Entrevista de Christian Francis Braga
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 27/11/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV003
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vamos lá. Para começar, eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente e ter ...Continuar leitura
Entrevista de Christian Francis Braga
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 27/11/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV003
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vamos lá. Para começar, eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente e ter ‘topado’ dividir um pouquinho da sua história e queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome é Christian Francis Braga, eu sou nascido em São Paulo, no dia 3 de março de 1974.
P/1 - E você sabe como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim, sei. A minha mãe - naquela ocasião não existia ainda ultrassom, essas coisas e eu sou gêmeo univitelino e o médico, na ocasião do nascimento, ainda falava que não, é uma criança só, é uma criança grande – falava: “Não, são dois, são dois, eu sinto que são dois e tudo mais”. E na hora que ela entrou em trabalho de parto, foi que o médico falou: “Olha, são dois”. E ela falou: “Mas seu burro, (risos) eu tô falando o tempo inteiro que são dois e tudo mais”. E ela entrou gritando de dor, teve que tomar aquela raqui, pra poder conseguir passar pelo processo todo e aí nasceram dois, sendo que o meu pai, ele também, a família, na verdade, estava meio que esperando e a minha mãe com certeza total que eram dois, tanto que eles já tinham os nomes ali, já meio ‘no jeito’. E aí, quando eu nasci junto com o meu irmão, (risos) foi uma alegria toda pra família e a minha mãe sempre conta isso daí rindo muito, porque o médico simplesmente não acreditava que eram dois. E meu pai, quando viu que a minha mãe tinha razão e que o médico saiu falando: “Olha, são dois e tal” ele saiu ‘louco’, avisando todo mundo, buzinando o carro, falando: “Ah”, fazendo assim. Aí, quando ele chegou pra minha avó, chegando na casa da minha avó, fazendo assim, esse gesto, a minha avó já imaginou: “Ah, deu tudo certo, é o gesto da vitória”. E aí, não, isso aqui é porque eram dois. Enfim, então foi um dia de bastante felicidade. A gente já tinha uma irmã nascida, que no caso é minha irmã Renata, que tinha, na ocasião, cinco anos e o meu pai esperava muito o filho homem, na verdade, assim. Enfim, aquela coisa da criação machista, enfim, aquela coisa toda. Só que ele tinha muito aquilo de: “Poxa, vou ter filho homem agora, enfim”. E ele teve toda essa alegria de apresentar pros amigos, essa coisa toda. E ele vibrou demais, como se fosse título do São Paulo, que meu pai era são-paulino e tudo mais. Enfim, foi um momento de muita felicidade na família inteira, até porque se consolidou o que a minha mãe estava dizendo, que eram gêmeos e, enfim, gêmeo é todo um lance diferente, então, enfim, foi uma emoção bacana, que foi compartilhada pela família, então aquele dia a gente sabe que foi um dia de muita felicidade para a nossa família.
P/1 - E o que é diferente?
R – Enfim, pra mim não é diferente, porque eu nasci gêmeo, né? (risos) Enfim, então imagino que é tão comum os nascimentos, as famílias se estruturarem, só que quando aparecem dois iguais, porque eu e meu irmão Caio, nós somos univitelinos, né? Ou seja, gêmeos idênticos, né? Então pra família é toda aquela alegria de falar assim, porque você vai ao mercado: “Ah, olha os gêmeos iguaizinhos”. Você vai não sei aonde: “Ah, olha os gêmeos”. Então, é toda aquela coisa, né? Então, era tudo uma festa em torno disso. Ainda hoje, quando você vê duas crianças iguais, é bonitinho. É legal você ver a criança, mas quando você vê dois iguaizinhos, e é óbvio que a minha mãe e as minhas avós vestiam a gente igual dois pares de vasos. (risos) Então, eram os dois iguais, então era uma festa. E a minha irmã morria de ciúme da gente. Morria de ciúme. Hoje a gente é apaixonado entre todos nós, irmãos, mas a minha irmã, tadinha, amargou uma ciumeira, porque ela era a filha única. Daqui a pouco aparecem gêmeos! Nossa, pra ela foi um caos, porque toda a atenção foi pros gêmeos. A minha mãe ainda ia lá e fazia todo o jogo de... tinha um jogo de cintura, pra poder dar atenção pra ela e tal. Mas gêmeos, ter gêmeos na família é um pouco diferente, assim, nesse sentido.
P/1 - E tem alguma história de gêmeos, de confusão de nomes que você se lembra? Alguma história marcante?
R - Tem, tem. Confusão pro resto da vida, inclusive, porque a minha avó gostava muito de programa de auditório. Ela ia no programa do Flávio Cavalcanti, no programa do Silvio Santos, enfim. E aí teve uma ocasião que minha avó falou assim: “Vamos lá, Caio e Christian, acompanhar a vó no programa” e tudo mais, blá blá e a gente foi lá vestido igual par de vasos, aquela coisa toda, com a mesma roupa, chegamos lá. E aí, quando a gente chega no programa, a gente descobre que era, que existia naquele programa, em si, um concurso dos gêmeos mais parecidos, que era, na ocasião, Tudo por Dinheiro, que depois virou Topa Tudo por Dinheiro. Isso foi em 1985. E a gente chegou e falou: “Vó, não acredito que você fez isso com a gente, a gente vai ter que ir lá no palco” “Vocês vão ver, o Silvio é legal” e apresentou a gente pro Silvio Santos, e foi aquela farra. O Silvio era enorme pra gente, na época, (risos) a mão dele tinha esse tamanho. E aí: “Nossa, vocês são excepcionais e tal”. Enfim, nossa, legal o Silvio. Só que a gente se deu conta que a gente ia aparecer pro Brasil inteiro, inclusive pros nossos amigos. E aí, nessa, tinha separado ali vários pares de gêmeos e o Silvio foi falando com cada um, quando chegou na gente, falou: “Nossa, são excepcionais, são muito iguais, que bacana e tal, não sei o quê”. E o próprio Silvio ia fazendo a filtragem dos candidatos, ali. Imagina que deveria ter o quê? Uns dez pares de gêmeos, e aí o Silvio deixou cinco. E, entre todos, a gente viu que o Silvio ‘puxou mais a bola’ pra gente. (risos) E aí beleza. E nessa tinha um casalzinho de loirinhos, que eram mais novos que a gente. A gente tinha, na ocasião, dez anos de idade e esse casalzinho devia ter o quê? Uns seis anos, por aí e aí tinha sido eliminado. E a gente foi pro final do corredor, e na época eles faziam um negócio que eles chamam de gravar ao vivo, né? Que é uma gravada do take inteiro, e eles puxavam depois pra noite, que a gravação ia acontecendo, e eles iam colocando o negócio no ar. E aí nessa foi pra fazer a gravação do take, a gente descendo: “Agora que vem os gêmeos mais parecidos no Brasil”, e aí vem descendo todo mundo e nessa a mãe dos gêmeos loiros estava na frente da gente e ela falou... na hora que o Roque, que era o assistente de palco, falou: “Vem, vem todo mundo, vem todo mundo”, a mãe dos loirinhos falou: “Vai!” e empurrou os dois loirinhos na gente. (risos) Daí eu falei pro meu irmão: “Olha lá, estão trapaceando. Mandaram os loirinhos na frente da gente”. E aí eles foram e aí, nessa, putz, não tem que fazer, eles não param a gravação. Isso nos anos oitenta, hoje o sistema de gravação mudou totalmente. Enfim, foram lá e entrou todo mundo, ao invés de ser cinco pares, estavam seis, porque os loirinhos estavam lá. E aí, nessa, meu irmão já puxou os loirinhos: “Você fica aqui nesse canto e tal, pá” e aí o sistema de voto era o sistema mais humilhante que existe (risos) da face da Terra, que era: “É esse?”, todo mundo: “Eeee” “É esse?” “Eeeee” “É esse?” Quando chegou eu e o meu irmão, a gente: “É esse?” “Eeeeeeee” um pouquinho mais esfuziante. Quando chegou nos dois pequenininhos, loirinhos: “É esse?” e todo mundo: “Eeeeeeeeeee”, foi aquele fuzuê e aí: “Ah, então vocês ganharam”. Eu falei: “ ‘Cara’, isso é trapaça, eles ganharam”. Naquela hora eu senti o peso de toda uma humilhação da infância, porque naquele momento eu vi: “ ‘Cara’, todos os meus amigos vão me zoar amanhã, na hora que eu chegar na escola”. E foi o que aconteceu, mas foi engraçado. Foi uma situação que eu e meu irmão, a gente carrega hoje com muita alegria e diversão, porque a gente viu o que era o peso de ser gêmeo e a gente ainda falou: “Ah, não, vamos lá, tudo bonitinho, tudo legal”. Falei: “ ‘Cara’, olha só o que eu passei, eu passei por isso daqui”. E outra: foi em cadeia nacional, no programa Silvio Santos. Enfim, mas foi muito engraçado. Hoje eu dou risada, na época eu queria morrer, né? Mas foi engraçado.
P/1 - E você sabe a história do seu nome e do seu irmão?
R - Enfim, o meu pai tinha escolhido... na verdade, a minha avó paterna tinha escolhido Leonardo e Leopoldo, Leandro e Leopoldo, alguma coisa assim, um nome horroroso. Outro era Richard (risos) e Ronaldo, Ronald e Ronaldo, uma coisa assim, que tinha uma coisa conectada com a outra, e minha mãe falou: “Pelo amor de Deus, para com essa coisa horrorosa, vou colocar dois nomes diferentes e tal”. E aí, ficou... se não me falha a memória, meu pai escolheu o nome do meu irmão Caio, e a minha mãe escolheu o meu, porque até então o nome do Caio só parecia que estava escolhido. E aí, quando apareceram dois, porque eu fui o segundo a aparecer, foi um negócio assim: a minha mãe fez, estava fazendo o parto, tirou o meu irmão, foi quando o médico falou: “Tem mais um” e eu saí a fórceps. Ele me puxou lá do fundo, tanto que eu tenho até um afundamento atrás do crânio, por conta da força que o fórceps fez e me tirou e minha mãe falou: “Eu já sabia que eram dois”. E aí, enfim, deu o nome pra mim, minha mãe deu o meu nome de Christian e o meu pai tinha essa coisa de querer homenagear Deus e o mundo, que tanto eu como meu irmão, a gente tem - e a minha irmã - o nome das duas famílias, né? E o meu pai ainda queria dar homenagem, por exemplo, porque meu nome era Christian, e aí os meus dois avós paternos se chamavam Francisco e aí ele falou: “Então vamos colocar...”... minha mãe deu o nome de Christian, e meu pai falou: “Então vamos colocar Christian Francisco e aí a gente homenageia os avós”. O nome do pai é José de Oliveira Soares, minha mãe o chamava de Zé. Falava: “Mas Zé, pelo amor de Deus, para de inventar moda. Christian Francisco, que coisa horrorosa”. E aí falou: “Mas alguma coisa... então vai ficar Francis, está bom Francis?” E aí ficou, na ocasião da Jovem Guarda tinha o Francis Hime e tudo mais e aí ficou Christian Francis e esse Francis foi uma meia homenagem pros dois avós Franciscos e eu agradeço a minha mãe de ter, até o último momento, segurado meu nome pra não sair nada horroroso e nem... enfim, essas homenagens desnecessárias, né? Mas acabou ficando. E aí ficou Christian Francis, porque esse corte é do nome dos avós, Braga, que é o nome da minha mãe, e Oliveira Soares, que é o nome da minha avó materna e do meu avô... perdão, da minha avó paterna e do meu avô paterno. Christian Francis Braga de Oliveira Soares, nome grandinho.
P/1 - (risos) E como você descreveria seus pais, o jeito deles?
R - Bom, eles são o oposto um do outro. A minha mãe é uma pessoa muito vaidosa, sabe? Uma pessoa muito dona de si, sabe? E é uma pessoa extremamente competente, tanto que todos os filhos sempre se espelharam muito nela, na competência dela de fazer e acontecer com as coisas. Ela sempre foi uma pessoa muito ciente do meio de onde ela sempre esteve, de onde ela estava inserida, ela tinha domínio. Ela sempre teve um papel de liderança muito grande, ela sempre teve essa conduta muito de mulher empoderada. Imagine só, nos anos setenta, ela saiu, se separou do meu pai e falou: “Bom, aqui eu vou ‘tocar’ minha vida, porque você está fazendo dessa maneira, de um jeito, eu quero que seja de outro”. E nos anos setenta, quando sequer se podia divorciar, minha mãe se desquitou do meu pai, tocou o bonde, sabe? E como mulher poderosa que ela é até hoje, sabe? E criou os filhos, todos os filhos, porque a minha mãe tem a Renata, que é a minha irmã mais velha, eu e o Caio, que viemos depois e o Leonardo, que é o meu irmão caçula por parte de mãe. Então, ela sempre criou os filhos com esse poder de decisão, com esse empoderamento que ela sempre teve, que sempre foi muito nato dela. E ela também traz isso um pouco da minha avó materna, que ela também sempre foi uma mulher extremamente guerreira, sabe? De não deixar homem apontar dedo, esse tipo de coisa. A minha casa sempre foi muito matriarcal. Não existia essa coisa de que homem ‘apita’, a mulher se submete, nunca foi assim. Então, a gente sempre foi criado nesse ambiente. E, sendo criado nesse ambiente, então a gente tem hoje uma família que é extremamente harmoniosa, entre todos os irmãos, a gente se ama apaixonadamente e tudo mais, que foi fruto dessa criação clara, honesta, justa, que a minha mãe trouxe, né? E é uma pessoa sensacional, espetacular. Incutiu na gente o gosto pela música, porque eu sou músico, né? Só que nós somos a primeira geração de músicos da família. Os meus pais não eram, mas eles gostavam muito de música, tanto meu pai, como minha mãe. A minha mãe um pouco mais de MPB e tudo mais, essa coisa toda. Então ela trouxe esses elementos e foi criando os filhos com essa carga cultural dentro da gente. E o meu pai, por outro lado, já vinha de uma educação extremamente machista, patriarcal, por parte do meu avô e ele carregou isso daí. Ele trouxe isso, tal. Só que no momento de fazer, de transferir o ensinamento pra nós, ele fez questão de deixar isso fora. Então, foram erros que o meu pai cometeu, que ele preferiu não trazer pros filhos e falar: “Não, olha, esse caminho não é bacana, o melhor caminho é esse daqui, o melhor caminho é a equidade, não tem esse negócio de submeter a mulher”, porque o meu pai passou por esse processo e ‘quebrou a cara’ nesse processo e ele trouxe pros filhos homens essa coisa de: “Vamos tratar a coisa na equidade, porque essa história lá atrás não ‘cola’, não. Pode ter funcionado com os meus pais” - no caso, com os meus avós, isso o meu pai falando – “só que era um outro momento”, onde meu avô era totalmente provedor da casa, minha avó era de uma submissão quase que cinematográfica, sabe? E o meu pai acompanhou isso e pra ele aquilo era uma verdade absoluta, porque ele viveu aquilo, aquilo era a única verdade que ele tinha vivido e que poderia ser funcional pra ele. Ele viu dois irmãos morrerem por inanição, de fome, né? E via o pai que, no caso o meu vô, se desdobrava para poder conseguir trazer o mantimento e a subsistência para dentro de casa, enquanto a minha avó cuidava da família, para poder fazer a coisa minimamente acontecer, enquanto eles viviam em um cortiço no Pari. Então foram vidas diferentes, de onde veio a minha mãe, de onde veio meu pai, e vidas que se encontraram. E o meu pai era uma pessoa extremamente vaidosa, muito mais vaidosa que a minha mãe, na ocasião que eles se encontraram. Tanto que minha mãe se apaixonou muito pelo meu pai, porque meu pai era um pouco Dom Juan. Um pouco não, ele era muito Dom Juan. Era uma pessoa muito carismática, muito bom de conversa. Ele era muito aglutinador, aquela pessoa que juntava as pessoas. Tanto que eles se conheceram porque o meu pai organizava bailinhos na zona norte e tudo mais e ele que fazia todo o ‘merchan’, sabe? Toda aquela coisa de convidar as pessoas, de organizar o evento, enfim, a minha mãe se apaixonou. E o meu pai era amigo do meu tio Fernando, irmão da minha mãe.
P/1 – Por parte de mãe?
