Entrevista de Luciene Aparecida Inácio
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 02/10/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV002
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Luciene, primeiro eu quero agradecer demais por você receber a gente nesse espaço e ‘topar’ dividir um pouquinho da sua história com a gente e da cidade, queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome... eu me chamo Luciene Aparecida Inácio, eu nasci dia 29 de maio de 1967, na cidade de Abadiânia, no estado de Goiás.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Minha mãe me disse que eu nasci por volta... eu acho que era mais ou menos uma meia-noite, o meu nome foi escolhido por uma amiga dela, uma família francesa que morava em Anápolis e aí escreveu em um papelzinho como meu nome seria registrado. Eu nasci de sete meses, foi o primeiro desafio da minha vida, foi para nascer, eu sou meia apressadinha, eu sou bastante ‘elétrica’ para fazer coisas o tempo todo, então para nascer eu nasci de sete meses e minha mãe disse que quando eu nasci, foi um parto difícil e terminou me machucando, foi no interior, na roça, com parteira e ela terminou deixando… me deixou com uma família para me cuidar. Como eu fui sua primeira filha ela não conseguia, ela teve muitas dificuldades no parto e aí uma família começou a cuidar de mim, até me colocou dentro de uma caixa de sapato para as unhas terminarem de nascer, como uma incubadora, porque na roça não tinha, então eles encheram uma caixa de algodão e me colocou ali, para eu esquentar, para eu recuperar e aí eu sobrevivi. (risos)
P/1 - Quanto tempo com esses cuidados?
R - Eu calculo que em média de cinco a seis meses que foram sobre essa família e essa pessoa, o nome dela é Iraci, ela já faleceu, mas ela se tornou minha madrinha, ela cuidou. Eu tenho um afeto, uma memória, um afeto muito...
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Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 02/10/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV002
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Luciene, primeiro eu quero agradecer demais por você receber a gente nesse espaço e ‘topar’ dividir um pouquinho da sua história com a gente e da cidade, queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome... eu me chamo Luciene Aparecida Inácio, eu nasci dia 29 de maio de 1967, na cidade de Abadiânia, no estado de Goiás.
P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Minha mãe me disse que eu nasci por volta... eu acho que era mais ou menos uma meia-noite, o meu nome foi escolhido por uma amiga dela, uma família francesa que morava em Anápolis e aí escreveu em um papelzinho como meu nome seria registrado. Eu nasci de sete meses, foi o primeiro desafio da minha vida, foi para nascer, eu sou meia apressadinha, eu sou bastante ‘elétrica’ para fazer coisas o tempo todo, então para nascer eu nasci de sete meses e minha mãe disse que quando eu nasci, foi um parto difícil e terminou me machucando, foi no interior, na roça, com parteira e ela terminou deixando… me deixou com uma família para me cuidar. Como eu fui sua primeira filha ela não conseguia, ela teve muitas dificuldades no parto e aí uma família começou a cuidar de mim, até me colocou dentro de uma caixa de sapato para as unhas terminarem de nascer, como uma incubadora, porque na roça não tinha, então eles encheram uma caixa de algodão e me colocou ali, para eu esquentar, para eu recuperar e aí eu sobrevivi. (risos)
P/1 - Quanto tempo com esses cuidados?
R - Eu calculo que em média de cinco a seis meses que foram sobre essa família e essa pessoa, o nome dela é Iraci, ela já faleceu, mas ela se tornou minha madrinha, ela cuidou. Eu tenho um afeto, uma memória, um afeto muito grande com ela, que foi ela que cuidou de mim. Eu fui cuidada.
P/1 - E qual é o nome da sua mãe?
R - O nome da minha mãe é Tereza. É um nome forte.
P/1 - Como você a descreveria?
R - Minha mãe é uma mulher forte e correta, acolhedora, é ‘mãezona’. A minha mãe é apaixonada pelos filhos, pela família, ela vive a vida dos filhos. Ela é acolhedora.
P/1 - E seu pai?
R - Meu pai já faleceu, mas meu pai: honestidade, muito honesto, trabalhador. Eu vim de uma família bem humilde, mas bastante correta, na simplicidade, mas eu fui criada com pai e mãe, então a gente foi uma família bastante unida, muito feliz, apesar de todas as dificuldades também que vivemos, mas a experiência de pai e mãe junto é fundamental também, na minha vida.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho três irmãos homens, eu sou a mais velha.
P/1 - E como é a sua relação com eles?
R - Nós somos bastante, muito unidos, um complementa o outro, faz parte, é o tempo todo juntos, mesmo distante nós estamos sempre juntos, eu morei junto com os meus irmãos praticamente até os quarenta anos. Quase todos muito juntos, no mesmo prédio.
P/1 - Isso em que cidade?
R - Em Brasília, na mesma residência tem um predinho de três andares que nós construímos para todos morarem juntos.
P/1 - E você conheceu os seus avós?
R - Conheci a minha avó materna, ela viveu com a gente até 102 anos. Quando a minha mãe casou com o meu pai ela foi morar junto com a gente. Minha avó tinha problema de saúde mental, mas ela nunca foi internada em algum lugar, ela viveu até os 102 anos pelos cuidados e o carinho que a família deu, ela foi muito bem cuidada, por isso ela viveu muito. A gente nasceu… quando eu nasci ela já tinha problema de saúde mental e já estava idosa, então para mim foi uma coisa natural trabalhar, lidar com ela, a gente já entendia.
P/1 - Tem alguma história marcante com a sua avó?
R - Minha avó me ensinou muitas coisas, minha avó foi assim... tinha o sangue indígena também, foi criada em meio de fazendas e tudo, então ela me ensinou muitas coisas do cerrado, questão de sobreviver, ela ficou muito tempo… às vezes ela fugia, devido a ‘saúde mental’ ela fugia muito de casa e ficava muito nos matos e ela me ensinou muitas coisas: o que poderia comer no mato, questão de sobrevivência, o que é uma fruta do cerrado, o que é uma mangaba, uma fruta tipo bacupari, que é uma lombeira. Se eu sentisse sede o que eu poderia comer no mato para matar a minha sede, o que teria? E ela foi me ensinando, então tinha algumas plantas que eram azedinhas, que era para matar a sede, as raízes dos cocos aquilo também é bom e ela ia ensinando o que era veneno e o que não era veneno, uma questão de sobrevivência. Esse foi um dos maiores ensinamentos que ela teve e ela não gostava de violência, minha avó. Sempre foi também uma pessoa muito avessa a violência, ela sempre muito carinhosa.
P/1 - E a sua madrinha, como era?
R - A minha madrinha eu a vejo assim como uma mulher sempre muito forte, e uma pessoa que gostava muito de ajudar as outras pessoas. Pelo que me contam e o que eu sei era uma família que tinha até condições, então ela ajudava muito os abrigos dos idosos, ela cuidava dos familiares mais... os idosos, ela ia levantar a casa, cuidava, fazia muita comida para doar, biscoitos e ajudava aquelas pessoas, principalmente os idosos e abrigos, ela sempre gostou de cuidar dos outros, fazia isso de uma forma bastante espontânea e com muito capricho, como se fosse para ela também, então ela fazia naturalmente, uma coisa natural.
P/1 - E você ficou sob os cuidados dela até quanto tempo?
R - A gente teve mais contato. Logo eu voltei para a casa da minha mãe, logo quando eu fiquei, após o parto, eu fiquei pouco tempo com ela, foi questão de meses só. Eu tinha contato de passar férias, de visitar e tudo assim, tinha um carinho, tinha um apego e ela tinha um carinho também com a gente. No interior, quando é a madrinha, o padrinho você tem grande respeito, como se fosse sua segunda mãe e seu padrinho seu segundo pai, então eu vim dessa criação bem de interior, também.
P/1 - E a sua família tinha costumes bem específicos assim: alguma comida que a sua família preparava e você gostava muito? Tinham datas comemorativas que vocês celebravam?
R - Na minha família sempre a celebração nos Natais, sempre teve uma ceia e eu sempre fiz todas as comidas, durante muitos e muitos anos, quando eu morei lá em Brasília eu que preparava a ceia, então tinha toda essa tradição mesmo de comer aquela leitoa pururuca, então esse era um prato (risos) especial no dia de Natal com toda a família. Na minha família tudo é comemorado com comida, sempre é uma confraternização tudo sempre com muita comida, todo mundo junto, sempre compartilhando.
P/1 - E que lembranças você tem da sua cidade natal? Como era sua casa lá?
R - Eu saí de lá muito pequena, eu creio que eu deveria ter uns quatro anos de idade, eu não lembro muita coisa, não, mais o meu pai trabalhando em uma roça, colhendo feijão, são poucas lembranças, porque a partir dessa idade, depois dos quatro, eu fui para Brasília com cinco, seis anos, daí eu tenho uma infância mais ativa, já, pra cá.
P/1 - Você já tinha algum irmão quando vocês mudaram para Brasília?
R - Sim, a diferença de um irmão para o outro é só de um ano, foi tudo assim, mas a responsabilidade maior ficou comigo, porque eu era a mais velha, então tive que cuidar deles e amadurecer, ter maturidade. Com seis anos de idade eu já fazia comida, sete anos já cozinhava em casa, porque meu pai tinha que trabalhar na roça, minha mãe também e o meu outro irmão, seguido de mim, também ia e eu tinha que fazer a comida e cuidar dos outros, de pequenininha. A infância foi trabalhando também, a gente brincava, mas trabalhava, no interior.
P/1 - Como que era isso para você, como você se sentia?
R - Para a gente foi uma experiência, hoje eu penso, superimportante, eu fui criada no meio da natureza junto… no meio das galinhas, os animais, no verde, plantando, tinha uma horta, bastante água, então a minha memória bem de infância é muito verde, contato mesmo com a natureza.
P/1 - Como que era a sua casa de infância, que recordações você tem?
R - Era uma casa simples, mas eu lembro que era dentro de uma chácara, mas ela não era de alvenaria, era de madeira, era bem simples, a casa. Eu lembro mais é de ficar fora da casa, no quintal, de brincar no pé de abacate, tinha muita manga, tinha abacaxi. Eu lembro que a gente tinha também tipo um engenho, onde passava cana, aí já saía o caldo de cana, para fazer a garapa de cana e também colhia, plantava mandioca e minha mãe fazia farinha e ela me ensinava a fazer farinha, torrar, a fazer o polvilho e separar o polvilho da massa, tem todo um processo, mas tudo de forma manual. Eu bem criança já ajudava a minha mãe a fazer isso. Minha casa nem tanto, mas o quintal, pé de manga, muitas mangas, muito pé de manga, minha mãe sempre varrendo, deixando tudo muito limpo.
P/1 - Você subia nas árvores?
R - Subia com os meus irmãos, mas a gente se divertia ali, brincava, trabalhava entre a gente, era o nosso mundo aquilo lá. Eu não tinha boneca, eu pegava os sabugos de milho, os caroços de manga e fazia como se fosse as minhas bonecas, então fazia de tecido, eram nossas brincadeiras. E a gente brincava também, eu tinha um cachorro, ele chamava Chimbim, era meu companheiro, a gente brincava, tinha galinhas, nossos brinquedos eram os animais.
P/1 - E como era? Tinha vizinhança, tinham amigos próximos, ou não?
R - Não. Só de vez em quando chegava uma visita, vinha alguém, mas era bem distante.
P/1 - E nessa época, pequenininha, o que você pensava ser quando crescesse?
R - Eu pensava... eu tinha vontade de estudar, curiosa, queria conhecer com os livros, eu queria conhecer o mundo, sempre fui muito curiosa de aprender e de ter tudo, uma casa tudo muito bem limpa, tudo arrumado, de organizar. É isso.
P/1 - E que recordações você tem da escola?
R - A escola, quando eu fui, meu primeiro dia de escola eu me lembro como hoje, foi a maior alegria da minha vida, porque quando eu fui para a escola eu já tinha sete anos e alguns meses, então eu já me senti velha, eu queria ter aprendido antes, mas como eu morava em chácaras meu pai levou, mudou para a cidade para alfabetizar a gente, porque ele e a minha mãe não eram alfabetizados e eu tinha vontade, muito, e meu primeiro dia na escola eu fui com a roupa mais bonita que eu tinha, que era um vestido vermelho, com uns desenhos de umas sombrinhas de amarelinho bem claro. E o primeiro dia de lanche foi um pão com manteiga nesse dia e um Nescau, eu nunca tinha tomado Nescau. Lá, quando você mora no interior, na roça não tem leite em pó, não tem Nescau, não tem Danone. (risos) De manhã eu comia mandioca cozida. Eu achei uma delícia e a escola eu achei tudo bonita, lá eu tenho amigos, porque era só eu, meus irmãos, meu pai e minha mãe, então lá eu encontrei outras pessoas, eu fiquei encantada ao ver a escola. A minha professora, o nome dela é Ana, eu nunca esqueci, no primeiro dia e me apaixonei. Eu senti muita dificuldade de aprendizado, por eu ter sido… meus pais não tinham nenhum conhecimento, não eram alfabetizados. Meu pai depois aprendeu a fazer contas, minha mãe conseguiu estudar, mas depois de certa idade. Então, quando eu fui pra escola, eu senti mais dificuldades do que os outros alunos, eu tinha que estudar mais que os outros, em tudo. Sempre foi difícil, a minha vida toda, estudar foi uma questão que eu tive que me esforçar muito, eu tive pouco incentivo do meu pai, deles, por questão... não o culpo, mas a cultura que ele foi criado e depois ele falava para as pessoas que eu estudava porque eu gostava, mas sim porque uma necessidade, que ali as letras, os números, o que eu lia abria a minha mente e me ajudava a conhecer o mundo, a saber como eram as coisas, o que era de verdade, o que era mentira. Então, cada figura, cada cor que eu fui aprendendo, quanto mais eu aprendia mais eu queria, a escola foi a primeira experiência, que é como se tivesse tirado as minhas vendas e achava tudo encantador, todos os detalhes, até o copo de alumínio que eu tomava o lanche, o prato de plástico, aquilo para mim era tudo novidade, tudo novo e eu fiquei encantada com as letras, era a primeira alfabetização, eu tive que aprender, era sobre a família, aí tinha a avó, o pai, a mãe e tinha o nome das pessoas: Renato e Divo eram irmãos, isso (risos) eu me lembro. E quando eu aprendi também a extensão da área do Brasil nunca mais eu esqueci e você vai aprendendo coisas que você não esquece: qual é o maior músculo que nós temos, que é do pescoço, então foram coisas que eu fui... a primeira música que eu aprendi foi O Cravo Brigou com a Rosa, isso foi em escola (risos) e depois disso eu nunca mais saí da escola. (risos) Mesmo assim todo dia é um aprendizado.
