira ‘balada’ também foi, eu já comecei a tirar os móveis do lugar e meu pai dizia assim: “Faz um encontrinho, filha”. Aí eu fazia aquele encontrão de cinquenta, setenta pessoas em uma única sala e era assim.
P/1 – Isso nova?
R – Isso com quinze anos de idade.
P/1 – O que vocês costumavam mais a escutar?
R – Nós escutávamos... engraçado, na nossa época nós já tínhamos uma referência negra na música, no comportamento, na forma de vestir. Era exatamente o momento em que nós mostrávamos quem nós éramos, nesse evento. Era o black power, as calças da época, mas tudo trazendo muita ancestralidade, o colorismo, as cores. Era assim.
P/1 – E músicas?
R – Música várias vertentes: da lambada a todas as músicas da época, que remetia... porque, por exemplo: isso eu falo dos meus quatorze anos, que daí eu tenho uma memória muito viva, foi a minha inserção dentro da militância, dentro do Movimento Negro, dentro do movimento social, cultural, a exemplo da dança, a partir da expressão cultural que foi, pra mim, ter conhecido o Bloco Afro Ilê Aiyê. Então, com quatorze anos eu pude sair no Ilê, conhecer África, porque é um aprendizado tão grande que os blocos afros permeiam pro nosso conhecimento, trazer, porque eles ‘mergulham’, então eu pude, naquela época a gente já tinha toda essa efervescência artística, a partir dessa narrativa dos blocos afros.
P/1 – E como você conheceu?
R – Com os meus primos, mais velhos. Com essa prima, Adelma Conceição, por exemplo, eu conheci os blocos afros.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Acho que dá quatorze anos.
P/1 – E até...
R – Até hoje.
P/1 – E nessa época você pensava o que você queria ser, quando crescesse?
R – Jornalista. Comunicação. Mas eu me considero uma boa comunicadora, quando eu quero. (risos) E a gente passa por muitas coisas, não é? Porque uma hora eu queria ser jornalista, outra hora queria trabalhar com Serviço Social, que era exatamente pra acolher as pessoas. E depois da militância eu entendi que a contribuição que eu podia dar seria a indumentária, o resgate identitário através da indumentária.
P/1 – Isso com quantos anos?
R – Aí acho que com... demorou um pouco.
P/1 – Mais velha?
R – É. Acho que demorou um pouco. Acho que eu fiquei um pouco... tive muita dificuldade porque, na época, eu acho que, com todo respeito a todos os profissionais da área de moda, mas eu não queria só sentar na máquina e viver tudo que minha mãe vivia enquanto costureira. Eu não queria, não tinha nenhum interesse em trabalhar com corpos que não fossem negros, pra aquela narrativa, então eu queria e eu pensei muito de que forma eu ia contribuir com a indumentária, pra resgate de autoestima de mulheres negras.
P/1 – Você pensou tudo isso, teve mais clareza do que você queria quando você já estava dentro da moda, ou quando você estava começando a se inserir nesse universo?
R – Não, eu já entrei na moda entendendo que o meu papel seria resgate identitário.
P/1 – E escola, na infância, que recordações você tem, pra além de tirando a xuxinha?
R – Eu tenho recordações maravilhosas, porque essa forma que eu tive a minha vida inteira, de me posicionar, me deu uma liberdade de expressão, então eu sempre me dei bem, eu tenho os meus amigos da infância, continuam os amigos de hoje, então isso eu falo por que... vou abrir até um parêntese, que recentemente, há cerca de quase um ano, aproximadamente, (risos) eu encontrei com - não, não lembro se foi antes, ou depois das eleições – um grande amigo de infância e nós estávamos no supermercado, eu passei, dei um tchau, ele falou: “Não, vem cá, quero um abraço seu, não sei o quê” e começamos a conversar e depois ele resolveu entrar pelo caminho da política e nós tínhamos partidos... divergências políticas e, pra mim, eram divergências sérias e aí eu falei: “Vamos fazer o seguinte? Eu quero esquecer esse encontro, porque eu não tenho nenhum interesse em seguir, por exemplo, com alguém que pensa nesse lugar” - isso dentro do supermercado – “então, vamos deixar o passado lá, eu não tenho interesse em seguir, porque eu realmente tenho muita dificuldade de lidar com o que eu não acredito e sobretudo num momento em que as pessoas conseguiram, de fato, sair da sua ‘embalagem’ e se mostrar, quem elas são e aí se dá por morte de preto o tempo inteiro, por esse processo de execução do que a gente pensa, de que forma a gente age” e aí foi muito interessante, que ele entendeu e eu falei: “Tchau, não quero te ver mais, nunca”. (risos) Porque era muito... eu achei uma coisa tão impactante a postura e como essa pessoa veio ao meu encontro, falar e não foi absolutamente nada, foi só que identificou a minha estética dentro de algo que ele abominava. E aí traz a pauta de uma questão social, política, pra um lado que eu falei: “Não preciso”. Então, em função disso eu tenho um núcleo de amigos de quarenta anos atrás. A gente se encontra, se respeita, comunga sim dos mesmos sonhos e ideais. Eu não consigo caminhar com quem não está atento a tudo isso que está acontecendo, eu sou meio radical. Ou não.
