Entrevista de Simone de Cassia Oliveira Venancio
Entrevistada por Luiza Galo
São Paulo, 04/03/2022
Projeto: Aquilo que me Move: Mobilidade e Diversidade - Arteris
Entrevista número: PCSH_HV1159
Realizado por: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Simone, quero muito te agradecer por estar aqui com a gente, por ter topado participar desse projeto, dividir um pouco da sua história. E pra começar eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Ah, tudo bem. Meu nome é Simone de Cassia Oliveira Venancio, eu nasci em São Paulo em dez de dezembro de 1971.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chamava Valdir De Oliveira e minha mãe Neide Sandrine De Oliveira, já não está mais aqui.
P/1 – E como você descreveria eles, o jeito deles?
R – Meus pais, meus pais eles foram… eu tive uma educação bem rígida como da geração passada, meu pai… eu nasci numa família de caminhoneiros. Meu pai, desde que eu me conheço por gente, era caminhoneiro. Ele foi soldador antes, mas quando eu nasci ele já tinha entrado pro mundo do caminhão com meu avô por parte de mãe que levou ele, então eu praticamente cresci dentro de caminhão, praticamente nasci e cresci dentro de caminhão, sempre andei, desde pequena, desde muito pequena. Foi ele que me ensinou tudo. Eu tenho uma irmã, mas assim, ela nunca se interessou por caminhão, ela partiu pra outro lado, foi ser professora, ela gosta de negócio de papel, o negócio dela é outro. E como eu não tenho irmão quem sempre ajudou o pai a mexer no caminhão fui eu, e assim, era outro tempo, era outra era. Tanto é que eu aprendi a dirigir muito cedo, coisa que hoje seria um absurdo. Eu aprendi a dirigir com dez anos, com doze, treze anos eu já estava dirigindo carreta, já estava manobrando direitinho, porque meu pai era muito metódico. Então ele sempre me ensinou a parte mecânica, porque eu não tenho irmão, como eu não...
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Entrevistada por Luiza Galo
São Paulo, 04/03/2022
Projeto: Aquilo que me Move: Mobilidade e Diversidade - Arteris
Entrevista número: PCSH_HV1159
Realizado por: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Simone, quero muito te agradecer por estar aqui com a gente, por ter topado participar desse projeto, dividir um pouco da sua história. E pra começar eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Ah, tudo bem. Meu nome é Simone de Cassia Oliveira Venancio, eu nasci em São Paulo em dez de dezembro de 1971.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chamava Valdir De Oliveira e minha mãe Neide Sandrine De Oliveira, já não está mais aqui.
P/1 – E como você descreveria eles, o jeito deles?
R – Meus pais, meus pais eles foram… eu tive uma educação bem rígida como da geração passada, meu pai… eu nasci numa família de caminhoneiros. Meu pai, desde que eu me conheço por gente, era caminhoneiro. Ele foi soldador antes, mas quando eu nasci ele já tinha entrado pro mundo do caminhão com meu avô por parte de mãe que levou ele, então eu praticamente cresci dentro de caminhão, praticamente nasci e cresci dentro de caminhão, sempre andei, desde pequena, desde muito pequena. Foi ele que me ensinou tudo. Eu tenho uma irmã, mas assim, ela nunca se interessou por caminhão, ela partiu pra outro lado, foi ser professora, ela gosta de negócio de papel, o negócio dela é outro. E como eu não tenho irmão quem sempre ajudou o pai a mexer no caminhão fui eu, e assim, era outro tempo, era outra era. Tanto é que eu aprendi a dirigir muito cedo, coisa que hoje seria um absurdo. Eu aprendi a dirigir com dez anos, com doze, treze anos eu já estava dirigindo carreta, já estava manobrando direitinho, porque meu pai era muito metódico. Então ele sempre me ensinou a parte mecânica, porque eu não tenho irmão, como eu não tenho irmão