P/1 - Que memórias... acho que você já dividiu algumas marcantes assim, mas você lembra, de todo esse período, de pessoas, alguma história, algum ensinamento, alguma professora?
R - Nesse período, meu pai, quando se mudou para esse local, para a cidade, montou um comércio e foi logo quando eu aprendi a escrever e ler, então eu comecei já a preencher uns cheques para o meu pai e pra minha mãe, eu comecei a cuidar do estabelecimento deles e se tornou, numa época, um comércio muito grande e funcionava 24 horas nesse período, isso nos anos setenta, tinha um movimento muito grande de clientes e tudo, então ali eu já trabalhava o tempo todo, eu só ia para a escola de manhã, acordava muito cedo, antes eu acordava em uma média de quatro e meia da manhã para fazer o café da manhã para todos os clientes dele e também algum tipo de alimentação, que eram muitos caminhoneiros que paravam e quando era sete horas eu ia para a escola, deixava tudo pronto e ia estudar. Quando chegava da escola já ia direto para o estabelecimento e aí ficava, trabalhava o dia todo. Quando era de noite tomava banho. No outro dia de manhã acordava quatro horas e assim foi, e aí eu cuidava do estabelecimento, lia as coisas para o meu pai e meus irmãos também, tudo a gente junto, trabalhando e estudando.
P/1 - Até quantos anos você tinha essa rotina?
R - Nessa foi até os quatorze anos, nessa rotina. Depois o meu pai não quis mais o comércio, aí vendeu, só que ele não fez um bom negócio nesse período, ele vendeu porque ele estava cansado, mas aí ele não soube lidar com a questão financeira e nós ficamos em uma situação muito ruim. Meu pai foi trabalhar, depois ele foi trabalhar como funcionário público também, trabalhou em Brasília e a gente mudou e aí não tinha aquele comércio e então a gente foi viver com bem menos, com uma outra condição, bem difícil, mas nunca passamos fome e nesse período eu tive que sustentar os meus estudos, tive que trabalhar para os outros, trabalhar em casa de família, minha mãe teve que lavar roupa para os outros também, para eu conseguir terminar o meu ensino médio, período bem difícil em Brasília, que a gente estava lutando também para conseguir moradia, foi e aí eu consegui ir estudando, terminei o meu ensino médio, fui trabalhar em casa... para terminar o ensino médio eu tive que trabalhar em casa de família, nesses lugares também as pessoas, quando você vem de uma outra classe, também sofre o preconceito da desigualdade, da cor da pele, da região onde mora, então eu passei por tudo isso, por questão, para adquirir o conhecimento e tive que suportar e até hoje eu suporto (risos) os preconceitos de outras classes sociais, por ter mais oportunidades ou já nasceu dentro e muitas vezes ver quem nasceu em outra condição inferior que a deles não pode ter o mesmo conhecimento que eles. Quando você nasce e foi criado em uma periferia você tem que carregar para o resto da vida, pra onde for, a história não tem como mudar. Então, nesse período eu terminei o ensino médio e daí muito difícil o período, fui trabalhar, comecei, fui estagiar. Quando eu comecei a estagiar, eu estagiei na Caixa Econômica Federal, fui para o Tribunal Regional do Trabalho e, para estagiar na Caixa Econômica tinha que passar por um processo de concurso, eu passei pelo processo, fiz datilografia, fiz tudo que tinha no período e aí eu fiquei dois anos na Caixa Econômica. O estágio era de um ano, o gerente gostou e falou: “Não, vamos renovar”. E eu fiz esse estágio dentro do Tribunal Regional do Trabalho, era um lugar que trabalhava com causas trabalhistas. Então eu vim de uma periferia, fui fazer estágio na Caixa Econômica, dentro do tribunal, onde o meu maior contato era com advogados trabalhistas e juízes, eu fui trabalhar com esse público bastante exigente: “Tem que me chamar de doutor” e às vezes tinha que chamar conforme, assim eu fui aprendendo, tudo foi um aprendizado e depois da Caixa Econômica...
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Eu já estava com dezoito anos, com dezenove eu fui trabalhar no SENAI, eu fiz também um processo seletivo e entrei no SENAI. No SENAI eu entrei como recepcionista e cheguei a ser responsável pela Secretaria de Curso Industrial. Lá eu fiz noventa cursos, eu comecei a fazer cursos na área de gerenciamento, na área de liderança, na área de relações interpessoais, de análise transacional dentro de organizações e também trabalhar com os empresários e receber, cuidar de fazer cerimoniais. O SENAI foi minha escola, lá eu aprendi tudo, de tudo, foi o que abriu tudo.
(25:21) P/1 - Você se lembra de alguém muito marcante nessa época, que você leva junto até hoje?
R - São várias pessoas, no SENAI eu conheci várias pessoas. Eu conheci engenheiros, administradores, jornalistas. Essas pessoas eu ficava encantada quando elas estavam falando, eu achava bonita a linguagem, queria falar também, queria aprender igual a elas e uma vez uma administradora chegou perto de mim e falou assim: “Não tem importância, você pode falar ‘nós vai’ e ‘nós fica’, é ‘arroz com feijão’, porque o conhecimento que você tem ninguém vai tirar de você, ninguém sabe, só você tem. Quando você sabe você tem segurança sobre aquilo que você está falando, então não precisa falar bonito igual ao outro para mostrar que você sabe alguma coisa. Então, na simplicidade também, de um modo simples também você sabe mandar o recado certo” e eu fui tirando esse preconceito que a sociedade foi colocando em cima, que é a forma de falar e trabalhei em diversos setores, tanto no primeiro e segundo setores, dentro de... para várias organizações, empresas multinacionais e trabalhei também para o governo do Distrito Federal, prestando serviço, tanto para eles diretamente, como também por terceirizados.
Tive filhos muito cedo, casei muito cedo, era uma questão também… meu pai também era muito rigoroso com a gente, meus irmãos, a gente trabalhava muito, prendia muito, não deixava sair de casa e a forma que ele educava a gente, de fato ele batia na gente e eu não via isso como um erro, mas a gente tinha vontade de sair logo de casa, essas questões e essas agressões, talvez não só eu, acho que meus irmãos também, passamos por isso. Eu fui mãe muito cedo, eu engravidei, com dezessete anos eu fui mãe, mas logo em seguida eu separei e conquistei a minha liberdade. Eu fui mãe e separei. Meu pai falou que ia me ajudar, não tinha importância, que ele estava comigo, era uma relação que eu estava abusiva, não dava para continuar mesmo e minha filha... foi nesse período que eu fui trabalhar em casa de família, para terminar o ensino médio, para sustentar a minha filha. O meu pai ajudava a cuidar dela. Meu pai e minha mãe a olhavam enquanto eu trabalhava, eu só voltava final de semana e teve um final de semana que eu voltei e ela não me chamou mais de mãe, ela me chamou pelo nome, ela chamou minha mãe de mãe e meu pai de mãe. Até hoje ela não me chama de mãe, mas minha filha… depois eu casei de novo, quando foi com uns dezenove anos eu casei e a minha filha teve leucemia quando ela era criança, com sete, oito anos. Eu fiquei com ela dois anos no hospital, sem ir em casa, cinco anos de tratamento. Logo nesse período também, com todos esses desafios, dois anos sem ir em casa terminou também o casamento, acabando de novo, aí separei. Fiquei quase treze anos casada e no período que minha filha ficou com leucemia eu estava grávida do Tiago, irmão dela, e foram períodos bem difíceis. Quando ele nasceu, ela com leucemia teve a rubéola, teve que voltar para o hospital, então as internações dela eram muito longas, meses e meses. O médico falou que ela não ia sobreviver, pediu para levar para a casa, que a medicina não tinha mais o que fazer, porque ela tinha um tipo de leucemia, tinha vários tipos de leucemia, a dela era a menos comum na época, eu não me lembro o nome, mas acho que era mieloide aguda, ela teria que ter uma irmã gêmea, geneticamente igual, para ser o doador e não tinha, era impossível isso e era um tratamento à base de cobalto, veio da Alemanha, ela fez tudo a quimioterapia e a radioterapia e ela curou, mas os médicos falaram que ela não ia curar, (risos) mas tinha mandado levar pra casa, aí eu falei se podia deixar ela mais uns dias que ela ia curar, que eu acreditava, que eu sentia uma força muito grande que ela ia ficar bem e a minha filha ficou bem. Acho que esse foi um baque bem duro. Nesse período eu pedi demissão do SENAI, eu tinha que cuidar da minha filha, naquela época não tinha como pedir afastamento por dois anos sem remuneração, não existia essa questão, nenhuma empresa deixaria você por dois anos ou três anos sem ir lá, então eu terminei saindo e depois o meu pai morreu também, no mesmo período, foi uma pessoa muito… toda força, acho, que eu tenho, o meu pai que foi o grande inspirador dessa força, sempre eu vi meu pai como um homem muito forte, ele sempre foi muito forte. Meu pai morreu com cinquenta anos e quando ele morreu ele pediu para eu cuidar dos meus irmãos e eu tinha um irmão que ainda estava menor, com dezessete anos e a gente, nesse período, por isso que nós ficamos juntos, por muitos anos morando todos os irmãos no mesmo prédio, durante quase quarenta anos, um cuidando do outro. É isso. E depois desse período a gente foi mexer com o que a gente mais sabia fazer, com comércio, que é voltar a mesma questão que meu pai fazia, meu pai já mexia com isso, ele nunca deixou depois e a gente sempre estava vendendo alguma coisa, foi sempre nesse lado de empreendedor. Nas horas mais difíceis, com o pouco que tinha ia ‘se virando’ e esse negócio prosperava e ia dando certo, então eu fui aprendendo a administrar desde criança, com o meu pai e com a minha mãe as questões, sem ter ido para a faculdade e fui começando a criar processos e montando negócios com a família, então a gente chegou, a família chegou a ter dois ou três supermercados, mas só a gente cuidando, mas depois isso também não foi para frente, depois o meu irmão não quis mais, outros fatores que eu prefiro não falar e depois eu sempre quis fazer coisas, construir coisas. Como eu trabalhei muito tempo com família, a família termina não reconhecendo muito, tem alguns… porque eu vi que é normal, como assim: “Santo de casa não faz milagre”, em algumas vezes eu me vi assim, por exemplo: a única mulher no meio de três homens, era quatro quando o meu pai era… então era uma criação assim, não tem como negar que tem o machismo também, então por muitas vezes eu me senti dentro de um lar muito machista, quando os homens falavam é como se eles tivessem mais voz. Eu não, eu sempre tive que falar mais alto para eles me ouvirem, mas tinha isso lá, não tem como, então isso eu também senti e foram desafios e eu fui pegando, durante a minha vida, diversos desafios e a parte profissional sempre foi um desafio também, pois no SENAI eu fui trabalhar, eu fui convidada. Eu trabalhei em restaurante comunitário, lá em Brasília chama restaurante comunitário, eu fui supervisora de diversos, em média dezesseis restaurantes. Eu implementei um modelo. Aqui em São Paulo chama-se Bom Prato, então especificamente eu fiquei em uma região lá que chama, na época era uma comunidade bastante violenta, chama ________. Hoje menos, já, hoje é uma cidade e tudo, mas era Itapuã. Então, quando implementou esse restaurante lá, eu fui convidada para trabalhar lá devido… estava tendo muito… a empresa estava fechando ‘no vermelho’, ela estava tendo muita perda e muito furto e aí eu fui convidada para trabalhar lá nessa região e eu conhecia todo mundo da região que eu trabalhava, então era uma região bastante violenta, então muitos menores que andam em gangues, armados e eu fui implementar esse projeto e foi um sucesso e foi como modelo de todos os lugares, dentro de um lugar ainda bastante desorganizado e violento, com um projeto de alimentação incrível, muito limpo, tudo bem organizado, não só para atender as pessoas carentes, mas todas as pessoas, o restaurante foi feito para todas as pessoas, então lá comiam tanto professores, médicos, construção civil, pessoas de situação de rua, lá era para todos e foi modelo, foi uma comitiva lá, pessoal da África pra pegar como modelo, outras pessoas do Pernambuco, do próprio Brasil, em uma região tão violenta montar um restaurante assim e estar todos juntos, se alimentando, sem nenhum conflito, envolvendo a própria comunidade ali, está trabalhando, então eram os professores dali; eram os menores dali, infratores; era o trabalhador; eram todos no mesmo espaço, isso que era o diferencial e a comida era para todos, por que tem que ser diferente?
P/1 - Teve algum aprendizado nessa experiência?