P/1 – E professores, teve algum marcante, pra você?
R – Vários, principalmente de Matemática, porque eu era uma péssima aluna e marca o centro das matérias. Eu posso dizer que os melhores eram de História, Geografia, de Arte, mas quando passava pra... marcava muito mais, mas isso a gente também, eu não consigo mais vê-los, não tenho mais essa relação. Eu acho que eu lembro muito mais dos colegas, do que os professores. Engraçado, a sensação que a gente tem é que os professores seguem e os colegas ficam, por conta da narrativa que a gente constrói. A gente escolhe se a gente vai ser amigo, qual é o futuro que a gente quer. Isso dá uma sequência das relações. Eu vejo minhas relações nessa base, do que a gente construiu. Eu tenho muito mais amigos de lá de trás, do passado, suposto passado, do que do presente, porque a gente escolheu ser amigo, caminhar juntos e, nessa caminhada, a gente consegue minimamente, a cada um, dois, três anos que seja, estarmos juntos, pra gente conseguir desfrutar das nossas conquistas, é assim.
P/1 – E você se formou nessa mesma escola, ou você chegou a mudar de escola?
R – Não, acho que mudei de escola e me formei. Passei por duas, ou três escolas.
P/1 – E como foi essa mudança? Tem alguma recordação?
R – Tem mudança, porque escolas funcionam até um período, que atualmente também funciona dessa forma, depois vai pro colegial. Foram essas mudanças.
P/1 – E já um pouco mais crescida, na adolescência, caminhando pro colegial, como você gostava de se divertir?
R – ‘Balada’. A gente construía as ‘baladinhas’. Isso você está falando da infância pra adolescência?
P/1 – É.
R – Recentemente uma amiga de quarenta anos, nós estávamos lembrando que em Salvador começou a ter uma ‘balada’ maravilhosa. Isso eu devia ter, sei lá, dezoito, dezenove anos. E era a ‘balada’ do momento e nós íamos pra porta da ‘balada’, porque nós não tínhamos condições de entrar. E um dia, isso já fase adulta, meu pai morreu eu tinha vinte anos, dezoito, dezenove, não lembro, mas aí o padrão... e também não tinha ‘grana’ pra ‘balada’, isso nunca foi uma pauta. E aí eu ficava, me arrumava mesmo pra ir a essa ‘balada’, mas pra ficar na porta e um dia, eu muito curiosa com um casal de amigos, ele inclusive branco e ela mulata, negra, mas ela sempre se considerou mestiça, mas nós andávamos juntas: era ela, eu e esse namorado dela. E um dia nós estávamos na porta, eu falei: “Nossa, eu tenho tanta curiosidade de conhecer o dono dessa ‘balada’”. Eu comentei e alguém falou: “É o Helder Barbosa. Ele é o ‘cara’ da ‘balada’ da noite de Salvador”. E aí não sei se nesse dia ele passou e me perguntou se estava tudo bem. Aí ele falou: “Boa noite! Tudo bem?” Eu falei: “Não, não está tudo bem. Você é um homem negro, você ocupa um lugar que não lhe pertence, porque esse bairro, se tivesse que pertencer a alguém pertenceria a mim, ou à minha família e faz uma ‘balada’ só pra pessoas da sua pele, da sua classe social. Então, não está tudo bem. Está tudo bem quando você reconhecer que você não ocupa esse lugar e que você tem que dar acesso às pessoas”. Aí ele me olhou assim: “Quem é?” “Ela é moradora daqui do bairro”. Ele falou: “Não, você pode entrar”. Eu falei: “Olha, eu vou entrar com os meus amigos, mas eu não estou falando desse lugar. Eu estou falando que eu vou entrar todas as vezes que eu quiser, porque esse lugar me pertence. Você sabia que aqui funcionou uma escola pública tal? Você sabe o que aconteceu nesse lugar há tanto tempo? Você sabe que eu sou nascida nesse lugar e que minha família vem daqui, de uma fazenda pequena, que vendia leite, nananã?” e ele me olhando assim, hoje é um dos meus melhores amigos. (risos) E foi uma atitude já pensada a partir de ocupação, de ocuparmos. Especialmente eu costumo dizer que eu não quero ocupar todos os lugares, eu quero ocupar os lugares que eu acredito que eu devo ocupar. E aquela ‘balada’ que eu achava que eu pertencia a ela, então passei a frequentar todas as vezes: “Olha, todas as vezes, pode deixar, ela e os amigos, não sei o quê”. E nunca esqueço uma festa que ele fez, muito grande e ele falou pra mim: “Mônica, eu vou fazer uma festa assim, na Praia da Paciência” - era um réveillon – “e vai ser assim, os ingressos vão ser vendidos assim”. E foi muito interessante, que eu falei: “Como vai ser vendida a cerveja?” “A gente vai acionar um bar tal e não sei o que e eu vou lhe dar 5 convites, pra você convidar sua família”. Eu nunca esqueço. Eu disse: “Você sabe quantas pessoas que tem na minha família, que frequentam essa praia que você está fechando, pra fazer a sua festa? A gente vai negociar da seguinte forma: ou você deixa a comunidade desse lugar ter acesso à festa, ou eu vou promover que todo mundo desça com o seu isopor e faça uma festa paralela, até porque a praia não é sua. Então, se você está ______ lugar eu proponho à minha comunidade fazer uma outra festa, paralela à sua. O que você acha disso? Gratuita”. Ele: “Eu acho que você é um problema”. Eu falei: “De que forma você quer ter esse problema do seu lado?” Ele falou: “Então, vamos abrir para sua comunidade”. Então a gente consegue, né? Isso é o diálogo que eu tenho aí o meu ‘diploma’.
