Projeto: Ernst & Young - Mulheres na Tecnologia
Entrevista de Gabriela Agustini
Entrevistada por Grazielle Pellicel
São Paulo, 09 de agosto de 2023
Código da entrevista: MTS_HV015
Revisada por Grazielle Pellicel
0:19 - Então, Gabriela, muito obrigada por ter aceitado o convite. E para começar eu gostaria que você se apresentasse, falando o seu nome completo, data de nascimento e local de nascimento?
R - Gabriela Aguiar da Costa Agustini, 21 de março de 1984. Em São Paulo.
0:37 - Você sabe como é que foi o dia do seu nascimento?
R - Nossa, eu sei pouco, sabia! Eu sei bem pouco! Nossa, não tenho muita informação sobre esse dia do meu nascimento. Eu sei que foi tranquilo, nasci de cesárea, no hospital e minha mãe me disse que tem memórias de ser relativamente tranquilo. Mas tá aí uma boa pergunta.
1:07 - Você sabe por que que seu nome é Gabriela?
R - Olha, eu sei que foi uma amiga da minha mãe que deu de sugestão, uma amiga querida dela, de faculdade. E foi isso assim. Eu sei que eles estavam em dúvida entre Gabriela e Manuela, ficaram, assim, um bom tempo nisso e virou Gabriela. Uma amiga falou, acho que não teve nada assim em específico. E eu gosto bastante, gosto de Gabriela.
1:34 - Você sabe o que significa?
R - Não! Não! Curioso, porque eu acho que eu já pesquisei isso várias vezes, mas eu não lembro agora.
1:50 - A sua família também é de São Paulo capital?
R - Então, a família do meu avô materno é de São Paulo, tá aqui há mais tempo. Aí a minha avó e meu avô maternos, por parte de mãe, os pais da minha mãe, moravam aqui. Minha mãe nasceu aqui, ficou um bom tempo aqui, depois ficou um tempo também no interior do Paraná, onde na verdade minha avó… Minha avó é portuguesa, veio para cá bem criança, naquele esquema de trabalhar na lavoura e tudo mais, buscando melhores condições de vida. E eles foram para o interior do Paraná, ali perto da região de Londrina, Maringá. E aí a minha avó mudou para...
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Entrevista de Gabriela Agustini
Entrevistada por Grazielle Pellicel
São Paulo, 09 de agosto de 2023
Código da entrevista: MTS_HV015
Revisada por Grazielle Pellicel
0:19 - Então, Gabriela, muito obrigada por ter aceitado o convite. E para começar eu gostaria que você se apresentasse, falando o seu nome completo, data de nascimento e local de nascimento?
R - Gabriela Aguiar da Costa Agustini, 21 de março de 1984. Em São Paulo.
0:37 - Você sabe como é que foi o dia do seu nascimento?
R - Nossa, eu sei pouco, sabia! Eu sei bem pouco! Nossa, não tenho muita informação sobre esse dia do meu nascimento. Eu sei que foi tranquilo, nasci de cesárea, no hospital e minha mãe me disse que tem memórias de ser relativamente tranquilo. Mas tá aí uma boa pergunta.
1:07 - Você sabe por que que seu nome é Gabriela?
R - Olha, eu sei que foi uma amiga da minha mãe que deu de sugestão, uma amiga querida dela, de faculdade. E foi isso assim. Eu sei que eles estavam em dúvida entre Gabriela e Manuela, ficaram, assim, um bom tempo nisso e virou Gabriela. Uma amiga falou, acho que não teve nada assim em específico. E eu gosto bastante, gosto de Gabriela.
1:34 - Você sabe o que significa?
R - Não! Não! Curioso, porque eu acho que eu já pesquisei isso várias vezes, mas eu não lembro agora.
1:50 - A sua família também é de São Paulo capital?
R - Então, a família do meu avô materno é de São Paulo, tá aqui há mais tempo. Aí a minha avó e meu avô maternos, por parte de mãe, os pais da minha mãe, moravam aqui. Minha mãe nasceu aqui, ficou um bom tempo aqui, depois ficou um tempo também no interior do Paraná, onde na verdade minha avó… Minha avó é portuguesa, veio para cá bem criança, naquele esquema de trabalhar na lavoura e tudo mais, buscando melhores condições de vida. E eles foram para o interior do Paraná, ali perto da região de Londrina, Maringá. E aí a minha avó mudou para cá, casou aqui, meu avô era daqui. Mas as primas da minha mãe, tias e afins do Paraná. Minha mãe morou um tempo lá também. Mas enfim, ela é daqui. Meu pai é do interior de São Paulo, de uma cidade chamada Espírito Santo do Pinhal. E aí acabou que a gente nasceu aqui, tanto eu quanto a minha irmã, eu e ela, são anos diferentes, que a gente não é gêmea, mas os dois processos foram iguais, virem para cá, para ficar perto da minha avó, mas a gente só nasceu. Então eu nasci em São Paulo e na época meus pais moravam numa cidade do interior do Paraná, chamada Nova Esperança. Aí eu morei lá bem pequena, não tenho nem memória, aí nessa minha infância até os oito anos de idade, eu morei em várias cidades, basicamente no interior de São Paulo, mas tem essa no interior do Paraná. Aí morei um tempo um pouco maior em Araçatuba, que tenho ali já alguma memória e afins. Mas aí com oito anos a gente mudou para Campinas, e aí fiquei em Campinas do oito aos dezoito, quando eu entrei na faculdade e mudei para São Paulo. Então, para simplificar, quando as pessoas perguntam de onde eu sou, como eu só nasci em São Paulo, morei nesse monte de lugares, mas passei a maior parte do tempo que você se reconhece, você começa a ter interesses, gostos, se tornar mesmo um indivíduo com identidade mais própria, em Campinas. Eu acabo encurtando, dizendo: eu sou de Campinas. Mas no fundo eu vivi em Campinas só dos oito aos dezoito, não tenho família lá, nem nada, meu pai tinha sido transferido pelo trabalho, minha mãe transferiu também, a gente morou ali esse período. E aí depois, eles, enfim, já estavam separados, meu pai voltou para o Espírito Santo do Pinhal, onde ele mora até hoje. E minha mãe acabou mudando, morou, enfim… Minha mãe… Essa história é boa! Minha mãe casou pela internet, em 2003, numa época que isso não era muito comum, sabe, com aquele chat que vinha embutido no computador da Microsoft, o NetMeeting. E ela tava já separada, conheceu essa pessoa, enfim, um homem da Inglaterra e ela não falava inglês, a gente nunca entendeu como isso se deu, porque ela não falava nada de inglês e eles se apaixonaram. Mas enfim, ela mudou para lá e eles estão juntos até hoje. Hoje ela fala inglês e tudo, aprendeu e mudou para lá. Então logo que eu entrei na faculdade, foi no mesmo ano, no fim daquele ano, ela mudou para Inglaterra e ficou lá os últimos quase vinte anos. Porque daí agora nesses últimos dois anos, eles voltaram para o Brasil, estão os dois morando no Brasil. Então, assim, a minha família é toda muito espalhada, as pessoas migram.
5:07 - Nossa, a história da sua mãe é interessante.
R - É engraçado, né?! E eles estão juntos, é um caso de sucesso.
E como é que foi que ela conheceu ele? No chat?
R - No chat! Naqueles chats, aquelas conversas de chats. Agora como ela se comunicava, não tinha tradutor tão fácil. Mas minha mãe é uma pessoa muito agilizada, eu acho que sei lá, foi ali, foi achando, enfim, se virou. Daí ela foi para lá, minha mãe na época trabalhava no Banco do Brasil, minha mãe trabalhava a vida toda, até esse momento, no Banco do Brasil, ela foi de caixa a gerente de agência. E aí ela pediu demissão e foi para lá. E aí lá ela ficou esses anos todos, trabalhou de tudo, cuidadora de idoso, fábrica, empacotadora em fábrica, supermercado, restaurante, bar, tudo ali, esses anos ali nesse corre, e é isso. E aí agora, eles um pouco mais velhos, ele se aposentou e aí eles agora estão morando no Brasil de volta. E aí agora eu fico tentando entender, porque na época nem me passava tanto pela minha cabeça, tipo, como que se deu esse romance, como que eles se comunicavam? Ela foi! Mas eu acho uma história bonita, porque é um arriscar e uma coragem que é legal de você ver, assim, ela nunca tinha saído do Brasil, nunca tinha… Não sei nem se já tinha andado de avião, sabia? A primeira vez que eu andei de avião foi depois disso, então não sei, talvez já tenha andado, não sei! Mas não era uma pessoa que super viajava. Mas ela tinha uma coisa de um certo sonho com a Inglaterra, porque ela gostava muito de Rock. Gosta até hoje! E aí acho que ela ficou nessa, vou conhecer o lugar do rock, os Beatles e foi. Então, é isso! A coragem de viver. E a tecnologia, esse lugar aí da tecnologia que é um pioneirismo. Eu lembro que eu não contava para as pessoas, porque era uma coisa muito inusitada. Naquela época, era bem no começo mesmo dos chats, tinha Bate-papo UOL e esse chat que era internacional, que vinha no computador mesmo, que tinha uns três avatares ali, e aí você ficava com um pouquinho de vergonha, porque as pessoas achavam coisa de gente muito doida. Não é que nem hoje, que todo mundo casa, tem o Tinder, tem os aplicativos. Aquele era outro momento da tecnologia, era bem no começo, quando a internet chegou, aquela coisa de você ficar na madrugada no pulso da internet discada, era aquela disputa do computador em casa. Porque imagina a disputa que não era na minha casa, porque normalmente são os adolescentes, as crianças que ficam nessa disputa, mas aí no caso a gente ainda tinha que concorrer com a minha mãe na expectativa ali do horário do pulso da madrugada.
7:51 - Muito bom! E você contou que você se mudou diversas vezes, por que que você se mudou?
R - Meu pai é engenheiro agrônomo e ele trabalhava numa empresa na área comercial, numa empresa dessas de produto agrícola, e aí ele era transferido muitas vezes, acho que cada hora ia mudando o time, a equipe. Então todo momento da infância e afins, a gente sempre mudava por causa do trabalho dele. E minha mãe, como trabalhava no banco, o Banco do Brasil tinha em toda cidade, ela conseguia pedir as transferências. E a gente mudou essas vezes todas. Isso até Campinas, aí de Campinas para São Paulo, eu mudei porque eu vim eu vim estudar em São Paulo, passei no vestibular aqui, e aí dali para frente às vezes que eu mudei, que também mudei algumas vezes, acho que em algum lugar eu sempre tive uma naturalidade de me adaptar a novos ambientes, olhar para os outros lugares como uma possibilidade de morar mesmo, talvez porque eu tenha mudado bastante antes. Minha própria família, as pessoas mudaram, mudam sempre, as pessoas moram um tanto aqui, depois ali, tenho primos espalhados em vários cantos do país. Então, acho que para mim sempre foi uma coisa natural, de pensar de outras cidades, então acabei depois continuando essa história de ficar mudando.
9:13 - A sua infância que você consegue lembrar onde você mais passou, em que cidade?
R - Então, aí ela se divide, entre antes dos oito, Araçatuba, que era um lugar muito difícil para mim, eu tenho uma memória que é muito doida, hoje adulta pensando, porque eu detestava aquele lugar, eu sabia que aquele não era meu lugar, só que eu meio que não conhecia outros. E os meus pais ficavam falando para mim, do tipo, achavam que, sei lá, era uma coisa de alguém que tá só criticando o em torno. E eu falava não, mas eu preciso sair daqui. Eu lembro que eu me incomodava muito, não ter teatro, não ter cinema. Eu era uma criança muito cultural e me incomodava muito. Eu lembro a minha felicidade quando eu mudei para Campinas, que tinha teatro, tinha cinema, tinha coisas assim para assistir, para fazer. A primeira coisa que eu fiz quando eu cheguei em Campinas, antes de começarem as aulas na escola, eu me matriculei, sozinha, sei lá como, num curso de teatro. Eu vi uma placa, eu entrei lá, tinha oito anos, eu bati lá, eu preciso muito fazer, eu queria entrar, eu queria fazer. Porque essa coisa de sei lá, conhecer gente, consumir cultura. Era uma coisa que me incomodava muito em Araçatuba, que era um lugar que tinha outra cultura na minha memória infantil, sei lá, nunca mais voltei para lá, com certeza é uma cidade que tem coisas incríveis, maravilhosa, estou só dizendo dessa memória. Mas eu tenho esse pedaço, onde ali eu me sentia muito deslocada. E aí, com oito anos, eu vim para Campinas e foi uma coisa muito feliz na vida, que era quase como se tudo aquilo que eu fiquei esperando, de repente existia, sabe. E aí eu comecei a fazer teatro, que era uma coisa que eu fiz dos oito aos dezoito anos, eu amava muito. Aí comecei a ler muita coisa, conhecer muita gente, Campinas acho que até hoje tem uma cena de teatro muito pulsante, dos grupos e afins, então comecei a acontecer um monte de coisas. A escola, eu estudava num colégio católico e enfim, tinha lá mil questões, mas tinha essa coisa da igreja, de cantar na igreja de fim de semana, então você podia ir lá cantar na igreja, tinham celebrações, que eram todas religiosas, do catolicismo, que não era uma coisa que eu era muito afinada, mas que ao mesmo tempo eram muito festivas, teatrais, celebrativas. Então o dia de Maria, o dia de Nossa Senhora, eu achava um barato tudo isso. Então, foi muito feliz! Tanto é que tenho muitos amigos vindo dessa época de Campinas até hoje, uma cidade que eu tenho um carinho muito grande, que vivi muitas coisas legais. E fiquei ali até o momento da faculdade, o momento que eu acabei saindo para estudar fora. E aí acabou que eu nunca mais voltei para morar. Mas eu sempre tive essa relação, tenho amigos ali, volto e tudo mais. Então não sei, acho que tem muitas camadas de memórias, aí depende para que lado a gente queira ir.