R - É, irmão da minha mãe. E aí pro meu tio poder ir pros bailes, a minha avó falava: “Vai, mas leva a sua irmã”. (risos) Ele falava: “Pô, não vou levar” “Não, vai. Se quiser ir você vai ter que levar a tua irmã”. E aí minha irmã, feliz da vida... minha irmã, minha mãe feliz da vida, ia, né? E aí, nessa, minha mãe se apaixonou pelo meu pai e vice-versa, ambos se apaixonaram e tudo mais e meu pai era extremamente vaidoso, era uma pessoa muito cuidadosa com aparência e no trato com as pessoas, ele era um lorde, assim, né? E assim foi até o fim da vida, na questão do trato com o outro. Sempre tinha muito cuidado em fazer o outro se sentir bem, né? Só que aí, enfim, o tempo passou, e essa vaidade do meu pai foi embora, porque meu pai acabou sendo acometido por uma doença, que é tromboangeíte obliterante, que isso acabou com a saúde do meu pai e aí, enfim, ali parece que as coisas começaram a mudar. Aí meu pai estava mais preocupado em sobreviver, do que... ele não era mais aquela coisa da qualidade do ser, né? Ele existia, sabe? E aí, enfim, a doença acabou maltratando muito meu pai, que chorava diuturnamente de dor, porque era uma doença isquêmica, que abria feridas na perna do meu pai, chegou a perder dedo, enfim, ele lutava pra não perder a perna, aquela coisa toda, uma doença muito parecida com o avanço da diabetes, sabe? E, por conta dessa situação toda, ele acabou engordando por conta da medicação e tal e aí ele fumava, né, e o coração do meu pai cresceu demais, enfim, até por conta da derivação de todos esses anos de medicação, do tratamento, também do abuso do cigarro e tudo mais. Chegou um determinado momento que o coração do meu pai não aguentou e com 63 anos ele acabou ‘partindo’, mas enfim, são pessoas que parecia que as vidas se cruzaram e eles trocaram papéis, parece, porque meu pai deixou de ser vaidoso e minha mãe passou a ser extremamente vaidosa. Minha mãe era dona de casa e quando ela falou ‘basta’, e ela tomou o rédea da vida, ela se transformou numa mulher, além de ser poderosa, linda e maravilhosa, sabe? E ela tinha que ser a melhor. E ela era a melhor pra gente, a melhor pra quem estava de fora. Era um arraso, sabe? E aí, tanto que eu lembro, inclusive, que a minha mãe se vestia tão bem... eu nunca cheguei perto da minha mãe, nessa coisa do se vestir bem, do se portar bem, eu nunca fui... eu sempre fui esse camarada meio de periferia e tal, sempre fui muito de falar gíria, essa coisa toda e a minha mãe sempre foi muito ‘inglesa’, assim, sabe? Sempre muito cheia de classe, de garbo e elegância, sabe? Muito. Ela e a minha irmã, né? Mas a minha mãe ainda mais. E ela é assim até hoje. Ela é... a alma dela é elegante, sabe? Enquanto eu e meu irmão somos mais despojados e tal, a minha mãe é a pura elegância, tanto que eu falo pra minha mãe: “Você nasceu em lugar errado, você devia ter nascido na Suíça, sabe, na Inglaterra, (risos) num lugar assim. E naquelas épocas da corte e tudo mais”, enfim, mas é basicamente isso, essas visões que eu tenho da diferença entre um e outro, sendo que, por dentro, o meu pai sempre foi uma pessoa muito amorosa, muito altruísta, muito cuidadosa no trato com o outro e sempre muito querido por todos e a minha mãe já era aquela: “Quer gostar de mim, gosta, não quer (risos) ‘pega a fila’ e vai!” Enfim, assim, mas duas pessoas sensacionais.
P/1 - E a relação com seus irmãos, como é?
R - É ótima! É ótima assim: com a minha irmã a relação começou, quando a gente era criança, com o ‘pé esquerdo’. Minha irmã tinha muito ciúme da gente. Então, nossa, ela queria ver eu e meu irmão sermos arruinados, quando a gente era criancinha. E aí eu lembro que a gente era da ‘pá virada’. A gente morava num apartamento lá numa travessa da Avenida Nova Cantareira, na zona norte de São Paulo, e aí sempre ia primos em casa e tudo mais. Numa ocasião estava passando o filme do Tarzan e você vê, quando é criança, quando aparece o Super-Homem, você quer ser o Super-Homem; quando aparece o Hulk, você quer ser o Hulk; quando aparece o Rambo, você quer ser o Rambo e aí apareceu o filme do Tarzan, e aí eu queria ser quem? O Tarzan. A primeira coisa que você vê pra se pendurar é o quê? É a cortina de casa. (risos) Estava eu e meu irmão, meus primos e tudo mais, a gente pegou e aí era varão, cortina, tudo pro chão e a minha irmã aparecia e só falava: “Vocês vão ver a hora que a mãe chegar, (risos) eu vou contar tudo pra ela”. Daí a gente: “Não, não, não faz isso” “Melhor vocês darem o fora daqui agora”. Daí a gente ia todo mundo lá pra baixo, pro playground e a minha irmã gritava lá de cima: “É melhor vocês nem voltarem nunca mais pra cá e tal”. Imagina só! (risos) A gente devia ter uns sete anos. A minha irmã devia ter uns doze, eu acho, por aí, vai, de seis a sete, de onze para doze, a diferença era. E aí, nessa, eu lembro como se fosse hoje, eu conto essa história para todo mundo. Que era, imagina só, a gente saiu, desceu, a gente tinha derrubado o varão e tudo da cortina. Era umas quatro horas da tarde, quatro, cinco horas da tarde quando acabava a sessão da tarde, mais ou menos esse horário. Umas cinco horas da tarde acabou o filme, deu umas sete e pouco, a gente estava lá embaixo e a minha irmã lá do sétimo andar: “Hahahahaha! A mãe acabou de chegar e chamou vocês. Hahahahaha! A vida de vocês está arruinada. Vocês vão morrer” e ria, minha irmã ria: “Hahahahaha!” Eu lembro dessa risada ecoar até hoje, porque ela ria falando que a gente ia morrer. E aí, nessa, a gente subiu, só que como a gente já era moleque, então eu falei pro meu irmão e pro meu primo: “Vamos fazer o seguinte: vamos marcar o sétimo, mas vamos marcar também o sexto, porque é certeza que a minha mãe vai esperar a gente com o tamanco na porta do elevador. Certeza”. Mas dito e feito: a gente foi lá, marcamos o sétimo, e aí... só que a gente marcou o sexto, então a gente fez o quê? Descemos no sexto, e aí eu sabia que a minha mãe ia esperar a gente na porta do elevador, então a gente fez o quê? Subimos a escada rapidinho, assim, no que a minha mãe abriu a porta do elevador a gente passou, só que nessa que a gente foi passar, minha mãe: “Seus moleques” e minha mãe atacou o tamanco de madeira, (risos) aquele negócio. E a minha mãe… meus pais nunca bateram na gente, eles sempre educaram a gente com a conversa, com muito carinho, com o entendimento, com bronca, lógico, mas bater nunca bateu na gente e a minha mãe só pegava o tamanco pra dar susto. Só que quando ela se viu enganada, (risos) ela jogou e pegou na minha mão. Eu falei: “Ah, eu vou morrer, se quebrar minha mão”. E a gente fugiu e a minha irmã ria, mas ela ria, que ecoava a risada dela, sabe assim? E isso daí ficou marcado daquele momento do que era a nossa infância e o que era a minha irmã querendo ver eu e meu irmão sermos aniquilados, sabe assim? Só que daí o tempo passou e nós viramos melhores amigos. Melhores amigos. Eu sou apaixonadíssimo pela minha irmã, por todos os meus irmãos. Pelo Caio nem se fala, então, porque a gente teve uma vida que não foi tão fácil, porque chegou um determinado momento que meus pais se separaram, a gente foi primeiro morar com a minha mãe e depois foi morar com o meu pai e a minha madrasta e a gente sofreu o ‘diabo’ na mão da nossa madrasta e nesse período a minha irmã se apresentou. Nesse período a minha irmã veio como acolhedora, como salvadora nossa. E o meu irmão Caio criou, pra mim, um universo paralelo, pra suportar o inferno que a gente vivia. Então, assim, eu tenho não só amor, eu tenho amor e gratidão pelos meus irmãos. Depois nasceu, na verdade, o Gustavo, que foi o primeiro filho do meu pai e da minha madrasta, porque aí minha mãe se casou novamente com o Luiz Henrique e teve o Leonardo. Meu pai se casou novamente, só que agora com a Ana e teve o Gustavo e depois teve a Bruna. Então, a escadinha ficou Renata, Caio e Christian, Gustavo, Leonardo e Bruna, esses são todos os irmãos e a gente sempre se deu bem com todos eles. Mas não foi aquele simplesmente se dar bem: “Ah, se dá bem que vocês são irmãos. Ah, que bacana”. Não, porque a gente se amparou e se acolheu na vida, porque a vida começou a ‘bater’. Chegou uma hora... porque, como sempre, chega uma hora que a vida começa a ‘bater’. Isso não é exclusividade minha, nem tua, nem de ninguém. A vida é assim que funciona. A vida vem trazendo uma série de lições pra gente. E, às vezes, essa lição é em forma de porrada. E se a gente não tem uma rede de apoio, fica muito difícil atravessar esses momentos. E nessas horas é que a gente via o que era o amor de irmão e um não largar de fato a mão do outro, a gente se amparar e se acolher, para poder atravessar todas essas questões. Então, enfim, e aí a Renata, hoje, é, por exemplo, para você ver o nível de importância na minha vida, vice-presidente do GAS, que é a ONG que eu criei. Então, ela é a pessoa número dois da entidade mais importante, do trabalho mais importante que eu já realizei em toda a minha vida, e realizo, no caso, ela é o número dois do GAS, pra ver o nível de confiança, amor e respeito que eu tenho por ela. O meu irmão Caio, que é meu irmão gêmeo, enfim, a gente nasceu junto e, quando ele foi morar fora, eu falei: “ ‘Cara’, e agora?” Só que a gente se fala todo dia. Imagina, ele mora na Espanha e a gente se fala, todo dia a gente se fala, troca ideia de tudo que pode imaginar. Enfim, eu acredito que a gente é mais próximo do que muito irmão que vive na mesma casa, inclusive, enfim. (risos) E o Gustavo é outro, que é o primeiro filho do meu pai, que eu tenho um amor tão grande por ele, até pelo fato dele ser, pra mim, a representação do meu pai encarnado hoje, porque o meu irmão Gustavo é muito meu pai, que não está mais aqui fisicamente. E o Gustavo traz muito essa essência do meu pai, que tem um amor indelével. Ele traz muito a voz calma, a tranquilidade. Ele tem um amor muito harmonioso, muito pacífico, sabe, o Gustavo, que é igual do meu pai. Então, eu sei que eu tenho o amor do meu pai, eu tenho o amor do Gustavo, eu sei diferenciar o amor dos dois, sabe? Só que eu atribuo muito ao Gustavo, e falei: “Você sabe, ‘cara’, que eu... muito do meu amor teu é por causa do pai, né? (risos) Você sabe isso daí. Porque, ‘cara’, você é o pai, ‘velho’. Você é o pai jovem”. E aí ele se sente, inclusive, lisonjeado, porque a gente é fã também do meu pai. E aí veio o Leonardo, meu caçula por parte de mãe e Leonardo foi crescido com a gente. Então, meio que a gente... ele foi o nosso... mais filho meu e do Caio do que da minha própria mãe, porque a gente meio que forjou o Leonardo, assim: “ ‘Cara’, a vida é isso aqui, ó. É isso, esse negócio aqui é ruim, isso aqui é legal e tal”, enfim. E ele já aprendeu música desde cedo. Eu fui aprender música com dezesseis anos. O Leonardo acho que com sete já sabia tocar bateria e guitarra, porque ele tinha tudo dentro de casa e a gente fazia questão dele se envolver com o que tinha de bacana de cultural. A gente não ‘enfiava goela abaixo’, só que a gente falava... na verdade, assim, vai: o meu irmão Caio enfiava sim, ‘goela abaixo’. O meu irmão Caio é meio impositivo nessas questões culturais. Fala: “Se não for isso aqui, isso aqui é ‘lixo’”. E o Leonardo foi meio que por esse lado. “Ah, não. Isso aqui é legal. Se não for isso aqui, isso aqui é ‘lixo’”. Falo: “Então calma, não é por aí também”. Mas, enfim, ele ‘bebeu’ de várias fontes e tal, de todos nós e se transformou numa pessoa genial. Genial o Leonardo é, porque ele é uma pessoa altruísta, é uma pessoa culturalmente brilhante, é um músico brilhante e é um cara amoroso, de uma verdade no amor que ele traz pra gente, assim, que o negócio é ‘fora de série’, sabe? O ‘cara’ é realmente incrível. Como ele se tornou numa pessoa tão bacana assim, sabe? E ele passou por uma situação muito complicada quando ele era mais jovem, né? Porque imagina só que a minha mãe se casou com Luiz Henrique e teve o Leonardo, né? Só que chegou um determinado momento, a minha mãe descobriu que o marido dela, Luiz Henrique, era gay. Ela descobriu isso. Só que como eles tinham um amor muito sincero, ela sentou e conversou com ele, e ele ‘abriu o peito’ pra ela, tanto que ele comenta que foi esse acolhimento da minha mãe à questão dele, inclusive a questão dele entender a sexualidade dele, porque até então o que ele fazia simplesmente era a reprodução de uma família absolutamente machista que ele tinha. Machista nível violento, assim, sabe? E ele jamais iria admitir que ele era gay para a família dele. E a minha mãe chegou e falou: “Eu te amo, eu vou continuar te amando sempre. É lógico que eu estou com o ‘coração rasgado’, porque eu queria ser o teu par romântico para sempre, mas eu não vou ser, mas eu vou ser a sua amiga para sempre, porque eu te amo de verdade” e ele também: “Eu te amo de verdade”. Enfim, se tornaram os melhores amigos e eles são os melhores amigos hoje, sabe? A mãe do meu irmão Leonardo com... a mãe do meu irmão Leonardo... o pai do meu irmão Leonardo, né, que é o Luiz Henrique, com a minha mãe. E isso foi uma situação que chegou e falou: “Tá, e como é que vai acontecer, por que o Leonardo precisa entender isso?” Só que a gente é uma família progressista, defensora de direitos humanos, onde pra gente gay, trans, pode ser o que for, o que a gente respeita é a existência da pessoa como ela quer, isso pra gente é fundamental e o Leonardo foi criado nesse sentimento, nesses elementos de valores de vida. E aí tanto que a gente falava: “A gente pode falar pro Leonardo, mas o Leonardo pra ele não vai estar nem aí com nada, sabe por quê? Porque o Leonardo ama todo mundo, sabe? O melhor amigo dele é gay, sabe, que é o Bruno. Vai falar o que do pai dele? Porque ama o pai dele, é fã do pai dele. Então, o quê?” E aí chegou a hora de contar do pai dele, ele estava lá jogando, falou assim: “Então, chegou a hora de contar um negócio e tal” “Vocês vão falar que meu pai é gay?” Falou: “É” “Eu já sabia” e continuou jogando, (risos) e ele falou: “Então tá bom, né?” E aí foi, (risos) porque já sabia, e estava tudo bem, estava tudo ótimo, porque ele ama o pai, e é isso aí, tem que amar o pai, porque a existência do pai é essa, e é uma pessoa extraordinária, sabe? E ele veio com essa questão de agora a gente vai ter que trazer aqui uma problemática, só que essa problemática estava mais na gente, que atravessou os anos setenta e oitenta, num vórtex, sabe, de negação e violência da sexualidade, porque tem muito aquela coisa de que teve a liberação sexual nos anos setenta e oitenta, o que é uma grande falácia, porque a gente criou grandes fascistas nessa época, que na verdade matam gays e trans hoje, no Brasil. Trans, hoje, não passa de 35 anos, na média, né? Que liberação sexual é essa que a gente viveu, então? A gente liberou demônios, então e não entendimento do que é você ser gay, ou ser trans, ou ser bi, ou ser não-binário, seja o que for. E o Leonardo já tinha aquilo, ele nasceu com isso incutido e a gente trabalhava esses elementos dentro de casa, sabe, de que você vai ser quem você quiser ser, sabe? E ele chegou nesse momento tranquilo. Então, foi mais uma dor nossa, da família, de entender como ia ser toda essa transição que não houve, na verdade, dos próprios pais, do que dele, em si. Então, ele chegou e falou: “Não, pra mim está ótimo e foi e continua sendo lindo”. Ou seja: o problema que a gente achava que ele ia atravessar, quem atravessou foi todo entorno e não ele, porque ele já veio com essa: “É meu pai, do jeito que ele é, eu não tô nem aí com nada”, sabe? E a minha mãe também. E meu melhor amigo é gay, sabe? E aí, né? Ou seja: ele chegou, é uma ‘galera’ que chegou meio que pra ensinar várias coisas pra gente, desde muito cedo, sabe? O Leonardo foi um professor nosso, criança. E o Leonardo hoje é professor. (risos) Ele é professor, mas ele, de criança, já foi professor nosso, enfim, e atravessou esse lance na maior. E aí tem a Bruna, que é a caçula de todos. A Bruna, a gente teve pouco... menos contato com a Bruna, do que com os outros irmãos, porque a gente sempre... meu pai sempre teve o cuidado de deixar os irmãos sempre unidos. Chegou um determinado momento que, quando a gente morava com a madrasta, a gente chegou e falou pro meu pai: “Pai, é o seguinte: a gente vai embora”. Eu e meu irmão Caio, que a gente morava em São José dos Campos. A gente foi pra lá em 1984. E aí, quando chegou mais ou menos 1989, por aí, a gente chegou e falou: “Pai, valeu, a gente vai embora, porque ou a sua mulher vai matar a gente” - porque de fato a gente acreditava que ela podia matar a gente – “ou a gente vai matá-la e a gente não vai matá-la porque a gente é assassino, mas pra se defender. A gente precisa ir embora”. E o meu pai: “Não, pelo amor de Deus, não sei o que lá e tal” e alugou uma casa pra eu e meu irmão morarmos sozinhos por um período, até que a minha avó paterna fosse lá, morar com a gente.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - A gente tinha dezesseis anos. Quinze pra dezesseis anos. E aí fomos morar sozinhos, eu e meu irmão, por seis meses, na verdade, porque logo na sequência a minha avó viria, né? E nesse período o meu pai ficava entre as duas casas. Então, o tempo inteiro entre duas casas, para lá e para cá, ficava na casa dela, na casa da gente e fazia questão dos meus irmãos estarem com a gente, presentes com a gente e a gente sempre os amou demais. Então, a gente sempre brincava, fazia e acontecia, jogava para o alto, para baixo e tudo mais. E meu pai sempre tinha esse cuidado, de sempre trazer a presença dos irmãos, para a gente nunca se separar. E a Bruna entrou nessa leva de muito pequenininha, mas nossa, ela sempre foi apaixonada por nós. E aí, quando foi - isso daí, mais ou menos em 1988, 1989 – em 1991, a gente terminou o colégio, e aí falou: “Pai, a gente vai embora. Vamos voltar pra São Paulo e tal”. E a gente acabou ficando pouco tempo com a Bruna, pelo fato da gente estar em casa separada e tudo mais. Mesmo com o meu pai trazendo sempre, pra gente nunca perder o contato, a gente teve menos contato com ela. A gente veio pra São Paulo, e foi uma situação um pouco caótica pra gente, assim, essa transição, e traumática pro meu pai, porque meu pai entendeu que a gente não queria estar lá por causa da madrasta, sabe? E meu pai tinha um amor muito grande pelos filhos, assim, sabe? A vida dele era os filhos. E quando ele viu que ele estava perdendo ‘dois braços’ por causa da mulher dele, enfim, o casamento dele começou a ir por ‘água abaixo’, sabe? Começar... as diferenças estavam começando a ficar irreconciliáveis, sabe? E aí meu pai também separou. Eu digo também separou, porque a gente se separou da mulher dele. Meu pai falou: “Pra mim não dá” e foi uma dor tão grande, eu acho que tão lancinante pro meu pai, que meu pai decidiu vir pra São Paulo, onde a gente estava e os meus irmãos vieram na sequência, porque eles vieram fazer USP e quiserem ficar com meu pai: “Eu não quero ficar com a minha mãe”. Eles culpabilizavam a minha madrasta pelo acontecido, sabe? E foi uma situação de abuso recorrente, perene, por anos. E quando eu falo que foi uma situação de abuso recorrente, perene, por anos era pra, tranquilamente, eu ser um psicopata. Psicopata, sociopata, qualquer coisa que não sinta nada por ninguém, sabe? E quisesse me vingar das dores que eu sofri um dia, porque eu sofri essas dores na criação do meu caráter, porque foi na minha segunda infância, na minha pré e na minha adolescência, sabe, onde eu e o meu irmão fomos tolhidos de uma série de direitos e sofria. Nós sofremos um impacto psicológico muito grande, enfim. E os meus irmãos acompanharam isso como testemunhas oculares dos males que a gente sofreu e eles também não ‘engoliram’ e resolveram vir com o meu pai pra São Paulo. Meu irmão ficou anos sem falar com a mãe. O meu irmão mais novo, o Gustavo. A Bruna ficou um tempo, depois voltou, enfim, e quando ela veio pra cá pra estudar, ela já estava num outro momento e tal, enfim. Mas a gente sempre continua com um carinho muito grande, mas é um pouco ainda afastada, sabe, mas a gente também se vê praticamente todo dia, só que pelas redes sociais. Ela mora hoje em São José dos Campos e parte do tempo na Suécia, porque ela acabou se casando com o baterista de uma banda sueca, o Arch Enemy, (risos) o baterista dessa banda. Enfim, acabou tendo uma sobrinha maravilhosa, que é a Bianca. Então, a gente tem esse contato muito carinhoso entre todos. A gente não tem nada, nada de confusão entre irmãos. Curiosamente, os irmãos da minha madrasta, ou seja, os irmãos que vieram da minha madrasta, o Gustavo e a Bruna tem uma contenda entre eles. Eles precisam se acertar. Hoje eles não se falam. O Gustavo e a Bruna não se falam, mas entre nós a gente conversa com todo mundo. Mas entre eles a mãe conseguiu plantar uma discórdia que acabou contaminando os dois e eu não gosto muito de falar de gente que não pode estar aqui pra se defender, sabe? Só que eu tô falando da minha vida e da minha vida eu falo das minhas experiências e das minhas experiências eu falo com retidão e honestidade. Então, eu tô falando daquilo que aconteceu comigo. E infelizmente o que aconteceu comigo acabou resvalando, espirrando nos meus irmãos mais novos, enfim, e a relação deles com a mãe e entre eles não é harmoniosa como é, por exemplo, do outro lado da família.