era eu que ajudava ele, tinha que ter alguém pra ajudar e eu que ajudava. Então era aquilo: “Ah, você quer dirigir, então vai lá arrumar a lona de freio pra mim; você vai destrinchar aquela roda e você vai fazer, aí depois eu te dou a chave e você pode andar”. Era assim, era premiação, você faz isso que eu te dou isso (risos). Mas quando eu fui pra trabalhar ele falou: “Tsc tsc tsc, não!” Mesmo sabendo o quanto… mesmo ele tendo… como eu posso te dizer… mesmo ele tendo a confiança de saber que ele ensinou certo, que eu aprendi o certo, o correto, ele não queria que eu trabalhasse com o que ele trabalhava, talvez pelo que ele passava na estrada, não por achar que eu não desse conta. Então, é… meu pai sempre foi muito rígido: “Não, vai estudar. Vai criar sua família, vai ter sua família e esquece esse negócio de caminhão!” Quando eu comecei a trabalhar, foi um tio meu que me ajudou a entrar nisso, eu já tinha estudado pra outra coisa, eu tinha estudado acupuntura eu ia abrir consultório, não tinha nada a ver, eu já estava com família formada, depois de velha, faz doze anos, agora em abril vai fazer doze anos que eu tô com caminhão. Então eu ia mexer com acupuntura, não ia mexer com caminhão, era a coisa que eu sempre quis na vida, eu sempre quis trabalhar com caminhão, mas tudo direcionava à não, não, não, não. “Ah não não, deixa pra lá”. E outra coisa também que foi um pouco agravante, eu tenho TDAH, aí você imagina assim, como foi para a minha mãe pra me driblar sem ter informação à cinquenta anos atrás, hoje tem pouca informação, você imagina à cinquenta anos atrás, quarenta. Cinquenta anos atrás não tinha informação, então o TDAH é antes de se saber o que era, ele era taxado como uma pessoa que não tem… “Ah, não vai dar em nada. Ah, é muito inteligente mas…”. Sempre tem um mas, sabe? O TDAH é assim: “Ah, ele é muito inteligente, ele é muito esperto, ele pensa rápido, é isso é aquilo, mas…” O ‘mas’ para alí. Então o que que aconteceu? Eu sempre tentei trabalhar em várias outras coisas que não era o que o coração queria, e quando não é o que o coração quer, não adianta, não vai. Quando eu tive a oportunidade de trabalhar com caminhão, nossa minha mãe ficou em pânico, ela falou assim: “Meu Deus do céu, essa menina com um caminhão na mão o que vai ser?” Mesmo sabendo o quanto eu era metódica, tanto quando ele pra dirigir, é coisa de ser metódico mesmo, de fazer o certo, não, você vai fazer o certo, então sempre ficou aquilo: “Ah, mas como assim ela vai trabalhar… ah, não vai dar certo… ah não, isso aí não é pra ela, ah isso aí… É o desengano. Você sempre tá ali na posição de desenganado, não por eu ser mulher, não! Meu pai nunca levou por esse lado, talvez pelo lado de eu ter que encarar aquele mundo dele sendo mulher, talvez isso, não por eu não dar conta, de falar assim: “Ah, eu vou jogar ela no mundo, não é isso que eu quero pra ela”. Ele sempre falou isso, que não era isso que ele queria pra mim, aliás tem vezes que ele fala isso até hoje, mesmo hoje eu sendo a pupila dos olhos dele, em relação ao trabalho, coisa que não foi quando eu peguei caminhão pela primeira vez. Ele ficou dois meses sem falar comigo, mesmo carregando no mesmo lugar que eu, ele falava que: “Não, aquela ali não é minha filha, não” Os outros falavam: “Nossa seu Valdir, mas que coisa mais legal, você e sua filha trabalhando junto”. Nossa, pra ele aquilo ali era a morte, mas depois ou ele se acostumou com a ideia (risos) ou sei lá o que aconteceu, mas tipo assim, hoje pra ele: “Nossa…” O orgulho dele. Isso os outros vem falar pra mim, porque ele é marrudão ainda. Sabe aquela pessoa sistemática, rígida, bruta? Então ele… pra mim mesmo ele não fala, os outros que vem falar que ele se derrete, os outros que vem falar, não ele, e é assim.
P/1 – E a sua mãe, Simone?