12:23 - Eu queria te perguntar, primeiro, como você se descobriu uma criança cultural?
R - Cara, eu não sei! Talvez isso seja influência da minha irmã. Eu tenho uma irmã mais velha, que é três anos e meio mais velha que eu, que hoje é roteirista de cinema, de TV e afins. Sempre foi uma grande leitura, desde que ela nasceu, acho que ela nasceu com um livro na mão. É a imagem que eu tenho da minha irmã, desde pequenininha até hoje, olha para o canto ela está assim, sentadinha com um livro. E a gente é muito amiga, desde sempre, muito amiga mesmo. E ela sempre me inspirou muito, acho que tinha um lugar dela de querer me mostrar as coisas que ela descobria, porque hoje essa diferença de idade não é nada, mas quando a gente era criança era uma diferença grande. então se você pegar três para os seis, seis para os nove, é uma diferença enorme. Então acho que tinha uma coisa dela de querer me mostrar as coisas que ela descobria e vivia e tinha uma coisa minha que sempre foi uma pessoa muito curiosa, de embarcar nessa, de querer descobrir as coisas que ela estava descobrindo. Teve uma época das nossas vidas, que hoje eu olho para trás e brinco muito com ela, falando, gente, olha que opressão, mas na época, enfim, era até em alguma medida divertido. E a gente viveu muitas coisas assim, que a gente ia para escola de manhã, de tarde ela passava a tarde inteira me ensinando tudo que ela aprendeu, no dia dela na escola, só que ela estava quatro anos de diferença de escola. Ela tem três anos e meio de idade, quatro de escola. Então, assim, eram coisas que eram super complexas, eu sofria muito para aprender, mas que ao mesmo tempo me possibilitou aprender muitas coisas, porque daí eu estava ali expandindo um universo. E aí, então, assim, acho que ela sempre teve essa coisa de ser muito leitura e tudo mais e não sei, acho que eu caí no mundo das histórias. E eu sempre gostei das coisas, não sei se teatrais é o termo, sempre me chamaram muito atenção, shows, coisas que se mexem. Então, sempre gostei de brincar, de montar cabanas, criar ambientes, criar personagens, então isso sempre foi uma coisa que me estimulou. E aí eu não sei, eu sempre gostei de assistir coisas, eu sempre gostei de ler, sempre fui muito ocupada, de ouvir, a minha mãe sempre teve essa coisa de ouvir muita música, sempre assistiu muitos filmes também, que já era uma coisa que às vezes eu ficava mais impaciente. Mas eu não sei assim, bem criança eu sempre fui bastante cultural, tinha gosto que as pessoas às vezes… Nem eu vou saber te explicar. Eu lembro de muito criança gostar muito de música clássica, por exemplo, que era uma coisa que não tinha nada a ver com a cultura na minha casa, da minha família, todo mundo achava aquilo estranho: “De onde essa menina tirou isso?”. Eu não sei, no fundo, eu acho que sou curiosa, alguém deve ter deixado ali uma coisa e eu fui meio investigando. E os meus gostos também sempre mudaram bastante ao longo do tempo, aí eu acho que é o ascendente em gêmeos.
15:32 - E o que que seus pais escutavam de música? Você falou de rock.
R - Meu pai e minha mãe são duas pessoas muito diferentes. Minha mãe é uma pessoa que gosta muito de rock, desde dos rocks antigos, enfim esses rocks mais clássicos e toda MPB, então sempre se ouviu muito… Putz! Ela é uma grande apaixonada por Milton, Caetano, Gil, Gal, todo esse universo da MPB e as coisas antigas do rock mais clássico, acho que seria aí o que mais ressaltaria. Mas no fundo minha mãe sempre gostou muito de música, então ela sempre ouviu, coisas também variadas que surgiram ali. Mas eu lembro de ter os discos, tinha ali várias coisas, de Paul Simon a Tears for Fear, tinha uma coisa assim do rock. Meu pai é uma pessoa de gosto diferente, meu pai ouvia meio que poucas coisas e meio moda de viola, meu pai é uma pessoa de um gosto mais rústico, mais do campo, e aí é ali, Pena Branca e Xavantinho, eram esses tipos de coisa e às vezes era a mesma fita, só aquela por bastante tempo. E ouve bem menos música. Mas aí tinha esse mix aí de universo. Então música era uma coisa que sempre marcou, eu sempre gostei também muito de música. Eu desde muito, muito, muito pequena, minha primeira memória musical de ser muito apaixonada por música, sempre foi a Rita Lee, quando agora a gente viveu aí a passagem dela, eu fiquei lembrando de eu muito criança ficar pesquisando dicionário, perguntando para as pessoas o que eram as palavras, que às vezes eu nem entendia. Imagina aquela música que ela faz trocadilho, da Deborah Kerr, Gregory Peck. Eu assim, gente, ficava ali, voltava na fita, voltava para entender o que ela falava. Então, não sei, a música sempre foi uma coisa que me atraiu, coisa de dançar, pular, cantar, gritar, coisa bem de criança mesmo. Puxou daí.
17:36 - Eu ia te perguntar do teatro. Mas antes queria saber se quando criança você tinha alguma brincadeira favorita? O que você gostava de fazer quando criança, sozinho ou com a sua irmã?
R - Eu gostava disso, eu gostava muito de montar cabana e fazer desfiles de roupa, sei lá, essas coisas do tecido, das roupas, dos ambientes, sempre me chamava muita atenção. Eu era meio, sei lá, de fazer esse tipo de coisa. E coisas com música, eu e minha irmã a gente brincava de ter programa de entrevista, ela era a grande escritora, eu entrevistava ela, esse tipo de coisa. Mas variava, brincava muito de acordo com o que tinha, porque também a gente cresceu numa rua que tinha… por alguma coincidência as nossas ruas, os ambientes no entorno e os nossos primos também, eram sempre muitos masculinos, muito moleques, não tinha tantas meninas. Então eu lembro, eu gostava muito de brincar de boneca, mas não era uma coisa que eu tinha muitas companhias, minha irmã detestava, não tinha muitas amigas. Então era os moleques brincando de outras coisas, correr, polícia e ladrão, jogar bets, taco na rua, e aí eu também entrava na onda do que tinha no entorno. Via de regra nesses momentos, eu era sempre muito menor do que as pessoas, a menina menor, às vezes eu tinha que me adequar ali; é o que tinha, porque senão… Aí um tanto você brinca sozinha, outro tanto você se adequa ali e vai brincar do que tem. Então, sei lá, eu sempre gostei bastante de gente. Então, às vezes, mais do que pensar do que eu quero brincar, eu pensava o que que todo mundo vai fazer, deixa eu entrar aqui nessa festa. Então era um pouco assim.
19:31 - Você falou que a sua família estava espalhada, mas também tem gente próxima, que morava próximo?
R - Não! A gente nunca morou perto da família. Nunca tive vó perto, tia perto, essa rede de apoio, nunca! E os meus pais sempre trabalharam muito, meio que basicamente eles estavam o dia todo trabalhando sempre. Meu pai viajava muito, às vezes trabalhava viajando a semana toda. Minha mãe saía muito cedinho e voltava [no] fim do dia, fazendo aquele corre. Então acabou que assim, muito de toda minha infância e adolescência também, foi aprender a pedir ajuda, dialogar com os vizinhos. Desde pequena, eu lembro: “Você vai ficar na casa da vizinha, sua mãe vai voltar tal hora”. Então a gente sempre teve essa coisa dos vizinhos. E com o tempo eu fui entendendo esse lugar de que as pessoas não tem nenhuma obrigação de estar ali com você, você tem que ser legal, você precisa das pessoas, a comunidade é uma via de mão dupla. Então acho que esse é um senso que eu tive muito nova, de entender que você precisa entregar para também receber, porque as pessoas muitas vezes estão te fazendo um favor e às vezes você depende daquilo. Eu muitas vezes na vida, sei lá, chegava em casa, tudo muito corrido e minha mãe não está e as coisas se desorganizam, e aí você pedindo para o vizinho para almoçar, uma coisa assim. Porque você fala, cara, é isso ou vai dar ruim! Então esse senso de trabalhar em equipe na comunidade, com as pessoas do entorno, com os vizinhos, com as pessoas ali, sempre foi uma coisa que eu sempre tive muita gratidão. Muita gente ao longo da minha vida, os pais dos amigos, as pessoas que moravam próximos, a gente mudou muito de casa também, dentro da cidade, eu sempre fui muito grata, porque muita gente sempre me acolheu, eu aprendi muitas coisas. Pequena, eu lembro que eu ficava muito num cabeleireiro que era na frente de casa, a moça do cabeleireiro ficava ali, eu ficava sentadinha, aí às vezes nas passagens dos tempos ali, aí eu lembro de aprender muito, dela me ensinar os penteados, as coisas, o que que era cada um dos equipamentos, das coisas que ela usava para fazer. Isso, em Araçatuba ainda, bem pequena. E aí eu ficava ali mexendo naqueles bobes e tal. Então, eu acho que eu sempre aprendi muito. Porque às vezes você entra na casa dos outros, que é outra realidade, outra onda, outro mundo e você vai aprendendo com isso.
22:07 - Como é que você se sentia com todas essas mudanças?
R - Eu sempre gostei de mudar, sabia? Nunca foi para mim muito sofrido não! Eu sempre gostei bastante de mudar. Eu sou ariana, filha de Oxaguiã, mudança é uma coisa que sempre me estimulou, eu sempre achei legal. É óbvio, tem uma adaptação, às vezes você deixa ali, tem a sua melhor amiga daquela rua, óbvio, você entra em tristeza, sofrimento, mas, no fundo, assim, as minhas memórias são sempre de alegrias. Eu gostava bastante dessa coisa de pensar, agora eu vou morar em outra rua, tem outras pessoas. E aí eu e a minha irmã, a gente era bem aquelas crianças que chega no primeiro dia numa rua nova e aí toca a campanha de todos os vizinhos, fala: “Olá! Quem mora aí?”. Então, assim, eu tinha essa curiosidade pelas pessoas, pelas coisas, por outros lugares, então não era uma… Eu gosto bastante de ficar em movimento.
23:13 - Existe algum costume especial na sua família, alguma coisa que vocês gostam de comemorar?
R - Não! A minha família, tanto por parte de pai, quanto por parte de mãe, não é aquelas famílias que têm essa tradição, que é super unida. Existe uma união, é claro, todo mundo se gosta, se ama, quando se encontra é uma delícia. Mas não tem muito uma coisa desses hábitos comuns, as pessoas acabam sendo muito diferentes entre si, então acho que não tem uma coisa assim, que une. Mesmo dentro da minha própria casa original, onde eu nasci, meu pai e minha mãe são hábitos, formas de ver o mundo, maneira ser tão, tão diferentes, que eu acho que talvez a unidade de tudo isso é a diferença, são pessoas, personalidades, a hora que eu olho para cada ramo, cada coisa ali da família, somos muito diferentes. Então é difícil você pensar em algo que poderia ser assim.
24:20 - E tem alguma comida que te lembra da sua infância?