P/1 – Tem alguma história, pensando na sua cidade, que possa te ajudar a contar sobre as suas origens, que seja muito importante pra você, que tenha alguma relação com a sua vida?
R – Da cidade?
P/1 – Algum lugar.
R - Eu acho que a cidade é muito interessante quando a gente vem da Bahia, de Salvador, que vem pra São Paulo, mais conhecida como a ‘cidade grande’: a gente se prepara lá, de alguma forma, porque eu costumo dizer, com todo respeito à militância preta brasileira, que o Movimento Negro e a base de uma ancestralidade fortalecida pra esse movimento foi construída lá. Definiu uma estética. Você se ver linda aos sete, nove anos de idade. Você poder se vestir de uma forma, contemplando a sua ancestralidade com o colorismo, com colorido, com seu posicionamento político, com tudo que eu lhe contei aqui significa que a cidade contribuiu muito. É isso. Porque o restante eu acho Salvador um atraso, eu acho.
P/3 – Mas seu bairro é bem legal.
R – É. Ele é bem legal. É uma Vila Madalena mais compacta, eu acho. Acho que agrega mais pretos. Na verdade, eu construí meu ‘rolê’ aqui, por quê? Esse bairro foi um bairro negro. Isso aqui é uma ocupação imobiliária. Então, eu entendo que eu não estou aqui porque é Vila Madalena só, eu estou aqui pra ocupar esse lugar, pra trazer de volta a esse lugar tudo que lhe foi tomado. Hoje nós temos, já, dois espaços: esse espaço, que eu costumo dizer que é de acolhimento afetivo e o Emoriô. O que emoriô quer dizer, além de uma palavra de amor, um paladar, que as pessoas possam desfrutar desse movimento, desse lugar. Nós tínhamos uma escola de samba. Eu falo ‘nós tínhamos’. Eu cheguei aqui há um ano e meio, mas existia uma escola de samba, existiam famílias negras nesse lugar. É como o Centro Histórico: as pessoas vão deixando de existir pra dar lugar a um outro cenário. Eu lembro que quando eu cheguei aqui...
P/1 – Pensando nessa finalização da escola, como a sua vida foi ‘desenrolando’? Você começou a trabalhar, já trabalhava antes?
R – Não. Eu concluí os estudos do segundo grau e fui trabalhar, já na perspectiva da moda. Concluí os estudos, com o magistério, na época era magistério e depois comecei a fazer essas ações de moda.
P/1 – E como que pensou na moda? Você sempre teve esse interesse, ou foi…
R – Olha, eu acho que eu tive uma responsabilidade social mesmo, de fazer, de ‘mudar a chave’, sabe? Algo que... a moda, nós não tínhamos acesso a ela. Se nós não construíssemos as nossas narrativas, nós não seríamos protagonistas. Então, eu acho que veio a partir dessa... é algo meu, que nasce em mim, não sei explicar, mas vem nesse lugar, de transformação.
P/1 – E qual foi o primeiro trabalho?
R - Gente, eu acho que com a minha mãe, que era costureira. Eu acho que foi aí, iniciando primeiro com as minhas roupas, com as roupas que minha mãe fazia pra mim e que já chamavam a atenção nos lugares que eu frequentava e aí as coisas foram surgindo, nascendo, nesse lugar da visibilidade, de passar a ser uma referência na moda, pro outro. Acho que foi aí que nasceu o projeto.
P/1 – Como eram essas roupas que sua mãe fazia?
