Entrevista de Doralice dos Santos Sodré
Entrevistada por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 15/09/2021
Projeto Mulheres no Mercado Rodo-Porto-Ferroviário - Rumo Logística
Entrevista número: PCSH_HV1077
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Bruna Oliveira
P/1 - Vamos lá, Dorinha.
R - Tá.
P/1 - Pra começar, eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome, local e data de nascimento.
R - Ok. Bom dia! Eu sou a Doralice dos Santos Sodré. Nasci em Palmeirândia, município de São Bento. Tenho 45 anos hoje e é um prazer, uma honra, poder participar dessa entrevista com vocês, Museu da Pessoa, registrar os momentos importantes da minha vida. Eu estou muito feliz com esse momento.
P/1 - Oba! E, Dorinha, quais são os nomes dos seus pais?
R - Meu pai é Antônio Lourenço Sodré e minha mãe é Ester Mendes Sodré.
P/1 - E o que eles faziam?
R - Meu pai é lavrador. Cultivava, tinha um ‘gadozinho’, aquele homem do campo. E minha [mãe] também, lavradora, só que ela costurava, cuidava da casa, [eram] as funções deles.
P/1 - E como você descreveria sua relação, tanto com seu pai e com a sua mãe? E se você sabe como eles se conheceram.
R - Como eles se conheceram, assim, a fundo... município do interior, aquelas pessoas, vizinhos, quase que parentes. Não eram parentes, mas todo mundo conhecia todo mundo. É aquela história da família olhar pra aquela menina, aquela moça de família, pessoa que não saía, não era festeira, que o pai então [diz]: “Essa aqui vai ser sua esposa, (risos) esse vai ser seu marido”. E a minha relação com eles era uma relação muito, muito, muito amorosa, aquilo de respeito. De pai mesmo, eu fui criada naquele rígido sistema ainda, de meu pai [não] deixar namorar, minha irmã, pensa, eu já estava caindo os dentes, dezenove anos, papai não deixava, era aquela história, muito brabo. Mamãe não, né? Mãe sempre é mais maleável. Ela deixava...
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Entrevistada por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 15/09/2021
Projeto Mulheres no Mercado Rodo-Porto-Ferroviário - Rumo Logística
Entrevista número: PCSH_HV1077
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Bruna Oliveira
P/1 - Vamos lá, Dorinha.
R - Tá.
P/1 - Pra começar, eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome, local e data de nascimento.
R - Ok. Bom dia! Eu sou a Doralice dos Santos Sodré. Nasci em Palmeirândia, município de São Bento. Tenho 45 anos hoje e é um prazer, uma honra, poder participar dessa entrevista com vocês, Museu da Pessoa, registrar os momentos importantes da minha vida. Eu estou muito feliz com esse momento.
P/1 - Oba! E, Dorinha, quais são os nomes dos seus pais?
R - Meu pai é Antônio Lourenço Sodré e minha mãe é Ester Mendes Sodré.
P/1 - E o que eles faziam?
R - Meu pai é lavrador. Cultivava, tinha um ‘gadozinho’, aquele homem do campo. E minha [mãe] também, lavradora, só que ela costurava, cuidava da casa, [eram] as funções deles.
P/1 - E como você descreveria sua relação, tanto com seu pai e com a sua mãe? E se você sabe como eles se conheceram.
R - Como eles se conheceram, assim, a fundo... município do interior, aquelas pessoas, vizinhos, quase que parentes. Não eram parentes, mas todo mundo conhecia todo mundo. É aquela história da família olhar pra aquela menina, aquela moça de família, pessoa que não saía, não era festeira, que o pai então [diz]: “Essa aqui vai ser sua esposa, (risos) esse vai ser seu marido”. E a minha relação com eles era uma relação muito, muito, muito amorosa, aquilo de respeito. De pai mesmo, eu fui criada naquele rígido sistema ainda, de meu pai [não] deixar namorar, minha irmã, pensa, eu já estava caindo os dentes, dezenove anos, papai não deixava, era aquela história, muito brabo. Mamãe não, né? Mãe sempre é mais maleável. Ela deixava sair, mas tinha que fazer as tarefas de casa. Pra ir numa festa, eu tinha que fazer tudo a semana toda e, se fizesse uma besteirinha um dia, saísse da linha, pronto, não deixava mais. Aí era aquela história, mas era uma coisa com a minha mãe, então, muito companheira, muito amiga. Meu pai, como eu estou te falando, também tem um amor, um carinho, por eu ser a caçulinha das mulheres. Aí sempre é só aquele xodózinho. Mas tudo com muito amor, muito respeito.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho. Nós éramos quatorze [pais e irmãos]. Na verdade, foram dois abortos espontâneos mesmo, não segurou. E dois já faleceram, um com quinze anos e a outra dois meses de nascida. Aí ficamos oito. Quatro mulheres e quatro homens.
P/1 - E como é essa relação com seus irmãos?
R - A minha relação com meus irmãos… nós somos, assim, todo mundo unido. É aquela história, somos amigos, mas sempre tem aquelas confusões, aquele ciuminho: que papai gosta mais de fulano, faz mais gosto daquele, daquela, puxa mais saco pra aquele, mas todos nós nos damos muito bem, principalmente, no momento de saúde, de doença, algum problema, aí a gente está sempre unido. Deixamos as confusõezinhas e as desavenças pra trás (risos).
P/1 - E você sabe a história dos seus avós? Você chegou a conhecer algum?
R - Eu cheguei a conhecer só minha avó por parte de pai e ela vinha a ser minha avó também por parte de mãe, mas porque ela, na verdade, é tia da minha mãe e aí a gente a chamava de vó, porque os pais da minha mãe eu não conheci, quando eu nasci eles já tinham falecido. O meu avô por parte de pai também já tinha falecido. Eu conheci só minha vó, da parte paterna. A gente ia viajar, passava as férias, porque ela morava num municípiozinho do interior, distante da cidade onde a gente morava. Aí íamos, tinha que atravessar um campo de canoa pra ir pra lá. Assim, era gostoso, chegava lá, você sabe, a avó sempre faz gostinho do neto. A gente brincava, ficava lá no sítio comendo fruta, passava o dia, era muito gostoso. Ela também, às vezes, vinha. Ela era uma pessoa muito agradável também, minha avózinha.
P/1 - Dorinha, você sabe a história do seu nascimento? Como seu nome foi escolhido?
R - Minha mãe era também, até esqueci de relatar, era professora. Eu acho que daí que saiu a vocação também, como eu falei ainda agora pra Luiza, que a gente ia descobrindo, a minha formação, que ela perguntou. A minha mãe falou que ela ficava juntando as letras, as sílabas. E, geralmente, aqui pra gente, sempre tem um mês: “Ah, é dia de não sei de qual santo, é não sei qual festa”. (risos) Então, ela juntava as letras, as sílabas e colocava o nome da gente. Tanto que o meu ficou “Doralice dos Santos” porque eu nasci quase próximo à Finados, que é 31 de outubro. Na verdade, é até Dia das Bruxas, mas eu sou uma bruxinha do bem, tá, Bruninha?! (risos) E ela falou que botou por isso, Doralice dos Santos Sodré. E detalhe: eu não gostava de Doralice. Até hoje, mas agora, depois dessa idade, eu já me acostumei com as pessoas me chamando assim. Mas, onde chegava, quando falava “Doralice”, pronto, eu ficava zangada, eu falava em tudo quanto é lugar “eu sou Dora, ou Dorinha”, que eu gosto demais. Mas por que Dora? Porque, Doralice eu achava muito pesado, uma palavra muita pesada. “Quando eu crescer eu vou trocar meu nome”. Mamãe: “Mas que besteira!” (risos) Mas acabei indo e ficou o Doralice, hoje, eu já gosto. (risos)
P/1 - E você sabe a história do seu nascimento?
R - Ah, meu nascimento, em detalhes não, eu sei poucas coisas. Ela falava que ficava e quando foi, nasci em casa. Foi mesmo normal, parto normal. Ela sentiu dores, mas, pelo que ela contava eu ‘judiei’ um pouquinho dela, porque passou o dia todinho sentindo dores. Eu já fui nascer às 16 horas da tarde do dia 31. (risos).
P/1 - Dorinha, e quando você era pequenininha, voltando… você lembra quais eram os principais costumes da sua família? Se tinha alguma comida que lembre sua família, um cheiro, data festiva…
R - Macarrão. Minha mãe gostava muito, principalmente nos finais de semana, dia de domingo era sagrado, sempre ela fazia o macarrão, uma carninha, uma comida frita, assada, uma saladinha. Dia de semana não, era aquela outra, a mistura, mas finais de semana somente no domingo, em casa fazia isso, ela gostava da salada, de macarrão, ou uma carne assada no forno, ou uma carne frita, era esse ritmo. E até hoje eu adaptei isso pra mim. (risos) Trouxe isso pra minha vida e hoje eu passei até pro meu filho, que ele gosta demais de macarrão, macarronada, eu digo: “Não, só aos dias de domingo, final de semana, é uma vez só por semana”. E detalhe: ela fazia muito, me lembro, o macarrão dela era com ovos, que ela fazia assim, ficava muito gostoso. Pensa, minha irmã, uma coisa, uma delícia. (risos)
P/1 - Dorinha, você lembra da casa onde você passou sua infância?
R - Lembro. É assim, onde que eu falei que eu nasci, que era uma ilha, saí de lá, tinha dois anos. Nós viemos, saímos, era na Ilha João Donato, onde essa minha avó morava. Aí nós saímos de lá e viemos pra São Bento. Em São Bento, a gente morava numa casa, era um sítio. Era muito grande o espaço lá, gostoso, porque lá meu pai tinha o cercado, que tinha o gado, criavam galinha, porcos. E, de tarde, eu e meus irmãos, íamos pro curral pra fazer fumaça, pra botar pro gado, por modo de praga. Tinha um monte de pé de fruta, jaca, bananal. Era muito grande. E a gente ficava, depois do almoço, meus pais iam descansar e botavam a gente para ir também, mas eles deitavam, a gente saía. E ia trepar nos pés de jaqueira, ficava lá pro lado do curral, lá no cercado, lá em cima lá, o dia todo brincando. Eles acordavam umas três horas e a gente já tinha aprontado muito.
P/1 - E como era a cidade, o entorno do sítio?
R - É, o sítio não ficava afastado da cidade. Ele ficava numa área e a gente andava pra ir pro centro da cidade. Mas não era longe, não. Ficava mesmo bem distante, era uma área isolada, mas tinha casas ao redor. Também não era rua pra passar carro, pra passar ônibus, essas coisas, não. Tinha o caminho, que, na época, a gente chamava caminho do mato, tinha um caminho de roça. E tinha onde a gente saía porque era pra ir pra cidade, pro centro da cidade, pro mercado, farmácia, pras praças. Tudo isso tem, é uma cidade mesmo, São Bento é uma cidade, se você pesquisar, você vai encontrar. Municipiozinho no interior do Maranhão, mas é bem bacana, tem tudo. Uma cidade mesmo, não é interiorzinho, é tudo bem bacana mesmo.
P/1 - E como era São Bento, nessa época, o que você lembra de São Bento?
R - Ah, na época, era assim: as ruas não eram asfaltadas, eram ruas mesmo só de piçarra, né, que a gente chamava piçarra. Aí tinha os comércios, o mercado, tinha uma delegacia, que ficava tudo uma coisinha em cima da outra, uma coisinha dentro da outra. O mercado aqui, delegacia só um cubículozinho mesmo, onde botava os presos. (risos) Mercado onde vendia os peixes. Ia pro mercado, lá é assim, os peixes eram todos vendidos dentro dos cofos que eles faziam de pindoba, botavam na rua. Aí era a especiaria que ‘tu’ quisesse, ia lá e encontrava de peixe, mussum, que é tradicional lá da terra da gente, um peixe que parece cobra, não sei se tu conhece, mas é uma delícia, por sinal, de Jaçanã… As escolas eram todas do mesmo padrão, mas não era aquela escola igual a de hoje, que já foi crescendo. As praças eram simples, mesmo, só com aqueles banquinhos de cimento. Aí, pra ir pra lá, tinha várias lendas, contos que eles falam, tinha uns cantos lá, que a turma saía pra namorar, que eles chamavam de “nove meses”, (risos) porque ficavam namorando e, podia contar, que depois de noves meses as meninas apareciam grávidas. (risos) Mas, assim, a história dela, em si, é bem bacana. Só que, detalhe, eu não ia pra esse canto não, nunca fui. Não por falta de vontade. Mas, como eu falei, meu pai era rígido mesmo, eu estudava só de manhã e de tarde e não saía, era aquela coisa mesmo bem, bem rígida.
P/1 - Dorinha, nessa época, quais eram suas brincadeiras favoritas?
R - Ah, ô tempo bom! Esse era bom demais também, eu tenho saudade. Eu falo pro meu filho hoje: não tem, ele não brinca mais com essas coisas, hoje tem celular, minha irmã, muito diferente. A gente ia nos finais de semana, era mais só finais de semana, ir pro sítio, a gente marcava com os primos. Aí os colegas, a gente brincava de pegador, de rouba-bandeira, de barquinho, era de casinha, que era pai e mãe e filhos, aquela coisa de menininha fazer a comidinha. Pular corda, taco, rouba-bandeira. E como a área era muito grande lá, o sítio onde a gente morava, todo mundo, os primos, as pessoas, os amigos, os vizinhos, os colegas iam, mas isso dia de domingo também. Ai, era gostoso demais, a gente ficava o dia todo, a tarde toda brincando, muito gostoso.
P/1 - E nessa época você tinha sonhos de profissão? O que você queria ser quando crescesse, você pensava nisso?
R - Pensava. Eu fui estudando e sempre a minha vocação foi ser professora, como eu já falei pra você. Ser professora, eu estudei tanto que fiz, na época, o que era o magistério. Que foi se transformando, que é a pedagogia hoje, né? Mas, na época, chamava magistério. Aí eu comecei, estudei, fiz o meu primário, meu ginásio, aí já passei pro segundo grau. Aí foi quando eu tive que vir de lá, saí de São Bento, de onde eu morava, do conforto, do aconchego da minha casa, dos meus pais, pra vir pra cá, pra São Luís, Maranhão. Pra quê? Porque eu poderia conseguir um emprego, porque para estudar, eu teria que ter estágio, para partir já para [faculdade], os meus pais lá não conseguiam, não tinham condições, porque eles não tinham um emprego fixo. Era só mesmo o que eles faziam, é aquela história: lavrador só pra manter, pra dar alimentação. Aquela vida humilde mesmo, que a gente, que o pai dá pro filhos. Pois é, continuando, aí eu tive que vir pra cá, pra São Luís, para poder procurar emprego, porque aqui eu já ia partir pra segunda fase do meu estudo e aí seria mais complicado, porque lá onde eu estava concluindo, lá em São Bento, não era esse sistema de ir pra escola não, tinha que pegar transporte, porque a escola é tudo perto. E aqui, não, aqui já ia ficar, partir pra uma coisa, porque já era segundo grau, já ia ter que fazer estágio. Aí, você sabe, comprar material pra fazer aula, pra dar aula de estágio pras crianças nas escolas. Então, eu tive que vir logo, pra eu poder procurar emprego. Graças a Deus, com muita luta, correndo atrás, consegui logo também emprego e comecei a trabalhar, a concluir e, graças a Deus, eu concluí até o quarto adicional, porque já ia partir para ingressar pra fazer já a graduação em Pedagogia. Mas aí dei uma paradinha, porque tive problemas, que depois que você vai também me perguntar e eu vou entrar, pra não atropelar a entrevista. (risos).
P/1 - Dorinha, voltando um pouquinho, antes de entrar nessa fase do magistério. Quando você… você lembra da primeira memória sua na escola?