R - Cara, não! Aí também tem outra coisa. A minha mãe agora cozinha, depois de mais velha, nos últimos anos ela aprendeu a cozinhar e cozinha super bem. Mas por uma vida inteira não era alguém que cozinhava. Minha avó nunca cozinhou também. Minhas memórias de alimentação elas sempre foram coisas muito chutadas, precárias desse lugar do alimento, da refeição como união, ela não veio na minha cultura familiar. Que é uma coisa que eu acho muito doida. Então, não é um lugar que foi comum, que foi passado, esse lugar da refeição, como esse lugar da união, esse lugar mais tradicional que a gente tem da nossa cultura, que várias fontes zelam. É uma coisa meio oposta ao que eu vivi durante a minha infância, minha adolescência e boa parte da minha criação. Esses dias teve aniversário da minha avó de 84 anos, eu fiquei pensando nisso, gente, mas quem… o que vai se fazer para comer, como vai ser isso? E é engraçado pensar numa vó… mas a minha avó sempre foi uma pessoa de trabalhar muito, agora ela já tá aí com uma certa idade, saiu aí da ativa, mas a minha avó construiu um asilo para moradores de rua, no Capão Redondo, ali nos anos oitenta, no final dos anos setenta, no começo dos anos oitenta, sei lá, antes de eu nascer. E ela passou uma vida inteira morando ali, basicamente recolhendo morador de rua e tentando agilizar, porque boa parte das pessoas em situação de rua nessa idade, boa parte, às vezes se perdeu, às vezes tem uma família para voltar, ou um abrigo. Estão ali em algum canto, por várias razões caem na rua, às vezes até por saúde mental etc. Então ela ficava nesse processo de devolver as pessoas, as suas origens. E ficava ali, ficavam como residentes ali, os que de fato ela identificava que não tinha condição nem de ter os auxílios públicos das políticas, porque às vezes você não consegue nem ter um registro, principalmente naquela época, acho que tinha uma série de questões que você não consegue nem tirar o seu RG, você não consegue entrar, você tem um limbo de pessoas que ficam absolutamente à margem. E ela ficava ali cuidando dessas pessoas, tocando essa associação. Então as minhas memórias de visita da minha avó, de encontro de família, são bem diferentes, era normalmente indo até lá, e você tinha ali almoços etc., mas numa estrutura bem diferente e que também não era ela quem cozinhava ali, porque ela sempre foi uma pessoa de um corre absurdo, porque é difícil. Quando eles fecharam essa casa, que deve fazer uns cinco anos, um pouco antes da pandemia, tinham ali, sei lá, umas quarenta pessoas morando, que daí eles passaram para outras instituições, poder público etc. Então sempre foi um lugar que ela tinha que fazer muitas coisas para gerenciar isso, não é fácil, obviamente, vivendo ali de doações e tal. Não é que ela tinha dinheiro, ela vivia ali num corre profundo e absoluto, se endividando, pegando doação daqui, dali, de alguém que conhece, aí as pessoas doam móveis da casa da pessoa que, sei lá, faleceu, aí vive daquele pouquinho que sobra de cada canto, cada um ajudando. Então sempre foi uma coisa muito corrida, um trabalho muito bonito, mas, ao mesmo tempo, muito extenuante. Então as minhas memórias da minha vó sempre na correria, às vezes pegando carona com ela, na ambulância do asilo, levando alguém para você ter ali dez minutos de conversa. Então, assim, as minhas memórias familiares são um pouco diferentes do que eu vejo, que às vezes são mais afetivas, inclusive, esse lugar mais acolhedor e de afeto, mas tem muita inspiração, muita coisa que você fala, nossa, quanta coisa para se fazer no mundo.
28:32 - A primeira vez que você pisou na escola, você ainda estava em Araçatuba?
R - Sim! Eu fui para escola muito, muito criança. Mas aí você diz: escola mais séria? Porque assim, a minha primeira memória de jardim foi em Araçatuba, eu fui para escola bem, bem pequenininha, acho que todas as categorias de terceirização escolares eu vivi, eu ficava ali o tempo que tivesse. Minha mãe sempre trabalhou muito, então, assim, eu acho que eu devo ter ido para escola, algum tipo de escola, creche etc., com bem pouco tempo. Minha mãe já trabalhava, tirou licença, naquela época licença era o que? Quatro meses, três meses? Aí logo ali eu já tava na escola. Sempre estive na escola. E o máximo de período que pudesse existir da escola, eu estava ali. Eu sempre gostei, eu tenho muitas memórias de pessoas, flashes bem pequena das pessoas, das coisas. Acho que eu fui começar a não gostar da escola, quando a escola passou a ter muita regra, que eu acho que quando a gente, sei lá, já entra ali no ensino fundamental, e aí teve isso. Eu estudei num colégio católico, rígido, com várias regras que… Enfim, um olhar de um mundo super machista e várias coisas que eu olho hoje, falo, nossa! E na época me incomodavam bastante. E tinha uma rigidez eu lembro nessa escola, que me incomodava muito, de uniforme, eles tinham até um meia que tinha que ter uma cor, sei lá, o tênis tinha que ser preto, a meia tinha que ser branca, sei lá quais eram as cores. E meio que a minha casa não era uma dessas toda organizadinha, que minha mãe tinha esse tempo para olhar e falar: “A meia…”, então eu lembro que eu estava sempre com a meia errada, com a calça errada, porque a calça não podia ser aquela, aí a calça não lavou as coisas, entendeu? Não tinha muito essa gestão. E aí eu estava sempre sendo punida por coisas que sequer eram minha culpa naquele momento. E eu falava, gente, calma, eu estou aqui para estudar, qual o sentido… E aí eu ficava ali tentando negociar com as freiras ali do colégio, tentando entender para que era aquilo e ninguém me dava uma resposta plausível, do tipo, mas que diferença faz, eu não tô com a meia, mas eu tenho, sei lá, nove anos de idade, dez anos de idade, por que que eu preciso para estudar? Entendeu? Eram coisas que eu achava muito opressoras e eu percebia que a lógica, era a lógica só do poder e da regra. Eu fui chamada de subversiva nessa escola, eu não tinha ideia do que era essa palavra, eu demorei acho que um ano perguntando para as pessoas, pesquisando no dicionário, porque aí a descrição do dicionário eu também não conseguia entender, eu devia ter, sei lá, 9 anos de idade, 8 anos de idade, e eu assim… A hora que elas falaram eu percebi que aquilo era ruim pelo tom, e eu assim… Eu fui chamada de subversiva porque eu não usava as roupas certas da escola, porque cara, minha casa era um pouco bagunçada, não tinha essa… Minha mãe tinha muita coisa para fazer, para gerir, meus pais estavam ali num corre absoluto para conseguir pagar uma escola, que era uma escola particular que existia ali no bairro. E assim, ao invés deles… entendeu? Eles estavam correndo com outra coisa, que hoje eu olho e falo, porra, ainda tem que pensar na meia? E aí esse lugar da regra, da não resposta, ele sempre me incomodou, desde criança, eu sempre fui uma criança que perguntava o porquê das coisas. Acho que nunca tive muita essa coisa de engolir [em] seco a regra. Aí eu ficava querendo saber, às vezes terminava a aula e eu ia, batia na diretoria: “Não, eu queria perguntar porque que…”, assim, no maior amor. E aí eu lembro que as pessoas nessa escola… Vários momentos da vida, até hoje, as pessoas ficavam meio malucas com isso, do tipo, isso não é feito para perguntar o porquê. Não, gostaria só de saber qual, porque… Eu acho que sempre veio de uma curiosidade, não era um lugar de afronta. Hoje em dia eu vejo, quando eu olho, às vezes, para as pessoas mais novas, com essas torturas, eu vejo, às vezes os pais de amigos. Eu não tenho filhos, mas convivo com as crianças. E eu vejo que às vezes as pessoas adultas, elas se sentem afrontadas, e uma coisa que eu sempre falo para os amigos, gente, mas será que isso não é um lugar de curiosidade? Porque eu lembro que comigo, o meu interesse, às vezes, era curiosidade. Eu falava: “Não, eu realmente quero entender”, não era o lugar… Você não tinha nem maturidade para entender aquilo como uma ironia, uma afronta. Mas às vezes os adultos, ou certas instâncias do mundo, entendem como se você tivesse questionando para transformar. E naquela época nem isso eu tava, tava só de fato querendo entender porque as coisas eram como eram. E acho que isso [é] até hoje, eu fico tentando entender porque as coisas são como são. Mas hoje eu acho que eu já tenho mais ciência para querer transformar certos processos mesmo.
33:22 - E isso de ser subversiva, de alguma forma, como elas falaram. Isso te impulsionou a ser realmente subversiva, ou não?
R - Olha, eu não sei! Eu acho que por um tempo isso impulsionou a não querer ser, porque elas fizeram uma cara muito feia, então acho que na infância eu não quis entrar nesse lugar. Muito pelo contrário, eu passei muito tempo da minha vida tentando ser a coisa que menos criasse problema no entorno. Eu nunca tive prazer em ficar criando problema no entorno, ou fazer uma pergunta que cai de maneira desconfortável, nunca foi essa minha… Tem personalidades. Nunca foi esse o meu intuito, mas em algum lugar eu acho que eu nunca consegui muito. Em algum lugar acho que de repente eu estou em situações que eu falo uma coisa. Também nunca consegui ficar quieta diante de injustiças, então sempre me vi meio nesse lugar. Eu nunca tive a intenção de ser subversiva não, mas eu acho que eu também, acima de tudo, nunca consegui ficar tranquila com certas injustiças, por menores que fossem, podia ser a prova na escola que foi cobrado um conteúdo que disseram que não iam cobrar. Eu sempre fiquei muito incomodada, a minha vida toda e fazia o que fosse, fazia abaixo assinado, eu era dessas, jornal no prédio. Porque eu sempre ficava muito incomodada com coisas que me pareciam injustas, ou que não cumpriam o que disseram que ia ser feito, ou coisas assim. E aí em algum lugar isso cai para o lugar de ser subversiva, mas a intenção nunca foi essa.
35:01 - Quanto tempo você ficou nessa escola?
R - Eu estudei lá terceira, quarta, quinta e sexta série. Aí no final da sexta série, último ano acho que eu fui para escola chorando todos os dias, eu ia a pé, voltava a pé, eu lembro que eu já estava achando aquilo um tormento. E aí eu comecei a pesquisar outras opções, porque, enfim, meus pais ali na correria, falei: “Não, eu preciso dar um jeito nisso”. E aí as pessoas da rua, do prédio, comecei a ver onde as pessoas estudavam, perguntar os preços. E aí eu fui fazer essa pesquisa, fui em várias escolas ali, essa aqui é mais cara, essa não sei o que. Tinha uma escola que era muito legal em Campinas, que era mais alternativa, uma pedagogia mais aberta, só que era muito longe. E aí eu ficava ali, pesquisando as coisas. E aí eu descobri uma escola que era bem mais longe, mas era possível de andar, o caminho era pior na verdade, porque passava por avenidas e tal, mas aí eu fui lá e fui muito bem recebida sozinha. Porque várias escolas não me recebiam, eu tentando ir, eles falavam: não, vem com a tua mãe e tal. Isso eu tava da sexta para a sétima série, naquela época, que é o que se tem doze anos, doze para treze. E aí essa foi uma escola que eu sentei, tive uma conversa com a diretora, expliquei, ela me deu todo o plano, ela me tratou como se eu tivesse ali com o responsável. E tinha uma menina do meu prédio que estudava ali e não tinha uniforme, e aí aquilo me encantava, porque eu falei: “Nossa, eu vou acabar com essa história. Eu posso ir de pijama, eu posso ir de qualquer coisa, ninguém vai me deixar ali sem estudar porque a meia não lavou, não sei o quê”. E aí eu encanei que eu queria estudar nessa escola, e aí deu certo, consegui conversar os meus pais, eles foram lá, minha mãe achou a coisa mais maravilhosa do mundo, porque ela também não aguentava o tanto de… Minha mãe nunca foi numa reunião de pais na escola das freiras, mas eles ligavam, reclamavam, cobravam, também enchiam o saco dela. E essa escola não tinha muito essas coisas, eles meio que tratavam direto com os alunos, era uma escola que tinha um foco meio de tratar os adolescentes ali como adultos, então o recreio era aberto, você pode sair, quer matar aula, mata! Mas era na escola difícil, chegava na metade do ano várias das pessoas se desmatriculavam para ir para um colégio mais fácil [de] passar de ano. Eles tinham uma lógica mais de resultado, digamos assim. Que para mim era muito perfeito! Para cultura da minha casa também. E, nossa, foi um momento muito feliz, muito dos meus melhores amigos da vida foram feitos ali, exatamente, nesse ano e amigos que se mantém até hoje e tudo mais. E que vinham de famílias talvez menos tradicionais, eram pessoas mais diversas. Então foi muito feliz essa minha mudança, ter apostado nessa mudança. Porque eu acho que muitas das coisas quando eu olho para trás, da infância, que eu sou grata a mim mesma, foi eu ter ido de certa forma atrás, porque eu poderia ter ficado deprimida e infeliz e vivido a vida ali em certos contextos, que só eu sabia o que eu estava passando e porque eu estava sofrendo. Que era difícil até de explicar, porque você vai chegar na sua casa e falar… tudo parece pequeno, mas me falaram tal coisa, me olharam de tal jeito, as pessoas às vezes estão fora, olha aquilo, parece qualquer coisa: “Não, mas na outra escola também vai ser assim!”, não sei o quê. E aí eu sou grata de durante a infância,por qualquer razão, ter conseguido sempre apostar nos meus sentidos, porque eles sempre me levaram para lugares que faziam muito sentido, porque de fato, na hora que eu mudei de escola eu não tive mais esses problemas, não é que eu tinha um problema com escola, ou com sei lá o quê, era de fato aquelas coisas específicas que me atrapalhavam. Então, eu acho que é isso, para mim o que fica é esse lugar da gente… E até hoje eu tenho muito respeito pelas crianças, porque eu acho que às vezes a gente fica adulto e começa a desmerecer a sabedoria e o sentimentos, aí eu lembro daquela fase e falo, cara, eu tinha muito clareza do que eu estava sentindo e de certas opressões, de certos processos. E às vezes a gente olha como menor, porque olhando para o B.O. da vida e para certas coisas que você está vivendo, parece menor. E às vezes não é, porque às vezes aquilo é a semente de você acreditar em si mesmo, do que você está enxergando, do que você está vivendo. Aí você fala: não, isso aqui está opressor. Então, acho que foi meio por aí, a vida escolar. Eu sempre gostei muito de estudar, na verdade, sempre fui muito curiosa, muito boa aluna, sempre tirei notas boas, sempre gostei de estar ali, escola sempre foi para mim espaço de muita… Ah, de acessar muitas fontes diferentes. Então o saldo foi positivo.