R – Então, quando eu comecei ela ficou muito aflita, tipo muito, porque ela não sabia o que ia ser. Eu estava com dois filhos pequenos… bem dizer, né? Meu menino estava com quinze e minha filha com dez, aí ela não tinha ideia do que ia ser: “Mas como assim ela vai deixar os filhos em casa e vai trabalhar com caminhão?”. Mesmo ela ajudando, mesmo minha sogra ajudando, tinha uma tia minha que ajudava, ela ficou meio aflita com isso. E no começo foi meio complicado dela aceitar, não foi tão fácil assim não, pelo fato de deixar a casa. É, mas tudo bem, aí ela viu que era aquilo mesmo, que eu ia trabalhar com aquilo e acabou virando aquilo que eu falei do meu pai, acabou virando a menina dos olhos, de falar: “Ah, é minha filha, trabalha com caminhão, olha o que ela faz” Aquela coisa. Aí com o tempo eu tive… entrei com um caminhão, eu trabalhei seis meses só como motorista de empregada para os outros, pra esse tio meu, que me deu a chance. E eu iria abrir um consultório quando eu comecei com caminhão, mas aí eu falei assim: “Não é o que eu quero, o que eu quero é o caminhão mesmo, não tem jeito”. E aí ela falou assim: “Ah, mas você vai ficar com o caminhão mesmo?” E eu falei: “Vou mãe, vou ficar com o caminhão mesmo”. E a gente acabou comprando um caminhão, aí depois eu passei pra outro, e pra outro caminhão. Na época, ela até acompanhou isso, eu fazia um tratamento pra depressão, eu tinha uma depressão muito grande e, inclusive, quando eu já estava no segundo carnê.. até a minha médica não acreditava, falava assim: “Nossa, mas uma TDAH vai trabalhar com caminhão, será que ela vai dar conta de trabalhar com aquilo?” Mas é o foco, quando o hiperativo tá trabalhando com aquilo que ele ama, o que acontece? Ele foca naquilo e quando ele foca naquilo ele veste a camisa, ele dá tudo de si, ele vai lá, ele corre atrás, ele fala assim: “Não, mas fui tão desacreditado, mas não é assim, eu sou capaz, eu vou fazer”. E ele vai lá e faz, mas tem que amar, senão amar não faz. Quando eu já estava no segundo caminhão eu achei ela na internet, e eu falei pra ela: “Olha Doutora, que legal, eu fui trabalhar, eu consegui”. Ela ficou meio assim: “Como assim? Eu falava pra você que você não ia conseguir” (risos). A médica falava pra mim que eu não ia conseguir. Você imagina o que é a… onde você busca ajuda a pessoa virar pra você e te desacreditar, é uma coisa… pra quem não tem nada disso eu não sei como reagiria, mas pra quem tem lá suas dificuldades, ela imagina. “Poxa, mas se a pessoa que eu tô buscando ajuda não acredita em mim, então quem vai acreditar?” Você tem que acreditar em você, pegar e ir. Para você ter uma noção, em doze, vai fazer doze anos, eu consegui ta em um Bitrenzão que graças a Deus tá pago. Coisa que você vê muita gente, não sei se porque não vai atrás ou porque não tem interesse, não sei, não consegue chegar nisso a vida inteira. Então, em um curto espaço de tempo, eu assim… fui tão cega trabalhando, tão focada, tão determinada que eu consegui chegar no caminhão que eu tô hoje. Pra mim é uma conquista enorme. O meu marido, o que ele fez? Ele ia apoiando. Como ele trabalha com a logística ele sempre foi indo por onde eu poderia ir, pra eu conseguir estar com as viagens certinhas, com os pagamentos certinhos, arrumar um negócio certo pra fazer na hora certa. Então quer dizer, a gente trabalhou numa equipe que dá certo, eu tive apoio em casa, coisa que talvez outras pessoas não teriam, mas eu tive. O que no começo foi aquela: “Ahh…” Aquela negação, depois se transformou em ajuda. A gente não faz nada sozinho, a gente não é ninguém sozinho. A pessoa que fala: “Ah, eu fiz sozinho”. Mentira, não fez (risos). Sempre tem alguém pra ajudar, sempre tem apoio. E eu tive bastante.
P/1 – E Simone, eu vou voltar um pouquinho, queria saber se você conheceu seus avós, se você sabe um pouquinho da história deles?
R – Meus avós. Eu tive mais conhecimento com meus avós por parte de mãe. Eu fui até atrás de árvore genealógica, de bisavô, eu fui atrás pra saber como funcionava, quem foi quem. Aí eu descobri que meus avós, bisavós vieram da Itália, eles vieram em porão de navio, clandestino, refugiados, estavam fugindo de guerra, e assim, o meu bisavô veio pra cá e conquistou… ele teve fazenda, ele teve sítio. E quando ele conquistou tudo isso aí, foi repartir para os filhos, depois eles venderam e compraram caminhão (risos). Então quer dizer, caminhão na minha família tem a muito tempo, desde a década de 1940 por aí, pra você ter uma noção. 1940, 1950 eles foram atrás de caminhão. Então eu tive muito contato com o meu avô por parte de mãe. Com o meu avô por parte de pai eu tive bem pouco, meu bisavô por parte de… tanto é que meu pai e minha mãe eram primos, de segundo grau, mas eram primos, então os mesmos avós da minha mãe eram os mesmos do meu pai, tios avós, avós eram os mesmos, então eu tenho duas ramificações de famílias de italianos, eu tenho da minha mãe e eu tenho da parte do meu pai também.
P/1 – E você sabe a história do seu nascimento, como escolheram o seu nome?