R - Começo a lembrar quando eu fui, eu ia pra escola no terceiro, segundo ano. A minha casa, pra passar pra ir pra escola, geralmente, já nesse período, eu estava estudando pela tarde e, pra eu atravessar, eu tinha um vizinho, que eu morria de medo dele, porque eu era baixinha, eu sempre fui forte, gordinha e muito peludinha. Você precisava ver, minha costa era muito, muito peluda. E ele me chamava de ‘felpudinha’. Eu tinha muita raiva e muito medo dele. Aí chovia pra caramba. Só que aí meu irmão, que ia com a gente, a gente sempre estudou junto, eu e meu irmão mais velho, passava e não estava nem aí e eu morria de [medo]. Chovia e a ponte pra gente atravessar, não era ponte de madeira, eram dois troncos de árvores de mangueira, eram colocados pra gente pra passar por cima. Pense, em uma mulher medrosa na época, né? Porque hoje, graças a Deus, eu me tornei uma mulher muito corajosa. Aí, pra passar, pra atravessar, pra poder ir pra escola, meu irmão passava e ficava: “’Vambora’!” - brigando comigo - “Tu tá medrosa, não sei o quê, ‘vambora’ pra não perder a aula, chegar atrasado”. Eu: “Vem me dar a mão, vem me carregar” “Não, tomara que tu caia, que tu come, sua gorda, não sei o quê”. Começava a me xingar e eu chorava. Aí ele olhava, esse vizinho olhava. Ah, minha irmã, pensa, logo ele vinha pra atravessar. E agora? Eu ficava: “Vou, ou não vou?” E, se eu não fosse, voltasse, por causa que eu não tinha atravessado, ó (sinal de surra). Aí eu: “Meu Deus do céu!” Mas sei que ele vinha: “Vamos embora, vem ‘felpudinha’, eu te atravesso”. Aí, ele me carregava, me atravessava lá, ele vinha por dentro, porque eu tinha medo de atravessar em cima dos troncos, tinha medo dos troncos caírem (risos) e eu cair dentro do rio. E era forte a correnteza. Mas beleza, ele vinha, atravessava e ia embora pra escola. Aí a gente chegava na escola. Meu irmão sempre foi assim. Nesse sentido, ele fazia as coisas erradas, ele ficava brincando. E eu não, porque era direitinha, mas sempre a mulher é mais atenciosa do que os homens, que é homem…. Desculpa, tá, amigo. (risos) Mas aí a gente ia. Quando chegava na escola, tudo certinho, estudava tudo direitinho. Meu irmão aprontava, porque, às vezes, vinha bilhete que ela mandava, reclamando dele. Aí ele falava pra mim: “Se tu entregar pra mamãe, quando chegar, eu vou falar pro papai que tu estava atrás da escola, com o namoradinho”. Ah, minha irmã, pensa, eu chorava demais. Meu Deus do céu! Não entregava e ficava naquela história. Eu sei que, resumindo, essa foi a minha lembrança, que sempre marcou a minha infância na escola. Eu nunca me esqueço disso. Eu digo, às vezes, quando a gente está conversando, eu digo: “Viu, Reinaldo…” - porque é o nome dele - “... tu era muito mal, né? Tu aprontava comigo”. Ele disse: “Tu é besta, que onde que eu ia dizer pro papai que tu estava namorando, tu ficava dando as letras, chorando, aí que ele ia acreditar”. (risos) São coisas de infância, boas, que, às vezes, a gente senta e lembra, momentos que, hoje em dia, é gostoso porque eu vejo que não tem mais isso. Eu falo pra meu filho, às vezes, eu vou lembrando, vou botando essa lembrança pra ele, é triste, mas é muito gostoso. (risos)
P/1 - E você tinha, nessa época, professores que te marcaram? Sua mãe era professora, né, mas, além da sua mãe, tinha professores assim?
R - Tinha várias professoras que eu gostava muito. Porque, eu sempre fui, nessas datas, dia de aniversário de professora, de fazer coraçãozinho, tipo cartãozinho, pra levar. De tentar fazer, tinha trabalho, eu sempre fui bem cuidadosa, caprichava nesse sentido, pra eu tirar nota boa. Eu queria sempre tirar nota melhor, chamar a atenção, fazer um detalhe, botar um coraçãozinho, botar alguma coisa que chamasse a atenção deles, pra eu ganhar nota máxima. E, assim, lembrar de fazer coraçãozinho no quarto ano, na quarta série, na época. É Irani, a professora. Até hoje eu lembro o nome dela, muito carinhosa. E no final de semana, tinha uma festa lá no bairro onde ela morava e a gente fez amizade. Então, era missa, de passar o dia, a gente ia pra lá, ia e passava o dia na casa dela, ela levava a gente - nem parecia professora - era mesmo como se fosse da família, tanto é que ela ainda acabou namorando com meu irmão mais velho. Nesse chamego da gente estar indo pra lá, ela estar vindo lá pra casa, festa, acabaram namorando, quase que se casam, mas não deu certo, não se casaram, não. (risos) Meu irmão aprontou, ela é uma pessoa também séria, não é porque é o meu irmão, mas aí não deu certo, ela terminou com ele, (risos) mas a gente ficou ainda amiga um bom tempo.
P/1 - E você, depois que estava na escola, né, você ficou na mesma escola todo esse tempo, ou você mudou?
R - Da primeira até a terceira série fiz em uma escola, que era Condessa, que ficava justamente nesse período onde tinha essa travessia do rio. Aí, da quarta série, eu já passei para o Antônio Dias, que ficava próximo, no mesmo bairro, na minha rua, da minha casa. Era questão de dez minutos da minha casa pra escola, Antônio Dias. Aí, de lá, eu concluí, fiz da quarta até a oitava série, já do ginásio, porque eu estudava pela tarde e também ficava próximo lá de casa. E depois foi quando eu passei para o primeiro ano, passei pra noite e já foi mais distante, já ficava nessa aí, mas também não tinha transporte, eu ia a pé com meu irmão, eram seis horas da tarde, chegava lá… eram uns vinte minutos só andando, caminhando, normalmente. Aí saía às dez da noite. E foi onde eu concluí o primeiro, segundo e o terceiro ano. Eu vim pra cá, quando estava no segundo ano, foi justamente pro magistério, como eu te falei, já foi já pra fazer o terceiro e quarto adicional. Mas de lá eu estudava também, também tenho lembranças, pra você ver, que eu passei pra noite e a minha mãe veio, teve que vir pra São Luís para se consultar, consultas básicas, rotineiras. Aí meu pai que ficava com a gente e tal. Saía pro colégio, minha irmã, pra você ver como ele era ‘cri cri’ comigo. Eu vinha e tinha hora pra sair e ele já sabia, né? Eram dez, era longe, mas, no máximo, se saísse quinze pras dez, ou dez horas, dez e vinte, estourado, tinha que estar em casa. Pois ele, pra ver se eu estava namorando ou se eu vinha com namorado ㅡ olha que eu já não estava mais criancinha, já estava com meus dezesseis, dezessete, dezoito anos ㅡ Ele ficava escondidinho nos cantos, perto de casa, pra ver se realmente a gente vinha sozinha, minha irmã. (risos) Aí, são lembranças que eu vejo hoje, ainda acontece coisa assim…. hoje ele já comentou e falou com as minhas sobrinhas. Isso é até uma coisa que me chateou, porque marcou também na minha infância, porque a gente fazia pesquisa, já estava no segundo ano e tinha um professor de Biologia lá em São Bento, e tem um campo também, que tem até um _______, é uma história da cidade. A gente tem uma comporta, primeira, segunda, terceira boca d’água. Tem aquelas folhas nas águas, a cebola embaixo da água e a folha em cima [campos alagados]. Então, como era Biologia, a gente tinha aula prática e tinha que fazer a teórica na sala de aula, pra gente conhecer a Biologia, os professores. Aí, a turma toda, pra dizer que era só questão de ter ido só as mulheres ou junto, não. Eram todos os professores mesmo, na sala, a gente ia fazer tipo uma pesquisa no campo. E meu pai tinha saído cedo, cinco horas da manhã, pra levar o gado pro campo. Então, estava só mamãe. Cheguei: “Mamãe, tá certo, a gente vai todo mundo da sala de aula, todo mundo de farda e tudo, beleza, com os professores” “Tá bom, minha filha”. Aí fomos. estou lá, está todo mundo, pense! Meu pai, de longe, veio, ele vinha montado. Eu nunca tinha montado num cavalo, porque eu morria de medo. Ele veio, de longe, quando ele olhou, não quis nem saber. Papai me pegou, desceu desse cavalo, no meio de todo mundo, junto com as pessoas da sala de aula. Só me pegou assim pelo braço e ó (som de tapa), com a mochila de cipó que ele batia no cavalo, mas me deu, me deu. Pensa a vergonha, todo mundo ficou calado. Eu: “Meu Deus, não vou mais pra escola”. Fiquei zangada. porque a reação pra você ver, eu não estava fazendo nada demais, não era escondido, minha mãe estava ciente. Só que ele saiu, ele não procurou saber, ele já foi chegando: “Olha aí, como é que é, depois, se acontecer coisa, olha aí, tu larga tua filha, tu deixa entrar… estava cheio, estava lá, na terceira comporta da água cheia…”. Mas daí, foi que minha mãe explicou para ele o que tinha acontecido, o que eu estava fazendo, que ela estava ciente. Aí, beleza, ele batia, mas batia com vontade, eu estava toda machucada nas costas. Cheguei em casa, estava assim, me deu uma raiva mesmo, um ódio no meu coração, fiquei pensando, pensei em fazer besteira, depois eu pegava a parede, a gente ficava se esfregando, que era pra ferir mais onde estava ferido, porque a gente era mal com a gente também, mesmo. Não podia fazer nada pra ele, meu pai, né? Aí mamãe: “Vai tomar banho”. Foi aí que me deu banho, passou pó, botou na ferida, ficava grosso, o cipó. Aí tá, fiquei deitada lá e chorando, depois ele veio, aí mamãe foi e falou pra ele. Ele ficou calado, se arrependeu, mas também não disse nada. Hoje, graças a Deus, eu não xingo, eu adoro, amo meu pai. E tinha uma irmã minha mais velha, que morava em São Luís e ela foi passar as férias lá e me trouxe, aproveitou e me trouxe pra eu passar as férias e uns dias aqui, com ela. Foi logo nesse período que eu também vim embora pra cá (risos), porque minha irmã me trouxe pra morar com ela, pra justamente eu estudar. Ela disse: “Se conseguir serviço, tu não volta mais pra lá”. Eu fiquei tentando conseguir o tal emprego, mas como minha mãe só tinha eu de filha mulher e também vivia muito doente, problema de saúde que ela tinha. eu não queria já vir pra cá assim, deixá-la, aquela preocupação, só eu de filha, porque as outras três já, todas já tinham filhos, já tinham marido e eu ainda não. Eu botei na minha cabeça que era minha responsabilidade eu estar junto com ela. Que Deus livre acontecesse alguma coisa, eu não estaria lá e também eu ainda não tinha marido, família, filho, não tinha porquê então. Eu estava lá, vivia na minha casinha junto com ela, tinha minhas coisas, então não tinha pra quê. Eu imaginava neste sentido, o meu pensamento. Mas com essa reação do meu pai, eu fiquei pensando justamente nisso. Mas antes de vir pra São Luis, para eu voltar pra escola, porque ainda tinha que voltar depois das férias, certo? Pra eu encarar o meu professor, a minha professora, os meus colegas. Graças a Deus, pensa, eles foram assim, eles falaram logo lá pros colegas. Até porque também conheciam e sabiam o meu jeito, porque se fosse outra pessoa, de aprontar, eles nem teriam o que argumentar. Pediram para que ninguém comentasse no outro dia, quando eu chegasse na sala de aula, não ficar comentando, agir normalmente, como se não tivesse acontecido nada. Aí assim eles fizeram, graças a Deus. Eu senti muito acolhimento nesse sentido, muito apoio. Depois disso, eu fui e pedi desculpa pra ele, porque eu estava com vergonha, que entendessem, que eles sabem, que ele também era pai. E eles entendiam, até porque a criação do meu pai era aquela. Me deram conselho pra que eu não ficasse com raiva dele, não ficasse com aquele rancor no coração. Por que ele agiu errado? Agiu. Mas fazendo aquilo pra me proteger, da maneira dele. Aí, graças a Deus, passou aquele sentimento, aquela coisinha de rancor, de raiva, dentro de mim. Mas eu vim pra cá, não fiquei dessa vez, só passei as férias com ela aqui. Eu tinha que concluir os estudos, não consegui, foi nesse período que eu não consegui nada e nem vaga pra ter a transferência do colégio. Talvez Deus fez isso para que eu voltasse e tudo acontecesse no seu tempo certo. Foi quando eu voltei pra lá, terminei o segundo ano e no final do ano, eu já vim pra cá, pra essa parte que eu estou te falando, pra arrumar emprego e concluir o magistério.
P/1 - E como foi essa primeira viagem? Você já tinha ido pra São Luís?
R - Assim, não para ficar. Vinha também com irmã, vinha a gente quando vinha fazer alguma consulta com mãe, com pai. Mas dessa vez que eu vim pra ficar foi tentando, deu aquela tensão, pensando assim: “Meu Deus, eu vou pra ficar. Minha independência, minha liberdade, o que vai acontecer?” Aí, aquela história, já vinha assim, passando um monte de coisa na cabeça: “Aqui eu vou estar morando com a minha irmã”. Mas, sempre com aquela: ah, não vou estar junto com o pai. Mas ela não vai também deixar que eu fique livre, fique solta, não. Até porque eu ainda vou depender dela, eu vou estar trabalhando. Ela tem o marido, tem a casa, eu não vou fazer como sempre. Eu tentei vir, já naquela preocupação, mas mantendo aquele mesmo sistema. Até porque tem o marido dela, meu cunhado, mas não vai sair, vai estar chegando, porque ninguém gosta disto. Então, eu vou tentar levar o mesmo sistema. Só que já vinha pensando: ah, mas aqui vai ser uma outra liberdade, né, (risos) uma outra coisa de você não ter aquela história de fazer suas coisas, de sair, sabendo se vão deixar ou não. Eu acredito que não vai ser assim. E realmente, foi totalmente diferente, como eu estou te falando. E até hoje, eu tenho esse meu sistema, eu mantenho. De ter essa responsabilidade, mesmo já estando madura, sendo dona da minha vida. Mas eu, geralmente, gosto, eu saio, eu sempre digo: “Eu vou estar em tal lugar” porque, de repente, acontece alguma coisa e a gente sempre tem que dar satisfação da vida da gente pras pessoas, principalmente pra família. Aí, foi desse jeito.
P/1 - E, nessa época, ainda em São Bento, você saía? Ou, por conta do seu pai, assim... você tinha amigos? Ou era muito regrado?
R - Não, tinha amigos, graças a Deus, sempre da escola, amigos, parentes, vizinhos, participava da igreja, de catecismo. Aí, sábado a gente ia, passava a tarde toda. Quando eu falo que eu fui mais fechada, era em relação a sair pra festa, de noite, pra sair com colegas: “Vamos pra tal parte”. Não. Mas com a família, na época, tinha o que a gente chamava de excursão, que ia pra Alcântara, no mês de maio, que tem a Festa do Divino. Sempre fazia a excursão. Como eu estou te falando, era programado já, começava o ano, janeiro, a gente já se programava, já pedia pro meu pai, pra maio, que a gente ia nessa excursão. Aí ficava já o ano todo trabalhando justamente isso. Mas ia, ia pra excursão, ia pra esses eventos que eu estou te falando, saía de manhã pra missa, acordava cedo, porque a missa era seis horas da manhã, matinal. Eu ia com a minha prima. Era mais assim, saía, tinha uma vida mesmo normal. Assim, eu falo que era mais restrita nesse sentido de namoro e ir pra festa, (risos) porque isso aí era bem negociável e olhe lá! (risos)
P/1 - A sua decisão para fazer o magistério, como que foi? Como é que seguiu?