40:03 - E que matérias e professores mais te marcaram?
R - Olha, eu sempre gostei de tudo, eu sempre tive uma dificuldade para saber se eu era de humanas ou de exatas. Hoje em dia isso já caiu, mas naquela época a gente separava muito assim e eu sempre tive dificuldade, eu sempre gostei muito de matemática, sempre gostei muito da ciências exatas todas, ao mesmo tempo sempre gostei muito de redação, português, história. Variava também de acordo com isso, o momento, anos, professores. Aí tinham professores ali que marcavam mais ou menos ali. Nessa escola que eu estudei o colegial todo e o final do ensino médio, tinham professores muito legais, tiveram pessoas que até hoje quando a gente encontra os amigos, a gente lembra, pessoas muito inspiradoras. E aí às vezes você vai gostar mais daquela matéria ou de outra, por conta disso. Mas tive professores legais ao longo da trajetória. Eu sempre tive a minha irmã, a minha grande professora, que estava me ensinando tudo ano antes, que fez com que eu sempre fosse muito bem na escola também, porque dificilmente eu chegava ali as coisas eram pela primeira vez. E minha irmã sempre foi uma excelente aluna, nunca tirou menos que dez na vida dela, era sempre muito genial. E eu, depois que ela parou de me obrigar a estudar o que ela estudava, que a gente era bem pequena, eu passei até gosto por isso, eu que ficava curiosa, ela vinha da escola, com aquele fichários enormes, eu não tinha tanta matéria assim, eu falava: o que que é isso? Aquelas equações de matemática com aqueles símbolos que demoravam uma página inteira, eu ficava super curiosa ia perguntando. Então, eu sempre ali em algum lugar, tive a minha irmã, minha grande professora. E até hoje, enfim, agora ele é roteirista, do mundo do audiovisual, ela me faz a curadoria do que tem que ler, do que tem que assistir, do que são as coisas, ela chega já com as coisas mastigadas dentro de um universo enorme de coisas que ela consumiu antes. Então acho que ela sempre foi ali a minha grande professora particular e maravilhosa e que é um ser humano incrível, eu falo, acho que teve ela. Mas na escola sempre passaram também pessoas legais. Aliás, história sempre foi uma coisa que eu me vinculei muito, sempre gostei muito das aulas de história, de ler, até hoje, muito do que eu faço. Enfim, a história é para você entender da onde a gente vem, o que que aconteceu, para onde as coisas estão te organizando, sempre me chamou muita atenção, sempre gastei bastante tempo me dedicando.
42:34 - E como você era na adolescência?
R - Na adolescência, eu fazia teatro, era uma época que eu fazia bastante teatro, eu gostava muito. Tava na dúvida ali, se eu ia fazer isso da vida ou não, porque já tinha maturidade para entender que era uma vida financeiramente difícil e eu não venho, venho de uma família de classe média baixa, já nessa época tinha muita noção de quanto a vida custava e do quanto você ganhava. Porque no primeiro ano do ensino médio, eu comecei a fazer um curso técnico de teatro, que era uma formação e que fazia parte da formação você ficar na bilheteria, na produção das peças dos atores profissionais, como o processo ali, era uma cadeira. E aí, eu lembro a primeira vez que eu fiquei na bilheteria e tive que dividir o dinheiro, não sei quem vai ganhar X, Y. E aí conversar com os atores, atores maravilhosos, pessoas bem mais velhas ali, não sei o que. Eu olhar e falar: caraca, como uma pessoa vive com isso? Eu já tomava conta, os meus pais já tinham [se] separado, minha irmã já morava em São Paulo fazendo faculdade. Durante a adolescência boa parte morou eu e a minha mãe e aquele corre, então eu já fazia as compras do mercado, já… enfim, cuidava da casa, então eu já tinha muita noção, entendeu? Quanto custa tudo, ajudava minha mãe [a] organizar tudo. E aí eu olhei, gente, como que fecha essa conta? E aí sempre foi muito boa aluna, então olhei e falei: “Putz, tem outras opções que de repente vão me… financeiramente vão ser mais suaves”. E aí eu fiquei boa parte do ensino médio, nesse dilema, com pragmática eu preciso ser nessa decisão. E aí acabei indo para um lugar mais pragmático, que era, eu posso fazer teatro para o resto da vida, de alguma forma e ter uma profissão que paga as contas, porque não necessariamente eu preciso estudar teatro para fazer teatro. E aí eu acabei pensando, não, é melhor eu escolher uma outra carreira. E aí o jornalismo… eu lia muito jornal nessa época, tinha uma coisa em ser meio viciada em ler e assistir jornal, então eu já tinha isso, lia os editoriais da folha, eu gostava de ler o que o jornal estava dizendo, ler as notícias. Tinha uma coisa de notícias, de consumir muita notícia e de achar aquela visão bem idealizada, que o jornalismo pode dar voz às pessoas que não tem voz, me sensibilizava muito com isso, já tinha uma noção forte das dinâmicas de poder e tudo mais. E aí eu falei: “Ah, vou estudar jornalismo, que pelo menos é uma profissão, tem estrutura”. Pesquisei ali, fui conversar com algumas pessoas e achei que era uma coisa mais estruturada e ainda pensei, ah, posso fazer em uma universidade onde seja próximo, porque de repente eu posso até fazer matérias de uma coisa ou de outra. E aí tinha isso, na USP, por exemplo, na ECA, cênicas e jornalismo estão ali, de repente dá para puxar umas matérias aqui, umas ali, fazer as duas coisas. Então eu fui um pouco nessa inspiração, mas na verdade é que no próprio fim do ensino médio, eu já comecei um pouco a me afastar do teatro, comecei a ter outros interesses, comecei, sei lá, estudar outras coisas, pesquisar outras coisas. Acabei não concluindo esse curso técnico que eu estava fazendo, gastei mais tempo estudando, falei: “Não, vou sentar, vou estudar, passar no vestibular. Então, o meu ensino médio foi um ensino… uma adolescência de bastante foco em estudo, porque eu precisava estudar, passar num lugar que eu não pagasse, porque não era muito uma possibilidade ali. Os meus pais já tinham [se] separado, as coisas não estavam tão simples, então eu precisava… eu já estava muito focada na minha vida assim de se estruturar, de pensar em trabalhar, ganhar dinheiro, eu já tava um pouco nessa onda. Mas ao mesmo tempo era uma fase muito festiva, tinha muitos amigos, a gente saía muito, eu passava férias em Ubatuba, tinha uma amiga que tinha casa lá, fazia muita festa, muito forró. Campinas tinha uma cena de forró maravilhosa. Então, tinha esses dois mundos, tinha um mundo já de bastante responsabilidade, muito estudo, muito foco, em coletar, entender o futuro. E de outro lado essas festanças todas. Minha irmã já era estudante de universidade aqui em São Paulo, e aí eu vinha muito, já curtia as festinhas de faculdade com ela, já viajava, já tinha ali uma vivência. Ela já estava ali envolvida em movimentos de militância estudantil, e aí eu já participava, porque ela ia ali concorria as coisas, eu vinha para as eleições. Então eu já tinha ali uma vivência de entender o que que era esse mundo, que logo eu ia adentrar da universidade. Tinha ali as festas do povo de Campinas, um tanto do teatro e um tanto ali já de se organizar e entender o que que era a vida. Então a adolescência foi uma época muito intensa, fiz muita coisa nessa fase. E aí, com dezoito anos, eu passei no vestibular, vim para São Paulo, vim estudar jornalismo na ECA. E aí para cá me mudei, e aí foi isso, quando eu passei, fiquei muito feliz e tudo, mas vinha já com esse corre. Putz, pra eu mudar eu preciso, ter dinheiro para mudar logo, preciso ter um emprego. Então, assim, antes de eu chegar aqui eu já estava procurando emprego no jornal. E arrumei um emprego ali meio de telemarketing, numa coisa que durou poucos meses, porque daí já logo eu consegui um estágio. Mas foi meu primeiro trabalho, já foi rápido. Nem frequentei, por exemplo, a primeira semana de aula, a semana dos bichos, de festas, porque eu já estava ali trabalhando. Mas eu achava isso bom, não era uma coisa sofrida, ah, não estou ali! Eu sempre gostei da minha Independência, a ideia de que eu ia ganhar o meu dinheiro. Estava procurando ali apartamento, com vários amigos para dividir, que já ia ter o meu espaço, isso já me encantava muito. Eu sempre gostei dessa coisa de ser independente, de ter a minha vida, sempre sonhei com esse momento, onde eu ia ter o meu trabalho e pagar as minhas contas. Então, era um momento que foi bem legal. E aí passei a faculdade toda, que aí já é ali vida adulta, início da vida adulta, trabalhando muito, muito, sempre trabalhei muito e estudando ali comunicação, frequentando ali ECA, que também é um outro mundo, então também muita coisa. Acho que desde essa época aí do começo do ensino médio, para frente, a minha vida virou um corre absoluto.
49:23 - E jornalismo era o que você esperava?