P/1 - A questão toda com a sua madrasta tinha a ver com você e com o seu irmão?
R - Sim. A gente mudou para São José dos Campos em 1984, no início de 1984. Os seis primeiros meses foram uma fantasia, foram maravilhosos, porque imagina só em 1984, a febre do Atari e das bicicletas BMX e tudo mais, o meu pai, nada mais nada menos, era dono de uma locadora, da primeira locadora de Atari de São José dos Campos, ou seja, a gente tinha não só Atari pra jogar, como a gente tinha na escola capital moral de ser, além de ser os gêmeos, que todo mundo fala: “Olha lá os gêmeos” falavam: “Os gêmeos que têm uma locadora de Atari”. Então a gente era ‘rei’, imagina só. Então, pra gente... e a gente não só era ‘rei’, como minha avó ainda foi lá, pra poder... minha mãe fica um pouco brava quando ela lembra disso, porque ela fala que a gente foi comprado (risos) por videogame e por duas bicicletas que eram, na época, uma extra nylon que, na ocasião, a grande ‘febre’ do momento era a extra light da Caloi e a extra nylon, que tinha um aro estrela. Então, a ‘febre’ do momento eram essas bicicletas, era o Atari e tudo mais, enfim, nos anos oitenta e minha vó deu uma extra nylon pra mim e uma pro meu irmão. E o meu pai, imagina, o Atari com fita ad aeternum, porque imagina, meu pai tinha uma locadora. Então, a gente jogava o que a gente bem entendia. Minha mãe, ‘louca da vida’: “Ah, vocês se renderam”, (risos) enfim. E a gente ‘quebrou a cara’, porque imagina só que foram seis meses e nosso quarto era um quarto, imagina só, que tinha pôster de moto de um lado e do outro. E era aquela coisa, poxa, toda, bem anos oitenta e tal, que era o máximo você ter Atari, ter uma bike daquela, o quarto cheio de pôster e tal e a madrasta que gostava da gente, que pra gente não era nem esse nome, madrasta, a gente a chamava Diana, enfim, ela era esposa do meu pai e tal. Acabou, eu lembro o dia que acabou isso daí. Um dia, pra poder agradar a minha madrasta, ela gostava muito do Snoopy e do Woodstock, aquele passarinho que acompanha o Snoopy e ela tinha muitas camisetas do Woodstock, inclusive, que era um passarinho. E eu lembro que eu fui fazer um desenho pra agradá-la. Tinha dez anos de idade, então criança quer agradar e tal, blá blá porque, queira ou não, você acaba querendo suprir o papel de mãe que não está lá, na ocasião. Então é o quê? É a madrasta. E eu tinha esse costume de agradar minha mãe, naturalmente, porque minha mãe agradava a gente e a gente agradava a minha mãe, então essa coisa, essa troca. E eu fui fazer essa troca com a minha madrasta. E ela simplesmente nem ligou pro desenho que eu fiz. “Ah, tá, deixa aí, não sei o que lá”. Naquele dia eu lembro que, pra mim, foi emblemático a mudança de tratamento, pra nunca mais a gente ser tratado como gente. A gente passou a ser tratado como bicho, ali. Era na metade do ano de 1984. Esse tratamento só foi mudar quando a gente virou adulto, porque ela reconheceu todo o mal que fez pra gente e repetidas vezes quis pedir perdão, não só pra mim e pro meu irmão, mas como pra minha mãe e pro meu pai, sabe? E ligava - a gente já tinha saído de São José, já tinha voltado pra São Paulo - pra casa de madrugada. Ligou, lembro uma vez, à noite, não era madrugada, era de noite, chorando, pedindo perdão e tudo mais, e era uma coisa diferente, uma coisa curiosa. Eu e meu irmão Caio, a gente é muito diferente um do outro. Muito parecido fisicamente, mas o nosso jeito de ver a vida, as coisas e tudo mais é bem diferente. E eu falava: “Beleza, eu perdoo”. Meu irmão falou assim: “Você vai morrer e não vai receber meu perdão”. Isso com dezessete, dezoito anos de idade. E aí, hoje ela... enfim, depois passamos... a gente tem uma relação amistosa com a madrasta, por causa dos meus irmãos. De, às vezes, tem um aniversário aqui, acolá e tal, a gente vai, se encontra e ok. Ela me pediu perdão pessoalmente e eu a perdoei pela segunda vez e a terceira vez foi no funeral do meu pai. E ela chorava copiosamente, pedindo que eu fosse interceder junto ao meu irmão, pra ele perdoá-la e eu falei pra ela assim: “Olha, eu te perdoo, você está perdoada, tá? Não vou esquecer, esquecer eu não esqueço, inclusive isso é até pra me defender de outras coisas que podem acontecer comigo, na minha vida, né? Mas por mim você está perdoada, do ‘fundo do meu coração’, sabe? Não sinto raiva, não sinto rancor, só que tudo que eu vivi eu vou contar pra Deus e o mundo, inclusive pra evitar que histórias assim se repitam, né? Então saiba que a minha história vai ser contada muitas vezes, mas eu te perdoo. Eu não coloco tua foto pra mostrar quem você é, pra você sofrer retaliação, esse tipo de coisa. Isso nunca vai acontecer, porque de fato eu te perdoo, só que nunca peça pra eu fazer uma coisa pelo meu irmão. Nunca. Sabe por quê? Porque o ‘cara’, até onde eu sei, e olha que eu conheço o meu irmão desde que eu nasci, (risos) ele nunca vai te perdoar”. E, de fato, o meu irmão, até hoje, nunca perdoou e ele não tem a menor pretensão de perdoar, a menor pretensão, dado o volume de atrocidade humana e negação de direitos humanos que a gente teve, quando criança, o que é ainda mais grave, enfim, mas são coisas da vida.
P/1 - Foi nesse momento que vocês voltaram pra São Paulo que a música entra na sua vida?
R - Antes. Foi antes. Inclusive a música entrou como uma das nossas salvadoras, porque a minha irmã muito jovem começou a trabalhar em uma loja de brinquedos e ela ganhava um dinheiro bacana e tal, era muito nova, não tinha nem o que gastar, então ela presenteava a gente, comprava jogos e tal, outras coisas e tudo mais e ela começou a comprar discos pra ela e era disco, na época era vinil. E eu lembro que ela comprou, na primeira leva, Legião Urbana, Dois; O Concreto Já Rachou, da Plebe Rude; Capital Inicial I; True Colors, da Cyndi Lauper; Like a Virgin, da Madonna. Hoje é tudo clássico, né? Mas naquela época, imagina! Comprou esses discos aí, comprou The Queen is Dead, do The Smiths e o Standing on a Beach, do The Cure. E aí esses discos a gente começou a ouvir o tempo inteiro e eu lembro que eu odiava The Smiths, eu achava horrível a voz do Morrissey e tudo mais e tal, só que a gente começava a parar e esmiuçar as letras, esmiuçar as coisas todas e tudo mais. A gente falava: “Esse ‘cara’ canta estranho, mas é legal a poesia que o ‘cara’ põe”. A gente tinha o quê? Quatorze? Doze anos. Eu lembro que a gente tinha doze anos de idade. Doze anos. ‘De cara’ a gente gostou de The Cure, mas tinha algumas coisas que a gente achava estranho. Siouxsie and the Banshees ela comprou também. E aí o Smiths era uma grande dúvida, assim, porque a voz do ‘cara’ é estranha, mas a poesia do ‘cara’ é legal. A gente começou a se envolver com essa coisa do inglês e tudo mais. E na escola a gente começou a conhecer a ‘galera’ e uma ‘galera’ que a gente tinha mais conexão era uma ‘galera’ que curtia um pouco mais de música. E aí chegou um camarada e falou: “ ‘Cara’, então, comprei esse disco do Smiths e tal” “ ‘Cara’, minha irmã comprou The Queen is Dead”. Ele falou: “Tem esse daqui, que é o outro”. A gente começou a ‘trocar figurinha’, e a gente começou a se conectar com a ‘galera’ na escola, que tinha mais conexão com a questão da música e tudo mais, também a ‘galera’ do esporte, do futebol e tudo mais, mas era mais a ‘galera’ da música. E ali foi quando a gente começou ao quê? Se aferrar em certas coisas que conseguiam blindar a gente da nossa realidade. A música foi uma delas. Então, a gente tinha música como um amortecedor dessas dores. Ela blindava a gente e amortecia o impacto do sofrimento que a gente era posto à aflição, sabe? E a gente entrava naquele mundo, sabe? Porque eu lembro que existia um programa na ocasião, que era na TV Gazeta, que era o Clip Trip, na época e a gente assistia aquilo e ficava ‘viajando’ naqueles clipes e tal, porque nos anos oitenta tinha tudo, era bem profícuo, né, essa coisa da construção da imagem com a música e tal, antes de entrar a MTV no Brasil, sabe? Então, a gente começou a se envolver bastante com isso, se conectar, e era um mundo que a gente meio que se isolava, né? Junto com isso - foi a minha irmã que produziu, trouxe, promoveu isso pra gente - outra coisa que ela promoveu pra gente era comprar aqueles... tinha o Almanaque Abril, que era o Google da época. Tudo tinha no Almanaque Abril. Tinha o mapa-múndi, com várias bandeiras. Eu e o meu irmão sabíamos todas as capitais, de todos os países, com quatorze anos de idade, sabe? “ ‘Pro’, o que é a capital de não sei das quantas?” Falava: “Sabe, sei lá, não sei das quantas. Pergunta pro CaioChristian”, porque os meninos chamavam eu e meu irmão por um nome só, que era CaioChristian. (risos) “A capital é X”. O professor ia lá e falava: “ ‘Cara’, como vocês sabem disso?” “É, professor, eles são professores mais de Geografia do que você e tal”, enfim, faziam a farra. E aí a gente acabava fazendo um mundo em volta desse Almanaque Abril. E a música foi o grande embalo, foi quem embalou a gente nesse momento dos anos oitenta. E aí eu lembro que a gente começou a ter um pouco mais de atenção para as músicas do The Cure, do Sex Pistols, do Siouxsie and the Banshees, que era um lance mais que tinha a ver com punk, com pós-punk e tudo mais e a gente começou a tentar procurar entender melhor toda a questão técnica das músicas. Eis que o meu tio Fernando, irmão da minha mãe, comprou instrumentos pros meus primos, uma guitarra superbacana pro meu primo, um baixo superbacana pro meu outro primo e tal. E a gente, nós, primos contemporâneos, aquela ‘primaiada’ que ‘curtia’ junto e tudo mais, falou: “Pô, também vou querer”, né? Aí eu lembro que, pô, meus primos: “A gente ganhou isso e aquilo outro”. Chegou no outro final de semana que a gente estava lá, feriado, mostraram e falei: “Pô, mãe, também quero, pá, uma guitarra”. Daí ela falou: “Escolhe aí uma guitarra, tal, não sei o que lá, mas tem que ser a guitarra, tipo, de Primeira Mão”. Primeira Mão era o jornal Primeira Mão, né, que era de coisa usada. E aí eu fui lá, vi uma guitarra, falei: “Puxa, olha aqui”, vi até uma fotinha, parecia a guitarra do Eddie Van Halen, que era toda cheia de fita e não sei o que lá e tal, e eu falei: “Quero essa daqui” “Ah, beleza, vamos lá comprar”. Fomos lá, era uma guitarra horrorosa, horrorosa, que a distância das cordas pro braço tinha duas polegadas, machucava todo o meu dedo, toda empenada, um terror a guitarra, mas comprei, né? E aí o Caio chegou, o meu irmão e falou: “Pô, mas se você tem guitarra, também quero tocar”. Eu falei: “Você vai querer tocar o que, guitarra também? Porque o Douglas já tem guitarra, o Renato já tem baixo, o Christian também tem guitarra. Pra gente montar uma banda precisa de uma bateria”. E aí ele falou: “Então eu vou comprar uma bateria”. Eu falei: “Opa, peraí. Se eu soubesse que você ia dar a bateria pra ele, ia pedir uma bateria também”. Daí ele: “Não, não, não, não”. E aí a minha mãe: “Não, não vem com essa, não. Você queria a guitarra, agora você fica com a guitarra, vai na bateria” e o pior: minha mãe comprou uma bateria nova pro meu irmão e eu: “Nossa, que sacanagem. Vai comprar uma bateria nova pra ele e pra mim essa guitarra velha, lascada, com o braço todo empenado, duas polegadas de diferença pra pôr o dedo na corda”, enfim, só que a bateria, coitado do meu irmão, era um terror. Era uma bateria Taiko lá, que os pratos pareciam uns negócios de funilaria, pintura, que falava: “Coitado, que horror isso aqui”. Só que a gente começou a tocar juntos. Começou eu, meu irmão Caio, mais os meus primos Douglas e Renato e a gente se juntava e a gente passou a ouvir a música com mais cuidado, que é pra imitar os músicos. Como a gente não fazia curso, o lance era ‘tirar de ouvido’. Imagina o terror que era, coitada da minha mãe, da minha avó, do meu pai, que ouvia um terror de música que era naquela ocasião, porque a gente não sabia tocar e tentava ‘tirar de ouvido’ sem fazer curso. Era um horror. A qualidade dos instrumentos era horrorosa, então o som era pior ainda, era um caos o negócio. E aí a gente foi se ajudando e o meu tio tinha um pouco mais de técnica, então ele passou a ensinar os meus primos e os nossos primos ensinavam a gente e a gente ia pegando o jeito, meu irmão pegou o jeito fácil na bateria, né? Ele ficava o tempo inteiro vendo e ouvindo, então ele imitava ali e tal. E aí a gente conseguiu se ‘engatar’ na música pra nunca mais largar, tanto que... e aí hoje eu tenho meu filho Andrei, que também é guitarrista, enfim. Eu tenho um filho de consideração, que é o Guilherme, porque assim: eu me separei da mãe do Andrei e ela casou novamente e ela teve um filho, que é o Guilherme, que pra mim também é como se fosse meu filho. Ele também toca guitarra, porque eu falo: “Não, você vem aqui...”, porque ele fica comigo no final de semana, quando ele quer, eu funciono como se fosse um pai que... falei: “Filhão, aqui é o pai que é sem cobrança, vem aqui, que é só zoeira”, né? (risos) Então ele vem e aí eu o ensino a tocar guitarra, então também é guitarrista. Ou seja: a gente começou a primeira leva de músicos pra todo mundo que está vindo depois, todo mundo aprendendo. E, de fato, os que vieram depois, todo mundo ou é bateria, ou é violão clássico, sabe, enfim, e aí vem toda a ‘galera’ e até hoje. E hoje a gente tem, por exemplo, o Instituto GAS, que é a ONG que eu coordeno. O Instituto GAS tem uma das frentes de atuação que se chama Banda do GAS. Então, a Banda do GAS parece que é uma banda qualquer, mas não é, é uma frente de voluntariado, onde os voluntários do GAS tocam nessa banda para fazer a integração dos voluntários, que sempre se juntavam pra poder trabalhar, porque a gente só se unia pra trabalhar e pra se divertir. Então a gente passou a quê? A gente criou a Banda do GAS, que é feita de músicos voluntários, né? Aí, então, a gente integra toda a ‘galera’, também integra a ‘galera’ de comunidade, quando vai participar, ou o povo da rua, quando vai participar, porque a gente atende a população em situação de rua, e a população em situação vulnerável que está em comunidade e ‘de quebra’ a gente arrecada pro instituto. Então, a gente cobra ingresso, né? E o ingresso é revertido 100% pra causa. Acaba virando alimento, cesta básica, cobertor, tijolo, tudo que você pode imaginar, que vai ser beneficiado pros vulneráveis, acaba se transformando a partir da Banda do GAS, enfim. E aí a música entra e acaba tomando conta da minha vida. Eu sou guitarrista por ter comprado aquela guitarra horrorosa (risos) nos anos... ali era final de anos oitenta, começo dos anos noventa. Acho que era mais final dos anos oitenta. Acho que era 1989, 1990, por aí eu acho que foi. E aí fui aprendendo - lógico, você tem bateria em casa, tem contrabaixo em casa e tudo mais, hoje tem tudo em casa - um pouquinho de cada coisa. Eu não sou um Eddie Van Halen, né? E nem um... (risos) nem nada. Eu sou um guitarrista bem mediano. Eu sou aquele que ‘cumpre a tabela’, sabe? Só que eu faço - eu vou e resolvo - a coisa acontecer. Então, a gente toca de tudo, tudo que você pode imaginar, de Queen a Alanis, toca de pagode a forró, toca de funk a MPB, tudo que você pode imaginar a gente toca, que é pra quê? Pra fazer a alegria da ‘galera’. Esse é o grande - pra mim - lance da música: é você despertar coisa boa nos outros. Meu irmão já tem uma visão um pouco diferente, que a música também é despertar os outros sentimentos dos outros, porque ele ‘curte’ muito mais pós-punk e tal, Joy Division, essa coisa toda. Cocteau Twins, que é um lance tudo mais soturno e tal, então... e é o que faz a arte, a arte faz isso, a arte faz você ser triste e feliz e você ter backgrounds por trás daquilo. E o background da música é a trilha sonora. Quando você está triste, aquela trilha sonora triste parece que faz você sofrer diferente e quando você está feliz parece que você é mais feliz. E eu até atribuo à música quando você, por exemplo, vai ouvir Joy Division triste, essa dor não te ‘mata por dentro’. É uma dor que parece que você está num filme. Parece que você sente aquela dor ser tangível, assim, quando você tem esse contato com a música e essa tangibilidade faz você se ‘salvar’, muitas vezes, porque a gente sabe que a dor, pra muitas pessoas, inclusive, não tem escapatória, mas parece que com a música, ela tem essa capacidade de ‘salvar’, eu acho. É a minha opinião, não sei, posso estar errado. Mas acho que tem esse papel, de ser uma grande trilha sonora da nossa vida. E eu fico feliz de poder promover essa trilha para muita gente, às vezes. É um negócio que, para mim, é muito bacana, por isso que eu gosto tanto de música, assim.