R - Foi assim, acompanhando a minha mãe, né? E foi uma coisa, que você sabe, criança brincava muito. E, geralmente, eu brincava muito, eu tinha minha imaginação, ficava brincando com a imaginação. Eu pegava livros, conversava com as minhas bonequinhas, como se eu estivesse dando aula. Eu botava aqui meus cachos, minhas madeixas, eram aquele surrãozinho mesmo, de negra mesmo, bacaninha. E agora isso aqui não é coisa não, são as cordinhas, está feito as trancinhas. (risos) Aí eu botava uma toalha, um pano, pra dizer que eu tinha o cabelo liso, porque era meio ruinzinho, então, pra dizer que era liso, eu ficava, jogando o cabelo pro olho, fazendo aqueles charmes, me imaginava professora. Aí tinha o quadro, tinha o quadro que a minha mãe também dava aula particular. Acho que com tudo isso eu fui vendo-a e aquilo foi um espelho e foi se tornando, pra mim também, uma vocação. Eu copiava o que ela fazia, eu botava do jeitinho que ela escrevia na lousa, eu fazia atrás com meus alunos imaginários, porque era só na minha imaginação. Mas eu falava. Eu acho que é isso, aí eu fui desenvolvendo, tanto é que eu fiz mesmo, até hoje, às vezes, quando eu estou ensinando a minha sobrinha: “Mãe”. Ela tem 33 anos, ela me chama de mãe também ______________, ela e a outra: “Você é professora também? Você se formou?” Eu digo: “Foi, me formei professora, só não tenho prática hoje, porque o destino me levou para outros caminhos, para outras funções”. Aí foi que eu falei que era professora, porque eu acho que me espelhava na minha mãe e até hoje, assim, estava ensinando meu filho e por lá surgiu uma dúvida, alguém falou pra elas e me perguntaram, porque elas me chamam de mãe também. Detalhe: todos os meus sobrinhos me chamam de mãe. Eu só tenho um parido, mas tenho mil adotados. Aí, elas perguntam: “Mãe, a senhora é professora?” Disse: “Sou, eu me formei, eu tenho o quarto adicional”. Mas meu sonho mesmo era ter feito a graduação em pedagogia. Que é mesmo o outro top já. Só que aí o destino trouxe e as dificuldades enfrentadas na época, que aí eu fiquei assim: não dava pra eu poder pagar a faculdade. Porque eu trabalhava, mas ganhava pouco. Não tinha como, na época, a faculdade de pedagogia era bem ‘salgadinha’ e não tinha, meus pais não tinham condições de ajudar, pelo contrário, eu que ainda trabalhava e, às vezes, ajudava, mandava pra eles, lá no interior, entendeu? Aí eu parei lá, só no quarto adicional, não deu pra concluir mesmo, mas eu tinha um sonho, talvez, mas pra Deus nada é impossível, né? Quando Ele quer, Ele pode, Ele faz, sim. Então eu parei, mas o meu sonho era ter feito mesmo graduação em pedagogia, ser a pedagoga mesmo.
P/2 - Dorinha, me conta uma coisa: quais foram as mudanças, as transformações na sua vida, com a sua ida para São Luís?
R - Assim, de primeiro, foi logo impactante, foi: você sair, como eu já falei, só você sair do aconchego, da casa dos teus pais, porque não tem coisa melhor, por mais que seja, a gente acha que o pai é chato, porque te prende, né? A gente acha isso. Eu falo pro meu filho hoje: “Mas não é, não”. É muito bom, porque eles só querem o bem da gente, eles só querem o melhor. Então, assim, eu senti sair, eu vim de lá, vim pra casa da minha irmã também, mas só que era totalmente, ‘liberdade’ entre aspas, não é aquele total apoio, aquela coisa, se você sente falta, se você está com problema, você conversa com a irmã, mas não tem aquele apoio, aquele coisa mesmo do pai, da mãe, que estão ali, que mesmo sabendo que aquela coisa é difícil, ou você está errado, eles falam, mas ali está aquele aconchego gostoso mesmo, de proteção, de querer, de te orientar pro bem. Então, senti muito isso, logo no início. E fora que depois, você vai vindo, vai tendo as transformações, as coisas vão acontecendo, em termos de desperdício de saúde. Mas aí você vai levantando, vai enfrentando, vai buscando, vai pedindo e vai conseguindo quebrar as barreiras e vencer os obstáculos. E foi o que aconteceu, no decorrer do tempo. Vai amadurecendo mais. A vida vai te ensinando, você dá uma topada aqui, tropeça, mas você levanta. Eu fiz aqui errado, vou fazer diferente ali. Vou buscar outros horizontes, para que eu não possa repetir, não possa fazer isso aqui. E foi assim que eu fui levantando, fui conseguindo.
P/2 - E como você se divertia, nesse momento? Você saía com amigos? Você saía mais sozinha? Você saía mais, ou não?
R - Saía. Eu digo assim: “Tudo tem seu tempo”. Na minha vida, eu vejo hoje, tudo tem uma fase. Então, eu olho pra trás… hoje eu estou com 45 anos. Como eu já falei, eu tenho um filho de dez anos, mas hoje eu já pouco saio. Estou muito caseira, muito mesmo, hoje. Até porque também ele [filho] gosta muito de ficar em casa. Eu o chamo, ele: “Não, mãe, vamos ficar em casa, liga aqui o ar, faz uma pipoquinha, a gente liga aqui a televisão, fecha a janela e faz de conta que está no cinema”. Então, mas também, depois dessa pandemia, eu já me acolho com ele, estar junto com ele é tudo. Mas eu saía demais, final de semana ia na praia, gostava demais, aí tinha os períodos festivos que tem, que é São João, saía de quadrilha, eu era noiva. Ai, era muito gostoso. E a gente fazia piquenique, ia pra praia. E ficava, às vezes, tinha o aniversário, vixi, virava até limpar a porta da rua da casa da gente, a gente fazia aquela zoada e: “Ei, vamos limpar aqui”. Aí os meninos já vinham. E a gente sentava na porta da rua, fazia aquelas caipirinhas e ficava sentado o dia todinho, foram momentos, foram coisas bem gostosas mesmo. Assim, tinha esses períodos que tinham altos e baixos, problemas de saúde, porque também, se a gente sentar, vocês vão ver, minha saúde é bem precária. Mas, graças a Deus, caiu aqui, levantei ali e fui superando.
P/2 - E tinha paqueras, nessa época?
R - Tinha, porque pensa, eu era padrãozinho, modéstia à parte, estou com meus 45 [anos], mas se você ver, ainda está, como eu digo: é uma coroa que está enxuta, mas na época também tinha, tinha as paquerinhas, tinha os namorados. Eu saía na quadrilha de noiva, o par sempre acabava sendo o noivo na quadrilha e o noivo entrava no namoro. (risos) Tinha as paquerinhas, mas também, assim, aquela coisa de ficar, de paquerar, não. Eu também mantinha o padrão, namorava com um, era só com aquele. Os outros olhavam, tomava gostozinho, assim, achava bonitinho também, mas tudo moderado. Tudo moderado.
P/1 - E como foi o magistério, nessa época? Como que foi cursar?
R - Ai, foi puxado, antes, quando eu comecei a fazer o magistério, eu estudava à noite. Eu já trabalhava, consegui o serviço. Estava na praia, conversando lá, com um colega. Estava eu conversando, aí ele perguntou, tipo, entre aspas, percebi que ele achou padrãozinho, ele queria uma paquera. E eu também: “Está pensando o quê? Por que tu me olha? Eu disse que eu sou do interior, eu sou besta, tu é da cidade, eu sou do interior, mas não pensa que tu vai…”. Aí ele todo: “É que eu vim fazer o...”. Aí eu falei pra ele, que eu estava vindo e ele era vizinho lá de São Bento, ele era de Viana. Ele: “Ah, nós somos quase conterrâneos, não sei o que, parapapá, perepepê”. Aí eu disse: “Eu vim porque eu estou concluindo meu segundo grau e eu vim pra eu conseguir um emprego, porque lá não deu mais, ficou difícil, meus pais…”, uma história que eu falei. Aí ele disse assim: “Mas você quer trabalhar de quê?” Aí eu fui logo taxativa pra ele, eu disse: “Amigo, não sendo pra vender o meu corpo, até pra limpar rua, varrer a rua aqui, eu venho”. Ele: “Mas você, você está fazendo aí, tu é uma pessoa jovem, bonita. Está fazendo magistério”. Eu digo: “Sim, mas não é honesto? É o que eu falei pra você: sendo honesto, você pode, você tem como me arrumar até de gari, pra eu limpar, eu quero limpar a rua, daqui até a praia, aqui”. Aí ele falou: “Não, meu amigo, eu tenho um amigo que ele tem uma conservadora, que é uma empresa de limpeza, serviços gerais”. Eu digo: “Ótimo. Onde é?” Ele disse que prestava serviço na escola técnica. Aqui nos Correios, no Banco, Banco do Brasil. Eu disse: “Ótimo, se você conseguir, está maravilhoso”. Aí ele me deu o número do telefone do colega, disse que ia ligar. Isso era no final de semana, quando foi na segunda-feira era pra eu me apresentar no escritório. Beleza, assim eu fiz. E olha, graças a Deus, deu certo. Cheguei lá também, o rapaz, o secretário me ligou, fez uma entrevista. Aí disse que o serviço que tinha disponível no momento não era nem pra ficar fixo, era pra ser apoio, que é cumprir as férias do pessoal, tipo aluno de férias na escola técnica, eu ia pra lá. Tipo lá no Cefet, eu ia pra lá. No Banco do Brasil. Nessa história, eu concluí os três meses, só tirando férias. Aí já comecei o serviço. De lá já saía direto pra escola, porque ficaria muito contramão e o horário. Saía da escola às 15h00... tinha que estar na parada, quinze pras 23h00 da noite, porque meu ônibus passava nesse horário. Onze horas era o último, se eu perdesse, aí já ia ficar… Fora a distância, mas, eu passei. E foram seis meses de estágio. E foram esses seis meses nessa... três meses lá no serviço, passando assim, pra vir pro estágio. Aí, terminaram os três meses de experiência, que eles falavam pra fechar ou não. O gerente veio, [disse] que o quadro estava cheio, não sei o quê, aquela história. Mas também, como ele tinha gostado de mim, ele ia me deixar lá no escritório, no escritório fixo, beleza, fiquei, fechei logo, ele assinou minha carteira. Aí eu fiquei trabalhando e deu pra assimilar as coisas. Nesse período, fui tirar férias no Banco do Brasil e o gerente gostou demais do meu serviço e pediu. E lá, no Banco também, às cinco horas da tarde, fechava o Banco. E tinham os vidros, aquelas portas da frente, que é tudo transparente. Aí eu ia limpar lá. Eu amava quando chegava esse horário, pra eu descer e pra eu limpar, porque lá todo mundo, passava todo mundo e passava e a gente ficava: “Dora, tu é diferente de todo mundo!” “Por quê?” “Eu tinha vergonha” “Vergonha de que, minha irmã, aqui a gente está trabalhando, está ganhando nosso dinheiro, nosso salário aqui e é honesto” “Ah, não, passa um monte de gente conhecida do bairro, vai me olhar aqui limpando”. Eu digo: “É, eu já gosto”. Ah, menina, cinco horas da tarde eu ficava diferente. Dava que eu ia pra lá, parecia que eu estava mesmo, saía e, com isso, eu fui ganhando, fui conhecendo pessoas diferentes e fazendo amizade, porque aí o gerente gostava demais de mim. Eu fiquei, ele já me deixou, pediu pra eu ficar fixa lá, eu já estava assim, lá dentro do Banco do Brasil, de tipo zeladora. Passei para office boy, eu já ia só pra fazer o serviço em outro Banco pra ele, coisas pessoais, particulares dele, pagar conta, levar um documento, então eu já tinha, estava na empresa, como zeladora, mas trabalhando aquele serviço que a empresa já faz, nem fazia, só fazia mandado pra eles. Então, eles gostavam muito de mim, de chegar a me dar presente, em aniversário meu. Até hoje eu tenho uma bonequinha que tem dentro de um vidrinho, lindo. Quebrou, eu botei em outro. Porque, aí fiquei. Quando a empresa perdeu a concorrência, tiveram que sair e aí mudou. Nesse período, de novo, o prefeito lá de São Bento ganhou e ele era padrinho da minha irmã, minha mãe [pediu]: “Vê aí uma brechinha”. Ela me chantageou. Pediu pra que eu fosse, porque aí o prefeito ia levar minha irmã como secretária dele, porque é afilhada dele. Aí ela: “Tá, então agora, aí, ó, tu troca. Agora tem um emprego pra ti, tu vai ter, vai ganhar bem. Tu vem pra cá e deixa a Rosa aí no teu lugar, tu troca”. Aí, pensa, já estava aqui, já estava assim, já não queria mais saber de interior, não tinha mais aquele pensamento que eu estava, de ficar junto com a mamãe e tal, porque já era outro nível, outro padrão, trabalhando… Aquela ‘independência’ entre aspas e voltar, tipo: aqui [estava] crescendo, porque eu estava estudando, mas estava fazendo curso. E, pra lá, eu via assim, como eu voltar atrás de novo, eu dar três passos pra trás e deixar meu objetivo aqui, na frente. Aí, pensa, eu fiquei entre a cruz e a espada: “Meu Deus, que eu faço?” Foi aí que minha mãe começou, ela até se zangou, que se eu não quisesse, que ela ia largar de mão, mas também, se caso acontecesse dela chegar a falecer, não era nem pra eu chorar. Aí, pronto! Bem, aí me acabou, Bruninha. Eu fiz a troca, né? (risos) Eu deixei minha irmã aqui, falei com o gerente da empresa, deixei ela aqui e fui pra lá. Voltei, de novo. Foi no período que eu já vinha aqui, terminei lá, de novo, de concluir o terceiro ano. Comecei já, fiquei lá quase dois anos, foi quase uns dois anos, um ano e alguns meses. Eu vim pra cá só pra concluir o estágio, porque lá eu terminei, no caso, a metade do ano que faltava, o terceiro ano e concluí o ano do quarto. Fiquei lá esse tempo todo, eu disse: "O que eu fiz?!”. Mas eu fiquei. Eu digo, pela minha mãe, está beleza. Foi aí que, por lá também, [tinha] campanha política, tu sabe, a gente ainda tinha isso. Era interior, é aquela política, sabe como é. Passou esse ano e, no final do ano, o vice-prefeito se lançou candidato. Eu era secretária do prefeito, olha a loucura: aí inventei ainda, larguei de ser secretária para ser candidata a vereadora, ‘laranja’, viu? (risos) Só eu de mulher, sempre teve esses ______. Nós éramos treze pessoas, o vice, mais treze e eu, porque tinha que ter uma mulher para ser candidata no partido, PTN (Partido Trabalhista Nacional), na época. Filiei e fiz, eu só queria estar na muvuca. Lá, ganhava até bem, mas larguei pra ser [candidata]. Foi a campanha e tal, mas aí quer saber? Pensei: Não vai dar certo. Larguei lá e vim embora de novo pra cá (risos). Cheguei aqui, já fui procurar serviço de novo, não tinha mais pra voltar para aquela outra empresa, não. Ela também tinha perdido a concorrência, tinha aberto falência. E eu fui correr atrás. Aí eu disse: qualquer coisa, loja, livraria. Fiz amizade também e fui trabalhar numa livraria, em período escolar. Final de ano. Aí pronto, fui pra lá, fazer também trinta dias, um mês de experiência. Era só nesse período. Também era aquela correria, trabalhava o dia todo, chegava em casa às onze da noite. Mas era, esse aí era mais difícil, porque, quando a gente chegava, tinha que repor tudo que vendia. Eu começava assim, repondo e depois eu passei pra ficar na parte da pendência. Tu chegava lá pra fazer o pedido do livro, não tinha, aí eu pegava o nome do livro, tudinho, pra eu ligar pra editora, pra pedir e pra ligar pra você: “Ó, teu livro chegou, você pode vir aqui, amanhã, buscar”. Aí eu fiquei só nesse feedback na livraria, mas também era só no final desse período escolar. Mas gostava. Saía, daí, aí comecei e falei: “Eu vou correr atrás de outra coisa”. Isso já em 2000, era 2000, 2002. Aí eu fiquei nesse _______ , só período escolar e período de férias na livraria. A gerente também, muito minha amiga, era aquela história: fazia festas, churrasco e eu morava longe, pra lá, que eu sempre, graças a Deus, onde eu chego, eu sou de boa vizinhança. (risos) Aí 2003, eu digo: “Não, está na hora de eu parar e arrumar uma coisa fixa pra mim”, porque era pra eu, justamente, concluir o que faltava do meu estágio, que eram seis meses. Aí foi, graças a Deus, fui numa empresa que o senhor até já morreu, Fernando Neres, uma pessoa muito gente boa também. Ele conheceu meu cunhado e conversando com ele, falou: “Minha cunhada está aqui, Fernando, vê se consegue alguma coisa”. Ele disse: “Mas o quê?” “Não, é ela que está concluindo o curso?”. Ele disse: “Olha, está difícil, mas o que eu posso ver, tentar, tem a Copi (Companhia Operadora Portuária do Itaqui) pra conseguir, pra ver se eu consigo, pelo menos, de zeladora, faxineira. Tem problema pra ela?”, porque era onde ele trabalhava. Meu cunhado disse: “Não”. E, nesse período, eu estava já fazendo um curso que a gente ganha meia bolsa para fazer o negócio de pré-vestibular. Aí eu estava fazendo à noite. Aí ele: “Não, mas eu vou tentar conseguir essa vaga pra ela, ela quer?” Eu: “Quero!” Porque era das nove, o meu curso era das sete às nove. Aí ele foi, conseguiu, graças a Deus. Eu fui, fiz entrevista. Teve que vir o QI (“Quem indica”), a indicação e ele era, trabalhava lá. Aí fichei como zeladora, beleza. Só que eu pegava serviço das 23 horas, era das 23 horas até às sete da manhã do outro dia. E isso porque eles me puseram: “Ó, só tem esse horário pra ela”, porque as duas que estavam antes de mim também estavam estudando, então, elas não poderiam trabalhar no outro horário. Só tinha essa vaga nesse... eu disse: “Tá ótimo”. Aí pensa, outra correria, menina. Saía seis horas pra esse curso e saía de lá nove horas. Nove, porque quinze pras dez passava - aqui na avenida, que bom que era perto da avenida onde eu pego ônibus - o último ônibus. Pra você ver, eu vinha correndo desse curso, só chegava, às vezes, pegava e detalhe: lá que é onde eu trabalho, que é o Porto do Itaqui, né? A gente vai chegar onde eu estou hoje. Aí é o Porto do Itaqui. Pois é. Aí eu vinha desse horário, pra pegar, pra ir pra parada. Aí, outro detalhe: pra lá, é o ônibus do Itaqui e nessa época, vinham os navios. Você sabe que tem aquela história que o navio para aqui no porto e vão aquelas mulheres, aquelas meninas que atravessavam a baía, pra ir lá ficar com os caras, os tripulantes, tal. Aí eu morria de vergonha das pessoas, dos vizinhos, de eu ir estar pegando o Itaqui, tipo dez horas da noite. E graças a Deus, eu fiz logo amizade com o motorista também e contei minha situação do meu serviço, dos horários. Pois, ele ficava os quinze minutos, na parada, me esperando lá. E também porque era perigoso esse horário, ir sozinha pra parada, né? Ladrão, essas coisas. Então, ele dizia: “Não te preocupa, eu fico te esperando, não é preciso nem tu vir pra cá esperar, tu já pode sair da tua casa, tipo: chegou do curso, cinco, dez pras dez, pode vir aqui, que é justamente... se eu estiver vindo antes do tempo eu te espero e se tu estiver antes, pra tu não ficar aqui à deriva, sozinha”. Beleza. E assim era, mas aí eu já ficava assim, os dois primeiros dias, assim, logo de início, eu ficava: “Ai, eles vão falar, eles vão dizer assim: ‘A senhora vai fazer o que no Itaqui?’” Aqui eles falam “ir fazer ponto”, né? Aí eu ficava com aquilo. Depois eu fui trabalhando eu mesma, conversando com eles: “Minha filha, deixa, você não pode, é uma batalhadora”. Porque você vir, entrar nessa vida aqui, passar a noite todinha, porque não dormia, a gente não dormia. Porque era trabalhando na área de limpeza, mas era geral mesmo, parava às sete e meia da manhã. Parava um pouquinho, na hora que eles paravam para descansar, aí, às vezes, naquela ‘deixinha’, eu ficava uns quinze, vinte minutos também lá, desligava - onde eu ficava lá na salinha, no refeitório - a luz e ficava junto também. Na hora que eles saíam também, eu pegava o serviço, eu já levantava também pra limpar, porque tem que limpar o escritório todo e era só eu, só uma por turno. Limpar tudo, para as sete e meia da manhã, quando as pessoas chegassem, estar tudo limpo, café feito e tudo. Era uma faxina legal mesmo, era faxineira mesmo. Copeira, sem tirar a letrinha. Aí eu, naquilo, fui amadurecendo e fui trabalhando. Já não ficava mais com esse receio, pegava o ônibus normal, ia mesmo: “Trabalha onde?” “No Itaqui”. Eu já ia sem vergonha de falar. E graças a Deus, foi aí que, isso em 2003, que eu comecei como faxineira, passei uns três meses, aí já foram me promovendo. Porque eu fiz o serviço, aí a menina já saiu, já tinha até concluído, a gente já fez o rodízio de trabalhar, de eu sair uns seis meses, que era só à noite, de passar pro dia. Aí eu já trabalhava de manhã, até às 14h00. Depois, já passou das 14h00 até às 23h00. Aí a gente começou assim, já foi melhorando o serviço.