R – Então, o meu nome foi por causa de uma amiga da minha mãe, porque Simone… que nasceram muitas depois, foi coisa de seis ou sete meses depois que eu nasci teve a novela “Selva de Pedra”, aí foi uma epidemia de Simone. Minha mãe queria esse nome porque não tinha (risos) ela queria esse nome :"Aí, eu não vejo ninguém com esse nome, é difícil ter o nome de Simone”. Aí seis ou setes meses teve uma novela e virou pão (risos).
P/1 – E Simone, você lembra da casa, da rua, do bairro onde você passou sua infância?
R – Sim… tanto que eu lembro que eu lembro o nome da rua. Eu mudei do Ipiranga… eu nasci no Museu do Ipiranga, no Museu mesmo. No Museu do Ipiranga são três casarões, têm o casarão principal e mais dois casarões pra trás no mesmo jardim dali do Museu do Ipiranga, é o mesmo jardim. Eles são três casarões amarelos, um deles, na época, era uma maternidade, então eu posso dizer que eu nasci no Museu (risos). Então eu nasci no museu do Ipiranga e a minha infância foi assim numa cidade mais movimentada, até meus seis anos. Eu vivia mais dentro de casa, não era tão solta na rua como quando eu mudei pra Guarulhos. E lá, quando eu mudei pra Guarulhos, era tudo mato, sabe a época que era tudo mato? Era a época que era tudo mato, então eu tive uma infância mais livre, depois, antes era mais trancada, mas eu tenho, eu procurei no Google a foto da casa onde eu nasci, eu achei ela, ela mudou muito pouca coisa, quase nada, todas as casas da rua estão modificadas e ela não, aí eu falei: “Nossa cara, que espetáculo isso”. Aí eu fui lá no Google mesmo e printei a foto e tenho ela guardada (risos). Isso é muito legal. .
(17h36) P/1 – E quais eram as brincadeiras favoritas dessa época?
R– Até os seis anos a gente não tinha muito recurso, eram os brinquedos que os pais tinham condições pra dar. A minha mãe pegava, como eu era muito atentada, o hiperativo é muito atentado, ele é muito ativo, então minha mãe me pegava e eu tinha aqueles triciclos de madeira, depois tinha de plástico essas coisas, mas o meu era de madeira com ferro, e a minha mãe me pegava e ficava dando voltas. A minha alegria era essa, catar aquela motoquinha e sair no mundo, achando que é o… sei lá o que eu achava que eu era, e ia com aquela motoquinha porque era uma delícia, nossa! Aí depois em Guarulhos eu brincava como qualquer outra criança normal, aí eu tinha lugar pra brincar, brincava de bola, brincava na rua, brincava no mato, brincava subindo em árvore, mas as minhas brincadeiras eram mais com os moleques do que com as meninas (risos). As brincadeiras dos meninos eram mais legais (risos).
P/1 – E a sua irmã, como era a relação de vocês?
R – Ah, igual toda a relação de irmão, perturbada (risos. Até a gente crescer, meu Deus do céu, tá amarrado (risos). Eu era mais velha, minha irmã mais nova, mas depois assentou, depois que criou o juízo assentou (risos).
P/1 – E você pensava o que queria ser quando crescesse?