P/1 - Quando você volta para São Paulo, você já tinha se formado na escola?
R - Sim. Na verdade, o que aconteceu foi o seguinte: eu e o Caio, a gente fez colégio técnico, só que eu estava no quarto ano de Patologia Clínica e o meu irmão estava no terceiro ano do ensino médio, porque eu considero o meu irmão mais inteligente, assim, academicamente falando, só que na ocasião do ensino médio teve uma situação na escola, que a gente sempre foi muito batalhador das coisas e o meu pai, a gente via a dureza com que o meu pai pagava a escola. A gente sempre estudou em escola pública, sempre. Só que na hora de fazer o ensino médio o meu pai resolveu dar uma força a mais aqui, pra gente ter um ensino melhor e pagou aquele colégio técnico, tanto pra mim, quanto pro meu irmão e a gente via a dificuldade com que ele pagava aquilo. E eu lembro que, no terceiro ano, isso era 1991, teve um aumento abusivo das mensalidades. E eu e meu irmão, a gente sempre foi meio piqueteiro, assim, sabe? A gente nunca engoliu as coisas só porque falaram que é. Então, pra gente tinha que ter justiça naquilo, pra gente aceitar e foi um aumento abusivo que a gente falou: “Não, pelo amor de Deus, não tem a menor condição”. E a gente via a dificuldade do meu pai fazendo mil contas, pra conseguir pagar e tendo que fazer acerto daqui e negociar a dívida dali. E aí a gente se reuniu mais com uma ‘galera’ e falou: “A gente não vai pagar e tem um detalhe: não é só a gente que não vai pagar, ninguém vai pagar essa mensalidade”. E a gente se uniu com o pessoal da faculdade, porque o colégio era associado com a faculdade, que era tudo do mesmo grupo, que hoje é o grupo Univap, que é a Universidade do Vale do Paraíba. E ali a gente começou a se unir com o pessoal das Ciências Sociais, da Economia e tudo mais e ‘juntou a fome com a vontade de comer’, aí eram subversivos de um lado, com os piqueteiros do outro, com a maioria pobre do outro. Falei: “Então, gente, não tem condição, vamos juntar aqui”. E a gente tirou todo mundo da sala de aula, falei: “Não vai ter aula. Não vai ter, enquanto tiver esse valor de mensalidade, ninguém mais vai ter aula”. Tiramos a ‘galera’ da sala de aula, mandamos todo mundo para a avenida, fizemos ali um movimento, só que o que aconteceu foi: o pessoal do colégio identificou os líderes estudantis e nessa juntou todo mundo, pra conversar e tudo mais, blá blá blá, falaram: “A gente vai baixar” - a gente conseguiu baixar a mensalidade - “isso daqui, só que eu preciso que vocês façam isso, isso e aquilo outro e tal”. Ok, nisso a gente teve que se apresentar. A gente se apresentou, todos os acordos foram cumpridos, só que a cara de todos estava marcada e eles, de uma maneira bem desonesta e canalha, perseguiram todos os alunos que lideraram aquele movimento, naquela ocasião e a gente se preparou pra passar de ano, estudando que nem uns ‘camelos’, sabendo que ia ter muita perseguição ali, só que o meu irmão, por meio ponto, acho, ficou em Química, em uma matéria só. Reprovaram o meu irmão. E aí eu passei, fui pro quarto ano, e o meu irmão continuou no terceiro. E ali, na metade do ano eu lembro que a gente falou: “ ‘Cara’, vamos sair fora dessa” - porque a perseguição não parava, sabe? - “Eu não tô nem aí com essa Patologia Clínica, de concluir. Vamos embora, ‘cara’, vamos embora daqui”. E outra: as coisas já estavam insuportáveis em São José, por mil contextos, né? E ainda tinha todo um contexto econômico em casa, que impelia a gente de voltar pra São Paulo, que isso ia representar morar com a minha mãe, né? E ali foi uma série de coisas que, hoje, até pra mim é um pouco nebuloso por conta do tempo que passou. E aí a gente decidiu voltar, a gente saiu de lá de São José, e a gente voltou pro terceiro ano. Eu recuei um ano, pra terminar o ano com meu irmão, porque poderia ter fechado o ano, eu recuei e fui com meu irmão pro terceiro ano, pra falar: “Vamos fazer juntos aqui”. E a gente foi quando fechou o último ano, no Colégio Albino César, na zona norte e a gente ficou ali por meio ano, mas a gente transformou aquela escola num caos, (risos) porque a gente, imagina, chegamos no final do primeiro semestre, naquele ano dos Caras Pintadas, sabe? Que teve a manifestação dos Caras Pintadas e tudo mais, foi naquele ano. E aí, pô, a gente já criou o maior fuzuê, falamos: “Vamos ‘quebrar tudo’”. ‘Quebrar tudo’ no bom sentido, né? “Vamos lá fazer a coisa acontecer e tudo mais”. E aí a gente virou os gêmeos do 3º H, eu e o Caio. Os gêmeos do 3º H e tal, blá blá blá. E aí, nessa, ia ter um festival de música: “Vai ter um festival de música e tal, não sei o que lá” e aí a sala viu, que falaram: “Pô, os gêmeos tocam, não sei o que lá, por que vocês não tocam?” E eu falei: “Vamos, a gente vai tocar, a gente consegue se inscrever lá? Vamos nos inscrever”. Aí, tal, pá, e aí a nossa turma era uma turma meio da ‘pá virada’ na escola inteira. Já era, não era por nossa causa. A gente já entrou numa turma que era meio problemática, vamos dizer assim. E aí, nessa, a gente foi tocar e a gente... nessa época estava ‘bombando’ Nirvana, Chili Peppers, Pearl Jam. Era essa época que estava ‘explodida’ essa ‘galera’. E a gente entra, pra poder fazer o show no teatro da escola, começando tocando Purple Haze, do Jimi Hendrix, depois ‘colamos’ com o Suck My Kiss, do Chili Peppers e virou um caos aquele teatro. E a ‘galera’ se jogava, se pendurava no negócio. Foi uma loucura. E a gente acabou com o teatro naquele dia. Acabou. E a gente ficou famoso, acho que em dois meses de escola, como os gêmeos do 3º H, que a ‘galera’ só faltava abrir o tapete para eu e o meu irmão passarmos. E a gente via, a gente passava, parecia aqueles negócios de filme americano, sabe? Quando você está na escola e todo mundo olha: “Olha aí, os gêmeos do 3º H” e tal. (risos) Passava como se fosse celebridade e a gente era extremamente considerado na escola. Passamos de ano, né? E ali a gente finalizou. Eu lembro que, inclusive, eu comecei a namorar uma menina aqui de São Paulo e ela foi finalizar o curso dela nessa escola também. E aí, quando eu ia buscá-la, na porta da escola, os moleques faziam questão que eu entrasse na escola: “Olha (risos) o gêmeo do 3º H”. O gêmeo, (risos) é o Christian. A gente ia lá pra poder falar oi pra ‘galera’ e minha namorada achava o máximo. Que: “Nossa, eu namoro um ‘cara’ famoso (risos) da escola, que o ‘cara’ é um ‘arraso’”. Imagina! Só porque um dia a gente destruiu o teatro inteiro da escola, (risos) pra integrar a ‘galera’, né? Pra integrar, pra fazer aquela coisa, pô, ser maior legal, maior feliz. A gente conseguiu realmente integrar a ‘galera’, mas acho que a gente é persona non grata no Albino César, porque realmente a gente pôs aquele teatro abaixo naquele dia, mas foi um espetáculo, foi sensacional. Aquilo marca, pra mim, uma alegria da adolescência, sabe, porque eu saí de um momento de sofrimento, que já não era... em São José, naquela ocasião que a gente estava no ensino médio, a gente já tinha meio que retomado as rédeas da coisa. Então, a gente já fazia o que a gente queria, a gente já saía com quem queria, os nossos amigos podiam ir na nossa casa, sabe? Então, nos dois últimos anos morando em São José a gente conseguiu ter qualidade de vida ali. Foi bem legal, inclusive. Mas voltar pra São Paulo e voltar na apoteose, pra gente foi muito bom, inclusive pra nossa autoestima, que vinha sucessivamente sendo ‘sequestrada’ e atacada, sabe? Então, pra nossa autoestima, isso daí foi muito bom. Foi muito bom a gente ter finalizado os dois anos, como a gente finalizou, em São José, sendo duas figuras muito queridas por todos os amigos e tudo mais, e ter chegado em São Paulo ‘estourando’ a escola inteira, e a ‘galera’ considerar a gente num nível bizarro, sabe, de: “Puxa, os gêmeos do 3º H”, (risos) que eram os que ‘tocavam o terror’ na escola. Na verdade, a gente foi criado... a gente virou uma entidade na escola porque decidiram, não é porque a gente era o máximo. A molecada decidiu que a gente era o máximo. Então, sabe, a gente caiu no gosto da molecada, porque eu não sou o máximo, eu sou uma pessoa normal, o meu irmão também, só que foi uma soma de contexto com ocasião, com fazer o certo na hora certa, com as pessoas certas. Explodiu. E o 3º H era a sala que todo mundo queria fazer parte, naquele ano. Todo mundo queria fazer. Tanto que todos os meninos e as meninas do 3º H eram considerados o máximo, depois que o 3º H ‘explodiu’ com o teatro inteiro, ali. (risos) Enfim, mas foi muito legal. Foi muito engraçado, inclusive. (risos) É uma lembrança muito legal.
P/1 - Nessa época, você já sabia, pensava o que você queria ser, fazer, o que você queria trabalhar?
R - Imagina, não. Naquela época eu só queria viver, porque imagina que eu fiquei anos enclausurado.
P/1 – Você não podia sair?