P/1 - Dorinha, vou perguntar umas coisas pra eu entender, assim, como que está: quantos anos você tinha nessa época, assim?
R - 2000… Agora, só a gente fazendo… eu estou hoje, com 45. Em 2003, quando eu comecei, eu tinha o quê? Faz aí na calculadora. A gente… porque eu não lembro assim também, de relance. Hoje eu tenho 45, está 2021. Em 2002, foi em 2003 que eu entrei lá. Faz na calculadora. 2003, menos 45. (risos) Sou ruim de matemática, né?
P/1 - Tinha 28.
R - Isso, é, isso, porque eu não tinha... 28.
P/1 - Era isso? E daí, nessa época, você já tinha terminado o magistério?
R - Tá, quando eu entrei lá, já logo no período que eu terminei, foi nesse período que eu te falei, ali, da Acalanto, da livraria, que eu trabalhava no período das férias, no período de dezembro. Aí, nesse período, nesse intermédio aí, de 2000 a 2002, eu concluí. Eu cheguei a concluir o estágio, porque eu o deixei trancado. Pra eu poder ter a carga horária, que tinha carga horária, aí eu fiquei [estagiando], eu cheguei a estagiar pela manhã na escola aqui, em São Luís, no Sousândrade, dando aula para alunos da quarta série. Já mesmo, até atuei como professora. (risos) Foi um estágio atuante. (risos)
P/1 - Eu ia te perguntar exatamente isso: como foi essa experiência de dar aula?
R - Uma experiência também muito boa, até porque, é como eu digo: eu não fiquei com receio, nem com medo, porque estava acho que na veia mesmo, né, no sangue. Aí, de preparar, de chegar, de preparar aula… eu estava falando pra menina aqui: de comprar o material, aula, vai ter aula de ciências ali, sobre sinais de trânsito, de fazer o cartaz com amarelo, vermelho, verde, siga, pare, entendeu? Tudo isso, assim mesmo, com os topicozinhos, era gostoso chegar lá, dar aula, ter um caderninho com brincadeira de recreação. Tudo isso eu fazia. Gostoso, foi uma experiência muito boa, muito boa mesmo.
P/1 - Você tem alguma história marcante, de algum aluno? Você lembra, assim?
R - Na escola, geralmente a gente tinha um que era meio danadinho, mesmo, aquele. Ele ficava tipo chegar: “Ah, você não é minha professora, você não está aqui, eu gosto daquela, não gosto daquela”. Só que, no final, a gente foi transformando, foi fazendo a aula, porque ele era meio preguiçosinho, ele queria bagunçar, acho que as outras professoras, era o sistema, aquela criança ser daquele jeito, de deixar. Porque aí aquilo eu fui vendo, eu digo: “Meu Deus do céu, mas só essa criança, só ele que é assim?” E os outros tudo, não. Os outros todos eram contagiantes, vinham: “Tia”. Quando eu dizia que já ia terminar, me abraçavam: “Não, fica, a senhora é boa demais”. Aí, que ele veio também, brincar, eu digo: “Mas ele quer? Não, mas ele nem gostava”, “Gostava, ‘tia’. Agora que eu gostei, que eu comecei a gostar, a ‘tia’ já vai sair”. Me chamava de tia, eu digo: “Não, mas eu não vim ficar, a outra ‘’tia’ que é a professora de vocês, a ‘tia’ só deu espaço pra ‘tia’ concluir aqui, essa fase dela aqui, entendeu?” “Mas a senhora não vai ficar, não?”. Eu digo: “Não, eu vou, ainda, fazer - eu terminei, agora - um concurso, pra eu passar, eu vou vir pra cá, pra eu ensinar vocês também, tá bom?” (risos) Aí ele: “Então tá legal”. Mas, depois disso, eu não vi, não cheguei mais a ver ninguém, a escola, ensino, não voltei mais lá. Aí perdi o contato, contato mesmo, geral, legal, com eles. Foi uma experiência boa, de ter esse choque com esse aluno, não, mas os outros, a gente chegava lá, aí vinha aquele abraço, a escola é muito grande. No momento da recreação, todo mundo abraçava, ixi, queria beijar, queria estar junto, muito gostoso.
P/1 - E aí, nessa época, você estava em São Luís, como que… você já morava sozinha, ou você continuava morando com sua irmã?
R - Eu morava com minha irmã. Já, nesse período do estágio, eu já comprei, em 2003 foi que eu comprei essa casa que hoje é onde eu estou. Aí deixei, vim embora da casa da minha irmã, que fica também próximo, na mesma rua. Comprei a casa, mas ainda continuei lá. Fui comprando as coisas, as prioridades: geladeira, um fogão e a cama. Mesa de cozinha, essas coisas, sofá, não. Eu digo: visita chega, tirei a caixa da geladeira, fiz de tapete. Almoçou, os pratos, nós chegávamos na cozinha, quem vinha, fiquei um período assim, depois que eu comprei a casa, pra poder ir adaptando as coisas, porque quando me mudei, fiquei morando só um bom tempo. Aí, depois, foi já que eu estava na casa há um tempo, que apareceu um namorado, pretendente também, que trabalhava lá, até junto comigo. Comigo, assim, na mesma empresa, só que em setores diferentes. Ele era operador e eu estava na empresa e a gente começou a namorar, ficamos namorando por um bom tempo. Aí, depois, a gente juntou as escovas de dente. (risos)
P/1 - E, Dorinha, voltando lá pro seu primeiro trabalho, que você pediu e conseguiu. Você lembra qual foi, o que você fez com seu primeiro salário?
R - Primeiro salário… foi depois que eu vim pra cá. Eu acho que comprei, deixa eu ver, ai, eu comprava muito, porque eu sempre fui assim, viajava ou lembrancinhas, entendeu? Dia de aniversário dos meus irmãos, de pai, de mãe, geralmente, eu estou mandando mensagem de aniversário, eu compro presente, eu deixo guardado, mando pra lá. Então, eu tinha até feito, era no período do Natal, do período natalino. E fui pra rua toda animada, pra rua grande, fazer compra, tal. Lá vem eu cheia de sacolinha. Fui na Riachuelo, era mesmo um presentinho, uma lembrancinha singela, mas uma lembrancinha pra cada da família, os irmãos, mamãe, papai. Mamãe fazia aniversário também dia 26 de dezembro. Depois do Natal, estou lá e aí, passou, veio um trombadinha, levou sacola com tudo, só me deixou a bolsa, bom que me deixou a bolsa ainda. Pensa! Então, assim, aquilo foi marcante também na minha vida. Cheguei em casa, só já quase com a metade, porque nessa época não tinha cartão, era o dinheirinho que eu tinha comprado, que eu tinha deixado e recebido pra eu fazer minha festa, com minha família, mostrar lá pra eles, mandar. Aconteceu aquilo lá e eu chorei demais. Pra mim, tinha acabado, terminado o Natal, depois eu falei, minha irmã: “Não, todo mundo ajuda” “Como é que eu vou viajar agora? Eu tinha trabalhado, tinha feito isso aqui pra gente ir e me acontece isso”. Mas aí depois [minha mãe] foi me falar: “Tá bom, minha filha, não liga, tu está bem, está viva, não te aconteceu, tu vai trabalhar de novo”. Eu digo: “É, vou trabalhar, vou pegar o dinheiro, vou comprar tudo de novo”. Mas, geralmente eu fazia aquilo: pagava minhas continhas, comprava roupa pra mim, mas isso sempre eu até dizia: “Isso aqui é do meu primeiro salário”, além de anotar as minhas coisas, que detalhe: agenda. É o que eu digo, é uma história. Anoto minhas coisas, geralmente tudo. (risos) Aí eu cheguei, sentei, fui anotar, o que que tinha acontecido com meu dia, sorri pra caramba. Mas foi tudo assim, entendeu?
P/1 - Dorinha, e de 2003 - vou agora puxando pra frente - até começar a trabalhar no porto, como que foi, assim, a sua trajetória de trabalho?