R - Muitos, né? Muitos, muitos, muitos, muitos, de lidar com pessoas frequentadoras extremamente violentas, menores que cometiam crimes graves e frequentavam o espaço e eu tinha um diálogo muito bom com eles, lá eles podiam frequentar, mas lá não era um lugar deles cometerem nenhum crime e esse diálogo… eles respeitavam o meu trabalho, então tinha um respeito pelo trabalho, já teve vezes deles chegarem e até querer entregar a arma para eu guardar pra eles, pra entrar, já chegaram até esse ponto. Então, era uma região bastante violenta, mas a comida e o lugar eram incríveis. Hoje o lugar já não é assim tanto e tudo, foi uma experiência incrível, tanto que multiplicamos, foi multiplicando por Brasília e outros lugares, ensinando a forma certa do trabalho em si, de trabalhar com as pessoas, de ensinar as pessoas a trabalhar e colocar as pessoas nos lugares certos, então esse foi um aprendizado. Mas antes disso eu trabalhei, eu fui supervisora também na área hospitalar, eu também fiz técnico de nutrição, eu trabalhei muitos anos nas redes de hospitais do governo do Distrito Federal, eu trabalhei em um hospital de referência, Hospital de Base lá, na época, então todas as áreas lá, desde o politraumatizado, de ter que reconhecer corpos e todas as áreas do hospital, na área de alimentação e nutrição, supervisionando desde a alimentação parenteral, de veia, até o lactário de recém-nascido, trabalhei em hospital infantojuvenil, infantil, lá a alimentação específica era o leite materno e lactário para criança recém-nascida, de seis meses, questão de sobrevivência. Trabalhei no Hospital de Base, referência, trabalhei no Hospital do Paranoá, que fica próximo lá. Lá foi implementação na parte de alimentação e nutrição. Eu assumi o hospital durante os dois primeiros anos, em toda área de alimentação dele. Minha vida são esses desafios. Então, eu trabalhei com pessoas saudáveis, pessoas doentes, pessoas quebradas. Minha mãe fala que essas experiências de trabalhar no hospital fortaleceu muito o meu coração, não deixou o meu ‘coração mole’, eu falei assim: “É um músculo, (risos) tem que exercitar” e você tem que ser forte, quando você trabalha em algumas áreas assim, são vidas, são seres humanos, então aquelas pessoas ali, doentes, pacientes dependiam muito do meu trabalho, a gente não pode ter erro, se eu cometer um erro a pessoa pode chegar a óbito. Como? Com a alimentação, se não tiver uma boa supervisão, se ela tem uma dieta que é hipossódica e você coloca lá o sódio você pode matar a pessoa, dependendo da condição, então toda a prova da alimentação antes de ir para o paciente eu que tirava, então todo esse cuidado, todo zelo da ‘mãe canguru’ com o recém-nascido, para não fazer barulho, para não irritar nem a mãe, nem a criança e todo cuidado para tirar os resíduos do prato, até pra recolher. Então, tudo isso foi um aprendizado, tudo que eu aprendi nos hospitais onde eu trabalhei, no SENAI, nas comunidades, tudo isso eu trago para a minha vida. Passei por desafios terríveis também no Rio de Janeiro, tive que passar a morar na Rocinha e em outras áreas do Rio de Janeiro, um desafio, um sequestro que eu passei, familiar, no Rio de Janeiro, foi um período bem desafiador, mas conseguimos resolver essa situação e meu irmão saiu dessa com vida e foi tudo resolvido no período. Então foi esse, grande, foi um dos maiores desafios, saber que você tem um parente que está ‘na mão’ de miliciano e como tirar e ter que negociar com eles, para salvar a vida e então esse foi um desafio e deu tudo certo, tudo certo.
P/1 - Como foi se tornar mãe? O que a maternidade representou para você?
R - Responsabilidade, aumentou mais responsabilidade. Quanto a se tornar mãe, mais um desafio. Eu era muito nova, muito criança, era como uma criança cuidando de outra criança, eu tive que criar maturidade, ser madura, então eu não tive essa adolescência nesse período, não dava tempo, então algumas etapas foram pulando, então ser mãe foi pular a etapa de ser adolescente e seguir para frente. Era, no período, assim: eu não entendia muito bem o que estava acontecendo, eu era muito novinha, eu queria ser mãe naquele período, porque não foi assim... eu não estava preparada para ser, eu não fui preparada para isso, então foi difícil de ser mãe, foi difícil, tive que ficar dias longe da minha filha para sustentá-la e eu chorava todos os dias de saudades dela, eu sentia que ser mãe é como ela fosse uma parte de mim. Eu ter que sair para trabalhar e voltar só no final de semana para ______, isso foi a parte que mais me doeu, porque eu trabalhava todos os dias chorando, todos os dias eu chorava de saudade dela, todos os dias, foi muito difícil.
P/1 - E aí veio o seu segundo filho. Um menino.
R - É, veio o meu segundo filho. Estava difícil, minha filha ainda estava fazendo tratamento de leucemia e quando o Tiago nasceu, meu filho nasceu, depois veio uma paz muito boa, veio uma tranquilidade, tudo curou, então ela já teve menos internações. Então, quando ele veio, o Tiago veio para tirar um pouco o nosso sofrimento, veio trazer alegria. Então era um menino e me trouxe muita alegria, então a minha filha brincava com ele, a gente ficou mais... e a alegria, esse momento junto, o contato com ele foi tirando essa parte da doença, também. Já diminuíram as internações, as infecções. Foi isso, um desafio e aí eles cresceram e eu tinha que voltar… Nesse período eu estava trabalhando no restaurante, supervisionando, eu ainda não tinha curso superior e uma chefe minha, eu tirei férias e ela descobriu, quem fazia tudo era eu e quando ela ficou no meu lugar ela ficou meio perdida e as pessoas tiveram que ensinar como é que funcionava o local, porque ela só olhava uma vez por mês. Eu era técnica de nutrição e ela era nutricionista, aí ela me mandou embora quando eu voltei de férias, porque ela descobriu que eu estava ganhando mais do que ela, porque a empresa estava me pagando mais e ela me mandou embora porque eu não tinha curso superior, eu só era técnica. E eu, no dia eu fiquei triste, mas aí eu fui fazer o curso superior, porque aquilo era um ‘tapa na cara’ que ela tinha me dado. Eu sempre trabalhei muito também, mas estudava, fazia outros cursos e todo e aí os meus filhos já estavam maiores e tudo e eu chamei: “Vamos para a faculdade”. Aí fui com o meu filho e nós fomos fazer faculdade juntos e aí eu fiz, fui estudar Administração em uma das melhores escolas de Brasília, eu fui pelo Enem e quando eu cheguei na faculdade eu conversei com o supervisor do curso de Administração, porque que eu queria fazer o curso, e eu fui conversar com ele se eu tinha condição de acompanhar, estudar em uma melhor escola por eu ter vindo de uma periferia e conversei com ele e falei toda a minha experiência de vida, tudo que eu já tinha construído e trabalhado e ele: “Aqui você vai ensiná-los”. Eu sempre tive muita vergonha de não falar outras línguas, principalmente o inglês, eu só falo português, eu não sei nenhum outro idioma. Como você vai ser administradora falando só um idioma? E lá eles quebraram esse tabu. Existe, os maiores administradores do país e tudo e muitos não têm nem formação, e eu já tinha uma experiência, eu estava à frente dos outros alunos. Então tinha meninos que estavam estudando na minha sala, que tinha feito o ensino médio nos Estados Unidos e outros que falavam sete idiomas, a maioria, praticamente eu era a única que não falava nenhum e foi interessante estudar também nessa universidade, lá também um aluno falou que lá não era lugar para eu estudar: “Como que eu venho de uma periferia, isso cai o nível da escola”, ele falou. Isso dentro de uma palestra, a gente fazendo uma aula juntos lá e ele falou que às vezes essas bolsas, esses programas tipo FIES não pode ir para essas faculdades, porque pode cair o rendimento, o conceito da faculdade, porque quem sabe mais é quem estudou nas melhores escolas, mas eu continuei na escola e ele desistiu, mas nesse dia mesmo eu falei quem era ele para falar que eu não podia estudar naquela escola e de onde que eu vim. Para eu estar ali eu passei um por um ‘bom bocado’, que ele com certeza não passou. Primeiro que ele nunca enfrentou um câncer, eu já tinha vencido isso. Então ele teria muito que aprender comigo e não era dessa forma soberba. Ele desistiu, eu achei uma pena, porque ele foi para outros caminhos, se envolveu com droga. Eu espero que ele tenha já... com certeza já deve ter saído dessa situação, mas foi outro desafio e lá na universidade, quando eu cheguei na faculdade eu achei o melhor lugar do mundo pra mim e aí eu parei de trabalhar, porque eu tinha sido demitida e só fui estudar. Trabalhar eu nunca parei, a vida toda eu trabalho, eu tenho… a gente sempre tem alguma coisa, está fazendo alguma coisa, eu estou vendendo, eu estou alugando, eu tenho uma padaria, você faz alguma coisa e quando eu cheguei na faculdade eu levei muitos anos para estudar, pra chegar lá, mas eu ia fazer bem feito, por isso que eu escolhi a melhor. Eu não fui para a federal, porque ia demorar muito e eu já tinha mais de quarenta, depois dos quarenta você tem mais pressa, eu falei: “Eu vou para uma particular, através do FIES”. Eu não tinha condições de pagar nem o primeiro mês, se não fosse pelo programa e quando eu cheguei na universidade eu vi que eu sabia muita coisa. A primeira pergunta que uma professora minha falou, de Gestão de Pessoas: “O que mais eu gostava?” Eu falei que gostava de pessoas, de gente, ela falou: “Então você está no lugar certo”. E eu descobri que eu sabia, tudo que eu já fazia tinha nome, eu já sabia os processos e tudo, eu só não tinha ido para universidade para dar os nomes certos, então eu já sabia fazer os diagnósticos, eu já sabia o que era competência, o que são as habilidades e eu não sabia era dar os nomes certos e quando eu comecei a colocar os nomes certos no trabalho que eu já fazia, achei que ficou brilhante, aí todo mundo queria aprender comigo também, dentro da faculdade. Eu fiquei, durante os dois primeiros anos, era um apadrinhamento que eu fazia nos dois primeiros semestres: eu acolhia as meninas que chegavam no curso de Administração e eu ensinava como fazer currículo e tudo, como se comportar em uma entrevista de emprego. Como eu já tinha maturidade, eles ainda nunca tinham ido trabalhar, eu já tinha trabalhado, então nós fizemos o inverso. Então, tudo que os estudantes não sabiam do mundo do emprego, do empresarial, da indústria e do comércio, tudo isso eu já sabia, o que eles estavam procurando eu já tinha passado por esse processo e aí foi incrível, lá sim tirou todo o resto da ‘cegueira dos meus olhos’, lá na faculdade eu aprendi a me tornar uma pessoa melhor também. Quando eu fui estudar antropologia, filosofia, psicologia eu fiquei encantada com isso, quando descobri que sentido tinha as coisas, ninguém nunca tinha me ensinado isso e eu fui sabendo isso, fui colocando certo. A minha mente abriu, que o mundo ficou pequeno, Brasília ficou pequena para mim. Depois disso eu queria ir me embora, vir para São Paulo e terminei a minha faculdade, porque ficou muito pequeno. Queria fazer grandes coisas, construir coisas, principalmente trabalhar com jovens, jovens são muito rápidos na tecnologia, eu acho incrível, eu sou de outra geração, tecnologia é uma coisa incrível que teve, eu vivi outra forma, então eu do lado do jovem, nós dois juntos chegamos longe. Eu tenho a experiência, eu tenho a dedicação, eu tenho o capricho, tudo isso e ele tem a velocidade da tecnologia que ele conseguiu acompanhar essa agilidade e a universidade abriu muitas portas para mim, eu podia escolher pra onde que eu ia, lá eu aprendi que eu posso escolher onde eu quero estar e com quem eu vou trabalhar e o que eu vou fazer, as pessoas ensinaram. Quando você adquire o conhecimento você não é mais manipulado pelas outras pessoas. As pessoas que sempre quiseram me ‘pisar’, ou me diminuir hoje até tentam, mas eu tenho a resposta para dar, tenho experiência e é isso. Quando eu terminei a faculdade eu tive várias propostas de trabalho, até mesmo dentro da universidade, diversas, de montar uma cervejaria artesanal, de ser sócia com outras empresas de amigos, lá dentro, outros empresários. Então, na minha sala 90% dos estudantes eram filhos de empresários ou pretendiam montar, criar algum negócio, a maioria era, os maiores empresários e eu tive várias propostas, mas eu queria conhecer outros lugares, eu nunca tinha saído assim, eu não conhecia São Paulo, mas eu saí e queria conhecer outros lugares grandes, o mundo todo e meu filho falou: “Vai para São Paulo que lá você conhece o mundo todo lá” e eu sempre tive muito medo, questão da língua, de não falar outro idioma, mas as pessoas: “Você aprende a falar rápido, com seis meses você aprende”. Eu sempre achei que eu já estava velha para aprender outro idioma, (risos) mas vim para São Paulo. Quando eu cheguei em São Paulo eu fiquei encantada, eu vi todos os mundos aqui, foi onde eu vi as diversidades. Eu sou louca pela cultura, lá em Brasília eu era apaixonada, mas eu não tinha acesso, porque tudo é muito caro. Então, aqui eu fiquei um ano, um ano só ‘turistando’, conhecendo São Paulo.
P/1 - Veio sozinha?