R – Olha, eu não sei se eu já fui diferente, mas eu tenho uma linha... sabe o clássico étnico: a mulher preta que, por mais exuberante, mas que está sempre no linear? Eu, por exemplo, sempre gostei de cores neutras, mas eu sempre gostei de me vestir bem, do que eu acreditava que era me vestir bem. Sempre tive uma dosagem do menos é mais e é muito interessante falar sobre identidade visual do meu projeto linkado à minha identidade e personalidade, porque, se eu pudesse, eu ficava no nude a vida inteira, no branco a vida inteira, mas isso também eu consigo conceber que é influência das cores. Ela traz pra nós, estilistas, esse lugar. Eu conheço poucas estilistas que ousam, nesse sentido da sua identidade visual, colorir, tudo. Mas eu, por exemplo, a minha identidade, se eu pudesse só usava o neutro; o nude, nas suas nuances; e o branco, por ser uma referência da cor, ou da ausência dela na religião de matriz africana, enquanto você tem que vestir branco, ou deveria, dia de segunda-feira, às sextas-feiras. Eu, se eu pudesse, usaria todos os dias e eu acho que tem a ver com a minha personalidade e é muito interessante que, nesse ‘rolê’ da moda, eu venho pensando como o processo - que eu acho que até você vai chegar nesse lugar - criativo, talvez, não sei, mas como isso, às vezes, se distancia um pouco do seu eu. Como, às vezes, a marca vai pra um lugar e você está em outro lugar. Eu vejo isso, muito, nessa coisa da paleta das cores. Eu vejo aqui no meu espaço físico a necessidade que as pessoas têm de colorir e impacta muito. Eu lembro que, quando eu cheguei à São Paulo, isso há muito tempo, como compradora, porque nós comprávamos os tecidos e o material aqui e levávamos pra Salvador, pra linha de produção, porque aqui sempre foi um polo têxtil, que atendia a demanda. Hoje nós temos vários polos, mas São Paulo sempre deu esse ‘leque’ de possibilidades. Então, eu vejo aqui... na época, por exemplo, eu ficava pensando como a minha marca, a minha história do projeto da minha marca seria inserida nesse lugar. São Paulo sempre foi, pelo menos era, um lugar cinza, que as pessoas usavam muito preto, eu tinha muita dificuldade de associar as estampas à São Paulo. Depois foi desconstruído e aí vem o que a gente fala sobre a militância do empoderamento através da estética, pra esse lugar e hoje você está no ‘rolê’, tem milhares de pessoas usando estampas, fazendo esse mix, que aproxima da sua identidade. Eu não vejo que é algo que se distancia. Eu vejo que é algo que está próximo da sua identidade porque eu, por exemplo, a minha identidade, se eu pudesse, eu estaria o tempo inteiro no nude e no branco e isso é muito interessante, eu acho.
P/1 – E até você criar a sua marca, como foi o ‘desenrolar’ dessa trajetória?
R – Que a parte mais interessante é que eu sempre busquei um nome e eu nunca encontrei, porque as pessoas diziam: “Eu estou vestida de Mônica Anjos”. Então, assim nasce a marca. Eu busquei alguns nomes e hoje é engraçado, às vezes eu estou em algum lugar, eu vejo a pessoa me olhando, eu digo: “Meu Deus, por que a pessoa está me olhando? Ai, meu Deus!” Aí eu lembro: “Ah, está olhando pra estilista da marca Mônica”. Então, é bem interessante. Foi isso sendo repetido muitas vezes e ‘casou’ com inúmeras marcas de empresárias brancas, que tinham... acho que foi um período em que as pessoas usavam o seu nome pra demarcar ali o seu DNA nos seus projetos. Então, várias marcas de mulheres que, na época, usavam o seu nome pra construírem a sua narrativa, enquanto empresários, empreendedores, eu acho.
P/1 – Que ano que foi isso?
R – Vamos pra calculadora? É por que... vamos lá, falar de trinta anos atrás, 25 anos? Acho que é isso.
P/1 – Você tinha por volta…
R – Olha, eu tinha por volta de 27, 25 anos, que eu estava, claro, fazendo algumas coisas, mas pra me colocar nesse lugar e dizer: “Eu quero isso” acho que foi por volta dos vinte e poucos anos.
P/1 – E nesse início quais foram os desafios de entrar nesse universo da moda?
R – Era mostrar pra minha família que moda era arte, que a arte também fazia parte de um processo de intelectualidade, que era o grande lance daquela época você associar a arte, a cultura a uma profissão de sucesso. Antes estava ligado a: “Não quer estudar, vai fazer arte. Não quer estudar, vai ser dançarino. Não quer estudar, vai ser compositor”. Imagina o quanto você precisa estudar pra ser compositor! O quanto você precisa estudar pra fazer moda! O quanto você precisa estudar pra fazer dança, arte, de um modo geral. Consome a gente dentro da questão do conhecimento. Então, acho que esse foi o maior desafio: mostrar pra minha família que eu podia dar certo fazendo arte.
P/1 – Sua família não incentivou muito?
R – O meu pai sim, a minha mãe tinha muito medo de eu seguir uma carreira de costureira, seguindo os passos dela, que não conseguiu, na época, avançar do processo natural, normal de uma mulher da geração dela. Então, acho que era esse medo, da falta de sucesso economicamente falando, socialmente falando. Eu acho que é desse sucesso, mesmo, do reconhecimento de uma sociedade, de todo um caminho. Acho que é isso.
P/1 – E os aprendizados de estar dentro desse ‘universo’?
R – Diário. E eu estou num processo em que eu me dei de presente me permitir vivências com gerações. Eu acho que é um aprendizado diário. Eu vejo nesse lugar, agora pensando e entendendo um outro lado, que é o da invisibilidade e de como trazer essa cena, essa narrativa, pra essa contextualização, de que forma, de fato, nós minimamente deveríamos ser tratados pelo Estado brasileiro, dentro desse processo, que ainda é invisibilizado, economicamente falando. Você falar que nós não somos herdeiros. A gente vem de uma construção diária, pra ocuparmos e pra sermos quem nós somos, dentro daquilo que a gente acredita e, sobretudo, quando a gente pensa que a gente leva um coletivo, a gente traz isso, muita gente pra se inspirar e pra entender que não pode e não deve fazer parte do processo de submissão, então uma responsabilidade muito grande. Mas vamos que vamos! (risos)
P/1 – Como você descreveria o objetivo? Quais são os valores, o que você gostaria de transformar, com a sua marca?