R - Porque 2003 já foi lá no porto, só que era nessa empresa, na companhia, foi na companhia, na Copi. Foi que eu comecei, que eu entrei lá com essa história que eu estou te falando, do ônibus, já da ida pra lá, por ter esse preconceito, de ter a vergonha de falar que trabalhava lá, porque outras mulheres iam mais para ganhar a vida de uma outra maneira, elas iam pra lá pra ficar com os tripulantes do navio, porque, na época, era permitido, hoje não é mais permitido. Não tem nem como atravessar. Tinha lá uma Casablanca, que era onde os tripulantes saíam de dentro do navio para poder vir. Hoje já não é mais lá perto, é aqui, já fica fora. E aí eles fazem isso: os gringos saem e as mulheres ficam vindo, hoje, nessa Casablanca aqui, então não tem mais esse sistema lá. E a minha trajetória lá era assim: foram nove anos e seis meses lá, nessa empresa, lá no porto. É que eu estou te falando, foram tendo as mudanças, as promoções, eu comecei em 2003, como zeladora. Aí, depois, eles mudaram lá. Porque tu sabe, gostam de botar, assim, o que começar de baixo é pra te humilhar mesmo, pra você ver ou não. Aí, com três meses, tiraram de zeladora e botaram faxineira, (risos) que meu Deus do céu! Eu digo: “Deixa, eu estou ganhando meu dinheiro, não importa, pode botar limpar chão aí, que eu estou feliz”. Aí foi, com isso, foi, aí mudou, eu fui ganhando as promoções, aí passei pra auxiliar operacional. Esse auxiliar operacional, já, entrava ainda na limpeza, mas já partia para uma parte administrativa, já fazendo outras funções. Aí teve essa: auxiliar operacional I, II e o III. Passei pelos três níveis e, a cada degrauzinho, o salariozinho ia aumentando na cartelinha. Depois desse auxiliar operacional, eu já passei para assistente de manutenção. Nesse decorrer do tempo também, eu já me virando, trabalhando lá e fazendo curso, como eu te disse, curso de auxiliar de mecânica, tudo que envolvia a área, pra eu ficar mais entendida. E aí, com isso tudo, estudando e também, lá na empresa, essa empresa era muito boa, que ela ajuda, ela olha o funcionário. Se ele tem uma visão, uma disponibilidade ou o interesse em crescer, eles dão oportunidade. Como deram pra mim, como ela me disse, eu comecei como zeladora, fui subindo, por quê? Porque, além do meu grau de estudo, ela via que eu tinha interesse, eu não parava só ali, aquela pessoa acomodada, não. Eu buscava correr atrás, eu fazia coisas que não era o meu setor. E, depois, foi envolvendo tudo, eu era assistente de manutenção, aí passei pra I, II, III. Depois eu já estava, já era na parte em que cuidava dos equipamentos, abastecia, vinha aqui no posto comprar o combustível. Levar o combustível no caminhão tanque, aquele caminhão eu que era responsável, só eu que mexia. Aí comecei a fazer o controle dos equipamentos, lá dentro, eu era ‘Severino’, tinha mil funções. Tinha dia que eu ficava lá de recepcionista e ligava pros meninos, pra passar escala. Fazia mil funções, tudo ali dentro, mas era muito bom. No período também, nesse período de 2000, quando eu comecei, 2003, quando foi 2011 eu engravidei, nesse período eu engravidei, foi quando meu príncipe que nasceu. Assim, antes da gravidez, fiz várias cirurgias, como eu te relatei lá no áudio, problema de saúde que eu vim tendo. Depois dos trinta, minha irmã, sabe, né, a gente dá aquela fase, mas depois dos trinta, a saúde já fica restrita. Eu fiz várias cirurgias, uma no pé, depois fiz no joelho, aí fiz uma que me afastou, eu ainda fiquei afastada mais de um ano, depois de ter o Davi. Já nesse período, antes de 2011, 2012. Mas, de 2003 até 2011 era aquela coisa balanceada. Aí engravidei, o tive com 37 anos. Foi uma gravidez que era meu sonho ser mãe, de verdade, de ter mesmo, de ter meu filho, nascido por mim. Porque mãe, eu já sou desde os meus sobrinhos, com dois aninhos de idade. E eu tinha vontade de ter gêmeos, meu sonho era ter. Eu comia, aqui no interior, aquela banana que vem unida, a gente chama coin. Eu só vivia comendo essas bananas, olha só que loucura! Mamãe dizia: “Minha filha, não é assim, porque pode nascer criança (sinal com os dedos juntos)” e eu falava: “Eu quero ter um casal, quero ter meus filhos gêmeos, não sei o quê”. “Ô Deus, mas na família, assim, geralmente, minha filha, só se tiver alguém”. Mas Deus sabe o que faz, né? E foi justamente, eu tinha feito a cirurgia do joanete, detalhe: operei logo os dois pés, de uma vez só também. Passei 45 dias com as perninhas assim pra cima, andando de muleta. Porque o meu joanete cresceu muito e ficou meu dedo, o dedão grande do pé, torto, pra baixo doía muito. Aí eu fui fazer, o médico disse: “Não, tem que fazer dos dois, só que você faz, a gente faz de um, com seis meses você vem”. Eu digo: “O que, quem vai levar de novo anestesia? Não pode fazer os dois?” Ele: “Mas, minha filha, eu nunca fiz. Tu quer ser minha cobaia?” Eu digo: “Vamos embora, eu faço!” Mas, minha irmã, pensa, (risos) depois eu cheguei e fiquei sentada, por onde eu me levantava, era com os dois pezinhos. A cirurgia era muito detalhada, tinha dois pés que ficava assim ó, lá, metido pra fora do meu dedo, aqueles dois ganchos virados, minha irmã, era horrível, pensa e eu assim: “Meu Deus, o que eu fiz? Se eu não voltar mais a andar? Eu me acabei, pra que diacho eu fui fazer isso? Mas eu já fiz, agora vamos fazer”. Manter aqui a calma, passei os 45 dias, graças a Deus, tudo normalzinho, não me aconteceu, voltei a andar normal. Aí, nesse período da quarentena do pé, que eu estava afastada, fui lá, acabei ganhando, a cegonha veio e me deu, fui fazer o exame, meu Deus, sentindo uns enjoos, um sono, que era uma beleza. Chegou lá, o médico disse: “Você está [grávida]...”. Eu digo: “O quê?!” Peguei até um susto na hora, porque você até pode querer, mas não estava esperando em um momento desse, né? E eu, num descuidozinho, sempre me cuidei, tentando fazer tudo detalhado. Eu digo: “Olha, um descuido, aconteceu”. Aí minha comadre que diz: “Eu não vou mais deixar tu fazer cirurgia, nem se descuidar, porque senão vai ser, agora, um atrás do outro, depois de velha”. (risos) Mas graças a Deus, minha irmã, aí veio, minha mãe estava viva ainda. E era aquela, ela sempre falava: “Minha filha...” - porque eu morava só “... está muito só”. Ela se preocupava, ela e meu pai, comigo, assim: “Tenha um filho, que aí tu vai ver como é bom, tu vai ter uma companhia pro resto da tua vida, tu vai ter um companheiro, uma companheira junto contigo, vai ter com quem tu conversa, tu é muito só, não sei o quê e é ruim”. Mas, assim, eu já estava acostumada, adaptada a estar. Eu digo: “Não, mas tudo que Deus faz é bom”. E também foi que eu e o pai dele, a gente ainda teve quatorze anos, tudo, de relacionamento. A minha gravidez foi, eu trabalhei até o dia anterior, apesar do meu buchão, toda, mas não senti nada, assim como tem grávida que fica doente, não. Pra mim, eu acredito que, se não fosse nove meses, fosse até quatro, três meses, eu ia ter de novo, porque, pra mim, a gravidez foi uma coisa muito gostosa. Foi muito bom, vixi, eu fiz um barrigão e andava, era saudável pra mim, foi uma coisa maravilhosa a minha gravidez. Aí meu filho nasceu, uma benção na minha vida. Foi só um, não foram gêmeos. Eu também, naquela expectativa, depois disso eu queria que fosse menina. Mas aí foi pra lá e Deus sabe o que faz, porque por tudo que a gente passa, que eu estou já sem a minha mãe, hoje a criação, eu acho que se eu tivesse a menina, seria mais preocupante, eu ia ficar mais louca ainda. Porque com o homem, o menino, é mais fácil você deixar aqui, a gente tem menos aquela preocupação. Aí nasceu meu Davi e, depois dele com quatro anos, eu e o pai dele não demos certo mais, nos separamos. Ele estava com quatro anos, mas a gente também tem um relacionamento bom. Ele, hoje, já casou, já tem uma outra família, me dou também bem com a esposa, até porque, como eu digo, eu tenho que fazer a boa vizinhança, porque meu filho vai conviver com eles. Então, eu tenho que ver quem é ela, porque não pode mexer na minha criazinha, porque senão, pronto, me desmonta. Mas a gente tem um relacionamento bom. Eles vêm aqui, meu filho vai e passa o final de semana com ele. E aí a vida seguiu, ele pra lá e eu pra cá, eu continuei trabalhando. Aí foi que, em 2013 e também, como eu cheguei onde trabalho hoje... Eu te digo logo ou eu paro pra você me perguntar pela sequência? (risos) Posso continuar, ou tem outra pergunta?
P/1 – Eu ia te perguntar: quando você começou a trabalhar - assim, voltando um pouquinho só - nessa empresa, você já tinha entrado no porto, antes?
R - Já, pra visitar e pra viajar porque pra gente viajar, tinha que entrar no ferry-boat, pra pegar o ferry, é dentro do porto de Itaqui. Hoje já está fora. E meu cunhado trabalhava vendendo as passagens. Tinha uma barraquinha que ele vendia e tinha o ônibus que pegava o pessoal, o povo que ia viajar no anel viário, pra deixar até lá dentro do ferry. E, nessa história, como ele era meu cunhado, namorava com essa minha irmã com quem eu morava, eu embarcava junto. Nessa época, de noite, também, aí, eu tinha terminado o estudo. E, geralmente, final de semana, aí pra estar nessa farra, nessa folia. Vixi, minha irmã, pensa, era bom demais. Deixava - era o motorista, ele, eu, minha irmã, meu irmão - o povo, aí tinha que esperar o outro pessoal de volta, que ia atravessar, pra deixar no anel viário. Enquanto a gente estava esperando, a gente saía, minha irmã. E até tomar banho lá dentro do porto, lá, que nessa época era uma coisa mais… hoje é restrito. Hoje, pra você entrar, acessar lá no porto, tem que dar teu nome na Emap, tem que mandar… tudo hoje está mais, não como naquela época, que qualquer pessoa entrava. Aí a gente ficava nessa história, nesse fole. Eu atravessava o ferry-boat, o pai do meu cunhado era cozinheiro de lá, a gente comia aquela comidinha gostosa, pescava, entendeu? Então, era muito, muito gostoso. Assim que eu entrava no porto.
P/1 - E daí, como que foi pra você ir pra essa função nova, em 2013?
R - Aí, desde quando eu entrei lá na Copi, depois disso, eu ficava olhando, né? Porque era, na época, um serviço mesmo de macho, aquele serviço mesmo, de fazer força mesmo, não tinha essa modernidade que está hoje, os equipamentos todos mais modernos. Era mesmo aquele sistema arcaico, tudo na mão, no braço, de carregar os sacos, vinte sacos de arroz na cabeça, no peito, os homens jogando, assim. Mas eu ia só observando. E eu falei pra mim, aqui o custo de vida, o real, money era bem acessível, bem melhor, pra quem tem uma visão de querer crescer profissionalmente. E, na vida, na renda familiar, era ótimo. Aí eu botei aquilo na minha cabeça: “Um dia eu vou ser arrumadora”. Aí ficava perguntando pra um e pra outro: “Um dia eu entro na estiva” “Não pode...” - era só o que eu ouvia - “... isso é coisa pra homem, Dora! Mas que diacho, tu já viu alguma mulher?” “Mas por quê?” “Porque é serviço pra homem”. Mas pra Deus, nada é impossível, eu já disse: “Um dia eu entro”. Beleza, isso lá na Copi, porque depois do serviço que eles faziam e eles iam pra lá, pra dentro do setor lá da Copi, onde eu trabalhava. Como eu trabalhava lá na parte do refeitório também, depois que o bufê servia, a comida ficava lá, posta e tinha um restaurante que vinha e os servia. Só que, quando terminava a comida, o que sobrava, aí ficava lá a concha, a gente podia tirar ou eles vinham buscar, no final do expediente. Então eu, esperta, na época, sabia que eles diziam que arrumador, que estiva, que aqueles homens mesmo comem bastante e tal. Aí sobrava e tinha a máquina de refrigerante, eu, pra agradar, tirava a comida, botava tudo em outras vasilhas, chamava, mandava pra eles, dava refrigerante, pra ir perguntando, fazendo amizade. E toda vez sempre com aquilo: “Dora, mesma resposta, que diacho”. Digo: “Quando é que vai ter prova?” “Não adianta”. E também, nessa época, não tinha prova, o processo seletivo, era indicação. “Se eu estou lá, eu te indico”. Era assim, só indicação de pai para filho. Digo: “Égua, só tem Deus mesmo aqui, eu não tenho conhecido nenhum, não tem pai, vai ser eu e Deus, senhor, está nas tuas mãos”. Aí foi passando, passando isso, 2011, 2012, em 2013 surgiu, teve o [processo] seletivo, saiu o edital. Eu disse: “É agora”. Eu já era assistente, já tinha sido promovida para assistente de manutenção, do teto máximo, a última. Já estava lá e tal, aí veio o meu chefe, ele era de Belo Horizonte: “Saiu o edital” e eu peguei. Aí disse pra ele, li o edital e disse: “Vou fazer agora a minha…”. E como eu era da empresa, a empresa tinha direito de indicar, mas eu tinha que fazer o seletivo, mas com a empresa me indicando. Aí [ele perguntou:]. “Dora, tu quer isso?” Eu disse: “Eu quero”. Ele: “Tá bom, então eu vou te indicar. Quer fazer mesmo?” “Quero. É agora”. Já conhecia o procedimento todinho, depois de nove anos e seis meses lá dentro, já conhecia tudinho, de lá. Só o que eu não sabia era a NR, tem a NR e a lei 815 que, na época, era essa lei que regia as normas e regras para ser um trabalhador portuário. Aí eu digo: “Isso é simples, eu compro a apostila e aí uma semana me tranco aqui, estudo e tá bom”. Aí, então tá, me indicaram. Eu peguei esse edital e fui lá no Ogmo (Órgão Gestor de Mão de Obra Portuária Avulsa do Itaqui), na época, pra falar com o diretor de lá, meu chefe lá da Copi foi comigo, o Rubem. Chegamos lá e o diretor falou: “É, Dora, mas mulher não pode”. E o meu outro chefe, esse de Belo Horizonte, estava se formando advogado e já tinha lido o edital e eu já tinha sido instruída por ele, peguei o edital e falei pro diretor: “Mas por que não pode?” Ele: “Porque não”. Eu digo: “Mas onde é que está aqui no edital, me mostra, em qual cláusula está dizendo que não pode mulher?”. Aí eu puxei o tapete dele, né? Ele ficou assim, aí eu disse: “É, tudo bem, então, já que não pode, eu vou procurar os meus direitos, porque aqui não está discriminado em lugar nenhum que mulher não pode, que é só homem, tudo que está falando aqui é que eu posso sim, que eu tenho essas qualificações, esses pré-requisitos todos”. Só de porto, que é conhecer a área portuária, eu digo: “Só aqui, eu trabalho há nove anos e seis meses, então, por que que eu não tenho chance? Mulher não pode, mas não está aqui pedindo, não está dizendo aqui. Beleza, então, tá, obrigada”. Aí fui me levantando pra sair, ele bateu no meu ombro, “Volta aqui, morena”. Aí ele bateu assim e falou: “Estuda” - desse jeito, pra mim - “Só passa, só vai entrar, se tu passar mesmo” Porque a gente sabe que tem aqueles papaizinhos, aquele jogado, aqueles puxados. Aí ele: “Estuda, se tu estudar, está dentro”. Eu digo: “Ah, pronto”. O que eu queria já há nove anos, eu digo: “Isso aqui, pra mim, vai ser moleza”. Aí vim embora, morta de feliz. Fiz a inscrição, parapapá, tal. Passei logo, fui logo comprar uma apostila que falava da lei. Chegava do serviço, me trancava, na época ainda estava morando com a minha irmã, porque eu comprei a casa depois, justamente depois. Chegava, às vezes, eu ia pra lá. Já tinha o Davi, só que eu ia pra lá, às vezes, pra deixá-lo, pra ficar sozinha em casa. Aí eu ia pra casa da minha irmã, já estava morando na minha casa mesmo, que era 2013 já. Eu pegava, chegava, me trancava no quarto, porque aí eu ia lendo essa apostila e essa NR, a lei NR 20, enorme, sobre segurança. Aí, pronto, a prova estava marcada, já tinha data. Eu estudava, não saía, não tinha uma semana que não era direto, só focava nisso. E, graças a Deus, assim foi. Teve a prova, eu fui no dia do seletivo. E tinha que fazer cinquenta por cento das questões, eram quarenta questões. Tinha que acertar, no mínimo, vinte. Beleza. Fui pra lá, tal e as perguntas lá, era tudo mais pegadinha. Mas graças a Deus, aí fiquei também, terminou a prova, eu fiquei lá até meio-dia, até quase uma hora, pra esperar o gabarito. Até hoje eu tenho uma pasta, eu digo: “Porque eu entrei, amanhã eles podem querer, então…”. Fiquei depois da prova, pra cumprir o gabarito, quantas questões eu errei. Marquei, tirei foto lá do gabarito.. Tem uma pastinha que eu tenho todas as coisas. Fiz, acertei 22 questões. Graças a Deus, passei. Fizeram eu e outra mulher e só ficou eu. A outra, ela ficou com a pontuação lá embaixo. Ela ficou como se fosse reserva, se precisasse, pra chamar, mas até hoje nunca chamaram, não sei se ela desistiu, se caducou, aí foi. Isso foi o [processo] seletivo. Passei, fiz mais de cinquenta por cento, beleza, alegria. A outra parte era pior, a segunda parte, eram os exercícios da parte física, né? Era agachamento, era apoio, era esse que a gente levanta, tinha a barra, eram três na barra. Eu que nem na academia ia, era gordinha demais, pensei: “Eu vou focar”. Comprei um pedaço de ferro, botei no muro, na parede, numa árvore aqui em casa. Eu disse: “Tenho que conseguir”. E fazer trinta apoios. Meu Deus e correr 42 quilômetros. Era a volta na lagoa, na praia, que tinha que correr doze quilômetros, doze. Disse: “Égua, meu Deus do céu!”, mas vambora. E, graças a Deus, tinha o capitão lá que estava com a gente, que estava fazendo as provas. E ele muito gente boa. Mas, antes de marcar a data, porque era também por fase, porque tinha muita gente. Só pra você ver, hoje, foram cento e sessenta, foram setenta homens que fizeram junto comigo dessa minha categoria. Só eu de mulher. A gente ia pra lá, pensa, eu ia com meu sobrinho, a gente ia toda tarde para treinar, no dia lá da prova, a barra. Eu fiz, consegui fazer na barra uma forçada, duas passou, aí, a terceira, aí ele gritou lá: “Doralice, tenta passar pelo menos o teu peito, tu bota na direção do teu peito!” Quando eu já estava quase pra cair mesmo, pensei: “Cara, eu vou reprovar, eu não acredito, só o Senhor me levanta, só o Senhor pra me levantar, que eu não tenho mais força”. Aí, Bruninha, ele não deixou nem chegar aqui assim no meu peito, eu passei assim do queixo e ele: “Tá bom, desce!” Aí eu: “Meu Deus, obrigada”. Aí, pra fazer a outra, que era flexão, eram dez. E ‘vambora’, e ele lutando, o menino. Aí os doze quilômetros pra correr era o último. Esse eu já tinha feito, porque eu tinha corrido o percurso aqui na subestação e esse, eu disse: “Eu fico quase ofegante, mas eu faço”. A minha preocupação eram esses outros dois. “Se eu passar da barra, que é o difícil, eu disse, eu estou aprovada”. O outro, já cansado, corpo pesado, eu um pouquinho forte, aí eu fiz lá, tal, quase morrendo. Eram três. Só sei que, na metade, já estava no terceiro. Ele: “Vambora, eu sei que tu vai fazer tudo, tu não vai parar, tu vai conseguir”. Eu sei que eu consegui, peguei e fiz. Aí, beleza, consegui. “’Vambora’, Dora, que agora é pra correr”. Mas, pensa, eu já tinha visto, tinha uns outros colegas meus fortes, que desistiram já na metade do caminho, eu ofegante, aí tomei água, ‘vambora’. Já estava na metade, só ouvia a voz dele, era o coronel Arquimedes. Nunca me esqueço o nome dele, sempre falo com ele. Aí ele: “’Vambora’”. Eu estava já pra chegar, acho que uns cinco minutos. Eu comecei a ficar ofegante, disse: “Ó, Deus, eu não vou conseguir, não é possível, Senhor”. Assim, se você olhar o finalzinho da estrada, certo, aquela fontezinha, aquela luzinha brilhando lá no final do túnel, eu disse: “Caramba!”