R - Podia, mas era uma vida de muita restrição, sabe? Podia, podia sair, mas era... tinha horário pra chegar, tinha horário pra sair, tinha comida certa pra comer, não era qualquer comida que a gente podia comer dentro de casa. Tinha as comidas que eram pros meus irmãos menores, que era de qualidade, e a comida qualquer, que era pra mim e pro meu irmão, sabe? E o meu pai, quando percebia isso, ele tinha todo um enfrentamento com a madrasta e tudo mais. Só que imagina: meu pai tinha que trabalhar o tempo inteiro. Então, ele saía muito cedo de casa, voltava muito tarde. E quando ele voltava muito tarde, ele voltava gritando de dor, por causa do problema que ele tinha na perna. Então, eu e meu irmão, a gente só queria poupar meu pai. Então, a gente poupava meu pai. Foram anos acontecendo isso. E quando a gente veio pra São Paulo, tanto eu, quanto meu irmão, a gente só quis viver tudo que a gente não tinha podido viver antes. Então, foi um Woodstock nosso nos próximos anos, sabe? Então, a gente se permitiu tudo, tudo o que você pode imaginar a gente se permitiu fazer, porque era como se fosse um grito de liberdade, sabe? E ainda bem que eu tô vivo, depois dessa, (risos) porque eu podia não estar. Nem ele, né? Porque a gente abusou. A gente abusou. Tanto eu, como meu irmão, a gente abusou. Isso não é novidade para ninguém da nossa família, a gente até abusou de droga, porque a gente queria tanto viver, que era aquela coisa de colocar tudo pra dentro da gente, sabe? Nossa, eu quero viver tudo agora. “Tudo que há pra viver, vamos nos permitir”, aquela música do Lulu Santos, sabe? Mas, ‘meu’, por sorte, eu acho que por sorte e por união minha e do meu irmão também, a gente conseguiu se preservar. A gente poderia ter ido ‘pro saco’, poderia ter morrido facilmente. Pra ver o que acaba desdobrando, você impedir uma pessoa de ser. E olha que eu sou branco, hetero, de classe média, homem. Eu fui impedido de viver isso aqui, um período da minha vida. Imagina os nossos irmãos e irmãs e tal que, ‘cara’, só por existir a ‘galera’ quer dar cabo, quer matar, sabe, quer... enfim. Eu fico pensando nisso, eu sempre penso nisso. Não à toa eu sou defensor de direitos humanos hoje. Não à toa hoje o trans, preto, não binário, pode ser quem for, no GAS, vive em paz. A pessoa é em paz no GAS, sabe? Porque eu, sendo... ‘nadando de braçada’ no privilégio, que é ser quem eu sou, que é homem branco, sabe, de classe média, hetero, essa história toda, senti na pele o que era a privação da vida por X anos, imagina o que é uma vida inteira, né? Enfim, eu sei, eu imagino que não deve ser fácil, porque pra mim não foi fácil. E aí eu lembro, nessa circunstância, de ter sido cerceado de uma série de coisas, de ter sido impedido de uma série de coisas, quando chegou aos quinze anos de idade começou a doer tanto em mim, tanto, existir, que eu tinha dois caminhos: ou eu me mato, ou eu vou buscar o que é a vida. E eu fui buscar o que é a vida. O meu irmão me ajudou nisso, porque o meu irmão trazia pra mim, toda hora, o meu valor, quem eu era, o valor que eu tinha, pra ele, inclusive. Então, fazia eu... porque o meu irmão sempre foi muito mais forte do que eu, como a personalidade dele sempre foi uma personalidade muito mais refratária às impressões da dor, talvez, sabe, ele sempre soube lidar mais com a violência que a gente sofreu e como ele soube lidar, ele não demonstrava dor. Eu sei que hoje, por exemplo, ele não perdoa. Eu perdoei. Mas ele não demonstrava a dor e ele fazia questão de me acolher. Imagina, irmãos gêmeos, duas crianças. E ele tinha esse cuidado de demonstrar pra mim o meu valor na vida dele, o meu valor pra mim mesmo, sabe? E com quinze anos essa dor começou a crescer de uma maneira que eu falei: “‘Cara’, não é possível que as pessoas, nessa existência, se dediquem a fazer os outros sofrerem. Não é possível, ‘cara’, que isso daí seja uma coisa normal”, de quatorze pra quinze anos de idade e aí eu fui fazer o quê? Meu irmão estava lidando ok com aquela situação toda, ok. O moleque estava tudo bem, estava ok, estava ‘segurando’ do jeito dele, ali. E eu fui atrás de entender, ‘cara’, porque as pessoas eram assim, por que as pessoas maltratam os outros assim. Por que... aonde que está o X da existência nisso tudo? E aí eu, de quatorze para quinze anos, comecei a ir sozinho, quando eu conseguia me desvencilhar assim, pra igreja, pra centro de umbanda, centro espírita, pro candomblé, pro Hare Krishna, pro Seicho-no-ie. Eu ia, sozinho eu ia. Criança, sozinho. Adolescente, na verdade, com quinze anos eu ia sozinho pra esses lugares, pra ouvir, porque pra mim tinha que ter alguma explicação superior porque, ‘cara’, não é possível, ‘bicho’. Como é que pode uma criatura dessa dedicar tanta energia pra fazer mal pros outros? De forma sistemática, repetidas vezes, sem se sentir mal, sabe? E aí nessa eu fui atrás, fui em trezentas mil igrejas, em tudo quanto é centro, em tudo quanto é espaço de fé que pode se imaginar. E os meus primos, entendendo isso, uma vez a gente estava em São Paulo, né, num dos feriados e tal, final de semana, não lembro se era férias, enfim, porque a gente sempre vinha pra cá em feriados e nas férias. Quando tinha uma sobrinha de dinheiro do meu pai ou da minha mãe, eles conseguiam mandar a gente no final de semana pra voltar, sabe, pra ir e pra voltar. Não era sempre. Eu lembro que numa dessas eu estava nessa busca e meu irmão comentou com o meu outro primo e tal, pá e aí falou: “O Chris está nessa daí, pá, de espiritualidade, não sei o que lá”. E aí meu primo falou: “Pô, sabe que meu pai é espírita, a minha mãe também, né? E meu pai fala com gente, escreve umas paradas e tal”. Eu falei: “É mesmo? “É”. E esses meus tios, que faziam isso, era a ‘galera’ que ia no baile com meu pai lá atrás, que ele promovia aqueles bailinhos e tal. Era um dos amigos do meu pai e a gente chama de tio, mas é tio de consideração, porque a gente nasceu e cresceu juntos, todos os primos nasceram na mesma época e: “Pô, vamos lá em casa, que meu pai vai te ensinar uma ‘parada’ e tal. Você quer ver esses bagulhos de espírito? Meu pai vê, mostra, entende direito essas coisas”. Eu ‘curtia’ o lance de ocultismo, ciências ocultas, tudo que era oculto pra mim era interessante. E aí, beleza, vamos lá. E fomos lá na casa do meu tio Miranda. Fomos na casa do meu tio Miranda, e aí meu primo Caio chegou e falou assim: “Pai, seguinte: o Christian quer entender esse negócio aí, pá, de médium, essa coisa toda, não sei o que e pá”. E aí estavam eu, meu tio Miranda, a minha tia Rita, estava meu primo Caio, Priscila, Paula, meu irmão, meu tio Douglas, enfim, meu primo Douglas, tinha uma turminha toda ali e aí meu tio chegou e falou assim: “Mas isso daí não é brincadeira, isso daí não é coisa pra brincar”. Ele falou: “Não, pai, não é brincadeira, o Christian quer entender real mesmo essa coisa aí”. E aí meus outros primos falaram: “Não, a gente também quer ver e tal” “Ah, não, posso explicar como é que é, não sei o que lá. Vocês querem ver como é que acontece, como é que funciona isso?” Então eu falei: “Eu quero”. Daí meu tio Miranda falou: “Filho, é o seguinte: você, eu sempre soube que você tem uma mediunidade, que é um pouco mais aflorada do que dos outros meninos. Você não quer tentar, né? Pra poder até ver, se você achar bacana e tal, você pode desenvolver isso daí e tal”. Daí todos meus primos: “Vai, vai lá que vai ser legal, não sei o que lá”. E pra mim era uma farra, né? Falei: “Vamos lá, vamos lá, então”. Daí ele falou: “É o seguinte: o tio faz esse negócio aqui, que é uma coisa que se chama psicografia. A gente vai fazer isso e aquilo outro e tal, o que vai acontecer é que sua mão vai começar a formigar e você vai fazendo uns rabiscos aqui, eu vou tirando as folhas, tá? E aí você vai e aí você deixa, a gente continua conversando aqui. Continua conversando. Tudo bem?” “Tudo bem, vamos lá, vamos fazer isso”. E todo mundo em cima de mim, na mesa da cozinha do meu primo, meu tio de um lado, minha tia do outro, e meu tio lá, puxando as folhas e aí fizeram, lógico, uma oração e tal, fez uma prece, pra poder orientar o trabalho que ia acontecer, aquela coisa toda, mas ninguém ‘botando’ muita fé, né? Ninguém ali, a ‘galera’ só naquela coisa do medo, como se fosse: “Ah, vamos participar de um filme de terror”. Era uma ‘vibe’ meio dessa. E nessa eu falei assim: “Ó, tio, meu braço está formigando, mas eu não sei se é porque eu estou fazendo esse movimento repetitivo e eu não posso ficar apertando o lápis. Eu tenho que ficar com o lápis leve, né? E não sei se é por conta disso”, daí ele: “Relaxa, fica tranquilo e tal. E olha pra mim, olha pra mim. Olha pra mim, você vai ver que vai amortecer” e aí os meninos começaram a falar: “ ‘Meu, a sua mão está escrevendo”. E eu falando com meu tio outro assunto e a minha mão escrevendo aqui. Na hora que eu olhei, a primeira coisa foi meio que soltar o lápis, ele falou: “Não, calma, relaxa. Pega o lápis de volta. Continua. E, ó, você pode ir conversando comigo, se quiser você pode prestar atenção. Só que relaxa, fica tranquilo, que na hora que você quiser parar, você pode parar. Na hora que eu quiser parar você, eu posso parar você. Então, fica tranquilo, que está tudo em paz aqui”. E aí eu falando com os meus primos, e a minha mão escrevendo um negócio que eu não estava pensando, que eu não estava falando, conversando olhando para o lado, falando de outro assunto com o meu tio, com os meus primos, a minha mão escrevendo e aí parou. Nessa minha tia pegou e leu. O nome da moça era Luzia e chegou e falou: “Olha, meu nome é Luzia, eu gostaria de encontrar o meu algoz”. Porque, por conta de uma questão do sofrimento dela, blá blá blá, foi uma mensagem em torno de que ela gostaria de encontrar com o algoz dela, pra perguntar por que ele fez aquilo com ela e, enfim, confrontá-lo e tal e meu tio começou a conversar com o nada, como orientando aquela pessoa que estava ali e tal. E aí, beleza. E foi uma carta que eu escrevi. E aí eu cheguei: “E aí e isso daqui?” E nenhum dos meus primos, óbvio, acreditou. Todo mundo achou que eu tinha combinado com meu tio. E aí eu falei: “ ‘Cara’, mas eu não combinei nada com o tio. Eu não estava com o tio até agora, estava com vocês”. Eu falei: “Tio, o que é isso daqui?” Só que eles começaram a perceber o meu desespero falando com meu tio e ‘relaxa’, eles viram que o negócio era verdadeiro. Aí, naquele dia eu me tornei espírita, porque até então eu simpatizava com o espiritismo, eu simpatizava com a ideia de que havia vida após a morte. Eu simpatizava porque, pra mim, de uma maneira crítica, tem fundamento a evolução, uma vida após a outra. Eu não vou ser só eu uma vez, homem branco, olha só, imagina só que privilégio! E não ser uma mulher preta trans, por exemplo, que mora no Iraque, né? Imagina a diferença de existência! Imagina a diferença de impressão de existência que eu vou ter, né? Ah, eu de classe média, poderia ter nascido... não nasci pobre, nem nasci milionário. Então, esse tipo de multiplicidade de existência pra mim sempre foi uma coisa, um critério, sempre teve um porquê lógico de existência. Só que, naquele dia, deixou de ser simpatia e passou a ser convicção, porque não foi a minha mão que escreveu aquilo. Anos depois, eu vi o meu vô. Anos depois, eu conversei com meu vô, que já tinha morrido, e falei com a minha família sobre coisas dos meus familiares que eu sequer sabia. E ali foi quando eu falei: “Não, ‘cara’, tem alguma coisa a ver com a minha existência esse lance aqui do espiritismo”, e foi quando eu comecei a estudar a doutrina espírita e a doutrina espírita é aquela coisa: fala da caridade e da salvação, só que eu, como criação punk que eu tive, minha, (risos) por conta dos discos da minha irmã, que trouxe The Clash e aquela coisa toda social, daquele grito social de que a vida só vale a pena quando você consegue democratizar as possibilidades, quando você consegue democratizar o direito de ser feliz, o direito à dignidade, o direito à moradia, à comida, sabe, aí eu ‘fui de cabeça’ nisso, só que pra mim não era caridade, pra mim era justiça social. Era você usar a caridade em massa pra transformar a vida do outro. Ali começou a mudança da minha vida. Quando eu comecei a entender o espiritismo foi quando eu comecei a embasar o que eu queria para a minha existência dentro de um propósito de vida que eu ainda não tinha. Porque eu, novo daquele jeito, não tinha propósito. O que eu tinha era uma vida cheia de dúvidas. Estudando o espiritismo foi quando consegui construir com claridade, com clareza, na verdade, o meu propósito de vida dentro da minha existência, porque eu fui buscar lá atrás, pra entender porque as pessoas fazem mal pras outras gratuitamente e acabei, nessa, encontrando o meu propósito de vida, que é o quê? Usar minha existência pra aliviar a dor do outro. É um negócio que é bem tangível pra mim, o meu propósito. Não é nada... não existe um achismo, sabe? Eu tenho clareza e certeza do meu propósito, como eu vejo esse copo, aqui em cima da mesa. E tudo por conta dos caminhos que foram se criando, se entrelaçando.
P/1 - Queria te perguntar como nasce o Instituto GAS.
R - Bom, nessa busca que eu tive pela questão da espiritualidade, eu fui conhecer o espiritismo e eu conheci as Casas André Luiz. E dentro das Casas André Luiz eu não só entendi, enfim, os meandros de toda a questão da doutrina, mas ali também se promove a prática daquilo que eles pregam, que é a prática da caridade. E ali a gente começou a sair com os grupos, para poder fazer a entrega de alimentação para a população em situação de rua. Isso em 1996. E aí foi quando, pela primeira vez, eu saí para entregar doação. Era 1996, eu tinha 22 anos de idade. E ali, então, a gente saía todo sábado pra poder fazer essas entregas de... na ocasião eram marmitas, né? Foi quando ali eu comecei a fazer esse trabalho, só que era um trabalho que era organizado por um pessoal do centro e aí eu não sei, eu não me lembro hoje por qual motivo eu parei de ir, só que eu não me senti, naquele momento, preparado para aquele trabalho ali, sabe, não era a hora, e eu passei a entender depois também, coordenando o trabalho voluntário, que o tempo não é igual para todos, sabe? Você pode estar no teu tempo agora, mas, sabe, sua melhor amiga não. Vocês, inclusive, terem a mesma vida, muito parecida, só que não vai ser a hora dela. A hora dela vai ser daqui a pouco, sabe? Mas eu acredito que cada um tem o seu momento certo de se doar, sabe? Isso tem muito a ver com a nossa energia, tem muito a ver com o momento que a gente está vivendo, com o momento que a gente tem de receber e de doar, porque não é qualquer hora que eu posso entrar nisso. Quando eu falo entrar nisso é porque você entra num universo de altruísmo e doação, que você precisa de um mínimo de envergadura psicológica porque, se você vai fazer o bem, você precisa entender que você vai mexer no mal. Você vai fazer o bem? “Ah, vou fazer o bem, legal, vou lá ajudar a pessoa”. Se você vai realmente, de fato, fazer o bem, você quer só entregar um negocinho, entrega um negocinho, vira as costas e tchau. Você pode ter matado a fome da pessoa ali, é válido e tudo mais, sabe? Só que, se você quer fazer um trabalho um pouco mais estruturado, entenda que pra fazer o bem você vai mexer no mal, pra poder conseguir levar possibilidade, esperança, você vai mexer na desesperança, você vai mexer na dor. E não é todo mundo que está preparado pra isso. Às vezes está doendo uma série de questões em mim, que eu não posso estender a mão pro outro hoje. Talvez nesse momento, em 1996, eu estava naquela hora um pouco complexa, inclusive a hora que ‘explodiu’ dentro de mim esse momento de ‘viver tudo o que há pra viver, vamos nos permitir’, foi em 1996, que foi o meu auge da vida de: “Putz, ‘cara’, está tudo muito ‘louco’”. Tanto que, quando chegou, em 1996, um determinado momento que eu falei: “ ‘Cara’, não, para. Eu vou morrer”. Foi um negócio muito ‘louco’, por quê? Eu preciso ‘fazer uma vírgula’ aqui, um aparte, pra poder entender e chegar depois aonde foi esse nascimento do GAS, porque o GAS nasceu de fato ali, dentro do André Luiz, com essa coisa de não adianta só falar de fazer o bem, falar: “Olha, vamos ajudar o próximo. Olha, eu sou a favor da vida das crianças”. Não, você precisa se mover, ‘cara’. Você precisa se mover, não adianta só falar, não adianta só ficar ali colocando altos manifestos e ficar com o braço cruzado, tomando ‘breja’ ali no bar e falando: “Nossa, como eu sou acadêmico”, sabe? Não, ‘cara’, Academia é muito boa, só que se você não colocar a Academia na prática, você vai ser um teórico e a vida não é teoria, a vida é prática. As mazelas são práticas, a fome é real. Gente, morrer de frio é verdadeiro, sabe? Num país tropical, que é o mais bizarro ainda. Eu lembro que eu comecei a ir para as Casas André Luiz, e eu tinha conhecido uma menina no bairro que eu frequentava, que era o bairro do Tremembé, onde eu ia para um barzinho, que era o Sucão do Asa. Toda a nossa ‘galera’ ficava lá no Asa. Todo mundo ia pra lá e eram várias ‘tribos’ diferentes. Tinha ‘galera’ punk, tinha os hippies, tinha os jipeiros, tinha os playboys, enfim e todo mundo convivia na maior harmonia naquele Sucão do Asa, que era uma praça, ali na zona norte, perto do Horto Florestal, na zona norte de São Paulo. E aí eu lembro que eu vi uma menina que era da ‘galera’ do reggae, que as turmas conviviam bem, mas não se misturavam, né? E aí tinha uma amiga minha, que era uma das raras que circulavam livremente por toda a ‘galera’, e você não sabia de onde que ela era. Então, ela tinha essa livre circulação. E aí eu vi essa menina, falei pra essa amiga minha: “ ‘Meu’, aquela menina lá, quem que é ela?” Ela falou: “Ela é a Camila