R - Não! Não era o que eu esperava, rápido eu me desencantei do jornalismo. Mas eu sou muito grata de ter estudado jornalismo. E passado também por veículos jornalísticos. Eu acho que o jornalismo foi uma escola que para mim, assim, fez muito sentido. Não me identifiquei com muitas coisas, quando eu entrei para veículo mesmo, rápido que saía, mas acho que tem uma forma de pensar do jornalismo, que ela é muito potente, que faz sentido porque eu estava buscando ali, acho que existe de fato, uma metodologia, as coisas que você estuda, eu acho que tem coisas muito potentes. Mas a prática em si, eu vi que não era muito meu perfil. A faculdade em si, era uma faculdade muito ampla, principalmente na ECA, metade das matérias você estuda outras coisas, você escolhe o que estudar, para se aprofundar em temas que você quer fazer. Então, foram coisas legais, algumas mais outras menos, não era uma faculdade exatamente que te exigia muito, as pessoas são legais, as festas eram legais, o ambiente universitário da USP é uma coisa fantástica. Eu fiz matéria, porque daí também eu fazia as matérias, nos lugares, nos horários que se encaixavam com a minha agenda de trabalho, então eu fazia uma engenharia reversa, não era do tipo, ah, eu quero estudar economia. Porque isso exige de você estar disponível no horário daquela matéria, então era na verdade assim, tenho quinta-feira tal hora, porque é a janela que sobra. Que matérias existem? Então eu caía para estudar coisas das mais randômicas possíveis, nos departamentos mais variados. Você conhece muita coisa, muita gente, os jornais laboratórios, que era uma força, pelo menos naquela época, na ECA, porque você tinha muitos. Então, eu curtia, foi um momento que fez sentido. Mas eu fui uma aluna um pouco, não fui essa aluna que viveu ali manhã, tarde, noite, viveu aquele ambiente. Porque eu já estava trabalhando muito e a dinâmica da cidade, naquela época, do final da minha época, começaram os corredores de ônibus na Rebouças, mas antes não tinha, então era muito trânsito. Então eu pegava um ônibus, eu ficava infinito, às vezes eu já estava duas horas ali, não estava para chegar e já muito cansada, acordava cedo. Então, eu comecei a trabalhar muito cedo e fui crescendo rápido, então sempre tive muita responsabilidade. E às vezes pegava dois trabalhos ao mesmo tempo, chegou época de ter dois estágios, que era estágio de meio período, então fazia dois, mais a faculdade. Então eu fui me atolando porque tinha essa coisa: um, de querer me emancipar, precisar de dinheiro e me organizar financeiramente; outra, porque eu sempre gostei de trabalhar mesmo, na verdade, a ideia de executar as coisas na prática sempre me chamaram atenção. Então, eu era aquela pessoa que me voluntariava no trabalho, nunca tive muita preguiça, então eu lembro de virar madrugadas em redação e ficava. E aí eu trabalhei um tanto, em muitas coisas variadas, fui de assessoria de imprensa, a comunicação mais geral, a veículos de mídia mesmo, que eu peguei esse começo da internet, começo da internet comercial, no sentido dos portais. Então eu trabalhei no IG, quando o IG ali estava bem no comecinho. UOL, daí trabalhei na Abril, na área também de digital. Então eu peguei essa onda onde os veículos estavam investindo e fui crescendo, todas ações digitais… Que era ali, eu entrei na faculdade em 2003, então eu fiquei de 2003 a 2008. Então era bem o momento que tava crescendo muito as posições no digital, mas eram posições normalmente mais baixas, era um investimento mais baixo. Vamos pegar as pessoas mais jovens, vamos pôr um monte de estagiários. E aí eu estava ali procurando, circulando nessa fase, aí um foi puxando o outro, então eu sempre trabalhei ali com digital, porque eu acho que é onde as vagas estavam florescendo naquele momento, tudo quanto é vaga que você olhava era isso, era o momento de ter isso. Como naquela época era feito de uma maneira muito rudimentar, eu lembro, no IG, por exemplo, era um grande salão aberto, ficava todo mundo ali, porque na verdade você não podia subscrever o arquivo, porque não tinha um publicador, uma coisa toda organizadinha que você podia estar editando aquilo ali. Então se você subscrevia, você tinha que fazer o FTP, colocar o arquivo, era meio roots, mudar os códigos, para mudar as fontes, os tamanhos. E aí você tinha que gritar, estou com a home aberta! Aí ninguém podia abrir, porque se alguém colocasse no mesmo momento que você perdia a atualização do outro. E assim era feito, então era todo mundo gritando. Essa coisa da salona aberta, sem paredes, etc, era muito para poder se comunicar, porque você tinha que ter aquela agilidade de portal, mais ao mesmo tempo era uma agilidade… E aí você ia manipulando esses pequenos códigos, que eram Html super simples, mas que era o próprio jornalista que tinha que por ali, porque não vinha pronto como vieram logo depois, nessas interfaces. Mas no começo ali, era tudo ali meio na mão, às vezes abrindo uma própria página ali, de código etc. E eu achei aquilo um barato, eu falava, caracas, você muda uma letrinha aqui, muda o tamanho, muda tudo, muda quem vai clicar, quantas pessoas vão ver. Porque é isso, você deixar maior ou menor, você muda a hierarquia da coisa, visualmente. E aí eu fui entendendo esse lugar desses códigos e eu fiquei bem encantada. Eu falei: “Nossa, tem um mundo aqui acontecendo”.
55:03 - E você pegou o comecinho. Imagino que na faculdade de jornalismo não tinha ainda essa ideia de digital?
R - Na faculdade de jornalismo, naquele momento, a gente não estudava quase internet, existia uma cadeira sobre internet, afins, que era feita de uma maneira que não tinha nada a ver com que se aprende… era totalmente desconectado, existia ali no papel, mas não tinha nada a ver com o que que era. Tinha uma matéria - que aí inclusive, foi a pessoa que orientou o meu trabalho final, enfim, é uma pessoa que eu tenho um certo contato até hoje - que era uma cadeira mais de multimídia e que ela falava já sobre as convergências das redações e tal, não era tão aplicada sobre as notícias, sobre o que fazer, mas ela já trazia esse lugar mais contemporâneo. E era uma coisa que as pessoas meio que nem entendiam o que aquilo estava fazendo ali, era uma coisa muito desconectada. Para você ter ideia, o meu TCC, trabalho de conclusão de curso, foi o primeiro TCC no departamento de Jornalismo da ECA no digital, no multimídia. E eu tive que tirar print screen, de tela, em tela e fazer um grande camalhaço, porque eles não aceitavam uma mídia multimídia, naquele momento. Foi um negócio que assim, isso era 2008, eu assim, gente, mas como assim? Era bem começo mesmo, as pessoas não estudavam, então não tinha esse lugar. O digital no jornalismo, ele era visto como não jornalismo, era uma coisa meio, sei lá, era um pouco descredibilizado. E nas redações também, eu lembro de trabalhar na Abril, nas redações e as pessoas… Ninguém queria estar no digital, era meio um cargo de entrada, era uma coisa meio que assim, se você não for muito bom para estar na redação… As pessoas queriam assinar o nome na revista, tinha essa cultura ainda. Eu lembro bem assim, da mudança que foi, quando digital, as pessoas olharam e falaram: e não, agora é prestigioso estar aqui. E eu na verdade sempre gostei do digital, mas eu sempre gostei, porque acho que era um pouco de terra sem lei, era um pouco lugar de mais liberdade, de mais autonomia, não tinha tanto processo, tanto protocolo, porque estava sendo criado. Então ali na Abril, por exemplo, era muito legal, porque as pessoas estavam criando o que ia ser o digital: “Ah, não vai ser a matéria da revista reformulada”. Então você tinha espaço para fazer diferente. “Vamos fazer aqui de um jeito que a gente acha que tem que fazer e vamos mostrar". Então era um lugar mais experimental. E aí eu achava isso muito mais legal. Porque as revistas comuns já eram muito consolidadas, você, principalmente se você era novo, um estagiário, ou alguém com um cargo júnior, você estava dentro de um processo já muito estabelecido, onde as pessoas, você está aqui, para depois… E eu acho que eu sempre me entediei com essas coisas de processos muito estabelecidos. E aí o digital, ele era esse lugar, onde ninguém sabia muito o que esperar, a expectativa era meio randômica, cada um era de um jeito. E eu acho que eu sempre fui caindo para tecnologia, porque esse lugar do digital [é] como uma possibilidade de experimentação. Nossa, eu achava aquilo muito incrível. Eu lembro que eu não pensava, na época ainda da Abril, eu falava: meu, se a gente transformasse isso aqui em game. E se isso aqui fosse transformado de outro jeito. A revista já se deu dessa forma, se a gente fizesse assim. E aí você poderia pensar em mil coisas, dar claras referências. Mas aí eu fui cada vez mais caindo para uma coisa que não era muito jornalismo, entendeu? Que era uma coisa mais de produção multimídia. Enfim, mil outras coisas dentro de conteúdo, mas que não era exatamente jornalismo. E aí eu fui entendendo também que esse não era muito o meu lugar, do jornalismo mais tradicional, ali eu já tinha ideia que eu não ia ficar. Mas ainda fiquei um tempo trabalhando com isso, porque, enfim, trabalho, você precisa ir se colocando. Mas aí, logo ali em 2008, eu já saí, do que a gente chama aí de jornalismo. E acho que caminha para um lado onde está mais próximo do que eu faço hoje.
59:20 - E o que [é] que era isso?
R - Na época que eu estava fazendo meu TCC, que eu comecei a estudar mais a fundo a coisa da internet, da convergência de mídia e tudo mais. Fui entender todo esse lugar, que ali estava muito forte essa ideia do como que a internet poderia democratizar o espaço dos saberes, dar vozes a mais pessoas e viveríamos nessa grande aldeia global de conhecimento. Esse lugar utópico de olhar para a internet, que foi muito pulsante naquela época e que me encantou de novo, que era aquele mesmo encanto que eu tinha tido com a ideia de fazer jornalismo antes. E aí eu fui estudar essas coisas e afins. E acabei me vinculando a um grupo de pessoas aqui em São Paulo, que estavam pesquisando, estudando, fazendo iniciativa dentro dessa cultura, da chamada cultura digital. E aí eu comecei a frequentar ali um grupo de pessoas que estavam, que muitos eram jornalistas de formação, inclusive, estavam pensando, criando coisas ali. Quem me conectou a isso foi o Rodrigo Savazoni, que era a pessoa que tinha feito coisas na Agência Brasil com convergência de mídia e que eu tinha estudado durante o meu TCC. E aí eu convidei ele para ser banca do meu TCC. E aí lá a gente se conectou e ele me chamou para participar dessas discussões. E aí eu comecei a frequentar um monte de coisas, eu ainda trabalhava no jornalismo, na Abril etc., mas ali comecei a frequentar. E aí esse grupo acabou se transformando na Casa de Cultura Digital, que foi um espaço, um coletivo. E eu tive a felicidade de estar ali e fazer parte ali do início, do surgimento e acompanhar e participar de todo esse processo. Aí eu saí da Abril e fui tocar junto com o Rodrigo Savazoni e com mais um monte de gente que estava ali, um projeto, que daí já era um projeto que era uma plataforma de discussão de política pública, que foi o Cultura Digital BR, que era ali uma junção do Ministério da Justiça da época, numa tentativa de entender como é que você constrói leis de maneiras mais colaborativas, num processo mais aberto etc. Junto com o ministério da cultura, na rebarba ainda ali das políticas do Gilberto Gil, na gestão do Juca Ferreira e tudo mais. E eu era ali basicamente a gestora de comunidades, dessa plataforma. Que um tanto dialogava com o time técnico, um tanto ficava ali dialogando com os conteúdos que existia, mapeando as coisas. Ali aconteceu a discussão, a criação do Marco Civil da Internet, foi um processo super bem sucedido no Brasil de criação de política pública, dessa maneira mais coletiva, em rede, foi algo que virou referência em vários países do mundo. E eu estava ali e pude testemunhar muita dessas coisas e me conectar e aprender com um monte de gente. Aí muitas dessas redes, dos contatos que até hoje estão linkadas às coisas do Olabi, tiveram suas origens ali, porque foi um movimento da cultura digital no Brasil, muito potente, muito pulsante, muita coisa passou por ali. E aí essas redes na verdade elas estão trabalhando meio nesse campo até hoje, então eu fiquei ali uns bons anos, tocando junto com o Rodrigo, Cultura Digital BR, que acabou virando, tendo junto essa rede eventos, ações mais físicas mesmo, de atividades de encontros e afins. Então eu fiquei na produção disso. E mesmo quando o ministério deixou de acolher essa política do digital, a gente seguiu daí de maneira independente, com essa camada da rede, dos eventos, de encontros, contatos. Que foi o que me levou para o Rio, em 2011 a gente fez um grande festival, que chamou, Cultura Digital BR, festival internacional Cultura Digital BR. E que a gente captou, enfim, decidiu realizar no Rio, era 2011, um momento que o Rio de Janeiro de muito protagonismo e tudo mais. E aí a gente foi fazer essa edição lá e eu fui para lá temporariamente fazer a produção executiva, tocar ali o dia a dia do festival, que foi um encontro que a gente trouxe gente de muitos países, todos os continentes. Foi uma grande reunião, foi um marco bem interessante nesse processo da cultura digital do Brasil. E aí eu acabei ficando por lá. Acabei que nunca saí do Rio, depois disso. Foi uma experiência bem feliz.
1:03:56 - E no coletivo vocês eram jovens, vocês sabiam o que vocês estavam fazendo?