R – Olha, eu gostaria, de fato, de transformar, o processo de transformação seria do social, dentro da pauta da economia, mesmo. Eu acho que já está muito claro que não dá pra fazer moda sem recurso, que não dá pra gente seguir sendo invisibilizado por uma economia que nos excluiu e nos exclui o tempo inteiro. Então, eu acho que o grande desafio agora é pensar em como fazer arte, ser reconhecida pelo que a gente faz, entender que é um papel importante, mas que é preciso fazer parte da economia brasileira. Não dá pra se distanciar. Não dá pra fazer moda e fazer tudo que eu faço sem dinheiro. Trazer uma narrativa de contribuir com tantos jovens, que é o que a gente vem fazendo, sem ser visto, sem ser notado. Então, isso não é uma brincadeira. A gente está tirando os jovens da marginalidade, da marginalização, que estão na ‘mira de um revólver’ o tempo inteiro porque, no momento que ele se reconhece enquanto indivíduo, dentro de uma sociedade, ele não vai ser visto como alguém que não faz parte dela e que tem que o tempo inteiro estar lutando contra esse sistema opressor, que vem em um domínio de extermínio, mesmo, de alguma forma. Extermínio se dá a partir desse lugar. A gente tem que investir na educação, nesses mecanismos e a moda está nesse lugar, nesse papel, porque ninguém que tem autoestima, que tem onde dormir, onde comer, onde morar, como viver de uma forma digna vai optar em viver sob a mira de um revólver, nesse sistema carcerário que nós sabemos quem está nele. Então, esse tem sido o maior desafio da marca Mônica Anjos. Uma pausa: ‘louca’ pra C&A contratar a gente pra um trabalho bacana.
P/3 – Não faz como pausa, não, ______.
R – É. Vamos lá! Vamos, mulher.
P/1 – E seu processo criativo?
R – Gente, o processo criativo tem sido muito legal, porque essa geração que a gente vê hoje, na moda, o povo novo chegando, as pessoas têm dado a oportunidade pra mim, eu tenho me dado de presente a oportunidade da vivência, de entender a importância de estarmos juntos nesse coletivo, tem sido muito legal. Eu fiz o Flores da Favela, que foi uma coleção muito interessante ter feito, coleção apresentada na Casa de Criadores em dezembro, era exatamente a inserção da periferia na moda e foi muito bacana, trouxemos modelos negros, não negros, miscigenados. Enfim, foi uma festa. E eu lembro que no dia da prova de figurino eu coloquei as roupas e eles foram chegando no horário que tinha sido marcado e eu os colocava pra vestirem e eu pegava aquela roupa nada a ver com cada um deles. Pegava, olhava pra aquela peça: “Vista aqui” e eles faziam ‘aquela cara’. “Gostou?” “Gostei”. E aí, depois que terminou a prova de figurino, falei: “Agora cada um de vocês vai escolher o look que, de fato, vocês gostaram e que, de fato, vocês entregariam, porque é uma entrega afetiva. Aqui a gente não está lidando com um robô, não é um cabide. O processo da marca Mônica Anjos não é esse. Eu acho que vai ser muito mais bacana se você escolher o look que você se identifica” e eles escolheram o look que, de fato… ele falou: “Mônica, a gente nunca viveu, em nenhuma marca...”. Então, nesse processo da escolha dos looks, porque era, de fato, um processo que eu queria muito a contribuição deles. Deu super certo. Ficaram encantados com a possibilidade de escolher o look e eu disse: “Eu só quero que vocês entreguem a responsabilidade de vocês lá em cima, do que foi escolhido. Que vocês entreguem o que vocês podem entregar, de melhor”. Foi um sucesso e eu fiquei muito feliz em ter produzido esse projeto.
P/1 – Ia te perguntar mais ou menos isso: qual foi a coleção, não sei se a mais marcante, ou o desfile muito marcante, que te representou muito. Um prêmio, enfim, alguma coisa que você possa destacar, pra gente.