R - Eu vim sozinha. Nunca tinha entrado, não conhecia nada, já fui morar na Luz, em um hostel. Quando eu comecei a ver umas cenas assim, eu falei: “Meu Deus, é aqui mesmo que eu quero ficar!” Quando eu vi a questão encantadora, a Luz, a arquitetura, aquilo me deixou apaixonada, mas do outro lado eu vi uma polícia levando um pessoa presa porque ele estava usando crack, eu via coisa ali, aquilo lá é uma pessoa muito… já vi logo ali um contraponto e eu olhei assim e comecei a avaliar onde que eu estava e aí eu comecei a entender a cidade, que lugar que eu estava, o que era, sozinha, que rumo que eu ia e aí eu fui para a Mário de Andrade, a biblioteca, comecei a participar de um café literário lá e por coincidência eles estavam falando alguma coisa de Pagu, proletário e fazia uma comparação de São Paulo com Brasília, aí na hora que eles falaram eu fui e já pedi para falar. Eles falaram alguma coisa de referência de Brasília, de Brasília eu conheço tudo, eu falei assim: “Não…” Aí fui falar a minha visão que eu tinha de São Paulo e de Brasília, eu não sei se a gente estava falando, se era alguma coisa... não sei se era de Athos Bulcão, alguma coisa assim e eu falei a visão que eu tinha, quem mora aqui, como que ele tinha perdido e tamanhas possibilidades que eu vi aqui, como que é rico, como era tudo glorioso, que eu achava aqui, as coisas, tudo e comecei a frequentar, fui para um sarau, mas eu tinha muito medo de não ficar aqui, muito medo de não dar certo, eu tinha algumas inseguranças, uns medos dentro de mim, mas ao mesmo tempo eu tinha uma força muito grande, porque na hora que eu pisei, que eu vi as coisas grandes, quando eu entrei dentro da Pinacoteca eu comecei a chorar, eu falei assim: “Eu gostaria que alguém da minha família estivesse vendo aquilo que eu estou vendo, com os meus olhos: o tamanho da grandeza da área cultural que tinha aqui”. Então eu fiquei muito emocionada. Então, quando eu fui ao MASP, eu comecei a me organizar, fazer passeios noturnos, culturais, caminhada noturna e toda quinta-feira eu ia fazendo e ia conhecendo a arquitetura. Então, descobri onde que Monteiro… a casa de Monteiro Lobato e eu fiquei encantada, Monteiro Lobato é tão distante de mim, em Brasília era só nos livros, então São Paulo me colocou mais próximo dos livros. Então, pessoas que você estudou, que eu estudei, eram tão distantes, eu vi a casa, coisas que eu vi só pela televisão e fui conhecendo a arquitetura, eu fiquei apaixonada por toda a cultura de São Paulo. Eu ia em tudo, tudo que era de graça, pegava fila pra ir, fui conhecer Sala São Paulo, eu nunca paguei nada, nem um centavo. Quando eu vim para cá eu me programei, eu vim com recurso para eu passar dois anos e meio de uma forma que eu conseguiria sobreviver sem trabalhar, se eu não conseguisse emprego, então eu fui me organizando, então eu vivia com pouquíssimo, eu nunca pedi dinheiro, eu nunca fui em fila de comida, mas eu vivia comendo, comia nos lugares, mas o que achei interessante que tinha para todos os gostos e todos os bolsos do mesmo lado, então eu poderia estar dentro do mesmo espaço, que São Paulo abre essa parte cultural, em Brasília eu não teria condição financeira. Abriu a porta do mundo, então aqui sim eu fui conhecer a comida indiana, a alimentação peruana, a mexicana, todas, assim: daquele que vende no meio da rua, ou aquele restaurante mais glorioso que tem na cidade então e aqui deu essa outra oportunidade de viver com pouco ou com muito ou com quase sem nada. Então, a cidade foi me mostrando essas outras possibilidades e tanto essa parte da riqueza, da cultura, que eu fiquei encantada e eu tinha também a preocupação de como eu vou me estabilizar nessa cidade e comecei a ver muitas ‘armadilhas’, que também tem. Então, ao mesmo tempo que ela é encantadora, ela também é sofredora e eu vi essa multidão de pessoas no meio da rua e próximo onde eu estava morando uma pessoa sem uma perna, sem um olho, todo machucado, no meio da rua, ele não consegue se locomover, porque ele não tem muleta nem uma cadeira de rodas, no meio da rua dias, com urina, com fezes. No Carnaval as pessoas passavam por ele e ainda pisavam na comida dele. Ele simplesmente só levantava com a mão, para dizer que tinha um ser humano ali. Isso eu vi de frente à minha janela, aí eu peguei o meu travesseiro, o meu cobertor e fui lá, escorei a cabeça dele, que estava machucado e o cobri. No outro dia ele estava lá de novo, aí eu vi que ele estava cheio de fezes e já estava dando bicho, ninguém queria levá-lo, eu liguei para o SAMU: “É população de rua? A gente não pega”, ninguém queria pegar e aí eu falava: “Por que não vem buscar, por que ninguém quer cuidar dele?” Aí as pessoas falavam assim: “Aqui nessa cidade é assim e isso aí não tem jeito, ninguém consegue resolver, não tem jeito, nós já estamos é cansados”. Aí eu falei: “Mas eu não estou cansada, nós temos que atender”. Eu peguei, falei para ele se arrastar até um lugar mais afastado, dei papel para ele, dei roupa para ele se limpar, para alguém socorrê-lo e eu liguei para a polícia e falei: “Vocês tinham que socorrer essa pessoa, senão ele ia chegar a óbito. Se ele morresse eles iam me conhecer, São Paulo ia saber quem é Luciene”. Foi que foi o socorro, aí eu consegui uma muleta, foi que pegaram, o levaram para um lugar que ele é cuidado, ele foi cuidado em um lugar que cuida e a partir desse dia que eu vi isso eu comecei a ver essas pessoas, porque as pessoas falavam para mim que quem estava em situação de rua eram pessoas muito perigosas, que elas podiam me roubar e fazer coisas comigo, mas quando eu estava andando à noite, quando eu saía do teatro, de alguma coisa às vezes essas pessoas que me acompanhavam e falavam, às vezes: “Por que você está chorando?” Porque às vezes eu chorava sozinha, que eu tinha medo. Ao mesmo tempo que eu estava sozinha, feliz aqui, mas eu tinha muita saudade da minha família, então eu chorava de saudade e às vezes eles falavam assim: “Não chora, não. Eu também tenho saudades da minha, às vezes eu choro” e aí alguns falavam. Aí eu fui participar, eu tinha que fazer alguma coisa a mais pela cidade e eu entrei em um movimento de saúde, como em Brasília, eu fui secretária de três secretarias de estado de saúde, eu trabalhei no gabinete de saúde, como secretária de secretaria de estado. Tanto como antes eu trabalhei ‘na ponta’, lá com os pacientes, cuidando da alimentação, até o estratégico como secretária de secretaria. Eu tinha esse cuidado, então eu fui para o lado da saúde, para poder ajudar essas pessoas em situação de rua. Comecei a ficar no movimento, tinha reunião e tudo, tinha demanda, mas em uma conferência da saúde eu conheci o Darci, Darci da Silva Costa, ele é o coordenador nacional do Movimento da População em Situação de Rua e também o Conselheiro da Saúde e alguém me apresentou para ele e falou e contou para ele da minha história e da minha experiência com uma pessoa de rua, que eu tinha chamado um monte de polícia para cuidar da pessoa e aí me apresentou pra ele e aí ele falou: “Eu tenho uma história de rua, uma trajetória. Você quer ir lá no Viaduto Pedroso conhecer um projeto?” e eu falei: “Tudo bem”, mas nesse dia que eu olhei para ele eu vi, eu senti, que ele olhou para mim e eu olhei para ele, uma coisa diferente: eu vi uma pessoa calma, segura, que me passou uma confiança e ele também, só que eu não vim logo em seguida, eu levei uns quinze dias, ele achou que eu nem vinha e vim conhecer o Cisarte. O Cisarte é o Centro de Integração Sociocultural pela Arte, Trabalho, Educação e Saúde e eu vim conhecer esse projeto e eu fiz uma entrevista de uma hora, com o Darci, para entender o que era o projeto e o que ele queria. Nessa entrevista ele me falou todas as necessidades dele. A primeira era organizar juridicamente o Cisarte, ele não existia juridicamente, então ele precisava ser registrado e eu tinha que organizar, formar essa associação. Essa era a principal e também de colocar isso tudo para funcionar e ser reconhecido e várias outras coisas.
P/1 - Que ano foi isso?
R - Em 2019, abril, eu fiz essa entrevista com o Darci, eu cheguei em São Paulo em abril de 2018. Em 2019, em abril, eu já estava aqui dentro, já entendendo, fazendo essa entrevista para eu entender e através dessa entrevista eu fiz a degravação e o diagnóstico como eu vou levantar, então nesse momento eu li um projeto que tinha escrito, que era um modelo, a metodologia deles de implementar, achei super interessante, porque esse projeto era deles, era da própria rua, mas eles não conseguiam administrar. Por que eles não conseguiam? Porque eles não são administradores, eles não estudaram para isso. Eles conseguiam saber, eles sabem o que eles querem, eles sabem que querem sair da rua, têm toda a consciência disso, que precisam de suporte, mas não eram administradores e eu peguei como um desafio, na realidade ele me desafiou e eu falei que esse ia ser o maior desafio da minha vida, esse projeto, por ser tão grande e com tanta gente que eu teria que trabalhar e um grupo de pessoas extremamente complexo, porque a primeira frase que eu usei... que eu vi quando eu cheguei aqui no estado é que “não tinha jeito”, e tem jeito, sim e a partir…
P/1 - Quem disse isso?
R - A sociedade civil. Que essas pessoas que estão aí não tem jeito mais para elas. E eu comecei a analisar e entender como que estava funcionando isso aqui e o que precisava, então não tinha nada, de fato, aqui era apenas um espaço que eles estavam tentando, tinham feito algumas oficinas, mas depois acabou e foi embora todo mundo e estavam algumas pessoas aqui, o Darci e mais algumas pessoas, estava mais parecendo com uma ocupação do que de um projeto, de fato, social. Aí eu comecei a organizar com eles, eu fui escutando cada um, fui ouvindo, fui ouvindo e comecei a organizar com o que tem. Não tem nada, não tinha nada, não tinha vassoura, nem óleo, nada. Mas como eu comecei a organizar? No mínimo é limpar, vamos tirar a poeira. Só tinha um espaço vazio e sujo e com um monte de gente na rua querendo utilizar esse espaço e eu não tinha nem… a gente não tem verba, não tinha dinheiro e também não existia juridicamente, como que eu vou na prefeitura pedir ajuda? Ninguém vai ajudar. Ninguém ia ajudar, porque você não existe juridicamente, sem o CNPJ não consegue nada. Então eu comecei a limpar o espaço, fui limpando o chão, limpei, limpei, eles vinham no espaço, comecei a receber as pessoas, comecei a mostrar para eles apenas um espaço, que a gente poderia construir juntos. Aí foi ficando limpo, o espaço foi ficando agradável e a gente começou a fazer juntos, eu fui identificando os talentos deles. A primeira coisa que eu fiz foi saber quem eram essas pessoas, para eu chamá-las pelos nomes. Então eu coloquei uma lista de visita. No começo chamava-se lista de visitas. Eu comecei a chamá-los como visitantes e comecei a pedir para colocar o nome, para eu chamar pelo nome, porque eles vinham com apelido, todos apelidos e eu identifiquei que eles já não tinham identidade, então era uma forma de eu saber o nome deles, como em uma empresa. Em uma empresa você sabe o nome de todos os seus colaboradores. Então, se você tem um negócio, você tem que saber o nome do seu cliente, então eu fui identificando. E aí eles começavam a colocar o nome de visitante, achei legal. Eles colocavam o nome e aí comecei a chamá-los pelo nome: “Francisco, Carlos” e aí eles falavam: “Nossa, tantos anos que ninguém me chama pelo nome, só me chama pelos apelidos” e aí eu vi que era legal e eu deixei, então eu já comecei o primeiro resgate, o nome, todos aqui chamam pelo nome e depois eles chegavam e queriam sentar no chão. “Não, a cadeira”. E eles começaram a sentar na cadeira, que na rua eles sentam só no chão. Então, a partir do momento que ele entrou aqui dentro ele já não está mais na rua, aqui é o mundo real. E fui introduzindo isso através de estratégias, de ferramenta da administração, de experiências, de conhecimentos de todas as organizações que eu já trabalhei e fui organizando dessa forma, tratando essas pessoas como as melhores pessoas e tentando entender o que eles querem, eles estão em busca de que, o que os levou para a rua? E como ele sair dessa situação? Como ajudá-los a sair? E fui estudando, entendendo. Tudo que eu aprendi de população de rua foram eles que me ensinaram, nunca trabalhei em nenhum serviço aqui em São Paulo na prefeitura, nunca prestei serviço para eles, nunca trabalhei num centro de acolhimento, nada. Eu não tenho nenhum vício e nunca trabalhei com população de rua em outro estado, de alguma forma, dessa forma, diretamente e eles foram me ensinando e eu fui perguntando para eles. O projeto é deles, então eu vou administrar para vocês. O projeto não é meu, é da rua, são eles que usam, quem vive a situação é quem sabe. Então eu comecei a administrar como um desafio. Eu peguei um projeto sem nenhuma verba, nenhum recurso financeiro, como eu peguei já a organização falida, então é um projeto sem nenhum... por que ele é o maior desafio da minha vida? Primeiro que ele não tem dinheiro e foi criado, ele já nasceu sem nada, que foi criado pelas próprias pessoas da rua, então não tinha nada, mesmo. Por isso que é isso. Para provar que, mesmo com pouco dinheiro ou com quase nada ou sem nada, você consegue fazer coisas. Se vocês derem as mãos com várias pessoas juntas, com um pouquinho, ‘de grão em grão’ você consegue fazer grandes coisas. Então o Cisarte veio para provar isso. Com poucas mãos, a própria rua, com pouquinho consegue fazer coisas. Então, não tinha vassoura, então a maloca trazia a vassoura. Não tinha televisão, eles trouxeram uma queimada e eu: “Essa não serve” e aí, como eu não conhecia ninguém em São Paulo, como é que eu vou pedir coisas para as pessoas ajudarem? Eu não conheço ninguém e só tinha a rua e aí eu peguei assim: “Vou pedir para o sindicato, vou pedir para os movimentos”. Aí um dava um quadro de sabão, o outro dava um papel higiênico, o Sindicato dos Médicos ajudou em algumas coisas, aí o outro foi ajudando, mais produtos de limpeza, pedi doação, aí ajudava e aí foi ficando mais bonito, eles viram que era bom estar limpo, estar aqui e eles começaram a frequentar e eu tinha os computadores aqui, já e coloquei para entender, fazer curso e aí eu fui entendendo, escutando: “Por que você foi para a rua? O que aconteceu com você? E pra sair, como é que é?” Então eles são os problemas e eles deram a solução e aí foram criando as oficinas no Cisarte. Então, a gente não tinha cozinha-escola. Antes era uma cozinha sucateada, não tinha esgoto, era suja, feia, e nós conseguimos uma pessoa, um empresário que doava coisa na rua, cobertor, descobriu que a gente aqui tinha um espaço e veio perguntar para a gente qual é a maior necessidade e nós falamos: “A cozinha” e aí ele reformou, ele juntou um grupo de amigos, empresários e fez toda a cozinha para nós, aí conseguimos as doações e a partir daí começamos a dar aula. Eu comecei a dar aula de culinária, eu sou técnica, eu também sei fazer comida e aí