e tal, não sei o que lá, é do povo do reggae, lá dos prédios” “Pô, legal, quero conhecer essa menina aí”. Mas eu falei ‘quero conhecer’ da ‘boca pra fora’: “Ah, quero conhecer”. Não deu cinco minutos ela estava com a menina, segurando pela mão: “Ah, esse é meu amigo Christian, ele quer te conhecer”. (risos) E eu morrendo de vergonha, porque eu era extremamente tímido, a música me ajudou a ser menos tímido, mas eu era extremamente tímido na época. “Ah, esse daqui é o Christian, quer te conhecer, blá blá blá blá” Eu falei: “ ‘Meu’, e agora? Não posso enfiar a cabeça no chão, igual avestruz, agora vou ter que enfrentar, (risos) vou ter que conhecer a menina”. E aí a gente começou a ‘bater papo’ e tal. Nessa ocasião, nesse momento da minha vida eu estava vivendo a mais ‘vida louquice’ que você pode imaginar e aí eu comecei a conversar com essa menina, com a Camila e aí todo final de semana a gente ia lá pro Sucão do Asa. Todo final de semana, feriado, era o Sucão do Asa, a trupe inteira se reunia lá. E aí eu comecei a ‘curtir’ a ‘mina’ e tal, falei: “Putz, acho que eu vou chegar um pouco mais forte aqui e tal, (risos) não sei, vamos ver o que vai rolar”. Aí cheguei e falei: “Pô, ‘cara’, vamos dar um ‘rolê’ só a gente aí, deixa essa ‘galera’ aí, vamos ‘sair fora’ e tal, né? Vamos ‘dar uma volta’ pra ‘trocar ideia’ só eu e você”. Aí fui, a coloquei para dentro do carro, saí e tal. E aí eu lembro que, naquela ocasião, parei numa das ruas do Tremembé e aí eu lancei uma droga ali e tal, e ela chegou na maior tranquilidade, falou: “Chris, você precisa disso daí mesmo? Sabe por quê? Está maior legal a gente aqui. Maior ‘vibe da hora’ e tal. Não precisa disso aí, não”. E ela não chegou junto nem me julgando, nem me atacando. Ela veio com todo o amor do mundo e falou. A menina mal me conhecia, sabe? Ela poderia simplesmente falar: “Quer saber, tô fora”. Não, ela falou: “ ‘Meu’, está maior legal. Não precisa disso daí, não”. E eu catei o negócio e joguei fora, sabe, que era improvável no nível de loucura que eu estava na época, sabe? Joguei e falei: “Beleza, é só a gente aqui. A gente se basta e tal, pá” e aí virou o maior lance legal e a gente começou a namorar e ela também estava nessa busca da espiritualidade, e a gente começou a ir junto para André Luiz, para as Casas André Luiz, que é esse lugar que explicava isso, o lance do espiritismo e tal, essa coisa toda. A gente começou a participar juntos. ‘Cara’, a gente virou não só namorados, mas os melhores brothers, sabe? A gente era mega parceiros, mega parceiros. A gente se dava muito bem, a gente se divertia com nada, sabe? Não precisava de dinheiro, não precisava de show, não precisava de viagem. “Vamos tropeçar na pedra?” “Que legal, ‘da hora’”. A gente se divertia com quase nada, era o máximo da diversão. E a gente, de fato, passou meio que se bastar na alegria, falar: “ ‘Cara’, fulano vai no show” e eu falar: “ ‘Cara’, tô sem grana” e ela falar: “Eu também, então vamos tocar um violão, a gente faz o nosso show aqui”, enfim, e era um negócio assim e a gente se deu muito bem. Muito, muito bem. E aí, nessa situação, eu lembro que eu estava, eu falei: “‘Cara’, ‘mano’, eu tô com uma ‘mina’ tão ‘da hora’, preciso largar essa porcaria, isso daí vai me ferrar”. Meu irmão ainda chegou um dia e falou: “ ‘Mano’, larga isso daí, ‘cara’, que você ainda vai se matar”. Meu irmão estava na mesma ‘vibe’, mas ele largou antes. Meu irmão largou e falou: “‘Cara’, você também precisa sair fora dessa, ‘bicho’. Sai disso daí, isso daí vai acabar com você ainda, ‘mano’”. E aí, nessa, eu lembro que era o último dia da Olimpíada de Atlanta. Era festa de encerramento da Olimpíada de Atlanta. Sabe quando tem aquele show de fogos e quando fazem aquela cerimônia toda, pra passar a tocha pro próximo país que vai sediar a olimpíada. Era o último dia da Olimpíada de Atlanta, de 1996, e o povo da rua era um povo muito ‘louco’, muito ‘louco’, onde eu morava. Eu morava no bairro meio que de bacana, que era Palmas do Tremembé. Era um lugar de classe média alta, na ocasião, só que a gente nunca foi de classe média alta, a gente era de classe média, mas a gente morava entre a ‘galera’ que era da ‘grana’ ali. E aí nessa chegou um ‘maluco’ e falou: “Porra, Chris, tô com uma ‘parada’ aqui, vamos aí, só eu e você, tem uma ‘galera’ aqui, pá”, me chamou, me tirou da... porque eu estava com ela e toda a minha família assistindo a festa de encerramento. Não que fosse: “Nossa, que evento!” Mas estava ali, sabe quando está a família toda assistindo, todo mundo ali, ‘de boa’. Era domingo, acho. E aí, o ‘cara’ me chamou pra usar droga, o ‘caramba a quatro’, fui lá e falei: “Beleza, ‘mano’, mas vai ser a última”. E aí: “Que nada e tal, pá, pá”. Nessa, o ‘cara’ foi lá, colocou a droga pra gente usar, olhei pra ele e falei: “ ‘Mano’, vai ser a última vez”. Ele falou: “O quê?” E eu falei: “Vai ser a última vez”. Ele olhou pra mim e ria, eu vi o Diabo no ‘cara’. Eu vi tudo que tinha de mais maligno na existência, eu vi naquele ‘cara’. E eu sei que não era, eu sei que não é ele, sabe? Foi uma representação minha, de um lance meu, ali. Esse ‘cara’ é um ‘cara’ que eu tenho respeito por ele, inclusive. Só que naquele momento ele representou o que existia de pior na existência, pra mim. E o ‘cara’ tinha um Fusca, ele baixou o porta-luvas do Fusca, e estava a droga toda ali, eu simplesmente bati, assim e voou coisa pra tudo quanto é lado. (risos) Imagina, o ‘cara’ queria me matar, e eu queria matá-lo. E aí vem a turma, segura de um lado, segura do outro e eu falei: “Você nunca mais bata na minha casa pra me tirar do meio da minha família pra usar essa porcaria dessa droga, senão eu vou te matar”. E ele: “É, vou te matar, não sei o que lá”. Ninguém vai matar ninguém, aquela coisa toda, que é um querer mostrar mais a ‘crista’ pro outro, né? Enfim, aquele foi... eu não usei droga aquele dia, não usei. Mas, pra mim, aquele foi o último dia na minha vida de drogado que eu era, sabe? Porque eu era ‘vida louca’ mesmo. Eu era bem ‘louco’. Eu só não injetei coisa na veia, porque eu tenho medo de agulha, porque senão eu ia injetar coisa até no olho, sabe? Porque o que tinha,
não é pra ficar muito ‘louco’? Vamos ficar muito ‘louco’, sabe? Mas era aquela coisa de toda a vida que eu fui impedido de ter na minha adolescência, na minha infância, eu fui querer viver tudo de uma vez só agora, ao mesmo tempo, sabe, de uma maneira insana e irresponsável. Aquele dia eu decidi: “Eu não uso, nunca mais eu uso droga nenhuma dessa porcaria, enfim, pá” e nunca mais mesmo. Nunca mais. Isso foi em 1996. Tem ano, hein? E aí contei isso pra Camila, que era minha namorada e tal, que ela estava lá, falei: “Fulano veio me chamar, aconteceu isso e aquilo outro”, ela falou: “Nossa, que chato”. Ela era muito paz e amor, sabe? Se fosse eu ia querer ir lá dar no ‘cara’. E ela: “Ah, que chato, mas que bom que você não aceitou e você está aqui”. Era muito ‘gratiluz’, assim, sabe? E ela foi me acompanhando nesse processo todo, né, e eu caí em depressão, porque imagina, eu estava aqui, ó, na adrenalina, e do nada fui parar... aqui é o flat, né? No auge da droga eu estava aqui, ó. A vida da pessoa normal aqui, eu vim pra cá, ó, pro avesso e aí eu amarguei uma depressão pesadíssima, pesada, coisa que eu não desejo para ninguém nessa vida, o que eu passei. E ela comigo, do meu lado, sabe, me ajudando, me amparando, me acolhendo, sempre. Chegou um determinado momento e a gente nunca brigou, eu e essa menina. A gente nunca brigou. Nossa vida era, nossa, perfeita. Nosso namoro era a coisa mais perfeita que existiu na Terra, sabe? E aí um dia fui com os amigos do trabalho, com ela, a gente foi, juntou vários casais, fomos pra praia da Jureia, fomos lá, ‘curtimos’ o final de semana, era um feriado. Foi tudo ‘mil maravilhas’. De novo, sabe? Eu me dava muito bem com a família inteira dela, sabe? Ela se dava bem com a minha família toda. Então, foi tudo aquela coisa de que era tudo muito perfeito, tudo muito bacana, tudo muito legal, tudo muito saudável. E aí eu lembro que eu fui pra essa praia com os amigos do meu trabalho, fomos lá, tal, não sei o que lá. E aí eu lembro que quando a gente ia pra praia com a família dela, a gente sempre ficava junto, ia caminhar na praia, caminhava junto. E nessa ocasião ela falou: “Vou caminhar até ali”. Falei: “Beleza, vamos lá”. Ela falou: “Não, quero caminhar sozinha”. Falei: “Nunca quis caminhar sozinha”, mas enfim, às vezes tem que ter a primeira vez. Então, tudo bem. Eu fiquei lá e ela foi caminhar sozinha na praia. Ela voltou, sabe, chutando pedrinha e tal. Voltou. A gente voltou pra casa, né, da praia onde a gente estava. Antes de ir embora, que tem aquele momento do soninho da ‘galera’, todo mundo comeu, o pessoal dá aquela descansada antes de ir embora, a gente ficou junto de uma maneira muito... tinha muita ternura naquele estar junto, naquele momento. Era muita ternura, um carinho de acolhimento, não era só essa palavra, mas era um amor e ternura tão grande ali, que sabe quando você fala: “Putz, poderia congelar aqui por um bom tempo, né? Tá tudo tão bom, tão legal, sabe? As dores somem, as aflições desaparecem, tudo tão lindo aqui”. E aí terminamos ali, pá e fomos embora, todo mundo. A gente terminou de jantar todo mundo, recolhemos as coisas, e cada um foi embora. Subimos para São Paulo, e aí eu fui deixá-la na casa dela. Ela morava num conjunto de prédios, parei o carro, e aí a gente se despediu e tal, normal, como sempre. Só que naquele dia ela falou: “A gente vai...”... como é que é? “A gente vai se despedir aqui”, tá? Eu falei: “A gente acabou de se despedir”. Ela: “Não, você não está entendendo, a gente se despede aqui. A gente fica por aqui”. Eu falei: “Não, eu sei, porque amanhã é segunda-feira, tô na ‘ripa’, você também”. Ela falou: “Não, (risos) você não entendeu: a partir daqui você vai seguir a sua vida e eu vou seguir a minha”. Do nada. A gente nunca brigou, nunca a gente se desentendeu, nunca a gente teve um problema sequer de nada, em nada, em nenhuma esfera do relacionamento. Sexualmente era uma maravilha, romanticamente era uma maravilha, intelectualmente era uma maravilha, era tudo uma grande maravilha, tudo era perfeito ali, sabe? E ela falou: “Não, porque era até aqui onde eu tinha que chegar”. E eu falei: “Mas o que você está falando?” “Acabou, acabou. Eu não sei. Um dia eu vou entender, um dia você vai entender, mas eu sei que acaba aqui”. Do nada. Eu lembro que eu chorei que nem criança no colo dela, nesse dia. De realmente deitar no colo dela e molhar a roupa dela de lágrima, do tanto que eu chorei aquele dia. De secar. E eu perguntei se tinha feito alguma coisa, se tinha acontecido alguma coisa, e blá blá blá e ela falou: “Não. E eu te amo. Eu te amo, eu sei que você me ama, mas a gente acaba por aqui”. E ela falou ainda: “Eu sei que um dia eu vou entender isso e você vai entender também”. Naquele dia a gente terminou. E era 1998 esse ano. E aí eu só tenho uma explicação pra isso: que essa menina é um anjo que veio na minha vida, pra me salvar da minha morte irrefreável que ia acontecer. A gente até hoje tem contato. Hoje ela é casada, tem filho e tudo mais, blá blá blá, mas a gente tem nossos contatos ali na rede social, de respeito mútuo, assim, sabe? E ela é muito feliz em ver o trabalho do GAS acontecer, porque ela sabe que ela foi que deu a primeira enxadada na terra e colocou a primeira semente, sabe? Porque ela estava comigo na André Luiz. Eu não ia acompanhar na André Luiz para aprender caridade. Na minha cabeça de jovem, eu achava que sabia de tudo, sabe? Meu filho é muito parecido comigo. Meu filho hoje, por exemplo, acha que sabe tudo. E naquela época eu achava que sabia de tudo. Falei: “Não preciso aprender mais nada. Tenho 22 anos de idade, já sei de tudo da vida e tudo mais”. Imagina! Ela foi todos os dias comigo, para aprender o que seria a pavimentação do caminho que eu sigo até hoje, que é usar a minha existência pra poder aliviar a dor do outro, pra poder promover a paz na vida do outro, pra poder permitir a não violência na vida do outro, sabe? Pra ser um promotor desses ajustes sociais, sabe? E aconteceu isso nesse período de 1996 a 1998 e essa menina simplesmente veio e foi embora, do nada. Tanto que eu falo pra ela -, a gente sempre, ‘vira e mexe’, troca parabéns e tudo mais - eu falei: “‘Cara’, tem a gratidão da minha vida por você porque, se não fosse você... não é mérito meu, eu ia ter sucumbido, eu ia ter morrido”. Meu filho não ia nascer. Não ia ter conhecido depois a minha mulher, que eu tive meu filho, que é, sabe, glória na minha vida, meu filho, sabe assim? Alegria da minha vida. O GAS, que é... comentei, inclusive, ontem, que o GAS, pra mim, é disparado o melhor trabalho que eu já fiz em toda a minha vida, sendo que eu sou professor e dar aula pra mim foi uma das coisas mais brilhantes que eu já fiz em toda a minha existência, porque eu dei aula para criança e para adolescente e você dar aula e ver a criança se transformando em cidadão, sabe, numa pessoa crítica e tudo mais, ‘cara’, que preço que tem isso? E pra eu chegar e falar pra você que fazer o GAS funcionar, colocar a minha energia, o meu fluido cósmico universal pra existência do GAS é um negócio que não se compara nem a dar aula. Imagina pra mim o que significa o GAS, o que significa você ser o piloto de um conjunto de seres humanos que se dedicam a tornar esse lugar um lugar mais justo, que decidiram fazer da própria vida um instrumento de melhora do lugar aonde elas vieram, pra onde elas vieram, que é o planeta Terra, sabe? Então, essa é a dedicação, esse é o porquê da existência do GAS. O GAS existe pra poder tornar esse lugar justo pra todos, pra poder democratizar a dignidade humana. Viver não pode ser digno só pra mim, pra nós, que somos brancos. Pro preto também, pro oriental, pro trans, pro gay, pro não binário, sabe, pra todo mundo que tem a sua existência em risco só por ser. Então, você ter uma legião de pessoas que trabalham com você, nessa mesma energia, é para mim um negócio que não tem comparação com qualquer outro tipo de função que um dia eu já exerci na vida. E olha que ser professor é uma das coisas mais brilhantes e sublimes que existem na existência, sabe? E isso para mim é o trabalho que eu realizo hoje à frente do GAS, com tanta gente disposta, sabe, a facilitar a vida do outro. Disposta a criar caminhos, a perfumar caminhos, sabe, pros outros. Porque, pô, viver é tão difícil, gente. E viver - eu gravei esses dias aí, na convenção que a gente fez do GAS - dói, dói viver, sabe? A gente só tem alguns momentos de felicidade que fazem, inclusive, a vida valer a pena, né? Mas viver, se você colocar um grande resumo, viver dói mais do que é gostoso, né? Só que a gente tem, sim, esses momentos de felicidade, que fazem a nossa existência valer muito a pena, né? E aí entra a minha crença, que é a gente estar nesse planeta aqui pra poder evoluir, porque a gente vai chegar uma hora que a gente vai evoluir, pra ir pra um planeta onde - ou pra ir pra um lugar, ou pra ir pra uma dimensão - toda essa dor não vai mais ter função de ser, porque eu não nego mais a existência do outro, sabe? Porque eu não mais infrinjo dor ao outro por ambição ou por ganância. Onde vencer na vida não vai ser chegar no fim dela com um monte de dinheiro que eu não vou poder gastar e esse dinheiro fez a falta para outros milhares de seres humanos que ficaram sem comer, sem morar, sabe? Que a felicidade é a vitória da vida, é a jornada, é o caminho da vida e não o fim dela, sabe? Então, você chegar aqui, imagina, eu tenho 49 anos de idade, me considero uma pessoa jovem com 49, e você ter uma legião dessa com você, do teu lado, e o trabalho é um trabalho que dói. O trabalho que a gente faz dói. Não é pra qualquer um, porque dói. E ainda assim essa legião não arredar pé, porque ela sabe que pode doer um pouco mais pra mim aqui, mas um pouco da minha dor aqui vai ser um tremendo alívio pra aquela criança, pra aquele idoso, pra aquela comunidade, porque eu decidi me mover, descruzar os braços, pra poder fazer a justiça social acontecer, porque ela não acontece por milagre. Pros meus amigos que são religiosos, que são aliados a nós, na nossa jornada, no nosso caminho, o que eu falo pra eles é que o milagre acontece, sim, só que o milagre acontece pelas nossas mãos. A gente é resultado da oração de muita gente. Quando às quatro e meia da manhã a criança está tremendo de fome com a mãe, embaixo de um viaduto úmido e chega uma legião de gente com cobertor, comida e bebida quente. E a pessoa estava já rezando pra Jesus Cristo, pra Deus, seja pra quem for, pra poder fazer com que anjos acampassem ao lado dela, para poder ajudar a criança dela a atravessar aquele dia e aí chega o GAS, eu falo pra essa gente: “Vocês são o resultado da oração de muita gente”. Então o milagre não é mágica. O milagre é a manifestação da energia dentro da gente. É quando nós entendemos o nosso papel como seres que resolvem construir, ao invés de destruir, e a gente faz essa energia se manifestar através do bem materializado, do bem prático, a gente é resultado dessas orações. Só que não é nada etéreo, não é nada pá. O milagre é você, filho, que acabou de acordar, se juntou comigo aqui, tomou seu banho, está cansado, saiu do trabalho, mesmo assim você veio, ajudou a fazer toda a organização das doações, pra poder chegar lá quatro horas e meia da manhã, você estar embaixo do viaduto, pra poder entregar comida pra aquela criança que estava gritando de fome, com uma mãe angustiada do lado, muitas vezes sem água pra poder fazer o próprio asseio.
P/1 - Ao longo desses anos de história já dentro do GAS, teve alguma história, algum encontro muito marcante, muito significativo para você?