R – Hum-hum. Sim, eu tenho uma coleção que eu sou simplesmente apaixonada, que eu me dei de presente, foi exatamente o ano passado, julho do ano passado. Nós vivíamos um momento muito tenso na política atual brasileira e eu fiquei pensando: “Não sei se eu vou conseguir seguir com esse projeto aqui em São Paulo, por conta de várias...”. Enfim, eu tinha esse incômodo. Não sei se a palavra era incômodo, ou se era uma espécie de angústia. Eu acho que eu escutei muito: “Se tudo der errado eu vou pra Bahia, voltar pra Salvador”. Então, eu pensei: “Eu sou do Instituto Casa de Criadores, hoje eu estou na minha quinta edição”. Eu entrei na Casa de Criadores no período da pandemia, no período pandêmico e nós fizemos dois Fashion Films, eu não tinha ideia como ia funcionar fazer esse projeto, como produzir um Fashion Film, eis que uma noite eu sonhei com meu corpo em movimento e eu fui pesquisar e entendi que era um momento de eu reverenciar a dança. Nessa perspectiva eu fui pesquisar quem tinha sido a mulher negra que tinha começado com algum movimento através da dança e aí eu descobri que era o ano de Dona Mercedes Baptista, exatamente o ano do seu centenário, que foi a primeira mulher negra a pisar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e a lançar balé de pés descalços. Então vamos lá, fizemos toda uma reverência, uma pesquisa e construímos o primeiro... a minha inserção na Casa de Criadores, com o tema Ancestralidade, aí convidei Alberto Pitta, que assinou a parte de estamparia e fizemos um trabalho maravilhoso. Em seguida eu queria homenagear as yabás e fizemos aí um encontro das águas doce e salgada em Imbassaí, litoral baiano, enfim. Eis que a gente faz o primeiro desfile presencial, me parece que foi na 52ª edição, na Casa de Criadores, e eu falei: “Olha, eu acho que eu estou indo embora pra Salvador, então eu quero, já que eu vou embora...” - porque eu tinha esse sentimento - “Vai dar tudo errado, a gente vai recomeçar... não, retroceder, eu preciso ir embora desse lugar, não vou conseguir ficar em São Paulo, nananã”. “Então, Mônica, você precisa fazer alguma coisa, antes de ir embora”. Aí eu falei: “Alguma coisa é um manifesto” e eu fiz um manifesto e foi muito importante pra minha vida e as coisas surgiram. Sabe, gente, foi construindo o projeto e eu pensava em como eu queria abrir o desfile e como queria fechar, sobre todo processo das coisas que a gente tinha vivido ao longo desses últimos anos, que me marcou muito. Então, uma das coisas que me marcou muito foi aquele pai de família no Rio de Janeiro sendo assassinado com sua família, com oitenta tiros. Então, aquela história me deixou muito apreensiva, vendo um pai de família numa blitz, sendo assassinado com oitenta tiros. Então, eu abri o desfile com uma roupa que tinha oitenta marcas de sangue e eu consegui colocar balas perdidas, encontradas em corpos negros. Outra coisa que me marcou muito no Rio de Janeiro foi o assassinato da Kathlen, vendedora da Farm que, com cinco meses de gestação, ao visitar sua família no morro, foi morta por balas perdidas, mais uma vez encontrada em corpos negros. Eis que eu marquei com uma amiga, pra tomarmos um café. O nome dela é Bia Ferreira, alguém que pensa como eu, de que forma a gente pode construir essa narrativa. E aí ela veio com um café e com um violão, nós tínhamos um violão de um amigo que estava aqui, de Zé Manoel. Aí, quando eu contei a história pra ela, ela falou: “Então vamos construir, eu vou te ajudar a construir essa narrativa e ela dizia: ‘Não vem dizendo que esse...”... não. Ela dizia:
Desejo inevitável: fogo nos racistas
Juntei o ódio com a sede de vingança e agora é briga
Pra cada corpo preto que tombar nós ‘vai’ cobrar
Se chorar a sua mãe, a minha mãe
A sua também vai chorar
Não venha dizendo que esse discurso é radical
E se morresse um branco a cada 23 minutos, normal?
Sabemos quem está matando
Eu vim acabar com esse mal
Eu vim destruir o mito de democracia racial
Não estou pra conversinha de ter que educar os brancos
Não tenho, literalmente, como educá-los
Então, termina a fala e ela cita o nome de mulheres que vê, ao longo desse tempo...
E se morresse um branco a cada 23 minutos, normal?
Eu vim aqui em nome de famílias pretas, que perderam os seus filhos: João Pedro, Fapur, Marielle, a cada ser humano marginalizado pela cor da pele e eu falo em nome da minha ancestralidade: poder pro povo preto. A regra, agora, é essa. A gente reverencia _____ Exú, que abre nossos caminhos, que nos guia e nos conduz pro nosso encontro e resgate ancestral.
E eu tive oportunidade de trazer Sônia Guajajara, hoje Ministra dos Povos Originários e trouxe, exatamente, a roupa... ah, posso pegar a roupa? Não posso. Aprenda.
P/2 – Você quer pegar?
P/1 – Pode, claro.
R – Eu gostaria de pegar.
P/2 - Claro!
P/3 – E se ela pegar depois, no final?
P/2 – Não, pode pegar.
P/1 – Quer ajuda?
R – Eu quero, porque eu amo essa roupa, ave Maria! Então, essa foi a roupa que a Sônia Guajajara usou, no manifesto, e olha isso aqui.
P/2 – Bonito!
R – E tem uma fala da Bia que ela fala:
Contra a morte dos indígenas, levante a sua voz
Quanto tempo faz que ele levanta a nossa bandeira?
P/1 – Se você puder comentar rapidamente: você criou a sua marca em Salvador?
R – Salvador.
P/1 – E há alguma diferença? Como é trabalhar em Salvador, São Paulo, essas duas cidades diferentes?
R – Eu acho que essa é uma pergunta bem interessante, mas ela tem uma resposta que é muito... primeiro: você precisa de um campo de atuação. Você nasce naquele lugar, a marca nasce em Salvador e chega um tempo que ela precisa caminhar, então ela vem nessa perspectiva de caminhar, de abrir portas, que é quase o sonho de todo baiano: nasce a criança e você a entrega pro mundo. E aqui foi uma possibilidade que eu vi, de crescimento, amplitude. Hoje nós estamos na Casa de Criadores, que é o maior evento de moda autoral da América Latina, mas que sobretudo possibilita a gente estudar, criar, pensar nas narrativas que nos dão visibilidade, pra continuarmos. Eu acho que é isso.