. Aí ele: “’Vambora’, tu vai conseguir, Doralice! Mostra pra esses homens que tu é guerreira, que tu pode! Bota esses machos no bolso, Doralice!” Já falando assim, né: “’Vambora’!”. Aí ele veio comigo, do meu lado, né: “’Vambora’, Doralice, tu vai conseguir, tu já passou pelo pior, isso aqui é moleza pra ti, isso aqui é banana com açúcar” e não sei o que e falando essas coisas e do meu lado: “’Vambora’!”, gritando. Só que aí não poderia, tipo, acompanhar, porque senão os outros poderiam falar. E também, como ele era o professor, teve que voltar. Aí ele chamou o colega: “’Vambora’, Pablo, vai com Doralice aí do lado e conferindo até dez, na hora que ela vai chegar. ‘Vambora’, Doralice! ‘Vambora’!” Mesmo gritando, sabe como é essa turma rígida desse negócio de quartel. Aí, sei que eu já fui, minha irmã, chegando quase nas últimas. Graças a Deus, consegui lá passar os doze quilômetros. Aí foi só alegria mesmo, todo mundo, porque tinha alcançado os objetivos. Digo: “estou dentro agora”. A gente, todo mundo ficou se abraçando. Aí, depois, fomos beber, comemorar na praia, na beira da praia lá, olhando a brisa lá, curtindo e tomando dois chopes. Fui eu, meu filho e mais dois colegas que estavam junto comigo, lá, fazendo a prova. Aí ficamos, almoçamos, aí depois voltamos pra casa. No outro dia, dia 14, a gente já tinha que estar com a documentação. Tinha uma semana pra arrumar tudo, documentação, pra levar pra lá. E detalhe também, que aí partiu pra empresa, eu voltei pra lá. Disse que eu tinha feito, tal, pra tentar negociar - nove anos e seis meses, tu sabe que também já é um troquinho, né? - com eles, pra falar com eles, pra que eles me dessem, pelo menos pra gente entrar num acordo. Aí falei com meu chefe, tal, pagar os meus direitos. Aí pegaram e [falaram] que não, que eles não podiam dar minha conta, que eles não queriam dar minhas contas, porque eu era uma ótima funcionária, perepepê, que eles não queriam me perder também, não sei o quê. Eu digo: “Mas, poxa, justamente, se eu sou uma boa funcionária, se eu sempre fui e vocês me acham, me veem assim, vocês poderiam também, eu estou indo em busca de um objetivo, uma coisa melhor, de um ganho melhor, que aqui vocês não estão, não têm condição, então…” “Mas não, Dora, não sei o quê”. Poxa, aquilo me deixou, assim, um tanto quanto chateada, né? Mas aí beleza, tudo bem, então o que eu faço? Eles: “Não, você vai ter que você pedir”. Quer dizer, eu tive que pedir, né? E detalhe: eu ainda tive que pagar mais, na época, paguei mil e duzentos reais, tipo, do aviso, porque também, lá na empresa, ninguém tirava aviso. Mas, pra você ver como eles fizeram comigo, assim, uma sacanagem, porque uma boa funcionária, nove anos e seis meses, pra eles não pagarem os meus direitos, nem os quarenta por cento, não abriram mão, não quiseram negociar comigo. Aí: “Ah, você ainda tem que tirar o aviso, trinta dias”. Como, se eu já tinha só um dia pra eu estar com minha carteira como se eu não tivesse mais vínculo com a outra empresa, porque aqui, nessa aqui, não é carteira assinada. São todos os sistemas, a gente recebe tudo, recolhimento, Inss, tudo, mas é avulso, por isso que é avulso. Aí eu digo: “Ah, beleza, então tem que fazer isso, tudo bem, bom, então me dá minhas contas” “Dora, todo mundo vai... nove anos”. Eu disse: “Tenho certeza que os nove anos, daqui dois anos eu vou olhar pra trás, eu já vou ter conquistado muito mais do que esses nove anos que eu tenho”. Porque eu tinha só minha casa na época, né, desses nove anos. Eu vivia, como eu te disse, bem. Com meu filho já, tendo um padrão de vida normal. Aí, beleza. Aí eu disse: “Sem arrependimento, ‘vambora’, bate aí”. Aí bateram, tal, no outro dia eu levei o documento, tá. Já comecei a ingressar, mas foi, nesse período, antes de começar a ingressar, foi a parte também triste. Eu comecei a trabalhar e nesse período, foi 14 de abril de 2013. Comecei, assumi, comecei a responder chapa, que chama. Aí foi que, estava trabalhando e tal, esse período de abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, foi. Aí, novembro, minha mãe estava mal, veio pra cá e a gente descobriu, fazendo exame, um câncer no fígado. Já estava quase terminal, porque ela só ficou quatorze dias internada. E aí veio a óbito, nesse período, 22 de novembro de 2013. Ao mesmo tempo, foi uma alegria e uma conquista e uma perda pra mim, entendeu? Foi muito, muito, muito difícil pra mim. Foram duas transições que aconteceram quase juntas, no mesmo ano e que me marcaram muito, a perda dela me arrasou mesmo, porque aí foi que meu filho tinha nascido também, ela não pôde conviver, conviveu bem pouco com ele. E aquele aperto, tu sabe como é que é, né? A gente, assim, você está feliz em ter alcançado uma coisa que tu vinha lutando há tempos. E, quando você está lá, está feliz, que está naquele momento, Deus te leva, te tira também uma parte tua, que marca muito. E eu senti muito com isso, com essa perda dela, eu custei me levantar demais mesmo. Foi uma coisa muito marcante, muito triste mesmo, que me marcou, que até hoje eu sinto, como se diz, a gente esquecer nunca, Deus dá o conforto, até porque a gente sabe que isso é uma coisa que nós vamos todos passar. De não estar preparado, ninguém aceita. Mas, graças a Deus, com o tempo foi passando, depois que ela chegou a falecer, eu fiquei muito, quase um ano sem nem ir lá. Aí depois eu fui conversando com Deus, pedindo: “Senhor, tem meu pai, ele também precisa, ele também tem o meu amor, tem os meus irmãos. Tem a minha família, tem a vida”. A gente não pode esquecer, fechar os olhos porque eu perdi a minha mãe, eu fico pensando que ela também não iria me dar esse apoio. Então a vida segue, a gente sabe que é difícil, mas a vida segue, tem que trabalhar. Mas, eu não ia, eu não ia lá na casa. Quando eu viajava, eu nem ia lá na casa onde ela morava. Eu não falava, eu [não] queria que ninguém tocasse e falasse no nome dela. Depois eu até pensei, gente, depois eles vão dizer assim, que a mãe de Dora, que não fala mais aquilo. Eu falar e lembrar, ia me fazer muito mal. Então, foi uma outra adaptação, pra mim, essa perda dela, pra eu poder me acostumar, me adaptar de novo. Eu chorava demais, demais, demais, demais. Aí, me falaram: “Dora, tu tem que parar com isso”. E aí, eu sonhava demais com ela, a via. Até mesmo um dia, ela falando pra mim, que ela estava bem, que era pra eu poder ficar também em paz, que era pra ela poder ficar e pra eu viver a minha vida que, da onde ela estava, ela estava muito bem do que ela estava aqui, naquela situação, que ela ficou, sem falar. Ela não falou mais, quatorze dias assim. E era triste, só saía lágrima. Apertava a mão da gente, quando ia lá. E era muito, eu passava a noite com ela, de lá já saía pro serviço. Esse dia que, justamente que ela chegou a falecer, eu passei a noite e saí. Eu fui só chegando no porto, quando eu entrei, meu cunhado já veio ao meu encontro. Que ele veio, ao meu encontro, eu já, eu só apaguei já, pressão, desmaiei, foi essa perda ali, depois disso passei dois dias, voltei pro serviço e, como eu te disse, aí fui, fui reanimando, fui vivendo, que hoje em dia já lembro, mas já é aquela coisa gostosa de você poder falar. Às vezes, meu filho vem: “Ô, mãe, vovozinha não está aqui, não sei o que, que saudade dela!” A gente olha foto. E, assim, virou a vida rotineira, como eu estou te falando, é aquela corrida, a diferença. Porque deste para aquele outro, eu falei: “Eu quero uma coisa, mas esse aqui não me dava, eu não tenho vida”. Porque o serviço era muito também. Ele é muito, te requer muito, porque, na época... hoje em dia já está também mais acessível, mais maleável, já tenho um horariozinho. Mas nesse período de 2013, quando a gente assumiu, era assim: eu pegava sete da manhã e largava só sete da manhã do outro dia, ou sete da noite, era assim, doze por doze. Pegava às sete e meia da manhã e largava às sete e meia da noite. Se eu pegava sete e meia, né, eu ia largar às sete e meia do dia, da manhã. Então, era assim, também era aquela história. Porque hoje a gente já responde aqui de casa, pelo site, tem um aplicativo, tem uma agendinha. Antes não, antes a gente tinha que se deslocar até a escala, era o ponto lá de onde a gente tinha. Ia pra lá e tu ia às sete horas da manhã. Não deu, vinha embora. Sete da noite tinha que ir de novo, se não deu sua escala, vinha embora. Então, assim, era muito cansativo, era muito estressante e tu não podia sentir, porque: “Dorinha, vem aqui, vem passar o dia comigo hoje”. Ou: “Vem aqui de noite, vem no aniversário, vem, vamos fazer aqui, vamos dar uma volta, vamos pro passeio, vamos”. Não podia, porque eu tinha que estar ali, disponível, que eu não sabia qual horário ia dar a minha chapa, pra que eu possa ir pro serviço. Se eu fizesse isso, se eu largasse, corria o risco de faltar mão de obra, aí a gente chama de ser punida. Quer dizer: se faltou mão de obra, eu sou punida. De ter uma chapa boa e eu fico sem responder, entendeu? Eu perco. Aí, como não tinha carteira e a produção, que a gente trabalha e ganha por produção, aí ficava muito ruim… então, foi um período adaptável também. Não só pra mim, como pros outros, muito assim: “Dora, tu está no serviço, mas tu não está mais vivendo, cadê tua vida, não sei o que, não é só isso”. Eu digo: “É, mas hoje eu dependo, eu tenho um filho pra criar e ele depende de mim, se eu não for trabalhar, como é que eu vou viver, o que eu vou comer, com meu filho?”. Então, foi assim, um [processo], mas, graças a Deus, a gente já está acho que quase que uns dois anos, não, mais, que mudou a escala. Mudou, passou para seis horas. Aí às sete e meia da manhã, eu, pra escalar, trabalhava até às duas da tarde, né, 13h30. Então fico das duas até às oito horas da noite, das oito até uma e meia da manhã. Aí, uma e meia até as oito. Então, são quatro turnos que a gente fala, agora. Aí, esse horário, já tem assim, tipo: dá pra se programar. Já dá pra mim... eu sei se eu estou hoje de manhã, eu tenho o resto da tarde livre, eu vou estar só pra eu pegar duas horas da manhã. Então, ficou uma coisa assim, mais acessível e você ter tempo, vida, você sair, você poder, é corrido, mas você vai já se adaptando àquilo, do que como era antes, o sistema de 12 por 12. Então, já melhorou muito, mudei, já deu uma recaída. E, detalhe: que vai conversando, aí depois vocês que vão aí, depois, cortar ou botar tudo na ordem, tá? Porque eu vou me lembrando aqui, eu…
P/1 - Dorinha, e me conta como que o seu trabalho funciona agora,, como é que é? A gente tinha conversado antes, né, sobre a estiva e a diferença do seu trabalho para a estiva. Eu queria que você falasse um pouquinho.
R - É, como eu te falei, é diferente porque é um serviço que, como eles falavam, era mais só pra homens, mas essa parte que eles falam pra homem porque, na parte física, é força. Porque é uma coisa que hoje, com a modernização, com o sistema que está tudo, agora, sendo mecanizado. Então, melhorou, facilitou mais, porque antes eles faziam o mesmo serviço, aí dentro, porque arrumador e estivador, eu só de arrumadora. Arrumador é aquele que fica na parte externa, fora do navio e o estivador são aqueles que ficam dentro. E [ficavam] lá dentro, fazendo justamente isso, carregavam uns vinte quilos de arroz na cabeça, o saco, um passando pra outro. Tinha o funil, que é onde tem um guindaste, aí o guindasteiro pega dentro do porão, a carga com grade, traz, joga dentro do funil. Esse funil, antes, não era mecanizado como agora, o sistema mudou. Antes tinha uma alavanca, naquele tipo de navio, parecia um volante e era pesado demais, pra poder abrir com a carga toda, a gente tinha que girar a alavanca. Pensa, menina, pra eu ter força, sempre ficavam duas pessoas: era eu e uma outra pessoa, outro colega. Quando era um senhor do meu tamanho, a gente faltava só ficar os dois pendurados para girar aquele negócio, pra encher o carro, que ficava embaixo. Aí fazia realmente muita força. Tinha os vagões, que é aquele vagão mesmo, do trem, igual vagão de trem, de ferro da Vale. Quando a gente abria as portas para poder tirar o produto, papel de dentro, eram seis homens. Ficavam três de um lado, homens, eu já me incluindo, porque eles não falam assim, tem eu de mulher, mas eles não falam uma mulher, não. Eles falam homem. Ele precisa de trinta homens, eu já estou no meio, porque eles dizem: “Aqui tu é homem, tudo não queria ser homem?” Então, é assim: ficavam três de um lado, três do outro, fazendo força, empurrando mesmo aquele troço lá, pra poder abrir, fazia força. Aí, hoje não, com a modernização, é só um botãozinho. É ligar tudo na eletricidade. Aí você fica lá, sentado numa cabine, que as fotos que têm, até umas fotos que eu já selecionei pra mandar depois pra você. Só com o botãozinho, ó, sentadinho aqui, no ar-condicionado, a cabine lá, o vidro aqui. Só apertando o dedinho aqui, ó, um dedinho pra abrir o funil e o outro aqui pra buzina, pro caminhoneiro ir saindo devagar. No sistema lá, de abrir os vagões, também. Agora só uma chavezinha que só levanta lá, só pra fechar e não é feita mais aquela força, tem outro sistema. Tem também varrer, zelar, que a gente fala. É quando o material cai embaixo, ao redor do caminhão, do funil, que a gente tem que fazer a zeladoria, que é a limpeza lá da área. Para Emap não poder parar o serviço. E outros serviços lá, rotineiros, que é carregamento, quando tem trilho, botando os materiais, os esteios pra segurar o trilho, pra não ficar um em cima do outro. Então, hoje, é uma coisa que já está rotineira e já não é aquele bicho de sete cabeças, como antigamente. E pesado não é mais. Só é desgastante o sol, porque lá a gente trabalha sempre durante o dia, não tem sombra, não tem um _______, não. É sol mesmo. Você chega às oito, até às quatorze é essa lua maravilhosa. Das 14h00 até às 20h00 é também no sol. Mas, dizer em si, tem o serviço que a gente fica na lona, que é só cobrir os caminhões, pra não chover e não molhar o material. É, o que mais? E também tem a parte boa, que é dia que você sai, que tem a parte de peão, mas tem também uma chapa que você responde, que você sai de chefe, chama capataz, a capatazia. Nesse dia, eu digo: “Hoje eu estou mandando nesses homens tudinho, hoje eu só pra mandar”. Aí fica naquela coisa, porque aí é o capataz que é o responsável pelo serviço, que é chamar o pessoal pra fazer, que o operador está chamando. E é assim, o serviço é desenvolvido dessa maneira, de dia. Não tem que pedir serviço. Agora é assim: “Teu serviço hoje, tu saiu pra Copi, pro navio de fertilizante, você está no terno”. Já chego lá, não tem que estar, não. Só cheguei, passei meu cartão, entrei, vesti meu uniforme, fui lá pra minha cabine, encher os meus carrinhos. Três horas que a gente fica. Se eu chegar às oito, eu fico até onze. Até às onze horas eu fico lá. Se tem uma empresa que dá pra dar uma brechinha, pra fugir pra vir embora, tudo bem, senão, você fica lá cumprindo o seu horário até as 14h30, mas, só também, só esperando dar o horário que o outro companheiro vai e tirar teu serviço. Então, hoje em dia a rotina do serviço é essa.