R – Bom, a gente tem sempre algumas situações que são mais chocantes, outras que são mais emocionantes, só que tudo isso depende do nosso espírito no dia, porque eu posso estar muito mais refratário à emoção num momento de tensão e estar vulnerável num momento de tranquilidade, por exemplo. A gente já teve uma série de situações, que sempre quando envolvem crianças e envolvem idosos, sempre maltratam mais a nossa capacidade de resiliência, porque pra trabalhar o tempo inteiro com gente que está em situação de extrema vulnerabilidade, você precisa trabalhar a sua resiliência o tempo inteiro, pra poder aguentar o impacto de ver a dor da vulnerabilidade diante de seus próprios olhos, conseguir agir pra poder amenizar aquela dor, pra poder ser lenitivo naquele momento. Então, você começa a entender vários momentos que você atravessa como construção de quem você precisa ser, para poder ir mais longe e você começa a participar de vários momentos e vê várias situações que você fala: “Gente do céu!” E aí, geralmente, o voluntário sente... alguns voluntários sentem a dor logo de cara e não conseguem voltar mais. Alguns conseguem segurar o impacto. Um dia sempre vai doer, um dia sempre você vai chorar, porque você não tem como ver tanta mazela, tanta dor e ficar neutro, sabe? E tem a ‘galera’ que vai sentir a dor a partir do momento que ela consegue enxergar um parente dela naquela situação, que é a maioria das vezes. Quando a pessoa não... ela vê o pai, quando ela vê a mãe, quando ela vê o irmão, quando ela vê o filho naquela imagem, né? Só que eu tô falando de uma maneira figurada, né, que é aquela maneira que eu digo pra você: “Imagina se fosse meu filho. Imagina se fosse o meu pai”. Agora eu te digo o dia que eu vi uma voluntária nossa encontrar a própria mãe na rua. Esse dia foi de uma consternação, foi de uma avalanche de sentimentos que a gente teve ali, que a gente não sabia se acolhia a filha, que estava vendo a mãe de verdade dela na rua, se acolhia as amigas, se acolhia o grupo inteiro, porque aquele foi um dia muito difícil. Muito difícil pra mim, que estava conduzindo o grupo, inclusive, porque pela primeira vez eu estava vendo uma voluntária encontrar um parente. E não era qualquer parente, era a mãe. Esse dia foi um dia extremamente chocante pra mim, porque naquele momento o que eu vi foi a filha acudindo as amigas e os companheiros de voluntariado, suportar o impacto, acolher a mãe, que se negou a ir embora, que a mãe já estava em situação de rua já havia algum tempo, por conta de uso de droga, enfim, esse tipo de coisa existe uma série de questões com essa família, né? Só que houve o estopim maior, foi o uso da droga, mas era uma série de questões com essa família. E você ver aquela menina jovem, que devia ter, na ocasião, acho que no máximo uns 26 anos, conduzir com uma grandeza aquele momento e amparar a dor das amigas, conseguir fazer todo o trabalho, a gente deixou o pessoal mais tempo naquele momento, e aí depois voltar e ninguém conseguir falar no caminho de volta. Eu lembro que depois eu fiquei eu acho que umas três horas com essa moça no telefone, porque a gente fez todo atendimento pra mãe, teve toda aquela situação e tudo mais, e aí, quando a gente voltou, ninguém falava nada, aquele silêncio sepulcral. Todo mundo foi pra sua casa, todo mundo foi dormir, quem conseguiu dormir. E eu lembro que uns três ou quatro dias depois, foi quando ela quis me ligar. Ela ligou e chorou, contou a história inteira da família dela e tudo mais. Nossa, eu lembrando disso, eu volto naquele dia, eu volto naquele sentimento de que vontade que eu tinha - olha, isso aqui me arrepia. Só de lembrar do dia, eu fico arrepiado. Gente do céu! - de pegar essa menina e fazer voltar ela ter dois anos, um ano de idade, e colocá-la no meu colo, assim, como se fosse um bebê, sabe? Eu sinto hoje o que eu senti naquela hora, que a minha vontade era essa. De fazer, nossa, de voltar: “Olha, vira criança de volta. Deixa eu te carregar no colo aqui, sabe? E deixar aqui, ó, no meu peito, pra você não sofrer nada”. Esse dia foi uma escola pra mim, porque eu percebi que a gente é ingerente na maioria das vezes. Quando eu falo ingerente, não é de você não ter a condição de ter o controle das coisas, ou de você não ser controlável, mas de você entender que a rua e a vulnerabilidade, se não é a tua, não é você que controla, não é você que consegue dar controle para determinadas situações, porque no nosso trabalho, naturalmente, a gente tem uma série de coisas que a gente sempre tem as previsões de risco e dentro das previsões de risco a gente consegue controlar nosso trabalho. Nesse dia eu vi que o GAS e falei: “Então, é o seguinte: saiba, você vai trabalhar com isso daí, só que você vai trabalhar com isso, só que você não vai ter condição de gerenciar tudo o tempo inteiro, porque você está lidando com o máximo da vulnerabilidade, que é quando a pessoa já perdeu tudo, menos a vida. E se perder tudo menos a vida, ela vale também pra quem não está na rua. Mas quem perdeu a mãe, por exemplo, pra droga, pro vício, pro crime e a sua mãe era tudo pra você e viver virou uma obrigação temporal”. Mas nesse caso, por sorte, o tempo passou, essa menina se casou, ela conseguiu reencontrar a vontade de viver. O irmão foi preso, o pai morreu e a mãe sumiu. Só que ela conseguiu retomar a força da vida. Então, aquela desesperança que existia passou, ela falou: “A família de onde eu vim não vai existir mais”. Então, ela decidiu criar a família dela. Então, isso daí, pra mim, foi uma tremenda aula, impactante, chocante, em vários níveis, que foi acompanhar a história dessa voluntária. E uma pessoa de uma doçura, que às vezes você até torce pra pessoa ser um pouco mais rude, sabe, grossa com você, que é pra você sentir menos, né? No nosso egoísmo. Mas era uma pessoa tão doce que eu falava: “Gente do céu, por que isso?” Mas isso foi, de todas as histórias, todas, já vi muita coisa acontecer, eu acho que isso daí foi a mais impactante de todas, porque envolvia o núcleo nervoso de uma família se encontrando na minha frente, sem nenhuma programação. Depois, imagina, a gente tratou de levar pessoas pra se tratarem, sabe? Quantas pessoas, animais, quantos animais a gente já resgatou, sabe? Quantas vidas a gente já tirou da rua! Só que essa história não é uma história que tem um final de filme. O final de filme era a mãe ficar bem, o pai estar bem, o filho estar bem, mas não, existia todas as estruturas familiares que ela foi mantida e essa menina decidiu construir uma família, na esperança que ela tinha da família que não puderam oferecer pra ela. Os pais não puderam oferecer a família que ela queria, ela criou a dela. É triste, mas é uma história bonita, sabe?
P/1 - Como funciona o trabalho de vocês?
R - Bom, a gente... primeiro o trabalho do GAS começou lá atrás, que era eu, imagina, como professor, professor não tem dinheiro, no Brasil. (risos) Então, o que eu tinha era só boa vontade, porque eu não tinha nem carro, tinha acabado de me separar, inclusive. Morava de favor na casa da minha mãe. Ela jamais vai falar que é favor, porque é mãe, né? Mas era, porque ela, enfim, me ajudou. Eu ficando na casa dela e tudo mais, recém-separado, deixei tudo que eu tinha, pela segunda vez eu deixei tudo que eu tinha, fui embora de casa só com a roupa do corpo, com as coisas minhas mesmo, né? Que eram roupas, na verdade, as coisas minhas, (risos) que eu tinha. E ali, então, fui morar com a minha mãe, aconteceu uma situação onde morreu... quatro pessoas morreram de frio num dia em São Paulo, que é uma cidade tropical, de um país tropical. Morrer gente de frio tem alguma coisa muito errada. E aí o que houve então foi que eu comecei a fazer vídeo na internet e falar: “ ‘Galera’, tem algo muito errado aqui, gente. Não é possível, em São Paulo morrer gente de frio, está tudo errado. Isso daqui não é Sibéria, isso aqui não é Bariloche, está errado isso daqui. Então, quem tiver alguma coisa pra doar: blusa, não sei, cobertor, me traz, traz pra mim”. Aonde? Lá nas Casas André Luiz, que era aquele centro que eu aprendi a fazer o trabalho “Me leva lá, que de lá eu cato as coisas e coloco no carro emprestado, que era o carro emprestado da minha mãe, nem carro eu tinha mais, tinha deixado tudo e saí pra entregar. Pegava o carro emprestado da minha mãe, catava as coisas dos amigos que doavam, que o que era meu eu já tinha doado e saía pra poder fazer as entregas. Só que, o que aconteceu? Era toda sexta-feira isso, toda sexta-feira. E aí começou a vir um, outro, um, outro, um, outro, começou a se transformar em um grupo, a ‘galera’ vindo junto. Acabou o inverno e eu falei: “Tá, acabou o inverno, e agora, que a gente conhece o fulano pelo nome, que a gente conhece o nome da criança? Quem sabe se um empurrãozinho aqui, ó, esse camarada aqui vai sair dessa situação. E agora?” E aí a gente não parou mais e era sempre aquela coisa de: “Gente, quem puder ajudar com isso daqui, traz água, traz suco, traz lanche”. E aí ia pedindo, na internet. Só que o trabalho começou a se organizar, a gente começou a pedir, falar: “Quem puder ajudar com dez reais, cinquenta reais, não sei que lá e tal”. A gente ia comprando as coisas e comprando cada vez mais, atendendo cada vez mais gente. Cada vez mais gente. E aí nessa chegou o Natal, aí eu lembro de uma ocasião, muito curiosa, inclusive, que era uma ‘galera’ só, que ia todo mundo junto, pro mesmo lugar. E eu lembro que, nessa ocasião, eu estava com uma menina e a gente não dava nada muito certo, não. Sempre muita confusão e tal. E aí a gente estava brigando, discutindo pelo celular e a minha irmã e a outra coordenadora estavam discutindo também, e daí vinha eu aqui, isso na hora de sair pra ação, que era ação de Natal, de entrega de panetones, tudo organizado nos carros. E eu brigando aqui com a namorada, aí vinha uma e falava: “Ah, eu não vou fazer ação com a fulana”. Falei: “Está bom, espera um pouquinho aí, blá blá blá blá blá blá”. Depois vinha a outra e falava: “Não vou fazer ação com a tua irmã”. Falei: “Calma aí, já vou resolver” e eu brigando aqui e falei: “Quer saber? É isso aí, então tchau e um abraço”. Desliguei aqui e falei: “Vocês não querem fazer ação juntas? Então você, você e você vão pra lá e você, você e você vão pra cá”. Ali a gente criou as rotas, no GAS. O GAS hoje tem 21 rotas mapeadas. Só pra entender, a gente era uma rota só. A gente passou a ter 21 rotas mapeadas, que cobrem quatrocentos quilômetros na cidade de São Paulo. E ali, então, a gente começou a entender como era a mecânica da vulnerabilidade extrema que é a situação de rua, na cidade de São Paulo. Começamos a entender onde ficava a ‘galera’. Primeiro, onde ficava a aglomeração, depois onde ficava a ‘galera’ isolada, em todas as zonas da cidade. O centro principal, onde fica a maior população aglomerada, e depois centro expandido, e começamos a passar para as periferias. E a gente começou a mapear tudo. E ‘galera’ vindo, vindo, vindo, vindo, a gente começou a organizar cada vez mais e eu comecei a entender e falei: “Eu preciso formar mais gente para ir para esse lado”. Aí eu comecei a criar frentes de trabalho. A primeira frente de trabalho criada foi a liderança de rota, que é o quê? Quem liderava a rota era eu. Eu ia: “Vamos lá, ‘galera’, para cá. Olha, tem uma pessoa para atender aqui, agora vamos atender esse grupo aqui”. Ia com o carro e o comboio vindo atrás. Só que, a partir do momento que teve aquela divisão no Natal, eu já tinha falado qual era o roteiro para ir para a zona oeste e outro para a zona norte. Eu falei: “Mas e a zona leste? E o Centro? E aquele lugar? E aquele lugar outro?” Aí eu comecei, toda essa ‘galera’ que vinha sempre com a gente, falei: “Vem cá. Sabe aquele caminho que a gente faz para ir para o Centro, vai pro Pátio do Colégio, depois vai para Líbero Badaró, depois pega o Anhangabaú? Você consegue levar essa ‘galera’ para lá?” “Ah, consigo” “Então vai lá. Você vai liderar essa rota. Ah, você sabe aquele caminho que a gente faz, que passa pelo Canindé, depois pelo Pari, passa pelo Brás, faz o Belém, chega na Mooca?” “Ah, conheço” “Você consegue levar essa ‘galera’?” “Consigo”. E ali eu ia formando as pessoas que faziam o mesmo trabalho que eu fazia, que tinham capacidade emocional de lidar com intercorrências, com as dúvidas que vão aparecendo no trabalho noturno, porque a gente está no meio da noite, a gente atravessa a noite, porque o trabalho começa às dez horas da noite e termina às cinco horas da manhã. Então, eu comecei a formar esse pessoal que foi a liderança de rota, que existe a liderança de rota até hoje. E aí o tempo foi continuando, a gente começou a ver que, estamos aqui: “Amigão, vou deixar aqui um cobertor pro teu amigo, porque está um frio de quebrar os ossos”. E aí a gente entregava na mão de um, e no outro a gente ia cobrir o outro camarada. E eu falei: “Não, você pode cobrir esse camarada aí” “Mas ele é meu camarada, não é meu amigo, não” Falei: “Ah, é?” Ele: “É, porque meu amigo é esse”. E aí ele tirava o cobertor, cachorrinho (risos) deitado aqui. E eu falei: “Ah, esse é seu amigo?” “É esse aqui, não sei o que lá”. Aí falamos: “Precisa trazer ração pra essa garotada aí, porque tem muito cachorro, tem gato e tal”, a gente começou a se organizar. Aí nasce uma outra frente do GAS, que é o GAS Pets, que é uma frente de pessoas que são geralmente cuidadoras, essa ‘galera’ que tem mais contato com o animal, e a ‘galera’ que já vai, enquanto está atendendo a população em situação de rua e esse outro time que está junto: “Você tem cachorro, você tem gato, quantos? Quanto ele come, ele é grande, ele é filhote, ele é grande e tal, não sei o que lá, bla bla bla” e já vai atendendo o animal. Então, tem uma frente que atende a pessoa e tem a frente que atende o animal. E ali nasce o GAS Pets. Aí nessa, estamos ali, no centro da cidade, atendendo, e daqui a pouco a gente entrega um pão pra uma senhora, a senhora vai, tira o miolo do pão, guarda o negócio, e eu falei: “Por que a senhora fez isso?” “Ah, é porque eu tô ‘naqueles dias’ e tal, não tem absorvente”. Nessa daí apareceu, aí vem a Leila, que é uma das diretoras do GAS e falou: “Não, pelo amor de Deus, pode comer. Eu vou dar outro pão pra senhora e eu vou até o carro, que eu já vou resolver esse problema”. Trouxe lenço umedecido e pacote de absorvente pra mulher. Naquele dia, a Leila começou a fazer uma tremenda movimentação, inclusive na Assembleia, que hoje permitiu com que o estado inteiro de São Paulo fizesse a entrega de absorvente nas escolas públicas, onde as meninas não têm condição de comprar absorvente. E aí nasce o Elas Também Sangram, que é o que a gente chama de GAS ETS. O ETS é uma frente exclusiva de atendimento à mulher ou às pessoas vulneráveis que sangram, homens trans também. E ali então a gente tem, hoje não só o ETS atende as nossas rotas, como também atende outras ONGs e até a cidade que não chega recurso do estado. A gente é que dá o absorvente para as escolas. A gente chegou nesse lugar. Então, a gente começou a entender uma série de necessidades, uma série de situações, e fomos construindo frentes de trabalho. Hoje o GAS tem dezoito frentes de trabalho diferentes, que tem desde a comunicação, fotografia, recepção, distribuição, enfim, uma série de trabalhos, que são específicos, TI, trabalhos específicos, sabe, onde você precisa de saberes que são técnicos. Então, a gente criou todos esses lugares de trabalho, pra poder conseguir criar uma rede sólida, onde a gente pudesse fazer esse trabalho ser replicável e conseguir atender cada vez mais pessoas e hoje está na cidade de São Paulo inteira e mais nove cidades, e também atende a capital do Rio de Janeiro. E que esse trabalho seja cada vez mais multiplicável. O que a gente quer é isso: a importância de materializar o bem, sabe, que pra gente é o carro-chefe do GAS, materializar o bem, fazer com que você saiba que existe a possibilidade de você fazer a diferença na vida do próximo com as ferramentas que você tem. Imagina só! Porque se eu dependesse de ter dinheiro pra ajudar o próximo, eu nunca ia fazer nada. Aquilo que eu falei lá no início: eu era um professor recém-divorciado, honesto com a ex-mulher, sabe, e comigo mesmo, porque quando a gente decidiu separar, eu falei: “Eu não quero nada disso aqui, que inclusive a gente construiu junto, porque eu prefiro que você tenha menos dificuldade que eu. Então não tem problema, eu vou atrás de tudo isso daqui de novo. Você fica com o carro, fica com casa, fica com...”. Eu lembro que inclusive a minha mãe me deu um jogo de louça, de porcelana, que ela ficou ‘louca da vida’ quando eu falei. “Você deixou até isso!” Eu falei: “Eu deixei até isso, mãe. Sabe por quê? Porque pra mim é matéria. Isso daqui eu vou, compro de novo, sabe? Mas ela gostava tanto desse jogo de porcelana, que eu quero que ela use mesmo. Ela vai casar de novo? Que uso com o marido novo, não estou nem aí, sabe? O que importa é que ela seja feliz com isso daí, sabe? Enfim, se precisar, compro de novo. Enfim, vamos que vamos, vamos nessa”. Essas questões que são pontuais, sabe, que fazem a gente entender o que é importante de fato para nós é o que eu procuro replicar para os nossos, para todo mundo que participa do GAS: o que de fato é importante? Qual é o teu papel na tua existência? Qual é o teu papel no meio onde você vive? Qual é o impacto que a existência de você ser tem positivamente nas vidas que te cercam? Todas as vidas. As animais, inclusive. E a gente tem conseguido conscientizar cada vez mais pessoas que, poxa, viver vai valer a pena quando vale a pena pra todo mundo, não só pra mim. Quando valer a pena pra todo mundo, putz, vai ser ‘da hora’ viver. Vou sofrer menos, sabe? Porque, ‘meu’, é simples, ‘cara’, uma matemática tão básica: ‘cara’, se não faltar nada pro outro, o outro não vai precisar colocar o ‘cano’ na tua cara na hora que você estiver saindo da academia, pra poder colocar comida na barriga do filho dele. Então isso é uma conta, grosso modo, muito básica de ser feita. O mundo é um lugar desigual e desajustado. E esse desajuste não está na periferia, não está no pobre. O desajuste está em quem rege o poder. Esse é o grande desajuste. Só que vai chegar eu - um professor, todo idealista, não sei o que lá, pacifista que eu sou - lá para poder mudar o status quo? Nós todos podemos fazer isso. Eu sozinho não posso. Pra isso eu preciso da união de todos. Eu acredito que a transformação só pode acontecer e ela vai acontecer com a união pacífica e ordeira pela dignidade de todos. Aí a gente consegue transformar esse lugar. E é pra isso que o GAS existe. E é assim que o GAS funciona.