R - O coletivo, a Casa de Cultura Digital, ela tinha, ela era bem híbrido, você tinha de Cláudio Prado, que já era naquela fase, vamos pensar quantos anos já tinha o Cláudio ali, talvez beirando sessenta, sessenta e tantos, não sei. Cláudio está com setenta e tantos, tem que fazer as contas. Uma pessoa bem mais velha, com uma experiência ali de passando por muitas coisas e tal. O Rodrigo um tanto, um pouco mais velho que eu, não muito, acho que o Rodrigo é uns quatro anos mais velho que eu. Um tanto de pessoas mais ali da idade do Rodrigo, que era um pouco mais velho que eu. Um tanto de gente mais nova que eu. E foi mesclando, passou de um tudo ali, não era uma coisa assim, todo mundo jovenzinho, tinha uma coisa do espírito jovem, acho que enquanto iniciativa, proposta e tal, e ser subversivo, era bem jovem, era bem arrojado. Mas de idade, variava, tinham pessoas que estavam longe de ser exatamente jovenzinha ali, pessoas que empreendiam coisas, ideias novas, estavam vivendo aquele momento. Então eu não acho que a juventude de idade marcava muito, até porque, um dos projetos carro-chefe que existia ali, era esse projeto de diálogo com o governo, que são coisas que exigem… Enfim, tem uma institucionalidade, uma maneira de ser que não é exatamente como quando a gente pensa às vezes iniciativas lideradas por jovens, que às vezes estão ‘desrompendo’ ali indústrias e afins. Mas tinha de tudo, a Casa cresceu muito, em um determinado momento, ficava numa vilinha na Barra Funda, era uma casa, que virou duas, que virou três. Em determinado momento, tinha, eu lembro de ter matéria em jornal, mais de duzentas pessoas, eu não vou lembrar os números exatos. Mas cresceu muito, passou muita coisa por ali, surgiu o primeiro hackerSpace do Brasil, foi ali. Tinha coisas que a gente chamaria logo depois de startups, esse lugar mais da aplicação tecnológica. Que nessa época andava tudo meio junto. Tinha coisa com educação, com cultura, com artes, experimentações audiovisuais. Teve um momento ali, que, putz, tudo estava plugado, tinha de um tudo mesmo. A gente [uma] hora sediava ali eventos, era desde as coisas em diálogo, digo, com Vale do Silício e a nota da aplicação da tecnologia, as grandes startups que viravam essas Big Techs surgindo em diálogos, até as coisas mais disruptivas políticas e ativistas. Estava tudo ali dialogando, era bem esse momento. Foi um momento bem intenso do digital, que as caixinhas não eram tão separadas, então tava tudo muito próximo, as pessoas se conectavam.
1:06:52 - E qual foi a discussão do Marco Civil? Que você falou que foi importante, que vocês estavam envolvidos também.
R - É então, a gente na Casa estava muito nessa camada que era da aplicação, da linguagem, a questão toda jurídica, o processo da lei, foi capitaneado pelo próprio ministério. Então eles tinham uma equipe muito brilhante, bem conduzida, onde eles colocaram um texto, e aí era aberto para os comentários, para sugestões das pessoas, depois eles revisaram ponto a ponto. E a grande sacada desse processo, é que se a gente fala assim, solto, podem ser feitas de mil formas, então eu posso pegar esse texto aí que está na sua mão, colocar na internet, você pode dar um like: gostei; não gostei. Eu posso abrir linha a linha e falar: reescreva da forma que deveria ser. Eu posso pegar parágrafo a parágrafo e falar: você concorda ou não concorda? Eu posso pegar metade e escrever embaixo: das afirmações abaixo, qual melhor te representa? E dizer: eu acredito que essa é a melhor… Você tem um milhão de formas de fazer. E onde estava o nosso trabalho ali, mais da galera da Casa, meu, do Rodrigo, ali, de toda equipe ali que estava com a gente, tinha um monte de gente trabalhando nisso, que era da plataforma em si, era muita essa discussão sobre como, na verdade, a interface sugere comportamentos e chega em resultados absolutamente diferentes. Eu lembro um momento da gente fazer um texto ali, que era sobre isso, de que não cabia o “gosto” ou “não gosto”, porque o Facebook já tava crescendo bastante, tava bem crescido e essa lógica do like, a gente falava: “Cara”. E aí tinha uma discussão: “Tem que pôr like”, “Não tem que pôr like”. A gente, meu, não pode resumir discussões complexas ao like ou não like. E acho que a grande sacada ali foi uma sacada de interface mesmo. E é uma discussão que ela é invisível, porque ninguém pensa sobre. Você fala: “Não, o texto de lei está aqui, você pode opinar". Isso pode significar tantas coisas, você pode dizer que você se você deu like ou não like… Agora, a ideia de que eles abriram pedaço a pedaço e que as pessoas podiam, com campo aberto, submeter contribuições que foram lidas e qualificadas e respondida essas contribuições, é um nível de sofisticação e de possibilidades de mudanças, que é muito diferente do que se, por exemplo, você submeter um texto e falar: “Todo mundo votou que tá legal”, entendeu? E aí, assim, fazendo uma analogia torta de interface, para dizer que: ali foi onde eu comecei a entender mais a fundo, que é uma coisa que até hoje eu estudo, fui depois fazer um mestrado no design - não estudando isso basicamente, mas isso é o design em si -, que é você entender o quanto que os processos tecnológicos estão circunscritos a certas possibilidades de interfaces que mudam tudo. É tipo se a gente tá aqui e se isso tiver aberto, com sol, ou tiver chovendo ou tiver fechado, não sei o quê: isso dita como a gente vai se portar, quais são as respostas possíveis. E a gente não está acostumado a olhar para o digital assim. A gente está acostumado a não questionar e contribuir da maneira como nos dão como possibilidade de contribuição. Mas no fundo essa escolha, ela é uma escolha política, a escolha de eu dá para você uma caixinha de comentário e falar: isso é um campo aberto, me diz o que que você acha que tinha que estar escrito aqui, ao invés disso. Ou você concorda ou discorda. Que são duas possibilidades de interação radicalmente opostas, são possibilidades políticas, que geram lugares absolutamente diferentes. E não necessariamente estou dizendo que isso aqui é bom ou ruim, mas são estratégias diferentes, que vai ser bom ou ruim de acordo com onde você quer chegar. Naquele processo do Marco Civil, foi muito interessante, porque eles conseguiram coletar com essa história do campo aberto, ele fez muito sentido, porque na coleta eles fizeram, daí o observatório, onde eles conseguiram dizer quantos comentários foram incorporados. Cara, foi uma quantidade de comentários, que eu não vou lembrar agora o número, mas eu lembro que o Estadão na época chegou a fazer essa matéria. Uma quantidade enorme de milhares de comentários incorporados, refazendo texto. Então você consegue abrir um código de um processo, de falar era assim, esse comentário é que virou daí assim. Você chega num lugar totalmente diferente. Eu lembro que tinha um cara na plataforma, que tinha um nome, tipo um nickname, que não era assim um nome, era um nickname, sei lá, qualquer. E que ele, na verdade, nem era um estudioso do tema, ele não era um estudioso de processo legislativo, ele não era um legislador, ele não era um gestor público, ele não era alguém entendido daquele tema de legislação de internet. Mas ele era um curioso, um fuçador, ele estava mobilizado com aquilo loucamente. E ele foi o cara que teve muita contribuição incorporada, porque ele pesquisou as legislações de outros cantos do mundo; Ele basicamente gastou o tempo dele e colocou assim: “Olha, isso aqui, na Finlândia, foi feito de tal forma”. PÁ, [mandou o] link. “Isso aqui em não sei onde”... E várias dessas coisas que esse cara colocou ali… Acho que ele era um agricultor, do interior do Rio Grande do Sul, um cara jovem, um cara das redes, assim, de uso das redes. E aí ele foi conectando: “Ó, essa discussão, não sei onde, está rolando assim". E eu lembro da equipe toda, a hora que a gente está compilando ali os relatórios: “Gente, olha isso". A quantidade de informação que veio de uma pessoa que possivelmente, se você fizesse um processo fechado, falado: vamos chamar as maiores autoridades em legislação, em internet, em tudo aquilo. Ele não estaria nesse lugar, ele não fazia parte de nenhuma organização, ele não tava! Eu lembro dessa conversa assim, ele não estaria, ele não estava apto ao que no normalmente se chama para ocupar os processos de participação coletivas comuns, onde você escolhe quem são os agentes, que têm uma legitimidade dentro daquele campo. E ele deu na verdade uma contribuição maravilhosa, porque ele fez uma pesquisa, deixando os links, que mudou muita coisa. Então, assim, tiveram alguns processos, naquele momento da internet, naquele processo do Marco Civil, um ponto de vista de rede, de informação, foi muito curioso, foi muito interessante. E a nossa discussão, nessa camada, que era a camada da interface, que era o que estava ali na Casa de Cultura Digital, era uma discussão sobre como essas interfaces são técnicas e são políticas. E foi uma coisa que eu fui treinando o meu olhar e aprendendo cada vez mais. E hoje quando a gente olha para um celular que a gente consome, para uma aplicação, um aplicativo, cara, cada botãozinho, é uma escolha política por trás. A ideia de que você vai dar like ou não vai dar like, o algoritmo te mostrar uma foto primeira do que outra, tudo isso são escolhas que te colocam em certos posicionamentos políticos e te convidam a um espaço e não a outro, que é uma escolha e que podem ser outras. Porque quando a gente entende que é uma escolha, a gente pensa: “E se fosse diferente?”, que acho que é uma coisa que a gente está pouco habituado a pensar. Quando a gente olha para o digital, a gente tá acostumado a pensar que tudo vem como dado, porque no começo das máquinas e das interfaces o círculo de desenvolvimento era mais longo, era demorado. Então, assim, é o que é, o telefone é assim, é assim que construíram, demoraram um monte para chegar, sacaram o uso assim, o botão vai discar e pronto! Só que agora, que as coisas estão num ciclo de evolução exponencial da tecnologia, onde tudo vai muito rápido, democratizado no sentido de que é muito mais barato de construir. Você coloca uma aplicação no digital, mudança de interface pode ser muito simples, muito pouco custosa. A gente não tem mais que carregar essa mentalidade de que as coisas tecnológicas são como são porque tem que ser. Porque, principalmente no digital, na interface digital… Mas mesmo em hardware, você olhar para um telefone, para muitas das coisas que a gente lida, para essa câmera, quem decidiu que essa lente tem que ser desse jeito, dessa cor, dessa forma? Será que se fosse criado por um outro grupo de pessoas, de outra forma, ela seria diferente? Será que se esse tripé tivesse sendo feito, por sei lá, jovens negros da favela, que às vezes quando carregam um tripé são confundidos com uma arma, e corre risco de levar um tiro e ter sua vida encerrada. Existiriam tripés pretos ou seriam todos absolutamente coloridos, reluzentes, radiantes, com sei lá o que, porque ninguém ia imaginar criar uma coisa assim, falar, meu, imagina, não se cria algo assim preto, porque parece, sei lá, um fuzil. Só dizendo assim, quem constrói coloca a sua visão de mundo, de problemas e o que está enxergando e o que não está enxergando também. Então a gente tá muito pouco acostumado a questionar a tecnologia. A gente dá like, não like, achando é a opção que tem. E no fundo, a interação, ela pode se dar de formas tão variadas, tão diferentes. E eu lembro ali foi um lugar, que eu já vinha com esse questionamento na minha cabeça, desde o jornalismo, porque é isso, você aumentava uma manchete, coloca no redline do portal, ou põe embaixo, a resposta é diferente, a importância que se dá aquilo é diferente, a notícia é a mesma. É um número às vezes que você muda, de um H1 para um H4, foi para cá, foi para lá. E aí assim: “Uau, tudo mudou”. Isso muda as estruturas. E aí a hora que caiu esse processo do Marco Civil, que foi um processo que teve mídia, muita visibilidade, tiveram outras coisas ali dentro da plataforma, também, bem interessantes. Fui começando a entender isso, falando: “Caralho, olha o poder que o desenvolvimento de interface tem”. Imagina se as pessoas que estão aqui nesse processo estão menos conscientes dessas escolhas políticas do papel, do design nisso, e aí, sei lá, a pessoa desenvolvedora olha e fala: “Ah, não, só dá para fazer like, não like, essa interação”. E o povo fala: “Ok! É isso aí!”. Olha a perda de riqueza de processo. Ou olha a indução para certas coisas. Então, assim, muitas vezes essas escolhas são inconscientes, estratégicas, do tipo não quero abrir, essa é a interação que tem que ser. Mas muitas vezes essas escolhas, elas são frutos da falta de discussão, de qualificação técnica e de questionamento mesmo. Às vezes porque é mais fácil, a pessoa com vinte coisas para fazer, preciso criar uma interação, entendeu? Muitas vezes não têm essa estratégia por trás. E aí olhar para interface tecnológica, como uma interface política, ela na verdade é uma coisa essencial nos dias de hoje, ela é para ontem.
1:17:28 - E quanto tempo você ficou na Casa?