P/1 - Dorinha, você já sentiu que você enfrentou alguma dificuldade por ser mulher, no meio dos homens? Você já sentiu preconceito? Olhares? Desde o início, né, que você falou que não queriam nem deixar você fazer a prova, mas, desde então, assim, o que é ser mulher nesse ambiente?
R - Olha, primeiro, é ter muita força de vontade mesmo, muita perseverança porque você encontra dificuldades e barreiras e quebrar um tabu no meio dos homens. Porque teve uma situação que eu até eu disse “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?” Aí eu mesma respondi: “Não, isso era o que eu queria, Deus. Então, tira esse pensamento de mim, jamais desistir daqui, isso que eu queria”. E o pior: eu sabia que era assim, entendeu? Então, eu tenho que buscar mesmo e ver como é que eu vou conseguir quebrar e conquistar o meu espaço. Chegar lá na cantina e estar só eles, só homens... Você sabe que a mulher tem aquelas conversas, tem aquele nosso ‘papinho’. E homem? E mais entre aspas, porque tem muitos que ainda são daquele tipo mesmo de brutão, aquela coisa mesmo de ser bruto, de dizer que é isso e aquilo, tu está falando, tentando mostrar, mas não, é aquilo e pronto. E acontecia de estar lá, ficavam conversando e falando aquelas coisas, pornografia, o que ele vai lá, vai fazer, você sabe o que eu estou falando, porque a gente aqui não tem o “pi pi” pra cortar, né? (risos). Mas, assim, os meninos falavam: “Rapaz…”, vendo que eu estava lá presente, “Respeita, rapaz, tem uma mulher aí, Dorinha está aí, ela não é tua mãe, não é tua mulher, não é tua filha”. Aí, eles respondiam assim, pra você ver o nível: “Ela não sabia que aqui era assim? Ela está porque ela quer, aqui era só homem, entendeu, então ela que aguente!” Aí, também, como eu falei, eu ficava aqui, às vezes, com meu celular, ouvindo, claro, que eu não sou surda, né, mas eu procurava um cantinho pra mim, ficava de cabeça baixa, ouvindo tudo. Ficava de cabeça baixa aqui, mexendo no meu celular, tal. Porque ele não estava falando comigo, ele estava conversando. E realmente eu sabia que era um mundo deles, ali era só homem, de eles chegarem lá e ficarem à vontade, só de camisa, uns só de calça, sem camisa, à vontade. E no momento que eu entrei, eles viram que eu era uma mulher, já os privei de certas coisas. Então foi uma barreira, um obstáculo que passou, acho que isso passou quase um ano. Eu quebrando, tinha negada mesmo, que eu chegava e eles falavam algo de mal. Falavam mesmo, ia mesmo no fundo, numa palavra que ofende uma mulher. Tipo assim: “Ela vai acabar, eu vou fazer isso...” - eu acho que era isso que eles pensavam - “Ela vai acabar desistindo”. E eu só buscando a Deus: “Eu quero isso, isso aqui que eu vou ser, da minha parte”. Eu só continuava e só pedindo e também dava espaço, às vezes, dava uma rondadinha, conversava, entrava na brincadeira. Quando eu via que a conversa já estava se alongando mais um pouquinho, partindo já pro pesado, que já não dava mais pra mim, porque sou mulher e queria um respeito, eu já desdobrava, já saía, às vezes, falavam pra disfarçar: “Ô, Dorinha”, ô, preta, desculpa, eu não te vi”. E eu dizia: “E eu nem estou aqui, o que vocês falaram? Eu não ouvi nada, eu não ouvi nada”. Então, eles viram que eu estava ali não era pra acabar, tirar o espaço deles, ao contrário, estava ali pelo objetivo de trabalho. O que eles podem, eu também posso fazer, por que não? Aí, então, foi isso. Até os que eram mais duros foram e hoje, pra tu ver, o espaço de pessoas que não falavam mesmo, que [não] eram assim antes, hoje vêm, me abraçam: “Dorinha”. Então, eu conquistei todo mundo: “Dora, tu é uma guerreira”. Tem pessoas, como técnica de segurança, que trabalham nas outras empresas, [que] dizem assim: “Dora, cara, tu tira de letra, esses meninos chegam aqui, estar no meio desses homens aqui, é incrível, te respeitam, brincam contigo, tu entra na molecagem, tu brinca com eles”. Eu digo: “Claro, todos me respeitam”. Então, hoje já é gostoso, eu já sinto prazer, eles também, de estarmos juntos, de conversar. Aí, todos os serviços estão lá, só tem um serviço que eu digo que são das sete mulheres, aí eles antes, eles: “Não, senhora”. Eu dizia: “Como assim? Eu não digo que eu sou homem, eu não fico caladinha, não aceito, então?” É uma lona, né, são tiradas sete pessoas, sete _________ pra fazer o serviço. Aí eu dizia: “Na lona das sete mulheres. Não tinha a Casa das Sete Mulheres, aqui vocês dizem o quê? Eu chego, não estou aqui no meio de homem? Então, tudo não é homem? Aí, então, a lona está batizada ali em comemoração, em homenagem a mim: a lona das sete mulheres”. Pra você ver, eles acostumaram, até hoje todo mundo fala: “Na lona das sete mulheres”. (risos) É uma curtição, a gente sorri demais. Então são coisas que foram difíceis, como eu te disse, eu senti essa barreira, entendeu? Senti muito esse peso, esse negócio que você está falando. De ter gente até para pedir também para barrar, dizer pro presidente do sindicato, na época, quando entrou aqui: “Rapaz, o que tu pode fazer pra essa mulher não assumir, como é que vai botar uma mulher no meio da gente?”. Realmente, ele poderia, [mas falava]:: “Rapaz, eu não posso, ela passou, ela tem todos os direitos, ela está toda aparelhada, munidas de todos os documentos, como é que eu vou fazer pra menina não assumir? Mas, não tem nada a ver, ela vai assumir”. Então, são barreiras, como eu te disse: desde o primeiro momento, eu encontrei obstáculos e barreiras, mas aquilo não me travou, aquilo me deu mais força pra que eu lutasse, pra que eu conseguisse, chegasse até onde eu queria, que era justamente o objetivo de entrar, de estar, de poder conquistar meu espaço. E, depois, já lá de dentro, justamente, mais barreiras, mas eu fui conquistando. Aí vieram, depois vieram também os problemas de novo, também já de saúde, que foi nesse período que eu te disse que eu já fiz outras cirurgias, que eu me afastei, fiquei afastada quase dois anos, um ano e pouco. Mas eles, no momento que eu estava afastada, porque tem um plano de saúde, mas, graças a Deus, teve uns colegas [que disseram]: “Rapaz, não vão cortar o plano de saúde dela agora, porque deixa, pelo menos, ela começar a receber pelo Inss, porque ela não pode, ela está com os problemas de saúde, ela não pode ficar sem o plano de saúde dela, porque é delicado”. Então, não cortaram, me ajudaram, faziam: “’Bora’ fazer uma ajudinha”. Quando chegava aqui, faziam uma cotazinha lá, um envelopinho aqui, deixando pra mim. Então, assim, são coisas que foram mudando, a mente deles foi abrindo. E isso mostrou pra outras mulheres, pra outras pessoas, que eu abri uma porta, que daqui pra frente: “Ah, como é que faz pra entrar?”, “Ai, não dá!” “Dá, sim. Olha, como é que tu tá aqui? O que tu faz?”. Eu digo: “Pois é, basta você ter...”. Agora não vou, não estou jogando, não. “Ah, tem gente que consegue, só você ter vontade, força de vontade e determinação. Eu não vou te dizer que eu faço, que tu não vai enfrentar barreiras. Vai. Mas se você estiver focada naquilo e quiser realmente, você chega lá, você alcança, sim, quebrando e passando por cima desses obstáculos”. Tanto é que eu sou a prova viva disso. (risos)
P/1 - Dorinha, o que representa, pra você, ser a primeira mulher a trabalhar no setor da estiva, assim, no porto?
R - Ah, é contagiante, uma alegria, assim, às vezes, eu busco aqui, eu fico me sentindo privilegiada. Estar nesse cenário só de homem, de ter quebrado várias barreiras, passado, vencido vários obstáculos, coisas difíceis. Mas de estar hoje assim, foi uma conquista muito grande e é gratificante, é muito maravilhoso, às vezes, estar e ouvir esse elogio, eu me sinto, quando falam: a primeira mulher, a única mulher. Eu digo: “Não, eu quero que venham mais outras dentro. Mas, até chegar, o pódio é só meu”. (risos) Assim, não é aquela coisa de orgulho, de metida, não. É um orgulho, mas de felicidade, de estar representando as mulheres, todas as mulheres. Quando vem pessoas das outras empresas, tiro foto, digo: “Só que eu vou cobrar isso aí, porque aí vocês já estão querendo ganhar em cima de mim”. (risos) Mas tudo na brincadeira. Quando divulgam ou quando dizem, até tem a plaquinha ali, ó, foi dia 09 de setembro de 2020, que eu ganhei uma plaquinha que já era pra ter ganho há muito tempo. Eles disseram: “O Órgão Gestor de Mão de Obra Portuária Avulsa do Itaqui, com seus 26 anos de anuidade, tem a honra de homenagear” - eu ganhei uma placa de honra ali - “Doralice dos Santos Sodré, em agradecimento pela contribuição importante, presença da categoria de arrumadores, ao longo da nossa história”. A única mulher a representar esses 26 anos de homens, a primeira mulher a representar. Então, é uma honra, é muito gratificante, é maravilhoso isso. É uma sensação muito, muito, muito gostosa. Muito bom mesmo, entendeu? Sou muito feliz com isso.
P/1 - E como você enxerga a questão, assim, da dupla jornada, de conciliar o trabalho com outras demandas da sua vida, assim? Como que é?
R - É correria, eu sinto e eu acho, apesar, como eu te falei ainda agora há pouco, só na questão da presença, de estar mais junto com meu filho. Porque você já viu que ele chegou, a gente é muito... Mas, assim, é corrido. Hoje, já tem um tempinho a mais, porque depois que mudou, agora que são seis horas, aí a gente tem quatro turnos, então, já deu pra respirar mais um pouco, para poder formular alguma coisa. Hoje já tem um tempo que ele faz cursos, ele faz alguma coisa. Eu já tenho um tempinho de levar, quando eu não o levo, eu busco. Então, estou mais um pouquinho presente. Porque assim, a vida da gente era, nesse período... isso eu sentia muito. A parte que eu mais sentia, não tanto a minha vida, de sair, de me divertir. Como eu te disse antes, lá no início, a gente conversando, a minha vida foram fases. Me diverti muito. A minha infância foi conturbada, foi muito divertida. Brinquei, aproveitei. Já a adolescência foi partindo um pouquinho mais de responsabilidade em ajudar em casa, com a minha mãe e estudo. Já na terceira, que eu já considero primeira, segunda, terceira e a quarta é aquela já dos sessenta, já chegando para aposentadoria, (risos) pra ficar só no “bem e bom”. E essa minha terceira fase, que é essa, já depois dos trinta, aos quarenta, que eu já tive meu filho, assim, às vezes, conversando, ainda cobram: “Dora, tu não sai, tu não vive mais”. Eu digo: “Porque tudo na vida tem a fase e as minhas foram muito boas”. Eu me diverti muito, muito, muito. O que eu pude, antes de ter meu filho, agora que eu tive meu filho, eu quero aproveitar essa fase dele, até os doze aninhos, que a gente sabe que também é uma coisa que passa rápido, que cresce, você perde, então, eu quero curtir, quero curtir. Se for, depois que ele estiver com uns doze, quatorze, estarei lá com meus quase cinquenta, ainda cheia de saúde, aí vou curtir também, levando. Mas fazer coisas, ou deixar, digo: “Não, eu passei as fases da vida, eu estou acompanhando”. Aquilo que - hoje eu tenho 45 [anos] - o que eu fazia com os meus vinte, não, hoje já passou, eu já fiz, já foram, foram adolescência, foram a minha infância. Tudo eu olho pra trás, eu não me arrependo de nada. Assim: “Tu te arrepende alguma coisa que aconteceu, ou acrescentaria?” Eu acrescentaria que era a parte de ter essa força de vontade, essa determinação, [de ser] essa guerreira, essa guerreira que eu sou, entendeu, corajosa. Pra buscar de novo tudo que eu foco de melhorias pro futuro, de coisas boas. Mas aquilo: “Ah, fiz aquilo, me arrependi”. Não, me arrependo de nada. Graças a Deus, estou no patamar, mesmo com os problemas, mesmo com as situações, mesmo passando agora, como eu te disse, que estou hoje com dezoito, dezenove dias que eu fiz a décima cirurgia, a décima na coluna. E estou aqui, assim, olha aqui: “Dorinha, tu não fez, tu não está…”. Tô, entendeu? Então, assim, bem disposta, confiante muito em Deus, porque eu sei que os problemas, Deus tem propósito na vida da gente. Na minha, tenho certeza, porque há três anos, quando eu fiz a cirurgia da apendicite, que estourou dentro de mim, o médico despachou, chamou minha família e me entregaram como se eu estivesse morta. E, assim, num cenário desse, Deus me trouxe de novo, pra eu poder contar, depois de três anos. Passando de novo, hoje com vinte dias, passando por outra cirurgia também que é delicada, na coluna, levei sete pontos. Mas eu estou aqui hoje, com vinte dias. Estou bem, graças a Deus, entendeu? Esperando, aqui, uma suposta, um resultado de uma biópsia que foi preciso fazer para que eu possa descobrir, realmente, o meu problema. Esse problema, dessa dor que me levou a essa nova cirurgia. Mas eu estou confiante, mesmo qualquer que seja, eu sei que é vontade de Deus e eu sei que Ele tem um propósito na minha vida e que eu ainda não cumpri aqui, que eu sei que Ele está fazendo isso e Ele só me dá tudo aquilo que eu suporto. E botou tudo assim, uma coisa que vem juntando, vai pensando, tal. Pensando na vida, eu disse, eu digo desde o dia que você começou a ligar pra mim, que a gente estava entrando em contato, marcando e tal, eu estava já internada, eu já estava hospitalizada, naquelas primeiras ligações. Só que eu não falei porque pensei, ela vai querer marcar aqui e eu estou com essa cara inocente, porque eu não sabia ainda qual era o problema, na verdade, a minha situação. Aí eu digo: “Não, deixa eu sair primeiro, estar na minha casa, que aí a gente [faz]… Foi o que eu cheguei até a te falar, que eu estava doente, estava passando mal. Então, assim, já teve isso, passando por tudo. Aí, estou fazendo essa entrevista, esse documentário da minha vida. Então, é uma coisa que eu digo: “Deus vai botando tudo. Vai ser gostoso amanhã, eu estar aqui, entrando, meus colegas, minha família, vão olhar, vão ler, vão assistir isso aqui, é feliz demais. Então, é o que eu digo: “Deus é maravilhoso. Muito, muito, muito maravilhoso na minha vida”.
P/1 - Dorinha, e como é ser mãe do Davi, o que vocês gostam de fazer juntos?