P/1 - E como foi se tornar pai? E queria saber como é pro seu filho saber do seu trabalho.
R - É, ele no primeiro lugar, né? Que foi, pra mim, um negócio muito ‘louco’, inclusive. Muito ‘louco’, porque é o seguinte: eu lembro o dia que eu quis me tornar pai. Eu estava voltando pra casa do trabalho e eu lembro que eu estava passando de carro, eu tinha um Corsa Sedan, na época e eu estava passando embaixo da passarela do metrô Parada Inglesa, na Avenida Luís Dumont Vilares, na zona norte de São Paulo. Eu estava passando embaixo dessa passarela do metrô, quando me deu um rompante, uma coisa muito ‘louca’, que era: “Eu quero ser pai, eu quero ser pai. Imagina que muito ‘louco’ que deve ser pai!” Naquele exato momento, me deu uma coisa, que era: “‘Cara’, eu quero ser pai”. E aí eu namorava há pouco tempo, sabe, com a mãe do Andrei. Há pouco tempo eu namorava com ela. E aí eu cheguei pra ela e falei: “‘Cara’, ‘mano’, me deu um ‘bagulho muito doido’” “Ah, o que é?” “O maior desejo de ser pai e tal, uma ‘parada’ bem ‘doida’”, né? Eu acho legal essa história de ser pai, mas pô, eu nunca tive um desejo tão inflamado que nem me deu, assim, sabe? Ela: “Ah, que legal, mas ‘segura a sua onda’ aí. (risos) Mais pra frente a gente pode pensar nisso. Aí tudo bem”. E aí a gente engravidou. Só que não foi a gravidez do Andrei, foi a gravidez da Sofia, que foi minha primeira filha, que morreu, infelizmente, por conta de um erro médico, ainda na gestação, no final da gestação. E foi uma situação extremamente traumatizante pra gente, pra mim e pra Marcia, que é minha... hoje é uma grande amiga minha, minha ex-mulher, mãe do Andrei que, enfim, ela teve toda uma questão com os sangramentos na gestação e tal, foi uma sequência de situações bem traumatizantes e eu chegar antes do resgate, sabe assim, pra poder salvá-la e ela estar no meio do trabalho, deitada no meio de uma poça de sangue. Então eu tenho flashs, acho que a minha cabeça, eu acho que, pra me preservar, acho que ela pagou uma série de coisas, sabe? Então, eu lembro de alguns flashes só. E ali eu lembro que aconteceu uma série de situações, até que cometeram uma série de erros crassos médicos, que acabaram matando a minha filha, que já tinha quarto, já tinha nome, já tinha todo enxoval pronto e ela poderia ser salva, porque ela foi morta, a verdade é essa, né, com tempo de vida onde ela poderia sobreviver, sabe? E fizeram curetagem, sabe, quando ela tinha cinco meses, porque teve um sangramento, falou: “Ah, não, perdeu. Vou ter que fazer a curetagem”. Voltando pra casa, uma semana depois, a Marcia sentiu a barriga mexer, a gente voltou, fizemos ultrassom, a criança estava inteira lá. Olha o terror que a gente passou com isso daí! E aí, enfim, aconteceu tudo isso daí e a gente a perdeu, nós perdemos, só que nós perdemos a Sofia e aí a gente ficou muito, muito aproximado um do outro e aí eu lembro que a gente... eu estava chegando em casa do trabalho e tudo mais, e aí eram umas dez e dez da noite, ela me chama de neguinho e eu a chamo de neguinha e aí ela falou assim: “Neguinho, eu estou sentindo uma câimbra nessa perna aqui” e eu ia fazer massagem na perna dela, e aí começava uma crise distópica dela, onde ela se desconectava totalmente da realidade e falava: “Cadê minha filha? Eu preciso buscar minha filha, ela está no hospital. Vamos lá no hospital agora”. E falava gritando e chorando, totalmente descontrolada. E aí eu ia, a pegava, a colocava no carro, ficava andando com ela, porque eu sabia que ela não estava em si. E eu também não podia levá-la pro hospital, porque não tinha criança nenhuma no hospital. E eu ficava andando com ela sem saber o que fazer. Não é porque eu sabia o que eu estava fazendo. Eu não estava andando com ela achando: “Ah, eu vou andar com ela de carro e ela vai melhorar”. Eu não sabia pra onde eu ia. E ela adormeceu, voltei com ela, a carregando - morava no 2º andar, um prédio que não tinha elevador - no colo, a colocava de volta. E aí, no dia seguinte ela acordou e falou: “Ah, não sei o que lá”. E eu falei assim: “Você não se lembra de ontem?” Ela: “Ontem o quê?” “Que aconteceu isso e aquilo outro”.
Ela falou: “Não lembro de nada disso. Eu só lembro que eu simplesmente ‘apaguei’ e dormi”. E eu falei: “Gente, não é possível!” No dia seguinte, a gente ‘batendo papo’, vendo um filme, não sei o que lá, dez e dez da noite, incrível, ela chegava e falava: “Ai, neguinho, tô sentindo uma câimbra na minha perna”. Na mesma perna, sentindo a mesma câimbra, ela ‘desligava’: “Cadê minha filha, não sei o que lá e tal”. Quando foi a quarta vez que aconteceu isso, porque foi um dia seguido do outro, eu a peguei e fui até o pronto-socorro do Pari e eu lembro que, na ocasião, tinha um médico - e tinha essas portas, sabe, que abrem e fecham automática? - que estava, por alguma circunstância, falando com uma moça no balcão. Eu parei o carro de qualquer jeito, falei: “Doutor, pelo amor de Deus, não sei o que lá, blá blá blá blá blá blá”. Expliquei a situação pra ele e ele falou assim: “Olha, calma. Calma. Eu imagino o que esteja acontecendo com a sua esposa. Confie em mim”. Chamou mais uma enfermeira, mais uma assistente e tal: “Traz isso e aquilo outro”, o médico pediu pra trazer. Ele chegou e falou assim: “Olha, eu vou dar essa medicação pra sua esposa e você vai ter que fazer isso, isso e aquilo outro depois, tá?”, que era acompanhamento com psiquiatra, psicólogo e tudo mais, aquela coisa toda, né? E ia ter que voltar, ia precisar voltar à obstetra, inclusive. Foi quando a gente chegou e ela falou: “Ai, doutor, eu vim buscar minha filha” “Vamos lá pegar a nenê, então? Vamos lá pegar a nenê”. Pegou, a tirou do carro, a colocou numa cadeira de rodas, foi entrando com ela no hospital: “Vamos entrar, mas você precisa tomar essa vitamina”. Tomou e parecia aquelas coisas que você toma pra fazer a endoscopia, que você ‘apaga’, o negócio. Ela ‘apagou’, tomou o negócio e ‘apagou’. Ele falou: “Eu dei aqui pra ela esse remédio, pra ela poder dormir. Ela vai dormir até amanhã. Só que você precisa fazer isso, isso e aquilo outro”. No dia seguinte, falei: “Você lembra disso, que a gente foi parar no hospital e blá blá blá blá blá blá?” Ela falou: “Não lembro”. Foi quando a levei, então, pra poder fazer todo o tratamento e passou isso. Passou, só que foi tão desgastante, tão traumatizante pra gente toda essa circunstância, a nossa relação acabou se desgastando, e aí ela decidiu se separar e aí eu falei: “Bom, tudo bem, fazer o quê?” Uma semana depois ela me liga e fala: “Você pode vir aqui na minha mãe?” “Posso, tal”. Fui lá na casa da mãe dela. Cheguei lá, ela estava chorando e tal, eu falei: “O que foi? O que houve? Não sei o que lá, e tal” e ela falou: “Eu quero que você veja isso”. Era exame de gravidez, ela estava grávida. (risos) E aí eu ria, né? Ela: “Eu tô chorando, você está rindo?” Eu falei: “Pô, é lógico, ‘mano’, maior barato que eu queria ser pai”. (risos) “A gente está separado”. Eu falei: “Por mim, estava. (risos) Por mim, você já pode voltar pra casa hoje”. E ela voltou naquele dia pra casa. A mãe dela, a gente se dava muito bem com a família - sempre me dei bem, até hoje, inclusive - dela. E a mãe dela ficou feliz da vida, que ela voltou e tudo mais, enfim. E aí eu lembro que essa gravidez eu acompanhei tudo nos mínimos detalhes, todas as consultas com a obstetra, que inclusive era uma obstetra que não fazia parte do plano, eu paguei por fora, para ela se sentir mais à vontade. Então, acompanhei tudo, estava em tudo. Eu estava lá, não a deixava fazer um esforço sequer, por medo de acontecer a mesma coisa que tinha acontecido antes. E acompanhei tudo com ela ali e tal, enfim, e aí tocava violão, tocava Beatles pro Andrei na barriga, sabe? Enfim. E tudo, da melhor maneira que podia ser, foi. E foi da melhor maneira possível. O Andrei nasceu mergulhado no amor, primeiro neto das duas famílias, sabe? E um pai que já nasceu o amando tanto, sabe assim? Um negócio muito ‘doido’, que até falo pra ele: “‘Cara, te amava antes, e você estava na barriga da tua mãe”. E, assim, esse amor se reflete no que é hoje a nossa relação, de muito amor entre nós, muita amizade. É lógico, ele é jovem e jovem às vezes dá umas ‘bolas na trave’, né? Enfim, hoje ele tem dezenove anos, né? Já chegou a dar umas ‘bolas na trave’ com o pai e tal, mas quando falo ‘bolas na trave’ do pai é que ele me respondeu de um jeito bem atravessado, ele percebeu, sabe, que não é esse jeito que a gente se trata em família e tal, e está... e a gente é muito amigo. Muito amigo. Também é músico, também toca. Gosta das mesmas... tem as mesmas ideias que eu tenho em relação à questão da vida como um todo, né? Da questão progressista da vida, que a gente precisa defender os direitos humanos. Ele também é esse defensor, sabe? Ele é até um pouco mais do que eu, que eu falo pra ele: “Calma aí, filhão, porque a gente precisa ir devagar, não é nessa chuaaaa, essa revolta toda, vamos devagar”. E ele tem muito orgulho do trabalho do pai, né, porque ele se considera um comunista, né? E aí eu falo: “Calma, amigão, que é bem devagar o andor. A gente está no Brasil, o negócio é outro aqui”, porque ele tem um pai que é progressista, ativista, né? E aí ele tem essa alegria de saber: “‘Cara’, meu pai vive a causa. Eu quero isso também, sabe? Meu pai vive a causa”. E às vezes ele vem querer me falar: “Então, você não acha que a gente deveria partir pra algo um pouco mais radical, ser um pouco mais revolucionário?” Eu falei: “Calma aí, amigão. A gente está num mundo polarizado hoje, que a gente não tem tanta condição assim de ficar ‘dando carta’. A gente precisa primeiro salvar a vida de quem está morrendo hoje, pra depois começar a debater certos assuntos que são um pouco mais estruturais”. Pra isso a gente precisa de ajuda da Academia, que não está fazendo nada, hoje, por nós. Nada. Pouca coisa, na verdade. Não posso falar nada que falar nada é generalizar e toda a generalização não é nada inteligente. E aí, nesse contexto, eu tenho esse meu filho, que é uma geração que veio digital. Eu nasci analógico, ele já veio totalmente digital, manjando melhor do que eu, uma série de... ele manja programar, não manjo nada de programação, sabe? E com ‘fogo por dentro’, só que é aquela coisa: ele precisa de norte. O norte também é a prática, porque ele também é muito do livro, da Academia, disso e aquilo outro, eu falo: “Calma, a gente precisa encontrar caminhos que sejam viáveis pra todos aqui. Eu sei que a gente vai conseguir pensar alguma coisa. Mas não pode ser nem o oito, nem o oitenta. A gente tem que tentar ir em um caminho que seja um pouco mais adequado aqui, para ele poder ser aplicável, porque hoje a gente está numa ‘onda’ neofascista, que é extremamente preocupante. Falei: “‘Cara’, se for com essas ideias, você vai ser morto, ‘bicho’, porque a ‘galera’ não está nem aí pra acabar com o outro. A ‘galera’ normalizou o ódio, normalizou a raiva, normalizou o racismo, o feminicídio. Então, a gente precisa ir ‘devagar com o andor’. A gente precisa primeiro mostrar pra toda essa ‘galera’ que, ‘cara’, ser racista é crime, ‘velho’. Ser feminicida é outro crime, sabe? Você negar a existência do outro só porque não é igual a você é crime. Tudo isso daí é crime. Só que a gente precisa conversar com o contraditório. Esse é o grande lance. O grande lance não é chegar com arma, que a gente fez lá atrás, nos anos quarenta, ‘sentando bala’ em todo mundo, pra poder colocar a bandeira da União Soviética e falar: ‘Beleza, agora vamos dividir tudo pra todo mundo’. A gente não está mais nesse lugar. Hoje a gente precisa conversar com o contraditório, entender mil fatores, para poder convencer e trazer pessoas pro nosso entendimento, sem ceifar a vida. Esse papo de revolução, meter arma e matar gente, isso daí já era. A gente precisa tentar isso daí”. E ele tem essa coisa muito romântica ainda, né, de: “Pô, mas se a gente invadir e acabar com os Estados Unidos...”. (risos) Falo: “Não, a gente não vai acabar com os Estados Unidos, ‘velho’. Esquece, não vai. Os ‘caras’ têm poder para mais umas cinco gerações. A gente vai ver um dia os ‘caras’ transitarem o poder, essa transição vai acontecer, como sempre acontece, só que não vai ser nem na minha, nem na tua gestão. Não vai. Então, a gente precisa fazer o quê? Essa conversa contraditória pra poder fazer com que as ideias possam ser incutidas na cabeça do outro, não por imposição, mas por entendimento. Entender como assim que eu vou tratar o meu irmão que é preto pior, porque ele é preto. Quem falou isso daí?” Então, isso, numa conversa racional, eu consigo racionalizar com o outro, através de ideias que: “Não, ué, isso daí é racismo e que o preto, quem disse que é menos do que o branco? Se eu for colocar na olimpíada, o preto tem muito mais medalha que o branco. E aí, como é que faz? Quem que é melhor do que quem aqui, agora?” Então, a gente precisa começar a debater essas ideias de maneira mais inteligente, de uma maneira mais condescendente, de uma maneira mais conciliadora, para fazer a mudança acontecer de uma maneira... a transformação acontecer de uma maneira mais pacífica, enfim, mas não é fácil, ele é um filho ainda muito... que tem muito ‘fogo vibrando na veia’, mas enfim, esse é o Andrei. É um cara que é genial, genial. Que tem um respeito pela família, pela mãe, pelo pai, pelo irmão, sabe assim, que é bonito de ver. É muito bacana de ver.
P/1 - Eu tô preocupada com o seu horário.
R - É, eu nem olhei, na verdade. (risos)
P/1 - É, são cinco... já cinco e cinco. Só pra gente encerrar, a última coisa, eu teria mais um milhão de perguntas, é difícil: como foi, pra você, dividir um pouco da sua história com a gente?
R - É bacana, porque revisitar nossa história eu acho que é muito importante, de tempos em tempos, porque a gente precisa. Às vezes a gente está tão ensimesmado na rotina, no dia a dia, nos problemas, que às vezes a gente acaba esquecendo quem a gente é. Esquecer quem a gente é faz a gente esquecer pra onde a gente vai e isso também pode ser perigoso. Então, eu tenho um caminho que, pra mim, é muito claramente trilhável, assim, né, por conta do propósito. E eu gosto de falar a minha história, né, porque eu sempre revisito lugares aonde, diferente de antigamente, que eu não queria ir, eu gosto de ir pra esses lugares, pra entender como eu superei, de maneira harmoniosa e pacífica, esses lugares que um dia me doeram, e hoje não doem mais, hoje são lembranças que me construíram. Então, eu gosto de revisitar - contando essas histórias - esses lugares, inclusive até pra poder reafirmar o meu propósito de perdão com algumas pessoas, porque às vezes você fala: “Perdoei Maria, perdoei João” e tudo mais, mas você não pode mais ouvir falar. Não, eu posso sim, eu posso abraçar a pessoa na minha frente agora, porque eu não tenho raiva, não tenho rancor, não tenho nada. E é importante isso na nossa construção como indivíduo, deixar essas ‘pedras’ que pesam a nossa existência para trás, para a gente poder ter leveza e construir o nosso caminho. Esse caminho bem construído para nós vai ser um caminho que vai ser útil para mais gente, que é o que eu procuro fazer com a minha vida, por exemplo, que é promover esse asfaltamento, essa pavimentação de um caminho que seja justo e digno para todos. E para isso eu preciso revisitar minhas dores, de tempos em tempos. Não são gatilhos mais. Um dia foram, mas hoje não são mais gatilhos. Hoje são tijolos da minha história. Eu agradeço, porque contar minha história pra vocês pra mim foi muito bacana. É emocionante me contar e contar pra vocês, revisitar a minha história, porque é uma história que um dia doeu, mas hoje me traz muito orgulho.Recolher