R - Eu fiquei na Casa… O surgimento oficial da Casa acho que é 2009, aí, 2010, 2011. Aí fiquei no Rio, ainda em ponte com coisas da Casa. Mas aí fui lentamente me afastando, nessa época aí do Rio, 2012, mais ou menos. Ainda fazia bastante coisa, a Casa ainda existia, ainda fazia bastante coisas aqui. Em 2013, acho que já foi um ano ali que eu me distanciei e comecei a ficar bastante no Rio e já comecei a história do Olabi, de tentar. 2013 foi um ano de correr atrás, eu lembro de conversar com muita gente, pensar, putz, como que capta, como que faz. Comecei no rio, senti falta de um espaço físico, vinha dessa experiência da casa, que tinha sido muito feliz, muito rica para mim. Pô, agora estou aqui meio sozinha, isolada. Aí comecei a frequentar os espaços que existiam no Rio, que não eram tão focados nessa discussão tecnológica, era mais uma pegada de Startup, empreendedorismo, coworking, que tava crescendo muito no país, inclusive lá. E aí, acabei me vinculando muito a essa ideia, de assim: “Ah, não, acho que vale construir um espaço físico aqui no Rio”. A ideia do Olabi, de início, ela vem muito de um espaço físico, que depois foi mudando. E aí, nesse tempo, eu fui meio me desvinculando das coisas daqui, mas sempre com umas parcerias. Como a Casa tinha esse esquema coletivo, as saídas e as entradas às vezes não se dão num marco, porque no fundo as redes ficam ali. E essas redes elas seguem, tem muita gente da Casa que fez parte dessa construção do Olabi, segue parceira até hoje e em institucionalidades diferentes. O próprio Rodrigo, foi dali, criando o Procomum, que é um instituto hoje que tem sede em Santos, mas trabalha pelo Brasil todo e que é nosso parceiro. Rodrigo, super parceiro. O Gil, que também era da Casa, foi para o Rio na mesma época, acabou indo para o Observatório de Favelas, que é um parceiro do início do Olabi, que daí ele criou ali o Data Labe, que é uma criação muito parceira do Olabi até hoje. Enfim, só citando aqui alguns, para dizer, as pessoas foram se movendo dentro desse campo, criando outras organizações, mudando de cidade, mudando de estado, sei lá, assumindo posições em outras organizações. E as coisas foram se continuando. O Olabi, de início, recebeu uma aporte ali, começou um diálogo com a Fundação Ford, que vinha de uma relação da Casa da Cultura Digital. O meu contato com a Fundação Ford vinha dali, que era um apoiador dos projetos. Então, quando eu fui para lá, tive outra ideia, eles legal! Nossa conexão estava feita. Então uma coisa vai puxando a outra. E aí a Casa foi ali virando muitas coisas. Então, assim, a Casa, não acho que ela acabou exatamente, eu acho que ela se transformou em muitas outras coisas, sabe, quando você corta uma cabeça e vira pequenos filhotes por muitos cantos. E aí, eu acho que tem muita dessas sementes. E as pessoas num diálogo. Mas teve isso, foi em 2013; 2012, 2013, por ali. E o lançamento oficial do Olabi é março de 2014. Então, o que significa, que em 2013 foi esse ano, que já estava ali sendo construído, gestado, pensado, articulado, captado, tava ali nesse corre, enquanto eu fazia também vários outros projetos, muitas vezes em parceria com essas coisas da casa, com o próprio Rodrigo e afins. Então foi ali uma transição. Aí, em 2014, coloca-se para o mundo esse projeto chamado Olabi, que vai fazer dez anos já ano que vem.
1:21:22 - E como que surgiu essa ideia do Olabi?
R - O Olabi veio desse lugar, desse meu convívio com essa cena, desse diálogo do impacto do digital na sociedade e do incômodo de me sentir um pouco não tanto parte. Tinham inicialmente muito forte essa questão de gênero, a própria Casa, ela tinha uma cultura de liderança, embora tivessem mulheres também. Tinha uma cultura de uma liderança muito forte masculina. Eu comecei a frequentar muitos eventos de tecnologia, essa coisa de estar na gestão de comunidades, plataforma, contato com as coisas que estavam acontecendo, em evento etc. Ambientes profundamente masculinos, brancos de engenheiros basicamente, essa tradição clássica da cena tecnológica. E aquilo me deixava sempre muito desconfortável, por ser uma mulher, por ser uma pessoa que veio da comunicação e não da engenharia ou das áreas mais tradicionais das exatas, pela forma que eu via o mundo, por uma série de coisas. E aí eu comecei a ficar um pouco incomodada com isso, inclusive com um certo lugar onde a tecnologia parecia ser legal ser distante das pessoas, parecia assim, um certo, não sei, era a minha percepção, não sei se era feito para isso, mas, assim, era bom ser um grupo pequeno, saca assim? Uma coisa meio de “nós”, os especialistas. Isso me incomodava muito, que eu sempre fui uma pessoa de gostar de estourar bolhas, de fazer conexões. E aí me incomodava muito esse lugar, e eu nunca me sentia muito parte, então, sei lá, o hackerspace, o Garoa, que foi uma ideia muito legal de acontecer, que surgiu ali de uma galera que estava estudando engenharia na Poli, pessoas inclusive muito próximas, muito queridas, muito maravilhosas, e que daí fizemos essa ponte, veio para dentro ali fisicamente da Casa de Cultura Digital, no porão, era incrível, mas na hora que você olhava era isso, todo mundo muito desse mesmo lugar. Embora eles fossem muito acolhedores, muito convidativos, era aberto para qualquer um, mas na hora que você olha e fala: “Tá, mas é aberto mesmo?”. Por exemplo, eu tava ali na ata no primeiro dia de abertura, e eu, putz, não coloquei meu nome como alguém que falava, sei lá, me ofereci para tirar as fotos, para acompanhar, para ficar ali meio como observadora, porque embora fosse legalmente, oficialmente aberto, qualquer um pudesse estar, existe uma coisa chamada cultura, que te coloca e te tira de certos lugares e te faz, por exemplo, olhar e falar: “Ah, não! Eu aqui vou tirar foto. Eu aqui vou só acompanhar, porque o lugar que me cabe é esse”. E às vezes tá até dentro da gente, mas é uma cultura estabelecida. E aí eu fui ficando incomodada e pensando, cara, isso porque, sei lá, sou uma pessoa super privilegiada, estudo na USP, que já é um espaço super das intelectualidades, faço jornalismo, diálogo com um monte de gente que lida com linguagens diferentes, venho dessa estrutura opressora branca brasileira. Então, assim, estou longe de ser alguém que não deveria se sentir parte desses espaços, esse espaço é opressor. Eu falei: “Putz, é opressor para mim, imagina para o país todo. Isso tá muito fechado”. E aí, nessa época também, viajei, fui para fora do país, fui conhecer o Vale do Silício, que a gente já dialogava com iniciativas ali, eu nunca tinha ido. E aí eu fui circulando por algumas coisas, falei assim: “Cara, essa cena é muito fechada, ela é para pouquíssimos a discussão da criação, não a cena do uso, da aplicação, que daí é para todo mundo”. E aquilo começou a me incomodar muito. Falei: “Gente, mas como assim?”. Entendeu? Estamos construindo o mundo inteiro baseado em três, quatro, cinco fulanos, todos eles meio que se conhecem. Achei meio pavoroso. Então, eu fiquei um pouco com esse incômodo desse distanciamento da tecnologia, porque eu mesma, às vezes eu participava de três, quatro vezes da mesma coisa e eu não entendi o que estava sendo discutido. Eu falava, gente, eu sou uma pessoa muito curiosa, estudiosa, tipo assim, pô, e eu não tô entendendo! Imagina você traduzir isso para alguém que tá ‘correndo’, que nem é o campo de interesse principal, a gente não vai chegar em lugar nenhum. E aí veio desse incômodo. Tanto é que o Olabi desde o início ele tem a proposta de ser… Na época, ali, muito como espaço físico, de debate, construção, aprendizagem de tecnologia, mas para qualquer um que dialogasse, uma pessoa que faz crochê na esquina, jovens espalhados por tudo quanto é canto, de várias classes sociais, artista, gente de tudo quanto é forma de pensar. Então a ideia era um pouco conectar com essa cena mais especializada, mas fazer ali uma ampliação e uma democratização para que pudesse ser acessível para mais gente, porque o digital [tá] impactando tudo e todos. Então, essa sempre foi a onda do Olabi, sabe, de quebrar um pouco essa bolha dos engenheiros especializados construindo o futuro, dos rumos de todos, porque… Foi isso, veio de uma percepção de que o design dessas interfaces e esse conhecimento que tava muito concentrado - segue, né, na verdade - na mão de um pequeno grupo, ele está pautando as nossas escolhas, as nossas decisões, porque aquele botãozinho da decisão, a pessoa que vai te dizer se é possível que aquilo seja uma caixa aberta ou um likezinho. Então, assim, como que tem tanto poder político assim tão concentrado. E aí a ideia veio nesse lugar, de falar: não, tem que ser para todo mundo, a gente tem que conseguir ampliar essa conversa, tem que ser para mais gente. Então ele veio desse incômodo na verdade, veio de uma tentativa mesmo de se aproximar desses temas todos e tentar poder fazer as perguntas que estavam ali na minha cabeça e que eu não tava encontrando muito outros espaços para fazer. E eu achei que era o momento. E aí a gente surgiu como espaço físico no Rio, inicialmente, com um monte de oficinas, que ia de marcenaria… então a gente ficava cruzando o low-tech, o hi-tech da robótica com a marcenaria mais tradicional. E aí fazia muita coisa de atividade prática. Mas, na verdade, é que desde o começo a gente sempre teve uma camada para além de espaço, uma camada de projetos, que é por onde a gente se fixa hoje aí, principalmente no pós pandemia, onde a gente encerrou o espaço. E tem só essa camada que é mais projetos, mas onde a gente começou também a dialogar mais forte com o país como um todo. E aí logo ali do começo vem esse encontro com a grande Silvana Bahia, minha grande parceira, que primeiro trabalhava no Observatório de Favelas, logo ali no surgimento do Olabi, e que veio como parceira para o Olabi, conectada pela própria Fundação Ford, pelas nossas redes ali. Então a gente começou a fazer umas atividades juntas. E aí as duas [eram] de organizações, e aí ela saiu do Observatório, veio trabalhar no Olabi, ficou um tempo ali, tocando umas coisas, projetos específicos. E a gente sempre nessa troca de ideias, e aí ela trouxe muito forte as questões raciais do país, que enfim, já existiam ali em algum lugar do Olabi, de um olhar, mas assim, muito excipiente, com muita pouca qualidade e a Sil foi a pessoa que trouxe isso. E num momento que era muito pioneiro no Brasil, que as pessoas não estavam falando nesse recorte. E aí a gente teve esse grande casamento, que vem sendo bem feliz. E aí eu chamei ela para dividir a direção do Olabi comigo, dividir o Olabi comigo, falei: “Cara, vamos dividir”. Aí a organização passou a ser uma responsabilidade minha e dela, iguais poderes, iguais medidas, a gente divide aí esse processo, até hoje na verdade. E daí dali surgiu PretaLab, foi uma ideia que ela idealizou, que é um processo muito bem sucedido, que hoje é o projeto carro-chefe do Olabi. E ali é isso, muito do Olabi é a Silvana e essa construção que veio depois desse início, onde a gente tem tentado entender inclusive hoje, como ampliar cada vez mais, porque é isso, eu estava olhando para uma camada, não enxergando outras e ela trouxe. E a gente se pergunta, que outras camadas a gente não está enxergando, porque são muitas, quanto mais você vai abrindo, tem muita gente, tem muita coisa, assim, a opressão está em todos os cantos. E a cena tecnológica, ela é muito concentrada, ela é muito excludente, para muita gente, para muito público, para muito canto. Então, esse é o momento, que a gente tem que se questionado mesmo, para ir sempre ampliando.
1:30:40 - E como você vê essa área da tecnologia desde que você começou até agora? Especificamente para as mulheres.