foi o primeiro passo com eles, com o mundo real e aí eles já começaram a comer em pratos, talheres, igual toda família. Algumas pessoas acharam um absurdo a população de rua comer em prato e com garfo e faca. Pra mim isso é normal. Aí eles começaram a fazer aqui, em aula e eles sentavam e essa comida foi oferecida, compartilhada para ele, foi oferecida para ele não como uma doação, aquilo ali está sendo compartilhado, foi feito em aula, em formato de aula e está sendo oferecido, está sendo compartilhado com ele, mas ele está sendo atendido em uma mesa com garfo, por outra pessoa, ele está sendo servido, sentado em um lugar limpo e tudo isso de uma forma assim e ele viu que é bom e ele achou incrível, que ninguém nunca tinha feito isso com eles e aí nós fomos construindo juntos, isso é mundo real. Então, as pessoas comem sentadas, não é pegar uma marmita e colocar ali, para a pessoa estar ali no meio das fezes e às vezes no meio dos ratos, para ele simplesmente deixar ali e ir embora, isso aí não tira ninguém da rua, isso só perpetua, a pessoa precisa mais do que isso. Então o Cisarte vem nesse conceito de um conjunto de coisas de intersetorialidade e multidiciplinas, é isso que faz tirar a pessoa da rua, não é uma coisa, é um conjunto de coisas. Então, dentro do mesmo espaço tem um conjunto de coisas aqui que faz sair da rua. É ótimo quando você consegue unir esse conjunto de coisas, mas se você não tem condições e só tem uma parte, mas ainda mesmo só com essa parte você ainda consegue fazer muita coisa para, de fato, melhorar a vida daquela que está na rua ou até a saída dele. Então, o Cisarte vem nesse diálogo. Quando a pessoa entra aqui dentro ela não é mais a extensão da rua. Como é que ele vem para cá? Ele vem vindo. São eles que chamam entre eles, eu nunca convidei ninguém para vir, eu nunca fiz propaganda do Cisarte para população de rua: “Venha para cá, que hoje nós vamos ter uma festa”. São eles que falam com eles. Tem seleção de pessoas para vir aqui? Não, é porta aberta, entra do jeito que estiver. Agora a pessoa, é ele que decide, a decisão é individual dele, se ele vai ficar ou não aqui, aqui é porta aberta. Se ele gostou ou não, essa é uma decisão individual. A pessoa vem, é aceita do jeito que está e aí a gente vai apresentar o projeto, como que funciona, o que é aqui até a porta da saída, para a empregabilidade, para participar. Quando vem pela primeira vez ele tem o tempo dele, o ambiente tem um clima organizacional e uma cultura já foi criada para recebê-lo. O espaço remete um lugar de paz, ele não tem uma comunicação violenta, é um espaço que resolve conflitos, não cria conflitos, aqui não é pra criar conflito. Eu falo com a rua: “Aqui é outra ‘pegada’, aqui é ‘papo reto’, aqui não é ‘mimimi’, aqui não precisa ajoelhar, aqui não precisa chorar. Aqui é outra ‘pegada’, aqui é para ele se organizar mentalmente, profissionalmente, espiritualmente, para ele saber que rumo que ele vai tomar na vida dele. Como você quer escrever a sua história a partir de agora. Até ontem foi assim e agora? E eu falo para ele: “O único responsável por você é você mesmo, e a primeira coisa: não me chama de tia, primeiro que eu não sou sua tia, segundo alguém quis te infantilizar e esse modelo nunca te tirou da rua, são pessoas querendo tutelar a rua, então aqui o Cisarte é um espaço de cidadania, de resgate, de justiça social”. Aqui a gente ensina para eles os direitos, que também tem o observatório antirracismo, porque tudo é ensinado, tudo na rua é muito mais acentuado, inclusive o racismo, a violência, o machismo. Essas pessoas, tudo neles é mais acentuado ainda. Então, imagina isso tudo dentro do mesmo espaço! Então, tem que estar, igual eles falam: “Tem que ter um...”, os outros falam, quem não sabe, ‘um jogo de cintura’; outro fala que eu costuro muito bem, mas eu falo: “Tem que ter uma gestão de pessoa muito boa, uma administração, para você colocar tanta gente junta com todas as diferenças, para não criar conflito. Homens, mulheres, senhores, idosos, negros, brancos, todos em situação de rua, com suas diferenças, no mesmo espaço, porque antes a sociedade, os modelos dos serviços que têm, oferecidos pela prefeitura, já é para separar, são albergues só de homens, só de mulheres, só de trans, separa mães de criança, toma tudo. Aqui não. Aqui o Cisarte é onde eles se relacionam. Eu trabalho com a inteligência relacional. As pessoas, não pode separar. O ser humano tem que se relacionar com o outro, mesmo com a diferença do outro, mesmo não gostando. Então, aqui eles aprendem a lidar isso com o outro, porque esse é o mundo real, para eles irem para empregabilidade, para o trabalho, eles vão trabalhar com pessoas diferentes, de humor diferente, de cor diferente tudo deles, e eles vão ter que lidar com essas pessoas sem agressividade. Não gostei, vou meter porrada? Não. Não gostei, vou quebrar? Não. Não é assim. Ficou com raiva, joga no chão? Não gosto de você, dou murro? No mundo real as pessoas não saem dando porrada, não é assim, porque na rua há uma violência muito grande entre eles. Por quê? Ao mesmo tempo tem uma disputa, porque o mundo de sobreviver é ali, é a natureza, vivem os fortes, se você mostrar que é fraco vai apanhar todo dia, porque é um outro universo. Eles disputam espaço, comida, território, tudo.
P/1 - Lu, eu estava te perguntando… O que você mais escuta?
R - Hoje o que eu mais escuto da população de rua são os maus tratos que eles recebem dentro dos serviços de acolhimento. Hoje é o maior número de reclamação. A forma que eles são tratados é muito... eles falam que não os tratam como gente, sempre é uma comunicação muito violenta.
P/1 - E você comentou que eles dão a solução para sair do caminho… para sair da rua. O que você descobriu em relação a isso?
R - Então, porque a solução é o que ele quer e eles estão em situação de rua e eles querem sair, essa saída, eles querem sair da rua, eles mesmo falam o que eles querem. O que a pessoa precisa? É de um quartinho, é de um emprego, mas tem a rua e a metodologia da rua é diferente da nossa, o mundo real, então aqui é isso.
P/1 - Aqui é um espaço de conversa?
R - Aqui é o espaço de diálogo, que vem ‘quebrar’ isso. É para eles conversarem entre eles, então aqui já as pessoas se conhecem. Então, quem sabe mais, dá aula. O que acontece? Às vezes ele não aceita a ajuda do outro ou o outro ensiná-lo igual a ele, porque ele vê o outro como se ele estivesse se vendo, então é feio. É feio estar em situação de rua, morador de rua, a pessoa está em situação de rua. Como é que eles falam? “Isso é uma coisa feia, eles têm mau cheiro”. Então, como é que a pessoa vai gostar do outro, se ele se vê no outro? Quando hoje eu falo: “É difícil, como é que ele vai cuidar do outro?” Isso leva tempo, até dar ______. E quando ele já está bem, ele já saiu daquela situação, já reduziu o dano, ele já consegue se organizar, está bem arrumadinho, ele vê o outro ali, sujo, ele não quer nem olhar, porque aquilo lá ele já passou. Por isso que eu falo assim: “Eu vou peneirando os talentos”. Então, aquele que gosta do outro humano vai selecionando, pra cuidar do outro, mas às vezes não é culpa dele não gostar. É o sofrimento que ele já teve, foi tão grande, que ele teve que arranjar uma ‘capa’, pra continuar sobrevivendo na rua. Tem que ser forte. E é isso. Então, a rua, quando a pessoa fica nessa situação, além de ficarem desorganizados, eles ficam desinformados, a informação não chega pra eles. Por quê? Ele não tem celular, contato. Eles não podem entrar em lugar nem pra comprar o Corote, têm que dar o dinheiro pro segurança. Eles ficam desinformados. Imagina: pandemia foi um caos. Eu trabalhei a pandemia toda aqui, abri com eles, porque eles precisavam fazer cadastros pra eles receberem benefícios e tudo estava fechado. Essas pessoas que estão em situação de rua têm as mesmas necessidades de qualquer outro ser humano, tanto de moradia, de fome, de sede, de dores, de angústias, de tudo. Essas pessoas têm as mesmas necessidades. Uma vez que cai nessa situação... é o maior mito falar que foi pra rua porque quer. Ele até pode falar um dia que ele estiver muito ‘doidão’, que está lá, porque já acostumou tanto estar lá, que vai falar, porque não vê outra saída. A pessoa vai pra rua com um problema, aí arranja mais mil. Ir pra rua é a última alternativa que o ser humano tem e pra sair dela é a mais difícil que ele vai ter. Até pra ‘quebrar’ os vínculos da rua, pra voltar, de volta, o caminho reverso é o mais doloroso também, porque ele vai recair, vai tentar, recai, cai, recai, e às vezes até o próprio sistema não ajuda. Quando vê que ele está indo bem faz ele perder a vaga. Às vezes ele está num abrigo, está bem: “Mas agora você já não é mais pessoa de rua, você já está andando bonito, já está arrumado”. Não dá tempo nem dele alugar o quartinho dele, já está assim, aí ele fica tão desgostoso, ele ainda está se organizando mentalmente, ele recai e perde tudo de novo, porque as pessoas não querem dar essa oportunidade. É esse tempo todo assim: ele vai, cai. Um ‘elevador’. Poucos conseguem sair, tem um modelo que parece que está preso. Então, ele sabe onde é a melhor comida. As pessoas às vezes estão presas no sistema, se ele passar, pra ele procurar um emprego ele tem que ‘abrir mão’ de uma refeição, mas aí ele vai procurar um emprego, mas ele está preparado pro emprego? Na cabeça dele acha que o emprego vai resolver todo problema dele. Será que ele está bem? Ele tem saúde mental pra trabalhar? Está bem profissionalmente? E os danos? Porque colocaram na cabeça que todo mundo que está na rua é porque é desempregado e vagabundo e não é isso. E eles colocaram na cabeça que o emprego vai tirar da situação. O emprego é a última coisa, talvez. A primeira coisa que ele precisa, às vezes, é da moradia. Depende, cada um é único. Primeiro emprego é pra aquele que já está bem. Então, a rua é muito heterogênea. Então, você não pode juntar todo mundo e colocar dentro de um lugar e falar... cada um é único. Tem pessoa que chega aqui desesperada atrás de um emprego e ele ainda está precisando se cuidar. Ele precisa cuidar do dente, da parte dele, precisa de um advogado, de um médico, tomar vacina. O emprego depois. Precisa se organizar primeiro, estar bem. Então, o emprego não é um mágico: “Agora consegui emprego, vai ser...”. Não é assim. Não é bem assim. Às vezes até pode piorar a vida da pessoa, dependendo do estágio que ele está. Pode ser uma condição. De repente ele está bem, ele vai pro emprego, chega lá é destratado, maltratado, ele volta pra rua de novo. A sociedade ainda não está preparada pra cuidar da população de rua, dessas pessoas. Ainda falta, precisa de informação. Precisa mais pessoas, vários espaços como o Cisarte. Essas pessoas não têm pra onde ir durante o dia, não têm o que fazer. Precisam atividades, ocupar o tempo delas. Atividade vai melhorar a saúde dele, mental. A atividade que ajuda a saúde profissional dele. É no tempo dele. As pessoas são livres, têm autonomia, sabem quando elas estão bem e quando não estão, vão buscar ajuda, têm voz, sabem falar. Eu falo que as pessoas em situação de rua são gente, não são ‘filhos de chocadeiras’. Têm família, mãe, emprego, são profissionais incríveis. Tem pesquisadores, doutores na rua. Tem agora, um recém que passou por aqui, formado em Bioquímica... Biofísica, na Universidade da Califórnia. Tem músicos. Milhões de histórias. Eu falo: “Essas pessoas são gente”. O Cisarte faz esse resgate das pessoas. Um exemplo: a cozinha. A nossa cozinha é formato de cozinha-escola, mas a comida, quando ele está lidando com aquilo, remete, esses sabores, experimentar o gosto. A primeira vez que eles foram fazer o curso eles passaram a mão, assim, na mesa de inox, ouviram o barulho da panela de pressão, pegaram sabão pra lavar uma panela e falaram: “Há tantos anos que eu não pego nisso”. E quando começou a arear uma panela, pra ficar bem brilhosa, lembraram da avó, da família: “Nossa, minha avó fazia isso”. Então, diante disso, várias pessoas voltaram pros familiares e me chamam assim: “Dona Lu, tira uma foto, manda pro meu pai, pra ele ver” e o pai ver e mandar o dinheiro da passagem, essa pessoa retornar pra família, nem sabia que estava aqui em São Paulo, há mais de ano e hoje é um empreendedor, tem uma imobiliária. Esse é um caso de sucesso, são vários casos de sucesso que tem. Outros que estavam aqui cortam cabelo, ficou muitos anos na rua, onze anos na Cracolândia, lá dentro. Veio pra cá, começou a cortar cabelo de um, de outro. Um casal. Hoje eles retornaram pra família, estão no Espírito Santo, cuidando de sítio, super bem. Um casal, onze anos ficaram na rua. É assim. Teve uma outra menina aqui, catava latinha. Ela chegou aqui: “Dona Lu, eu quero ser empreendedora”. Aí eu falei: “Qual seu grau de instrução?” Ela disse: “Eu tenho ensino médio” “O que você gosta?” “Eu gosto de tecnologia”. Eu disse: “Você quer ser empreendedora?” Ela: “É tudo que eu quero. Vou começar a fazer cursos aqui”. Ela começou a fazer curso de serigrafia, fez o curso aqui de japonês, não aprendeu a falar japonês, mas o curso de japonês abriu outras portas pra ela. Aí ela veio fazer programação, ela fez o curso, aí ela veio fazer entrevista pra emprego. “Você está fazendo o quê?” “Agora eu estou fazendo curso de japonês” “Que legal!” Mas mesmo em situação de rua assim ela foi trabalhar de programadora. Aí quando ela conseguiu emprego, ela pagou um ano de aluguel pra outra pessoa que ficou aqui. Saiu. Hoje ela é programadora, ela já escreveu um livro, também mora no interior, de vez em quando vem aqui, visitar a gente. Tem um outro, o Zé, ele é incrível. O Zé aprendeu a fazer serigrafia, estampa em camiseta. Esses dias ele só ficava no computador. “Zé, vamos fazer o curso. Vamos, Zé” “Hoje não, Dona Lu, outro dia eu vou. Estou aqui na internet”. Vai, depois de umas três vezes ele foi. Ele fala que eu o ‘sequestrei’ pra fazer o curso. Aí ele fez o curso de estampa em camiseta, foi, eu fiz um kit pra ele: “Vamos tentar, vamos vender agora, já que produziu vamos vender. Economia solidária. Vamos lá pra Paulista, vender na Paulista”. Aí fiz um kit, uma mochila, coloquei umas camisetas bem bonitas que ele fez, esperei ele voltar, não veio, voltou no outro dia. “E aí, Zé? Como é que foi?” “Tenho duas notícias pra te dar: uma boa e uma excelente” “Qual a boa?” “Vendi tudo” “E a excelente?” “Gastei tudo” “Mas como você gastou tudo? Que a gente tem que dividir, é economia solidária, como é que vai ‘tocar’ o projeto? Tem que comprar material”. Aí ele falou: “É” “Como é que você gastou o dinheiro?” “Tomei duas cervejas Stella, comi dois temakis e dormi num hotel. Quando foi duas horas da manhã, Dona Lu, eu levantei. Muitos anos sem dormir na cama, perdi o sono e fiquei pensando na minha vida, o que eu vou fazer da vida”, pra me pagar, né? Aí eu falei: “Vai fazer de novo”. Qual a minha intenção? Não era se ele ia vender, ou não, mas ver o compromisso, a responsabilidade e aí ele foi e vendeu tudo de novo e eu identifiquei