P/1 – Se você quiser comentar sobre o bairro, que você estava falando anteriormente...
R – Não foi gravado?
P/1 – Acho que sim, mas se quiser complementar alguma coisa...
R – Eu estou fazendo pesquisa ainda. Está vindo até uma pessoa do Rio de Janeiro, um historiador, que a gente vai sentar, pra conversarmos sobre a Vila Madalena. Acho que isso pode dar uma coleção, um enredo de escola de samba. (risos) Estou brincando, mas eu quero ter mais conhecimento, pra me posicionar com a relação a fala mais assertiva.
P/1 – E o espaço Emoriô?
R – Eu estou apaixonada e, definitivamente, porque como é um coletivo meu e de uma grande amiga, a princípio o Emoriô, nós trouxemos para julho, mês da mulher negra, latino-americana e caribenha e é um espaço que vai trazer exatamente a gastronomia, a literatura, a moda, a música e eu encontrei na palavra esse sentido, mas a gente ainda não está... ainda não foi definido, realmente, mas nesse momento é Emoriô, um espaço que eu encontrei, pra trazer mais acolhimento pro baiano. Um baiano, um coco; dois baianos, dois cocos; três baianos, uma cocada; quatro baianos... então, a gente tem a moda, a música, cultura, gastronomia de um modo geral e eu acho que também nasce da saudade, porque a gente está aqui, não tem mar, não tem calor. O calor vem, mas não é aquele que a gente... eu, por exemplo, moro a quinhentos metros da praia, então não é aquele calor que você ‘bota’ um biquini e sai pra dar um mergulho, então nasce da saudade, de você ter um espaço de acolhimento pra gente, pra baianada, pra gente poder se encontrar, mas também já sai desse lugar, que é de encontro. Eu vejo a Vila Madalena atualmente como um lugar muito elitista e eu não costumo sair daqui da minha casa, pra um ‘rolê’ na Vila Madalena, porque eu não consigo me ver nela. Então, eu acho que é trazer um lugar, na Vila Madalena, que a gente possa se ver, se encontrar. Eu acho que é isso, vai ser um lugar superbacana dentro dessa perspectiva de encontro, de afeto, cuidado. Estou apaixonada.
P/1 – E ao longo dessa sua enorme trajetória, quando você entendeu... se sentiu realizada, que você está fazendo história?
R – A realização é diária. Eu estou com uma falta de realização, que é falta de dinheiro, é você ser vista e seu produto ser visto como algo que pode potencializar a sua vida econômica, a um coletivo. Então, eu acho que dar certo é também dar certo dentro desse ponto de vista, é preciso ser visto com potencialidade, dentro desse lugar de economia. Então, eu acho que ainda tem esse déficit aí.
P/1 – E quais são seus sonhos?
R – Eu tenho sonho, por exemplo, de fazer o desenvolvimento de uma coleção pra o Instituto C&A. Esse é um sonho.
P/1 – E sonhos pessoais?
R – Ah, o sonho pessoal também porque, se eu faço um trabalho e esse trabalho consolida parceria, por exemplo, com a C&A, esse sonho vem com o coletivo, porque eu não ando só, eu ando com um coletivo, nós temos uma equipe, que depende do suposto sucesso de um projeto. Nós temos mães de família, pais, crianças, que tudo depende. Então, eu falo, na verdade, que o sonho é a realização econômica do projeto, pra que outras famílias possam viver com dignidade.
P/1 – O que você gostaria de deixar, como legado, pras próximas gerações?
R – Olha, eu gostaria... ai, gente, essa coisa do legado, eu acho que o legado da marca Mônica Anjos é continuidade. Pensar que a gente pode continuar existindo, sem ter que resistir. Eu acho que é esse o legado de uma geração melhor pra minha filha, eu tenho uma filha de onze anos. Eu acho que é isso. A gente poder dormir com tranquilidade, que é o que eu penso: “Meu Deus, será que eu vou conseguir dormir com uma criança preta, nesse processo de mira o tempo inteiro, que a gente vive, dentro de toda a contextualização? Esse ‘inferno’ que é viver dentro desse movimento racial, do racismo”. Racismo é algo muito chato, a gente quer descansar e aí dizem que é “mimimi”, porque está falando. Agora a gente está falando, porque agora a gente pode falar. Porque a gente viveu esse tempo inteiro sem poder falar. E agora a gente fala, expõe, mas é bacana falar porque... ai, gente, chegar numa loja e a pessoa ficar te olhando e você não ser atendida, porque a pessoa acha que você não tem condições de estar naquele lugar. Depois do Black Money eu não faço mais isso. Eu acho que educação é a maior ‘arma’, porque o meu dinheiro, o dinheiro do meu recurso transita e é bem pontuado em que pasta ele vai. Então, se tem uma pessoa vendendo água de coco a trezentos metros, eu vou a quinhentos metros levar pro Black Money. Eu acho que o conhecimento vem a partir daí, inclusive a valorização. As pessoas precisam entender que o nosso recurso, nosso dinheiro é tão importante quanto qualquer outro e aí a gente precisa ser respeitado como esse consumidor, como esse indivíduo, que faz parte da sociedade, que construiu a narrativa desse lugar. Então, é isso.