R – Ixi, meu Deus do céu! Ser mãe foi uma dádiva. Mas era uma coisa que eu já tinha, como eu te disse, que eu já sentia ser mãe, já sentia o carinho desde os meus sobrinhos que me chamam de mãe. Quando me chamam de tia eu fico brava, nem abençoo: “O quê, não respeita mais não?” (risos) E, assim, ser mãe do Davi é um presente de Deus, porque é inexplicável, não tenho palavras, porque o amor é uma coisa maravilhosa, estar junto com ele. Nós dois somos carne e unha. Ele é muito atencioso, ele é muito carinhoso, muito ciumento. Depois que eu me separei do pai dele, que ele está aqui, é um grude. Mas é um grude, assim, aquele menino que é carinhoso? É. Um pouquinho, às vezes, teimosinho, tal. Eu brigo, estou lá junto com ele no estudo, porque ele, às vezes, ele quer faltar, nesse mundo virtual, de celular e tal. Mas é uma pessoa, é um filho que eu estou tentando, também, que vá pelo menos um pouquinho dessa criação que os meus pais me deram. Porque a gente sabe que hoje é difícil, mais difícil, porque é totalmente diferente, hoje eu mostro pra ele aquelas brincadeiras que tu me perguntou na minha infância, ele nem conhece. Eu mostro pra ele. Aí, por quê? Porque se chegar agora mesmo, se ele não estiver na televisão no quarto ou no celular, conversando no joguinho com o sobrinho, ele está desse jeito, eu digo: “Meu filho, você tem que chegar, você tem que conversar, você não conversa mais com a mamãe, eu vou tomar esse seu celular de novo, entendeu?” Ele: “Mãe, mas…” “Não, filho, meu amor, a gente vai conversar, eu vou perguntar pra você como foi teu dia, tuas aulas” — porque eu pergunto. E quero que meu filho pergunte como é que mamãe está agora, porque eu estou operada, ele está cuidando de mim. Aí, quando eu estou fazendo alguma coisa: “A senhora já está fazendo isso? A senhora é teimosa e não sei o quê, eu vou ligar pro tio, não sei o quê”. Mas é divino. É um amor, é inexplicável, como eu já te disse, muito gostoso. E foi a melhor que Deus também botou na minha vida, mesmo que eu diga que foi na meia idade, foi bom. Tudo tem seu tempo. Porque eu o tive com 37, hoje ele tem dez, mas ele vai crescer junto. E daqui, sou eu a trabalhar, pra poder dar um conforto também, deixá-lo estável, porque é a minha preocupação. Ele é o meu combustível pra poder enfrentar tudo isso, amiga. (risos) Eu olho pra ele, assim, é muito gostoso, é muito maravilhoso.
P/1 - Dorinha, tem tempo pra gente fazer umas algumas perguntinhas?
R - Tem. Eu vou te dizer também, que eu me lembrei, que é justamente isso que eu ia te falar, das conquistas do serviço, quando eu abri mão, de nove anos e seis meses lá da Copi, foi o que eu disse que esses nove anos que, com dois anos talvez, eu ia ter alcançado mais coisas que eu não tive, porque tinha a minha casa, dos nove anos lá da Copi. E vivia tranquila, bem e tal. Mas, pra você ver, eu saí de lá e também era outro desejo, um sonho ter meu carro. E com dois anos já, que eu já estava no Ogmo, eu comprei meu automóvel, entendeu? Então, assim, pra você ver, eu passei nove anos na Copi, a diferença disso. Em relação ao ganho, tá? E se eu passei nove anos, eu tinha casa própria, vivia bem, saía para os lugares com meu filho. Praia, porque ele gosta demais. Passeio, assim, a gente vive: “Mãe, praia, piscina, tal”. A gente vai para os passeios e costuma estar juntos em casa, como eu já te disse. Mas em nove anos eu não conseguia. Então, só daí dá pra ter uma noção e ver que foi uma troca que, pra mim, não tenho arrependimentos, dos nove anos e seis meses. Porque eu consegui alcançar as coisas que estavam ainda no meu sonho, que eu tinha vontade, com dois anos. Depois eu consegui comprar meu automóvel. E como eu te disse: tenho uma vida, hoje eu estou num patamar estável. Uma coisa que a gente respira, que dá pra você viver, fazer gosto não, mas dá aquele conforto pro teu filho. Estou botando na escola, uma escolinha boa, pagando cursos, ele geralmente está fazendo curso. No final do ano ele ganhou uma bolsa através do meu serviço. O Ogmo pagou para ele um curso de informática, porque ele ficou em segundo lugar no concurso de redação, que tinha pros filhos dos trabalhadores. Então, são coisas gratificantes e gostosas. Você conseguir, ver que valeu a pena. Agora pergunte. (risos)
P/1 - Dorinha, eu queria saber como que o Coronavírus, como que a pandemia afetou a sua rotina, o seu trabalho e a sua vida pessoal.
R - Olha, muito, foi muito impactante. Até porque, da maneira como ela veio, como ela levava, como ela destruía as pessoas e da maneira que ela levava, é como eu digo, logo ali você sentiu, você isolava o teu familiar, o teu amigo, a pessoa, isso foi demais. E aí minha preocupação, justamente, logo quando chegou, foi isso, foi meu filho. O que eu fiz, os cuidados aqui, duraram da pandemia até hoje, está um sistema: tu entra aqui da porta da rua, (risos) até o quintal ali, são dois vidrinhos de álcool em gel. Aqui na sala. Lá no quarto dele é outro. Lá no meu é outro. No banheiro é outro. Na cozinha tem mais dois. “Dora, como a gente chegou?” “Se cuidando”. Na minha casa, a limpeza é com água sanitária até nas paredes, passo álcool em gel, passo álcool normal. Tu chega aqui... porque, assim, como eu digo: é a preocupação, porque da maneira que ela vem, que ela leva, que ela devasta a gente, é triste, aquilo é muito preocupante. E, no cenário onde eu trabalho, lá também a gente teve essa barreira, por quê? Porque pra conseguir a vacina, a gente não estava conseguindo e tivemos contato com o pessoal que vem que, se você acompanha aí no Jornal Nacional, já teve dois indianos que vieram pra cá com isso. Então, assim, a gente tem mais essa mascarazinha, porque tem uns companheiros que nem usam a máscara. Esse era o medo, entende? Chegava assim, essa minha mania, aí fazia o chá, chá de boldo, casca de laranja com limão, abacate. Minha irmã, até pro serviço eu fazia, eu andava: “Chegou a doida”. Eu digo: “Doida não, eu tenho amor à minha vida e tenho um filho que depende de mim, vocês estão brincando porque, graças a Deus, também familiar meu ainda não - só com amigo, conhecido - aconteceu. Mas a gente só vai dar valor... vocês, eu digo a gente, porque a gente se engloba, mas, vocês que não estão confiando nisso, é depois que acontecer, que vocês presenciarem alguém da família de vocês, porque isso é muito triste, você deixar uma pessoa lá num canto, jogado, depois morreu e você nem chega perto pra se despedir, bota dentro de um saco. Então, assim, aquilo me agoniava. Aí eu já deixava, logo de início, meu filho já joguei na casa da minha irmã. Ficava, só ia lá, ia no carro, levava minha roupa, já saía de lá, vinha primeiro em casa, tomava banho, passava álcool. Ele chegava lá, queria me abraçar, mesmo assim eu, de máscara, passava e ele passava álcool em gel. “Me dá beijinho, não sei o quê”. A gente se abraçava assim. Mas meu filho, mostrando pra ele: “Mamãe, eu não quero”. Falou até besteira: “Eu prefiro até esse coronavírus, mas eu não prefiro ficar longe da minha mãe, não sei o quê”. Eu: “Filho, meu filho tem que entender, já está com dez anos”. Mas aí eu mostrava, eu dava aquele choque de realidade, mostrando, porque pra criança é mais complicado, ele não assimila muitas coisas como a gente, adulto. Mas, graças a Deus, foi tocando. Lá no serviço, eu chegava lá, abria cantina, estava todo mundo aglomerado, com o ar-condicionado, eu abria a janela [e eles reclamavam]: “Vixi, não sei o quê”. Eu digo: “Não”. Aí, um dia até me chateei: “Olha, eu mando na minha casa, agora, aqui, eu vou fazer essa higiene aqui, porque eu tenho amor à minha vida e eu não quero pegar essa doença”. Já num cenário que já tinha uns dois lá que já tinham tido, que estavam no meio da gente, por também ignorância, de não sentir os sintomas fortes, ficou no meio normal, mantendo a máscara, os cuidados. Mas não. Aí, com aquilo tudo, a gente se precaveu. Até que fizemos movimentos lá no porto. Filmamos, botamos na imprensa. Foi aí que, graças a Deus, conseguimos a vacina lá pra dentro, pra gente, pros TPAs. Conseguimos e mediante a isso, fomos vacinados. Inclusive, eu vou até tomar já a segunda dose, ainda não tomei porque ainda estou com vinte dias da cirurgia e ela dá aquelas reações, então, o médico disse até pra eu deixar logo completar o mês, pra eu tomar. Estou ansiosa também que venha a de dez anos, pra eu poder vacinar meu filho. E eu tive, acabei pegando também. Só que ela, comigo, não foi [grave], só sentia a dor no corpo, mas também era combatente no chá, como que eu estou te falando. Era direto. Então, não dei trégua pra ela. Ela só vinha na hora que eu… também continuei a trabalhar, só que eu nem, assim: era direto, saía de casa, era direto com a máscara, com álcool. Não tinha esse contato muito físico com os colegas lá. Sempre falando e suava muito. Eu acho que ela ia expelindo, que ela não gosta mesmo do sol. Eu já ficava no sol mesmo e foram só, mesmo, esses sintomas. Tomei a medicação. Passaram quinze dias. Depois eu fiz o exame. Graças a Deus não deu mais. Não deixou sequelas não. E, assim, o impacto foram só as perdas, que aí a gente via, minha irmã, cada dia, só sabia notícia: tal colega morreu, fulano morreu de Covid. Então, assim, foi deixando a gente e mostrou uma coisa que, se - eu estava até comentando antes - eu já valorizava a vida, depois dela a gente tem que pensar, tem que olhar um pouquinho e valorizar cada minuto mais. Porque aí que a gente vê que ela veio e que a vida da gente é isso, é um sopro. Da maneira que ela veio e é isso aí: valorizar cada segundo, cada instante é uma vitória, a gente tem que agradecer a cada instante dessa vida, a Deus. Só por ter passado tudo isso, que está vindo depois dessa pandemia. A gente já vê milhares, milhares, centenas de pessoas, de famílias que já perderam seus entes queridos e a gente está firme, está forte, ainda está aqui bem, graças a Deus, podendo contar, podendo conversar. Isso é muito valioso.
P/1 – Dorinha, pensando, assim, olhando pra sua trajetória profissional toda, qual você acha que são os maiores aprendizados?
R - É valorizar, valorizar tudo, tudo assim, principalmente a vida, a cada minuto, a cada instante. Fazer as coisas, dar valor, entendeu? Dar valor a tudo. Agradecer a Deus por tudo de bom que tu recebe, ou também, por aquilo que você pensou e não deu certo. Se lembrar de agradecer a Deus todos os dias, cada manhã, cada deitar, pelo pouco, agradecer pelo muito, mas agradecer muito mais pelo pouco, porque Deus te dá, a gente tem sempre aquilo de foi bom aquilo, você ganhou: “Deus, obrigada”. Mas se não deu certo aquilo, você não abre a boca e diz: “Obrigada, Senhor”, pela saúde, pela doença. É por tudo, pelo teu viver, pelo teu amanhecer, pelo teu acordar. É isso, eu vejo esse aprendizado, resumo assim. É valorizar cada segundo e nunca esquecer de agradecer por tudo, por tudo nessa vida, pelos bons, pelos ruins, de bom, de tudo o que acontece na sua vida. À Deus, primeiramente.
P/1 - E o que que o Porto de Itaqui representa na sua história?
R - Ah, muito mesmo. Vamos resumir à metade das coisas boas que me aconteceram, as transformações, os aprendizados. De cem por cento, cinquenta por cento, é o porto, significa muito. Hoje, através do porto, minha vida mudou. Coisas boas, coisas tristes. Ruim não, nada me aconteceu ruim ali. Coisas boas, maravilhosas. Coisas tristes, que me aconteceram e tiveram transformações na minha vida. Ali, então, significa cinquenta por cento, eu digo que ele significa muito, tem uma história marcante, posso dizer, resumir assim. Até porque foi a mudança da minha vida e, melhor, a chegada do meu filho. Que, como eu já te disse, abaixo de Deus hoje, dos meus pais, ele é meu tesouro, a coisa mais valiosa que Deus me deu. E ele já se encaixa ali, da minha cara no porto, porque o pai dele eu conheci lá, então, é uma coisa muito importante.
P/1 - E quais são os seus maiores sonhos, hoje?
R - Ah, não parar. Agora, daqui pra frente é continuar, é continuar buscando meus objetivos, continuar com essa esperança. Correr atrás da minha vida, primeiramente, minha saúde, como eu já busquei ter muita esperança em Deus. Daqui dez dias, cinco dias, quando eu for receber este resultado dessa biópsia, eu estarei aqui cheia - como eu estou hoje - de esperança, cheia de confiança, de certeza que não irá dar algo mais sério. Uma coisa que eu possa fazer um tratamento, uma coisa que vai ser, que Deus - se tiver alguma coisa, eu tenho certeza - já curou. Só pra eu manter o padrão e focar em viver ainda muito, muito, muito, muito. Eu acho que eu ainda vou viver até os oitenta, até cem está ótimo pra mim. (risos)
P/1 - A gente está chegando no fim, tem umas duas perguntas pra te fazer. Queria saber se você queria acrescentar alguma história que eu não tenha te perguntado, ou passar alguma mensagem.
R - Dizer que tudo que a gente tem, que a gente faz, que você pensa em fazer, você tem que acreditar, tá? Se você acreditar, você corre atrás, resumindo tudo isso, é nunca desistir, mesmo tendo dificuldades. É ir sabendo valorizar, mesmo com os desafios, obstáculos, as perdas, os ganhos, as decepções são várias. Mas enfrentar, ver isso de uma maneira assim, que te encoraje, que te fortaleça, para que você não desista e corra atrás sempre dos seus objetivos, com uma certeza que você, se você tiver certeza, confiança e querer aquilo realmente, você consegue. Mesmo sabendo que você vai enfrentar rojões na tua vida, mas ter muita confiança em Deus, nunca se esqueça disso. Ter o apoio que você consegue chegar onde você pretende.
P/1 - Dorinha, o que você achou da proposta de mulheres que trabalham no mercado rodo-porto-ferroviário contarem sua história em um projeto de memória?
R - Ah, maravilhoso. Isso, pra mim, assim, é mais outro sonho, porque desde quando eu entrei no porto, me falaram, até a EMAP falou que ia fazer, como eu até comentei contigo, que fizeram, me chamaram, eu fiz a presencial. Na época ainda não tinha Covid, uma entrevista também. E eu não sei pra onde eles botaram essa entrevista, o que aconteceu. Porque não foi divulgado, tiraram foto minha, não sei se eles têm feito só em um canal fechado, pra tipo divulgar, na página deles, porque não foi divulgado. E hoje, eu acho muito gratificante. Eu acho que tem que ser feito sempre, mais e mais, porque é muito gostoso. Eu, sinceramente, como eu sonhava com isso (risos). Eu sonhava com isso, com poder contar essa história. Como eu te disse, que foi muito ralado, muito sofrido pra chegar até onde eu cheguei, enfrentando tudo isso. Passei, pensei em desistir, por essas situações. Aí vem todo, todo um cenário de tudo, botando os pingos nos is, você tem que ter muita determinação, ser guerreira mesmo, porque não é fácil. Mas, hoje, eu estou aqui agora, eu vou sentar, você vai sentar, você vai ver que são exemplos de vida que a gente pensa. Eu penso já, ela pensa a minha aqui, porque a minha [história] é complicada, é conturbada, teve obstáculos, mas eu vou parar, vou sentar ali, vou ver, que a da minha colega aqui teve mais atribulações do que a minha. Então, a gente para pra olhar só pro umbigo da gente. Mas sem julgar, você só vai olhar e analisar, você vê que as dos colegas aqui do lado são situações que já passaram, talvez muito mais difíceis do que as nossas e você não sabe valorizar aquilo. Então, foi muito bom, eu gostei demais, estou muito feliz. Foi uma coisa maravilhosa, incrível. Como eu te disse, Deus faz as coisas tudo na hora certa.
[Fim da Entrevista]
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