que ele era um excelente vendedor e ele começou a vender até trezentos reais por dia. Aí ele levou já um ______ e foi fazer ao vivo já, lá na Paulista. E aí passou um belo de um empresário e o contratou e ele foi pra ser gerente de uma empresa multinacional, que trabalha em outra área e está empregado. Então, esse é mais um exemplo. Pessoas da rua, que saíram daqui de dentro. Então, aqui acontece muito. Pulsa conhecimento, acontece muita melhoria, muita gente já saiu e outros eles falam que melhorou a vida deles consideravelmente. Tem muitas pessoas aqui de ‘saúde mental’, espectro de autismo, tudo aqui tem uma diversidade, uma gama de pessoas aqui, mas todas com muito potencial. Quando elas chegam elas não sabem nada, elas perdem os talentos. Elas não falam o que sabem fazer. A maioria não lembra. Aí eu vou identificando. E às vezes eles falam: “Como que você descobriu isso, que eu sabia isso?” Às vezes testando, com experiência, coloco pra fazer uma atividade, às vezes eu vejo o comportamento. Então, aqui eu avalio o desempenho deles. Eles erram muito na parte de comportamento, porque lá na rua ele tem um outro comportamento. Então, aqui eu vou ensinando a eles se comportarem melhor. Então, vai para um emprego. Vou citar um exemplo: é de limpeza. Você terminou de limpar o espaço, o chão, você tem que pegar seu material, cuidar, colocar no lugar correto e sentar numa cadeira. Não pegar, está cansado, parar e sentar no chão, como se estivesse na rua. Vai no automático. Então, eles perdem muito emprego por comportamento. De repente ele está aqui, na empresa e resolve e senta no chão, pra comer. Ele vai ser demitido. Mas então esses comportamentos a gente vai ensinando aqui, que só senta na cadeira, então aqui ele não pode ficar descalço. É mundo real. Comportamentos que a gente vai lidando, de um cuidar do outro, vai sendo ensinado. Então, tem pessoas aqui que não gostam do outro, que falam que não gostam de gente, trabalha mais individual, sozinhos. Tem pessoas que passaram pelo sistema prisional muitos anos, então a gente respeita o espaço da pessoa. Essas pessoas, até ressocializar novamente leva um tempo. Então, eu consigo identificar. Então, eu o deixo no tempo dele. Ele não precisa ser tutelado. Eu não preciso nem tutelar, nem rotulá-lo. Nem de falar o que de pior que ele já... de ruim a gente já está vendo. Vou trabalhar o que tem de melhor, porque ficar pior eu ainda falo: “Pode ficar”. Então, se não buscar uma saída, um meio... todas as frases que tem aqui foram escritas por eles: “Desgraçado do homem que se abandona”. Então, a pessoa, quando está em situação de rua, fica abandonado, sofre mais ainda. Às vezes eles falam pra mim: “Eu sou tão covarde, que eu não tenho coragem nem de tirar minha vida”. A dependência é tão grande, que ele fala que dói a alma. Essas pessoas precisam ser cuidadas. O trabalho que o Cisarte faz hoje, que nós fazemos aqui, entre eles, é humanitário. Hoje essa população precisa ser tratada dessa forma, é um trabalho humanitário. Todas as secretarias, todo mundo junto, vamos tirar de fato, fazer, mostrar, tirar mesmo, porque se resolver a gente não vai ver. Lógico, zerar a pessoa de rua é impossível, mas diminuir uma boa quantidade dá. Aqui é o lugar que tem mais no Brasil, no país. São Paulo é onde tem mais pessoa em situação de rua, devido a falta de políticas públicas. Eu falo: “Hoje luta muito, hoje a própria rua está lutando por políticas públicas. Pra chegar alguma coisa pra eles tem que ser através de políticas públicas”. Agora foi aprovado pela primeira vez o censo pelo IBGE. Até então eles não eram contados. Só conta quem tem moradia. Então, se ele não é contado e não tem moradia, não tem verba pra tirá-los. Só tem a caridade. E essas pessoas precisam sair da rua. A rua não foi feita nem pra morar, nem pra viver. A rua é lugar de passagem, pra se divertir, pra andar nela. Não é pra você viver nela e ser morta nela. Não é isso. Essa é uma grande desigualdade que a gente vê aqui em São Paulo. A cidade tem esse lado encantador e tudo, mas é uma ‘faca de dois gumes’, tem o outro lado. Se a pessoa não tiver uma firmeza, se ela bandear pro outro lado ela vai pra um poço sem fim. Esse poço não tem fim. Vai caindo, caindo. Então, hoje na cidade de São Paulo essa é a realidade da cidade: muita gente em situação de rua e como resolver?
P/1 - O que você mais escuta dessas pessoas que estão _______?
R - A primeira coisa que eles querem é sair... eles se sentem muito maltratados nesses centros de acolhimento. Muitos ficam na rua, preferem ficar na barraca ou na calçada, porque é mais sanguíneo, eles não aguentam muito ser destratados, eles ficam... mas o maior sonho deles é sair da rua. De todos. A população, trabalhar com população de rua tem muita gente que trabalha, né? Eu falo: “Mas quantos você já tirou da rua? Trabalhar com população de rua é tirá-los da rua. Quantas pessoas já tiraram da rua?” Não é normal ver esse tanto de gente: idoso, criança passando as noites, frio, chuva, sol, como se fosse vegetando ali e adquirindo doenças na rua, adquire muita doença na rua também. E o que mais, hoje, me entristece é o preconceito da própria sociedade. O preconceito é muito grande. Eu sofro preconceito por trabalhar com eles. Muita gente vê essas pessoas em situação de rua como vagabundo, ‘nóia’, bandido. A sociedade os vê como um lixo. Está na rua porque quer. Esse é o maior preconceito, risco da própria sociedade. Eles não estão na rua porque querem. Então, tem uma questão que a sociedade não sabe como resolver, mas também não os quer, não os quer morando perto, não os quer de frente, pedindo, não os quer de forma alguma. Quer que extermine, mas é um ser humano. A sociedade só quer olhar a população de rua como a pior coisa, um defeito. Ela é culpada por estar ali. E não é isso. Quer jogar o problema em cima deles mesmos, que estão ali. Então, ele é o culpado de estar ali e está porque quer. E a maioria, muitos pensam que tem que resolver prendendo. Ou prende, arranja cadeia pra todo mundo, ou coloca trabalho pra todo mundo. Pega todo mundo, leva para um campo e coloca todo mundo trabalhando. Mas não é assim. Cada um ali é uma pessoa diferente, cada um tem um problema e tudo. Se todos, a sociedade e todo mundo pensasse de fato querer ajudar a sair e tirar da rua, tira, sai. Tem projetos incríveis que podem fazer e tirar. Eles precisam de atividade, escola, do dia a dia, ser acolhido. Essas pessoas saem, se restabelecem, muitas voltam com vínculos familiares, outras constroem outros vínculos, outros querem continuar vivendo no anonimato, mas de uma forma melhor. Ninguém quer viver dessa forma abandonada, nem aquele que tem saúde mental grave. Esses ainda é que ninguém olha pra eles. Porque ele come do lixo, ele não tem consciência nem de tomar um banho, de procurar... então, esse é banido. E quando você vai ajudar, as pessoas falam: “Por que você está ajudando essas pessoas? Que interesse você tem?” Eu, o interesse que eu tenho é que ela saia da rua. Se todo mundo tivesse o mesmo interesse que eu, não tinha nenhum mais na rua. Não só aqui no Brasil, no mundo. Tirar todas as pessoas. Por que tem que ser assim? Então, virou tipo banal, porque quando nascemos elas já estavam aí, na rua. Isso é uma coisa antiga, uma dívida antiga, né? Que está aí, está aí. E eu acho que não dá mais para continuar desse jeito, porque essas pessoas aqui já viraram uma outra população. E agora? Como que vamos fazer? Vamos aí.
P/1 - Quais são as atividades, oficinas?
R - Que tem aqui, pra eles?
P/1 - É, que vocês oferecem aqui, nesse espaço.
R - Aqui o Cisarte é bem dinâmico, a rua é muito dinâmica, o espaço também é dinâmico. Depende de como está a situação, tudo a gente vai mudando. Então, assim: atividades, temos temáticas, eles vão escolhendo, depende do período. Então, o que nós temos aqui fixo, agora: aula de culinária, curso de culinária, panificação, que eles gostam, que a alimentação e tudo é uma necessidade da natureza humana. Então, muitos querem ir pra cozinha, porque na hora que ele está fazendo comida ele pode comer. Olha a expertise dele controlar isso. Às vezes as pessoas em situação de rua comem muito, pra estocar, porque ele não sabe se vai ter aquela refeição amanhã. A comida está tão boa que, de repente, ele não sabe se vai ter uma comida gostosa, mais. Isso a gente controla aqui também, pra ele não passar mal, a gente vai ensinando. Então, ele tem que aprender a viver novamente na sociedade. Então, através de tudo, das oficinas. Só de entrar aqui no espaço, é um processo de aprendizagem contínua. Aí temos também a costura. Na costura, lá pode fazer artesanato, abre coisas, mexer com a mão, tapetinhos. Nem tudo precisa ter uma ferramenta. Então, às vezes, se a pessoa está muito em abstinência, por exemplo, o pessoal que é muito ligado ao alcoolismo, de AD e tudo, então está com a mão trêmula, eu o coloco num tapetinho, para ele melhorar a coordenação, porque aí ele não vai perfurar. Então, tem... e isso foi eles que… a gente vai identificando, que vai mais acalmando e a gente vai colocando. O maior redutor de danos que eu tenho hoje, que faz mais ele ficar mais tempo aqui dentro, é a inclusão digital, são as salas dos computadores. Eu tenho doze, quatorze computadores. Esse ele passa o dia todo. Por quê? Tem a mesma necessidade de todos. Então aqui é o único lugar que ele tem livre wi-fi, computador. População de rua tem Facebook, Instagram, eles tentam localizar familiares, eles têm uma vida, têm rede. Então, a parte da inclusão digital é fundamental para eles. Aqui eles aprenderam, a maioria que já frequenta aqui já conseguiu comprar celular, aqui ele aprendeu a usar o celular, a gente ensinou a abrir uma conta digital. Hoje a maioria que está aqui já recebe benefícios, todos já estão cadastrados, eles vão envolvendo. 99% dos que frequentam aqui já tem benefícios, estão envolvidos em outros e participam de atividades. Aqui também tem curso de inglês, japonês, tem as práticas integrativas, que são esses cuidados. Dentistas são cuidados, temos advogados, tudo voluntário. Não existe, não tem nenhum funcionário. A ONG nasceu de baixo pra cima, ela ainda está crescendo, não está completa, ainda está desenvolvendo. Então, vocês acham ainda bem novo em relação assim: eles só existem praticamente há sete anos, juridicamente há seis anos que está. Então, comparando com outras organizações que estão há trinta anos, nós já rompemos barreiras nesse trabalho, já fizemos grandes coisas aqui, e muitas quem pode falar melhor é quem frequenta o próprio espaço ou quem já saiu da rua. Esses são os maiores multiplicadores do que o espaço é, para eles. Temos também estampa em camiseta, tem uma loja que ele pode entrar, escolher, experimentar, sentir o cheiro, que ele pode vesti-la limpinha, já para ir namorar, para ir visitar um filho, para ir numa audiência. Ele paga um valor simbólico, porque isso é um resgate. Se ele não tem condições, tem um baú que ele pode pegar uma roupa, ele pode se trocar. Ele se espelha no outro. Ele fica no canto, fica olhando, vê que o outro está bom, também vai. Eu não sufoco, eu não fico... é livre, ele entra aqui e fica livre. Ele que me procura, as pessoas que vão procurando. Então, um vai aprendendo, então são cheios de multiplicadores aqui, respeitando sempre essa parte da autonomia. Tem roda de conversa, tem terapia plena que eles fazem, são cuidados. Tem Dia do Cinema. Tem passeios turísticos. Aqui também eles fazem desenhos, tem desenho realista, tem desenhos... desenhistas mais caricaturas, tem aula de música, tem dia da aula de música. Acho que, se eu esqueci alguma coisa, tem ali no mural. São várias atividades sempre. E de acordo com o que vai surgindo, agora eles solicitaram, eles querem aulas de empreendedorismo e de gestão financeira. Como lidar? Por quê? Eles nunca receberam tanto, assim, nenhum benefício igual ele está recebendo agora. E o que fazer com esse dinheiro? Que antes ele vivia sem ele. Então, eles estão... eles não têm noção do valor também, aí a gente está ensinando, né? Então, uns querem comprar casa, outros querem comprar carro, moto, com esse dinheiro. Dá, mas ele vai levar anos juntando. Então, pra dar uma realidade, o que ele pode fazer com esse dinheiro pra ele virar o mês todo? Ele se sente rico quando recebe algum benefício, porque antes ele não tinha. E aí, qual o primeiro propósito quando recebe um benefício? Alugar um quartinho. Todos eles querem alugar algum lugar. Primeira coisa: sair da rua. Todas as vezes. Depois as outras coisas ele vai continuando, né? Porque até o processo do quartinho ainda é muito difícil. Porque quando ele vai para o quartinho, o dinheiro só dá para pagar o quartinho. Não dá para ele comer. E aí ele tem que ficar na rua, atrás das ‘bocas de rango’ que eles falam. Ou nos restaurantes, pedindo comida. E aí ele está arrumado, se ele tem um quartinho, ele toma banho, ele veste roupa, aí as pessoas não querem dar para ele. Aí ele tem que andar sujo, com uma roupa suja, pra comer? E aí ele fica sem comer, aí ele fica triste, recai e volta pra rua de novo. Por quê? Porque a sociedade colocou que pessoas na rua têm que estar sujas também. Se ele está limpo, ninguém vai querer dar comida pra ele. Só que nós temos cinquenta, quase sessenta mil pessoas em situação de rua, aqui em São Paulo. Só que elas passam por você, você nem percebe. Houve uma evolução, há um outro modelo de pessoas. Não é a mesma pessoa da década de setenta. Então, tem jovens, mulheres, que passam assim, tudo. Não necessariamente você tem que estar com fezes ou urina no meio de uma calçada, para estar em situação de rua. Então, assim: são várias pessoas. Então, assim: além de ser heterogênea, várias pessoas, né, diferentes as pessoas que estão em situação de rua, que passam até por a gente na rua, que você nem percebe que ela está em situação de rua, porque ela está cuidada. Então, não necessariamente está em situação de rua é só aquele que está sujo, descuidado. Tem muita gente que está em situação de rua, mas ela está cuidada, que a sociedade não consegue ver. E ele precisa de ajuda também. E é onde que as pessoas não querem ajudar. Às vezes, se ele está na fase da saída, eles não entendem como tirar as pessoas. Ninguém está tirando-os da rua. Aí ele volta, recai de novo: “Porque na rua eu como, eu bebo, eles me dão as coisas”. Vê como é complexo pra sair da rua? Ele tem que ‘quebrar’ vínculos. Às vezes ele constituiu família, tem que sair com família da rua. Então, cada um é único. Às vezes tem aqueles que ainda estão... quando ele vai para a rua, ele adquire muito... as pessoas não estão na rua por causa da droga, nem por causa do álcool. É mito! Eu conheço muita gente que usa droga e bebe álcool e está dentro de casa. Então, não estão na rua por causa disso. Na rua, ele adquire outros fatores para sobreviver e um deles são as substâncias psicoativas. Então, a questão de sobreviver, ficar dia sem comer e esquecer que está vivo. Vai pra rua com um problema, lá arranja mais mil.