P/1 – Como foi se tornar mãe?
R – Ai, gente, não foi fácil, porque a gente fica esperando dar certo o que a gente acredita que é dar certo pra ser mãe e pra construir uma família, mas Maria Selena me ensina todos os dias que não é tão difícil, mas requer uma doação e não dá pra achar que a maternidade não requer de você um processo de amadurecimento e, sobretudo, de renascimento diário. Pra nós, artistas independentes, a gente que está sempre no limite da nossa própria resistência, dentro dessa sociedade tão desigual, mas eu acho que é um aprendizado, a gente cria Maria muito consciente das pautas, do consumo que é pro indivíduo e até onde ele pode consumir, ele deve consumir, a não ser o conhecimento. Então, nós não celebramos as datas aí comemorativas pelo comércio: Dia das Mães, Natal nunca saio pra comprar absolutamente nada pra ela, no Natal, porque eu fico pensando, quando eu olho pro lado, eu fico meio que falando: “Meu Deus, o que celebrar?” Imagine se a gente pudesse, minimamente, fazer uma doação, no Natal a gente vai doar o mínimo que a gente tem, o que a gente pode, é pouco, mas vamos doar pro outro, teríamos um Natal melhor, uma vida melhor. Então, eu tenho esse cuidado com as celebrações, com consumo e estou gostando do rolê de ser mãe, estou gostando.
P/1 – Você gostaria de acrescentar, contar alguma passagem que eu não tenha perguntado? Algum momento, história, pessoa...
R – Não. Eu acho que o questionário... posso falar questionário? As perguntas.
P/1 – O roteiro?
R – O roteiro foi intenso, foi bom, foi bacana. Acho que deu pra contar um pouco.
P/1 – Sempre falta, né?
R – Mas é o que falta que a gente vem construindo no nosso dia-a-dia, o que vai ser construído amanhã, depois. Eu acho que é isso.
P/1 – Como foi dividir um pouquinho com a gente, hoje?
R – Eu amei. Nossa, engraçado que é até interessante quando a gente recebe os convites e essa pauta eu considerava importante, recebê-los aqui, poder contar um pouco da minha história, mas o tempo era ‘muito louco’, vocês estão aí presenciando um pouco da minha... e que acaba sendo também um pouco do dia-a-dia, do cotidiano, de estar se ‘desdobrando’. Mas hoje, em especial, eu marquei, falando: “Meu Deus, Mônica, você é ‘louca’. Você está comemorando, tendo que fazer mil coisas”, mas acho que foi bem importante. A Gisele, né?
P/1 – Grazielle.
R – A Grazielle, que entrou em contato comigo, não desistiu de mim, porque eu ficava pensando: “Ai, meu Deus, eu quero tanto fazer, mas ela vai desistir”, porque não tinha tempo, e não tinha mesmo. Eu, agora mesmo a Elaine está saindo pra… _______, que é uma das colaboradoras e que vai calçar os modelos, a equipe tinha... porque também isso eu não faço: não vou sair daqui, até porque eu entendi uma coisa: nós temos colaboradores, não são patrocinadores. Patrocínio é aquele que entra com a verba, com o dinheiro e colaborador é aquele que entende que o projeto é importante, inclusive pra ele e, a partir daí ele é um colaborador, porque ele entendeu que o projeto é muito melhor pra ele do que pra marca, então eu entendi que eu não faço, não estou em todos os lugares, não posso estar. Eu acho que a gente tem que aprender a ter esse diálogo. Então, eu não iria, mas eu tinha que minimamente fazer um roteiro, pra que a gente fechasse aí, trouxesse esse material, porque a partir de amanhã nós temos quarenta modelos na passarela e cinco convidados, inclusive a Secretária de Cultura do estado, Aline, vai estar com a gente... da prefeitura, vai estar com a gente, desfilando com a gente e é isso.
P/1 – Querida, te agradeço demais, no meio de tanta movimentação receber a gente, é uma honra. Muito obrigada, ‘de coração’.
R – Eu que agradeço.
P/1 - Espero que tenha sido gostoso, apesar da ______ (risos).
R – Muito. Não. E eu vou te falar uma coisa que eu aprendi: eu não ‘calço sapato apertado’. Então, se não tivesse bom, eu teria dito pra vocês, eu não teria continuado, independente que fosse qual marca seria, tem que estar bom pra mim, tem que estar bom pra você, tem que estar bom pra todo mundo. Então, acho que a gente está super de parabéns, porque a gente conseguiu fazer um ‘rolê’ no meio da correria, uma porta que não abria, não sei o que, a cadeira que era desconfortável, meu ‘corre’ aqui e acolá e a gente conseguiu fazer bacana, porque a gente vem de um projeto que chama Coletivo Gente Boa Central, então nós estamos aqui diante de um Coletivo Gente Boa Central e por isso que tudo deu certo, acabamos num tempo que eu ainda consigo correr, pra resolver mil coisas e é isso. (risos)
P/1 – Oba, que bom!
P/2 – Obrigado!
P/1 – Vai ser um sucesso esse desfile!
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