R - Olha, eu acho que teve um avanço enorme, desde que eu comecei, no sentido de ter mais mulheres e mais políticas e principalmente mais discussões. Acho que a gente ainda tem muito trabalho para fazer, para de fato diversificar a cena e ter mais mulheres no comando etc. Mas o avanço é inegável e a discussão e a pauta, já não é mais questionável, o que é um grande avanço, porque por muito tempo as pessoas não viam nem qual o sentido desse diálogo, de falar: hã, mas que que tem? A conversa era muito rasa. Hoje em dia, isso é colocado como um problema por tudo quanto é canto, mesmo por quem não está conseguindo cumprir ali uma certa equidade dentro desses processos. Então acho que o avanço é muito grande, tem um foco, tem um investimento da indústria, de tudo quanto é canto. Então acho que já chegamos num momento que a gente entende que não é mais aceitável ter uma cena tão concentrada, isso é uma coisa dominada por homens brancos. Agora, o problema é que as discussões, às vezes elas vêm uma depois da outra. E principalmente num país como o Brasil, a gente recebe muitas vezes essas políticas vindo das matrizes internacionais, onde as discussões de diversidade, se dão de maneiras muito diferentes: vai ter um país que a questão é os refugiados; o outro é a população ativa indígena. Cada um tem as suas questões. Então, o primeiro layer da diversidade, que é um pacto global, de todo mundo trabalhar, é a questão de gênero. Então, assim, vamos resolver isso aqui e tal. Então isso chegou forte no Brasil já há algum tempo. Agora, o problema é que você às vezes não pensa como que isso chega numa estrutura num outro contexto. E no Brasil, quando a gente fala só sobre a questão de gênero, descolada sobre a questão de raça, por exemplo, a gente perpetua uma série de exclusões e desigualdades, que também chove um pouco no molhado. Porque assim, beleza, lógico, você tem uma cena que é homogênea, de homens brancos e tal, é muito ruim, então você tem que ter pelo menos o equilíbrio de gênero. Mas assim, porque você vai trabalhar um layer e depois outros, sendo que as mulheres brancas estão numa condição de enorme privilégio em relação à população negra no país, isso não deveria estar descolado. Então, assim, a questão de raça, que 56% da população brasileira é negra, como que a gente não está privilegiando essa discussão em vez da outra? Ou por que elas não andam em conjunto? E aí eu acho que o problema, quando a gente fala só da questão das mulheres, é que a gente descola desses outros processos e aí cria-se uma artificialidade que é comum de se ouvir: “Não, mas calma, um problema de cada vez! A gente não conseguiu nem ter equilíbrio de gênero, vamos fazer isso, depois outro". Só que isso é uma perda de tempo. A gente, no Olabi, já, há muito tempo, não acredita nesse descolamento da interseccionalidade, porque a gente tem que entender onde a gente tá. Então, assim, essa ideia de que vamos resolver um problema para depois o outro, a gente acha ela um certo enxugar gelo. Então eu acho que a gente tem que pensar sobre as questões de diversificar a cena de tecnologia e deixar ela mais parecida com a composição demográfica do país, que tem 52% de mulheres, que tem 56% de pessoas negras e tudo mais. E inclusive sendo aberta a grupos que são estatisticamente minoritários, mas que são impulsionadores de novas culturas e novas aberturas, porque… Em especial na cena de tecnologia e de inovação, isso é super importante. Porque senão a gente corre o risco também, de só trabalhar pelo que estatisticamente se faz maioria. E aí você vai ser sempre opressor a grupos que são minoritários e existem certos grupos que vão ser estatisticamente minoritários. E isso não deslegitima o espaço necessário dentro desse contexto. Então acho que as duas coisas precisam andar em conjunto, a necessidade de olhar de maneira numérica, e falar gente, mais 56% da população é negra, onde estão as pessoas negras na tecnologia, isso não é aceitável de ser tamanha minoria dentro de um universo tecnológico, sendo tamanha maioria no universo populacional, isso não dá! Isso é indecente! Ao mesmo tempo, tem grupos que vão ser sim minoritários, a população trans brasileira, é um grupo minoritário demograficamente, e isso não significa ser ok, ser tão minoritário na tomada de decisão das discussões tecnológicas, porque são grupos que são importantes para transformações de cultura, para que a gente crie uma cultura que não seja opressora para novos costumes, hábitos e afins. Então acho que as duas camadas precisam ser olhadas ao mesmo tempo e acho que a gente tem que falar em política e processos de diversificação, de inclusão, de equidade. E não só de um grupo ou de outro, porque senão a gente vai passar a vida inteira enxugando gelo, entendeu? “Então vamos resolver gênero, aí na hora… Depois de décadas, agora vamos resolver a questão…”, aí a gente vai estar sempre atrás. E eu acho que a grande questão é, se existe uma cena que é tão propulsora das nossas vidas contemporâneas, que é a infraestrutura por onde roda as tomadas de decisão políticas, econômicas, sociais, contemporâneas, ela não pode ser ditada por um grupo tão homogêneo, ela precisa ser democrática, incluir modos de pensar e formas de ser e questionamentos de todo um conjunto populacional. Então acho que é mais essa discussão. Isso passa pelo fazer tecnológico, então a gente tem que ter pessoas produzindo tecnologia, para carregar a visão de mundo delas, porque a tecnologia embute a sua visão de mundo, de pessoas das mais variadas, classes sociais, gênero, raça. Enfim, todos os layers possíveis, formas de pensar, a diversidade inclusive cognitiva.
1:36:43 - Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Nossa! Eu acho que tem tanta coisa, os amigos, a família, as pessoas queridas, que a gente ama. Eu sou muito conectada a gente. É aquela velha história: talvez não importa para onde estamos indo, mas importa com quem. Acho que acredito muito nisso, então acho que os afetos movem muito, são sempre muito importantes na minha vida. Eu acho que é esse senso da gente trabalhar e tentar contribuir de alguma forma, para que esse país que vem de uma história tão excludente, tão difícil, tão opressora é tão inaceitável, é indecente a história do Brasil. Em especial por não ter tido uma reparação, porque até ter sido uma atrocidade, uma violação, o genocídio indígena feito pelos portugueses no passado, como chegaram aqui, a gente na escola chama isso de descobrimento. Assim, essas atrocidades todas terem existido lá atrás, eu até acho que tem contexto para aquilo, agora isso se perpetuar. E a gente vê ainda uma sociedade tão marcada por um desequilíbrio social enorme, por uma falta de consciência, por uma elite que às vezes não entende que a gente é o segundo país do mundo que mais trouxe pessoas escravizadas. Se você pensar, entendeu, que você tem mais da metade de um país, sem política compensatória, daí tem gente questionando cotas etc. Então, assim, acho que a gente vem de um lugar, de um nível de dor, de criação, é uma criação de um país tão injusta, tão triste, que eu não sei assim, eu acho muito importante esse lugar onde a gente consegue tomar responsabilidades desse processo. Onde todas as pessoas… Não foi nossa culpa, não é nossa culpa, a gente não tava aqui, não foi a gente que decidiu. Agora, a gente tem responsabilidades por como isso vai seguir, o que que você vai fazer com seu entorno diante disso, e quanto você vai tomar pé dessa história e quem você vai ser nisso. Então, eu acho que isso também é uma coisa que me move muito, que é muito importante para mim, inclusive nas micro ações, nas macros. Que sujeito histórico sou esses nesse momento histórico do mundo, que responsabilidades eu carrego, que me é possível. E acho que tem outra coisa que me interessa muito, que é festa, eu sou uma pessoa que gosto muito de celebrar, de fazer festa, acho que se a gente não consegue se mover pelos encantos, pelos afetos, por celebrar as pequenas coisas, por cantar, dançar, sorrir, comemorar, às vezes até quando a gente não tem o que comemorar, mas é o fato de estar vivo, de estar aqui, tá podendo ter essa experiência. Inclusive, chorar, cantando, dançando, sambando em conjunto, eu choro muito também. Eu acho que é uma celebração. Então acho que esse senso de celebrar e de unir, ele me importa muito, eu sou uma pessoa profundamente movida por um instinto de sociabilidade. A gente, não, vamos se abraçar, que seja para lidar com os pepinos da vida, com os perrengues, seja porque conseguimos aqui uma micro vitória, Então acho que esse olhar da gente celebrar cada passo, cada conquista faz a energia mover para o lado certo, que é isso também, me importa muito as energias. Acredita nas energias, energias não mentem. E da gente se cerca de uma positividade, de tentar ser uma contribuição no mundo de energia positiva, de falar, cara, o que que eu posso fazer de melhor para o meu entorno nesse momento, e o que que a gente pode, sei lá, emanar de bom para que a coisa flua, sabe-se lá para onde, mas que pelo menos seja na energia correta.
1:41:05 - E qual que é o seu maior sonho?
R - Nossa, que difícil! Eu acho que tem muitos, em muitas camadas. Eu acho que no macro, na utopia, eu sonho em viver num país que não seja tão injusto, que não seja tão cruel na verdade, porque não é nem injustiça, eu acho que justo é o globo. Agora, assim, eu acho que a gente vive numa realidade cruel, a gente quando olha para o tamanho do desequilíbrio social. Cara, como tem gente concentrando tudo, de poder, de dinheiro, de oportunidade e de tudo. E tanta gente, caraca, vivendo a vida e não conseguindo o básico. Então, assim, viver num lugar onde as pessoas tem a sua dignidade humana garantida e que os direitos humanos são no mínimo respeitados, eu acho que isso é um puta de um sonho, porra, seria bonito de ver. E aí tem mil camadas, sei lá! Sonho, não sei: em ter mais tempo livre, ficar de bobeira na praia, muito samba, muita festa, muitos amigos, muita coisa, sei lá, sonho com muita coisa. Mas acho que não sei… sonho, sei lá, que a gente consiga melhorar um pouco. Me incomoda muito, acho que vocês compartilham, pela carinha de vocês, com isso, com essa indignação desse país. Gente, é muito triste, eu não sei como, sei lá, tem uma camada do país enorme que dorme de boa. Acho que tem um sistema patriarcal, opressor que a gente precisa dar conta de pelo menos atenuar. Então acho que é um pouco isso.
1:43:10 - Qual você acha que vai ser o seu legado para as próximas gerações?
R - Olha, eu não sei, eu acho que eu sou uma pessoa, na verdade, que a minha maior força é abrir caminhos. Então eu não sei se eu tenho um legado meu, ou se o meu legado vem de portas e conexões que eu ajudei a fazer, para pessoas que são realmente construídas de grandes legados fazerem. Eu acho que eu sou muito mais uma conectora, que por qualquer razão, inclusive energética, às vezes estou na hora certa no momento certo, passa na frente uma coisa que outra pessoa perguntou. “Olha ali essa pessoa que você acabou de perguntar, é ela que responde aquilo". Então, eu não sei, eu me vejo muito como uma conectora, não sei, meu legado talvez sejam essas conexões. Talvez seja isso, talvez seja uma conexão que permita coisas aí existirem, pessoas acontecerem e criarem. Não sei, eu sou uma pessoa que eu sei poucas coisas, eu tenho muitas perguntas na minha cabeça, é difícil olhar para certas coisas, eu estou sempre com novas perguntas e pensando, caraca, quanto mais respondo, mais perguntas vem. Mas acho que muita gente tá com bastão aí de sabedoria e que precisam de espaço, que deixam ligados muito profundos. E talvez eu seja uma das muitas pessoas que estão aí fazendo essas pontes, acho que eu sempre estou nessa busca aí, de conectar, de fazer ponte. Porque, não sei, é uma coisa que sempre me vem, e aí com o tempo eu fui vendo, sei lá, é maior do que eu na verdade, sei lá porque eu faço isso. Mas as coisas vão surgindo, eu vou conectando e talvez seja isso.
1:44:59 - E, por fim, como é que foi contar um pouco da sua história para a gente hoje?
R - É tipo sessão psicanálise, não vai ter corte lacaniano? (risos) Você sai com um corte lacaniano, ali, meio atordoada. Eu acho, é muito rico esse processo, acho que vocês devem lidar com bastante gente aqui, que está sempre no corre, fazendo um bilhão de coisas. O tempo que a gente tem para parar, ficar falando assim, principalmente perguntas que não são tão pragmáticas de respostas prontas, é muito raro. Então acho que ele traz uma reflexão importante, e a reflexão que me veio foi a de que na verdade como a gente é construção de muitos micros momentos, que parecem tão desconectados e no fundo eles vão formando quem a gente é, então no fundo todo momento importa. Às vezes a gente tem…. Principalmente agora, com essa coisa de Instagram, rede social, o foco nos bigs momentos, nas grandes coisas e no fundo cara, eu acho que a gente é uma coleção de pequenos momentos. E é isso, espero que eu não tenha falado nenhuma besteira que depois vai ficar esse link eternamente, eu vou me arrepender, meu Deus do céu! Mas é isso, eu acho que são memórias, as memórias são muito potentes. E eu acho que esse momento digital, a gente corre o risco de sintetizar e editar demais. Então esse esforço onde a gente mostra a coisa mais crua, eu acho que ele é um grande legado, porque a gente tá editando demais a realidade. E aí a gente cria artificialidade, porque as pessoas acham. Se você fosse cortar tudo isso e fazer uma grande história de sucesso editada em dois minutos, ia ser: “Tá-tá-tá-tá-tá”. E aí, às vezes, uma pessoa que tá nessa caminhada, nesse processo, no meio, fala, caramba, eu nunca vou ter esses pontos, a gente se associa a pontos. E no fundo as trajetórias são muito diversas, diferentes. Então, acho que essa riqueza das pequenices. Eu acho que eu to cada vez mais, é sinal que tá ficando velha. Cada vez mais pensando, a importância está nas pequenas coisas, da simplicidade, como que é isso que constrói, sei lá, as trajetórias mesmo. Então acho que foi um exercício muito legal. Sou muito grata por estar aqui. Um projeto que eu admiro há bastante tempo. Fico muito feliz! Obrigada! Espero ter…
1:47:21 - A gente que agradece, foi um prazer sua entrevista. Foi incrível mesmo!
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