P/1 - Se você puder contar um pouquinho, rapidamente, como foi o nascimento desse espaço, um pouco antes de você chegar, até. Você estava contando.
R - Uma amiga minha, uma professora do Mackenzie fala: “O Cisarte, antes de Luciene chegar, e depois que chegou”. Eu sou um ‘divisor de águas’ no espaço. Esse espaço foi conquistado pela própria população de rua. O que acontece? Em 2004 teve em São Paulo uma chacina na Praça da Sé, onde mataram sete pessoas de rua a paulada, e estava... era uma milícia junto com os comerciantes. Nenhum crime, até hoje, ninguém foi preso devido a isso. Nesse período, a própria população de rua teve voz, se uniram e nasceu ali, naquele momento, um movimento nacional de população em situação de rua. E a partir desse momento eles se organizaram e tiveram voz junto com a sociedade. E eles lutaram, aí ficavam em um lugar, em outro, debaixo de ________, aqui em São Paulo, essa própria população se encontrando. Em 2016, eles conquistaram esse espaço, que é esse viaduto, que já foi albergue por uns quarenta anos. E aí eles conquistaram esse espaço pra ser a sede nacional do movimento. Só que com a sede nacional do movimento, eles acharam um espaço grande. Então, ao mesmo tempo nasceu o Cisarte deles, né? “Vamos fazer um projeto aqui na sede e um projeto a nossa cara”. E nasceu como eles. A ideia foi escrita. Um projeto que chegaram a fazer até umas oficinas, mas depois eles ficaram sós. Foi embora. Acho que veio uma universidade e fizeram umas oficinas, depois foi embora, acabou e não ficou mais ninguém. Ficou praticamente sem nada, só tinha um espaço. Quando eu cheguei, em 2019, já cheguei nessa, pra organizar. Os dois primeiros anos foram os anos de luta deles, só deles. Em 2019 eu chego pra organizar pra eles e isso aqui fica sólido. Hoje o Cisarte é uma organização sólida. Ela já é reconhecida em vários lugares e o nome Cisarte é uma marca forte. Diversas organizações... aqui é um grande campo de pesquisa. Nós somos pesquisados por muitas universidades daqui e de vários países. Mas eu sempre falo, ressalto muito que não use a gente, a população de rua, como objeto. Eles são os protagonistas, eles são o sujeito. Então, eu tomo muito esse cuidado, para não deixar explorar essas pessoas aqui dentro, como administradora. Então, eu cuido, zelo por eles, pela imagem deles, de nos ajudar. Eu preservo para não perpetuar a situação dele e sim sempre a busca da saída, sempre da melhoria dele. Tem essa preocupação. Então, hoje a gente tem aqui a USP, tem a PUC, tem os alunos do Mackenzie, tem Cruzeiro do Sul, e outras, a UNIP. São pessoas que fazem estágios, que vêm estagiar, entender o que está acontecendo. Eu falo: “Vem ouvir ‘da ponta’, de quem sente. Só sabe o que é viver na rua quem viveu. Só sabe contar, falar da situação, aquele que viveu”. É muito difícil eu chegar aqui e contar sua vida para o outro. Então, o Cisarte, a vida dele são as próprias pessoas da rua. O presidente do Cisarte é o Darci. Então, ele passou pela situação de rua, trajetória de rua. Ele venceu essa situação, ele venceu as drogas, ele foi para o movimento na rua, uma atividade ajudou a reduzir os danos e esse conhecimento que ele teve, as coisas boas que o ajudaram, ele colocou tudo dentro do projeto também. Então, ele sabe o que é ser maltratado, ele conhece o que é um serviço, ele conhece o que é uma droga, ele sabe quando você sai da rua, mas a rua não sai da pessoa, tem as sequelas que ele vai levar para sempre. O próprio projeto, o diretor, o presidente é uma pessoa da rua. Então, ele conseguiu organizar um movimento, ele coordena esse movimento. Hoje é uma secretaria do movimento, hoje ele está na cadeira do Conselho Nacional de Direitos Humanos, para defender a própria rua e ele conseguiu trazer o Ministro de Direitos Humanos aqui no espaço, na própria ONG que ele fundou, uma pessoa da rua. Então, hoje eu estou contando a história deles, que incrível que eu faço parte, que eu ajudei a construir também, junto com eles, porque hoje eu sou casada com um deles, com o diretor também, que nós juntos começamos e a gente não tinha nada, aqui no espaço. Nem eu tenho nada, nem ele. Ele: “Vamos começar juntos?” “Vamos. Se a gente ficar, nem que for pra morar na rua, vamos junto pra rua também”. Mas essa não era a expectativa minha, de ir para a rua e sim de tirá-los da rua. E desde quando eu estou no projeto, é isso que eu faço todos os dias. Eu creio que quase todos os dias sai pessoas da rua daqui. O que não sai, de alguma maneira, melhora. Várias pessoas, várias pessoas. Quantas? Mais de cem. Ah, o que já melhorou a condição, a qualidade de vida dele? Mais de trezentas pessoas, de fato, nesse tempo, porque é muito difícil tirar, é muito difícil você colocar essas pessoas dentro de uma sala de aula para estudar, por causa da abstinência, por causa do tempo. Então, foi tudo trabalhado no tempo deles. Então, os cursos, a duração das horas é reduzida, então tem o horário que ele vai tomar o café, o horário que ele vai almoçar, o horário que ele está aqui, foi tudo assim cronometrado, para não piorar a vida dele e sim melhorar as condições dele. Sempre na melhoria da qualidade de vida.
P/1 - E como você percebe as transformações que eles passam? O nível de organização.
R - É avaliado, eu observo, avaliação, eu tenho uma avaliação de desempenho, através do diálogo e da observação. Então eu falo: “Eu sempre estou in loco, eu sempre estou observando in loco”. Como eu tenho muita prática, em todos os meus trabalhos que eu tive, todos eles eu fui chefe, tive cargos de chefias, em todos eles eu supervisionei várias pessoas. Então, assim: na área hospitalar eu já cheguei a ser chefe de trezentas mulheres e até administrar um projeto para cinquenta mil pessoas. Então, eu cheguei a multidões de pessoas, então cuidar deles e entender que eles estão é o mesmo dentro de uma organização, um RH, uma gestão de pessoas. Então, você vai acompanhando como ele chegou, como ele está evoluindo, como é que está o cognitivo, o aprendizado, está aprendendo. Ele vai mostrando ali. Então, daqui a pouco ele chega. Então, a aparência vai melhorando, o corte de cabelo muda, ele já está com um aparelho celular. Então, eu vou ‘medindo a temperatura’ de acordo como ele está. Então a linguagem, eu leio muito a linguagem corporal, o que ele tem na mão, com o que ele anda, eu sei o que ele tem, se ele está na rua, se ele teve recaída ou não. Se ele está com o celular na mão ele está bem. Ele ficou um mês com o celular na mão, ele está bem. A primeira coisa que a pessoa perde na rua, quando ele recai, é o celular. Então, o celular... agora eles vão saber que eu estou falando isso. (risos) Então, assim: os objetos que ele vai tendo, como é que ele está, ele mesmo fala. Os olhos ‘falam’ tudo. O brilho no olho, o sorriso. As pessoas, quando estão bem, os olhos mostram, a fisionomia, a pele. Vai ficando bem. Quando... às vezes uma pessoa, quando ela não vem aqui no Cisarte, as pessoas falam: “Por que ninguém vem mais aqui? Fulano sumiu, parou de vir”. Eu falo: “Ou ela está muito bem, ou ela está muito mal”. A pessoa sai daqui, a porta sempre está aberta, ela pode voltar quantas vezes ela quiser. Ela não é restrita se ela recai, ela não é punida se ela falou alguma coisa que eu não gostei. Ela é só tratada como gente. Ela não perde a vaga, é proibida entrar aqui, não tem isso. A porta é dele, o projeto é deles. Não tem essa proibição. Eu não chamo, a polícia não entra aqui há anos. Ah, entrou agora, recente, desculpa. Entrou pra ver um fiscal aqui, pra acompanhar um fiscal da prefeitura. Aí eu perguntei: “Por que a polícia está junto?” “Não, porque tem medo do povo da rua”. É um projeto tão incrível, tem medo. Então, é esse mito que coloca em cima dessa população também, faz a sociedade afastar dela e impede até de ajudar. E fica mais nesses negócios paliativos, que não tira.
P/1 - E a partir da sua experiência, o que você acha que é mais urgente pra vocês, em relação à população de rua?
R - Escutar, o mais urgente é escutar essas pessoas. Eu já me considero uma especialista em trabalhar com população de rua, me considero uma empreendedora social com eles. Eu conheço o trabalho que eu faço com eles, assim, com profundidade, com segurança, com toda a garantia que de fato funcione e as pessoas saem da rua, por coisas que eu falo, usando ferramentas, dinâmicas muito simples para as pessoas. O principal delas, de você conseguir tirar e ter um diálogo, se aproximar dessas pessoas, é escutar. Escuta, você escuta para aprender. Você vai escutando, vai escutando e depois que você aprender você começa a ensinar o que você tem junto com ele, lado a lado, construindo. Porque você tem que entender o que ele quer. É muito fácil chegar aqui: “Ah, eu estudei na melhor universidade, e agora você não teve mesmo, você vai fazer isso e isso, eu vou apontando” e decidir a vida da pessoa. Assim não funciona, eu vou criar atrito. Aí tem gente que fala: “Dona Lu, eu vou embora, eu não venho mais aqui”. Eu falo: “Não tem importância. Eu nem te chamei pra entrar, né?” Tipo assim: porque ele é livre, ele acha legal. Por quê? Porque é assim que ele quer. Porque essas pessoas são impedidas de entrar nos lugares. Então, o Cisarte é bem cuidado, tem arte, tem cultura e tudo, para eles se sentirem... nesses lugares, quando a pessoa em situação de rua se aproxima, eles são retirados de lá. Muitas das vezes, os leva para o banheiro, eles são espancados no banheiro, para não voltar mais. Hoje a gente está construindo ao contrário. Junto com o Sesc, o Museu da Língua Portuguesa, os inserir na cultura, deixa eles entrarem. Por que não entrar? Eles têm necessidade de conhecer as coisas também. Os centros culturais, as pessoas da rua só ficam lá em frente, como uma coisa feia, eles não podem participar. E hoje nós estamos em outra ‘pegada’, está envolvendo. Foi sensacional. Então, eles mostram lá o talento deles e a voz. Então, se cada um começar, todo mundo vai inserindo, daqui a pouco a gente vai ter um trabalho mais... pelo menos assim: aqui tem pessoas em situação de rua, mas a gente cuida. Elas não estão abandonadas, nesse sentido.
P/1 - E você tem um relacionamento. Quer contar um pouco?
R - Ah, é. (risos) Hoje eu tenho um relacionamento, a gente está juntos há quatro anos, nós vamos casar, estamos só organizando algumas outras coisas, os papéis. Eu conheci o Darci antes de vir para o projeto, o Cisarte. Foi no primeiro dia que a gente se viu. Ele fala que no dia que ele me olhou, ele falou assim: “É ela que vai me ajudar em tudo”. Ele fala que foi um amor à primeira vista. Eu não sei, eu senti uma coisa verdadeira naquela pessoa, quando eu o vi pela primeira vez. Eu senti que ele era uma coisa boa, uma pessoa boa. É como assim: no dia que eu vi, eu ‘vi o coração’ também, você sentia. As pessoas... me passou uma aura boa, uma coisa boa. Tem pessoas que já te contaminam, te contagiam. Tem mesmo aquela que é mais assim, mas já tem aquela. Então o Darci não contagia só eu. Por onde ele passa, ele encanta as pessoas. Ele é muito... uma pessoa bem passiva, muito calmo, bem centrado, muito inteligente. E a gente construiu esse projeto juntos, nós construímos juntos, e a gente quer fazer muitas coisas juntos também, construir outras coisas também. A gente tem outros sonhos, né, de conseguir outras coisas, ir para outros lugares, mostrar pro mundo também esse trabalho. Não só ficar aqui ‘na ponta’, né? Expandir, expandir, expandir, até um dia não tiver mais ninguém na rua. Esse é o trabalho.
P/1 - E ele foi um amor à primeira vista. E você?
R - Ah, eu (risos) me senti acolhida com ele, né? Sabe, ele me passou uma paz. Ele me passa essa paz. Eu me senti acolhida, uma paz que ninguém nunca tinha me passado então, essa paz. O Darci me passou uma paz. Quando eu o encontrei, eu não me senti mais sozinha. Aí eu já vi que eu não estava mais sozinha em São Paulo. Acho que foi legal também não estar sozinha. Não foi... eu não encontrei. Nós nos encontramos, eu não estava procurando. E nem ele. (risos) Não foi assim. No começo não foi fácil, também. Eu vim de ‘outro universo’, de ‘outro mundo’, eu não tinha experiência boa. Então, o primeiro um ano e meio foi tudo muito estranho pra mim, de adaptar e tudo. A questão de ter uma relação, de viver junto e ele foi bastante paciente comigo, também nessa questão até da relação, mesmo, porque é um ‘outro universo’. Quando você não conhece dá um ‘choque’. ‘Choque de realidade’. Depois você vai trazendo, né? Aí foi trazendo, foi resgatando. Ele também tinha algumas coisas, uns sentimentos. Hoje ele é muito mais família, né? Ele já resgatou todo esse laço familiar que tinha perdido. E foi muito bom pra ele também. A relação foi boa pra mim e pra ele, pra nós dois. Foi muito bom. Foi uma coisa bem... uma relação bem nutritiva mesmo. Não é uma relação abusiva, não é conflituosa. É bem... tem muito respeito. A nossa relação é bem respeitosa. E nós já temos maturidade, a gente já sabe o que quer e tudo. Então, a gente quer mais tranquilidade, mesmo. Assim: uma paz. Voltando aqui, hoje o trabalho aqui, como pessoa eu trabalho esse projeto social, trabalhar hoje. O que isso fez na minha vida? Qual impacto fez? Que diferença fez na minha vida, em relação aos outros trabalhos que eu já construí ou que eu já fiz? Então, esse trabalho aqui, o que ele me trouxe? A paz, que os outros trabalhos, ou outro emprego remunerado nunca me trouxe. A satisfação. Qual a satisfação? É ver alguém saindo da rua. Dinheiro nenhum paga. Eu ‘abri mão’ de muitas coisas para fazer esse trabalho. Eu ‘abri mão’ de carro, do salto, do luxo, de ter uma vida... até umas condições de ter um emprego que ganhasse uma remuneração maior e tudo, tive que ‘abrir mão’ para construir, para ajudar outros. Isso não... a conquista desse trabalho, o resultado dele, igual eu falo, não é em valor monetário, isso é incalculável. Quando a pessoa sai da rua, ninguém conseguiria pagar, ou um salário, se fosse assim. É impagável isso. E a paz que eu tenho na minha cabeça. Muitos profissionais que têm aí, que têm uma ‘correria’, que ganham milhões, eu tenho certeza que às vezes a minha qualidade de vida é bem melhor do que a dele. Eu garanto. Não é só o dinheiro que vai te levar as melhores coisas, as melhores comidas, os melhores carros. Não sei, ele é fundamental, mas um modelo de vida simples, a simplicidade, e ajudar outro, você ser humilde, ser mais nessa questão de levar uma vida mais simples, você traz muito mais qualidade do que querer ter um carro mais bonito, querer chamar atenção e tudo. Eu vejo que a liberdade, a simplicidade, você estar num parque, de você estar nesse contato com a natureza, ou você estar ajudando outro ser humano, pra mim, você estar caminhando, falando por aí, conversando, isso são valores incalculáveis, não tem monetariamente. Não é estar dentro do jatinho, não é estar no melhor escritório, ou no melhor gabinete. O trabalho que eu faço é bem próximo, é na realidade, não é distante. Eu não estou em nenhum consultório, nem num lugar luxuoso, contando as histórias da pessoa que está em situação de rua. Eu não estou escrevendo as histórias deles, e sim vivendo a história deles, junto com eles, lado a lado, a eles saírem da história, no dia a dia. Hoje os maiores especialistas que trabalham com a rua, que escrevem da rua são aqueles que escrevem sobre eles e eu não escrevo sobre a rua, eu construo junto com eles. Então, eu me considero uma especialista também, porque eu estou no dia a dia, eu tiro pessoas da rua junto com eles, no diálogo, no trabalho, na saúde, na alegria, na tristeza, tudo junto, com todos os sentimentos envolvidos, e às vezes, igual eles falam, basta apenas uma palavra, dependendo como ela é dita, ela pode ser mais dolorida do que um tapa. Então, hoje a maior reclamação da população de rua, que eu ouço dele, é o descaso com ele, os maus-tratos, a violência com eles, da própria... do que é oferecido para eles.
P/1 - Quais os seus sonhos?
R - Tenho muitos sonhos, né? Hoje eu tenho sonhos, a gente vai construindo sonhos, vai realizando, vai vindo outros. Que bom que vem outros, né? Hoje o sonho é empreender, junto com a rua, um negócio pra eles mesmos. E todos sendo da própria rua. Um empreendimento que gera renda, né? Um negócio. Hoje esse projeto é sem fins lucrativos, uma ONG. Eu quero construir junto com eles, um negócio com eles, com fins lucrativos. Esse é um sonho de montar, de estabelecer, através, junto com eles, do próprio negócio. E outros, né? Vários, né? De não ver mais ninguém na rua, né? Ver as pessoas na rua só se divertindo, não ver pessoas na rua morando, né? São sonhos. Muitos sonhos. Enquanto eu tiver vida, eu vou estar sonhando. E realizando esses sonhos. Aqui eu tenho vários filtros de sonhos. O espaço foi feito pela própria rua. Eles têm sonhos. Então, se parar de sonhar... olha, eu sonho grande, sempre grande conquista. Sonhos grandes. Mas o projeto aqui, o Cisarte, um dia eu quero estar de fora. Eles mesmos cuidando entre eles. Os administradores são eles, todos entre eles. Assim: nasceu deles, tudo com eles. E a gente já está chegando nesse nível, já está quase na etapa, daqui a pouco vou ficar de fora, segue vocês, porque construir para dar continuidade, são modelos de projetos para ser copiado, para ser feito por outras pessoas. Não, porque você só sabe fazer isso. Não, sei fazer outras coisas. Eu não posso ser presa a só um projeto, posso fazer outras coisas com eles também. É nesse sentido.
P/1 - O que você gostaria de deixar como legado?
R - A continuidade desse projeto, que não o deixe morrer, que continuem tirando as pessoas da rua. Que continue, através do conhecimento, do aprendizado, da experiência, das trocas, que isso continue, que não acabe. Cuidar pelo outro, né? As ações humanitárias, enquanto tiver gente, ser humano, um tem que cuidar do outro. É difícil trabalhar com pessoas, com gente e tudo porque, para você cuidar do outro, você tem que olhar o outro como um ser humano. Por isso que é difícil, porque são poucas pessoas que conseguem chegar nesse nível de olhar e se ver no outro independente, como ser humano. As pessoas só conseguem ver o outro no defeito, no que ele tem de pior. Então, sempre está olhando o que tem de pior no outro. Vai ver a... trabalha em cima do que tem ruim, não do potencial. Ele não consegue tirar os defeitos e as qualidades e deixar só a essência do humano. As pessoas não conseguem ver o outro, nessa essência. E pra mim isso é tão natural, talvez eu nasci assim, não sei. (risos) Então, desde criança eu nunca tive esses preconceitos, nem com pessoas, nem com cores, nem com cor de pele, nem de nada. Mas eu não tive, mas eu já sofria e sofro, e eu sei. Hoje eu já sei rebater mais, mas antes eu achava como se fosse normal. É isso. Também, para trabalhar, até fazer esse trabalho e executar e ter resultados brilhantes, tem uma questão que é um conjunto de coisas. A experiência também, eu acredito, da minha vida foi fundamental, porque eu passei por... hoje eu consigo ver que uma pessoa, se ela está bem de saúde, fisicamente, pelo ferimento, por uma palidez, pela forma que ele chega, eu consigo identificar algumas coisas clinicamente. Pela experiência, eu trabalhei muitos anos na área hospitalar. Então, a pessoa conversou comigo um pouquinho, eu já sei se ela tem saúde mental ou não, por ter convivido com pessoas a vida toda com ‘saúde mental’, que foi a minha avó. Trabalhei também na psiquiatria, na época, que tinha dentro do hospital. Por que não, meu pai teve negócios, bares, comércio, então tinha muitas pessoas que bebiam lá, então eu conheci muita gente que tinha problema de alcoolismo. Então não tem muito problema, então eu vivi isso toda a minha vida, pessoas com alcoolismo. Então eu sei distinguir, então trabalhei em comunidades, eu fui para Rocinha também, trabalhei com uns desafios lá, horríveis. Então, eu conheço as pessoas, eu sei o que a droga faz na pessoa, qual o resultado. Então aqui também eu tenho essa experiência. Então, a experiência que eu tive na vida, de ajudar, de salvar pessoas de alguma forma, é isso que vai te levando. Foi de uma forma naturalmente, não foi pensado. Eu não planejei vir para São Paulo para cuidar das pessoas de rua. Isso só me impactou. Foi uma coisa que veio, que trabalhou com outro lado da minha vida, que eu não sabia que eu já fazia isso naturalmente. Eu não tinha me preparado, mas eles me ensinaram. Eu vim pra São Paulo pra desenhar modelos de negócios, com startup, com jovens de universidade. Eu vim pra dar consultoria empresarial, nessa ‘pegada’ do capitalismo, pra ficar bem rica, né? É isso mesmo. E fiquei, né? Essa riqueza de trabalhar com vidas, né? Com gente, ser humanos, né? E com aqueles que ninguém menos queria. Então, eu peguei, de São Paulo, o pior que tinha, que ninguém gosta mais, não queria. E o que não dá nem um centavo de dinheiro. Como é que vai ficar a cabeça da minha família, né? Que eu saí de Brasília pra ganhar dinheiro, cheguei aqui e eu fiquei mais pobre. (risos) Hoje eu tenho menos do que eu tinha antes, nessa questão. Vai cuidar das pessoas? É isso. (risos)
P/1 - Estamos caminhando pro fim, queria saber se você gostaria de contar algo que eu não tenha te perguntado, de algum momento da sua vida, alguma passagem, alguma mensagem...
R - A minha mensagem, da minha vida, que eu uso, tem até no slogan, é assim: “Se não agora, quando?” Eu nunca deixo pra depois, se eu posso fazer hoje. Pra esperar quando, depois o quê? Então, eu vi muito, quando eu cheguei aqui no projeto as pessoas: “Não, mas quando a gente receber uma doação”. O Darci falava: “Quando a gente tiver um dinheiro”. Mas quando? Mas quando é esse quando? “Quando vier”. Você começa a fazer com o que você tem agora. Então, esse projeto começou assim: o que tem agora. É só isso. É com isso que a gente vai pegar o muito, né? É isso. Se não agora, quando? Não dá pra esperar mais pra depois.
P/1 - Como foi dividir um pouco da sua história com a gente, hoje?
R - Eu fico um pouco tímida, né? Eu não sei. (risos) Eu sou tímida. Eu fico com vergonha. Um pouco vergonhosa, não de vergonha da minha história, né? Mas a vergonha da timidez, mesmo. Eu sou muito tímida. Eu não gosto de falar muito, nem sobre os trabalhos. Eu fiz vários trabalhos. É como se isso... mas às vezes é necessário. Mas como se eu falasse isso, é como se fosse uma coisa... ah, eu estou sendo metida. As conquistas, os trabalhos, muitas coisas que eu fiz às vezes eu não gosto de falar, porque senão eu acho que a outra pessoa não vai acreditar, vai achar que eu estou mentindo, vai achar que, não sei, eu estou falando demais de mim. Eu não gosto muito de falar de mim mesma, assim. Mas agora chegou o momento que foi necessário, mas minha vida toda foi desafios, né? Luta, desafios, desafios. Então, o maior de todos é esse. Então, sempre está tendo desafios. O próximo, não sei. É assim: Deus vai me colocando nos caminhos. Eu acho, eu me sinto uma pessoa muito forte. Porque se eu fosse fraca, eu já tinha desistido, já teria morrido pelos caminhos, porque são desafios bem fortes mesmo, que na minha vida é todo tempo de sobrevivência. É um desafio de sobrevivência mesmo, de vida humana mesmo. Então o Cisarte é um desafio de sobrevivência. As pessoas vão morrer aí, estão morrendo. E nem são contabilizadas, não são. E às vezes é tão fácil, é tão simples. Tem pessoas que só precisam de uma informação. Já está saindo, já, da rua. É isso.
P/1 - Muito, muito, muito obrigada por ter dividido isso com a gente! Foi, pra mim, um ‘presentaço’, de coração, agradeço muito.
R - Eu que agradeço imensamente o convite, agradeço. Se nós fomos convidados, é porque o nosso trabalho é importante e você ouviu falar de alguém. Porque, se não fosse bom, você não estaria aqui. Porque quando eu cheguei aqui, não tinha vocês, não tinha outras pessoas. Hoje, dentro de cinco anos, consegui, aqui dentro desse projeto, mobilizar pessoas de vários lugares do mundo aqui, então eu me sinto importante também. Eu acho que a minha história tem que ser contada, porque isso é um reconhecimento. Para outros, o reconhecimento é ter carros, fazendas, fábricas, indústrias. O meu reconhecimento é salvar vidas, né? O trabalho humanitário. Diferente, mas tão valorizado e impagável, né?
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