R – Eu sempre quis trabalhar com caminhão, é coisa que sempre sonhei, eu cresci dentro de caminhão, eu não via outra coisa, eu não tinha outra referência, então eu falava assim: “Quando eu crescer eu vou ser igual meu pai”, eu não imaginava que eu ia ser igual a minha mãe, não, eu imaginava que eu ia ser igual ao meu pai. Nossa, meu pai era o herói de capa e espada. “Eu quero ser que nem ele, eu quero ser fantástica que nem ele”. E aquilo ali galgou na cabeça, eu não me imaginava fazendo outra coisa. Aí eu casei, tive filhos, fui trabalhar com outras coisas, mas sabe quando não é o que você queria? Nossa! Quando eu fui trabalhar com caminhão é… não dá pra explicar, não dá pra explicar, é muita emoção junto. Aí vem toda aquela história de superação. Toda a história da superação: “Ah, ela não vai dar certo”. E você lá trabalhando, trabalhando, trabalhando… eu falava assim: “Poxa, olha o não vai dar certo”. Isso aí bateu muito na minha cabeça, e em relação, não por eu ser mulher, não, eu não tive preconceito em relação a: “Ah, ela não dá conta porque ela é mulher”. Ninguém sabia que eu era TDAH, tô falando isso pra você agora, nunca ninguém teve esse acesso de falar assim… depois que eu comecei a trabalhar todo mundo me tratou como se eu fosse uma profissional, trabalha com excelência, cumpre o que tem que cumprir, da forma que tem que cumprir, corretamente do jeito que tem que cumprir e eu nunca tive assim: “Ah, ela não vai entrar lá não, ela é mulher. Ah, ela não vai conseguir colocar a carretona não, ela é mulher”, não! Se eu falar pra você que eu sofri isso eu tô mentindo, ou: “Ela não vai dar conta de ir em tal lugar porque é mulher”, nunca sofri isso não. Vi algumas amigas falarem que passaram por isso. Não sei se foi porque deram abertura ou margem pra isso, pra ter crítica, eu nunca deixei tipo, a pessoa passar da linha. Falar assim: “Você não tem o direito de vir aqui julgar o meu serviço”. Eu sempre tive muita educação nos lugares que eu fui, sempre tive muito respeito, simpatia, então isso aí sempre me abriu portas, por fazer as coisas corretamente, isso aí não é só no caminhão, isso aí é em todo lugar, todo lugar é assim. A pessoa sabe que você tá lá trabalhando, que você se dedica, que você gosta do que você faz, isso aí é abertura pra qualquer profissão, ela fala assim: “Poxa, a pessoa é dedicada, a pessoa é correta, a pessoa é honesta, tem educação, fala com a gente é simpática com a gente, poxa!” É o mínimo, é o mínimo que a gente pode ter pra gente conviver em sociedade, é o mínimo, é o mínimo. Então eu sempre vivi bem com isso, pelo fato de eu trabalhar com caminhão e eu ser mulher. Aí é uma profissão fácil? Não é! Se eu for falar pra você que é uma profissão que você tira de letra e vai lá e faz, não é. Se você está acostumado a ter muito recurso, que a gente tem em casa, que é o mínimo, que é alimentação e saneamento básico. Se você for para o caminhão, você vai sentir uma certa dificuldade. Se você ama o que você faz, você não vai nem ver, como eu, eu não enxergo, eu nem vejo, eu me arrumo, eu dou meus pulos, eu me viro. Porque você gosta do que você faz, você não enxerga. “Ah, mas tal empresa não dá recurso, tal empresa não sei o que, tal empresa não sei o que lá” Eu tô ali porque eu quero. Tem muita empresa que faz isso? Tem muita empresa que faz isso! Não é o meu caso. Vou citar o exemplo do que agora tá na safra. Nas safras a gente tem os graneleiros, tem as caçambas que vão lá no meio da fazenda, lá no Mato Grosso, no Acre, buscar soja. A maior parte das fazendas não dão nenhum banheiro pra pessoa, não facilitam nunca a parte de banheiro. A maioria dos caminhões têm cozinha, então a pessoa se vira com isso, onde é muita mata fechada, é perigoso até você abrir uma caixa de cozinha no meio do mato que onça vem pegar. Vem e pega, aí você fala: “Nossa, mas tem isso no Brasil?” Tem! Tem coisa que a gente não tem noção. Eu sei porque tenho amigos meus que trabalham nessa área e falam: “Olha Simone, a gente não pode, de noite, abrir uma caixa de cozinha no meio da fazenda”. Porque tem relatos, a gente sabe de amigos nossos que ficou só o rastro, a caixa de cozinha aberta, só o rastro do cara e as patas dela. Aí você imagina. Então eu não posso reclamar. No entanto, não pode ter a cozinha, mas a gente tem os kits de sobrevivência para poder… porque tem muito lugar que não tem recursos. E eu me viro do jeito que eu posso, então o caminhão é aquilo, pra você trabalhar com ele você tem que gostar. Não adianta você chegar alí, você chegar ali e falar assim: “Olha, eu tô precisando de dinheiro e vou trabalhar com isso que é o que eu sei fazer” Você vai ser infeliz, vai ser o cara que reclama, vai ser o cara que não dá certo, vai ser o cara que não vai pra frente, porque não tá ali porque ama, está ali porque precisa. A gente precisa? A gente precisa! Mas, se juntar o eu preciso com o eu amo não tem porque dar errado, e a gente tem fé em Deus. Porque eu vou falar pra você, com o caminhão ou você tem fé em Deus ou você não tem, porque é livramento da hora que você bate a chave pra ligar ele até a hora que você desliga, e mesmo depois que você desliga, você ainda tá a mercê de bandido, porque tem muito lugar que eles vão atrás de você ou por causa da carga ou por causa do caminhão. Então quer dizer, 24 horas por dia ou você tem uma fé ou você não tem. E tem sim uma força maior que te guarda, mesmo que você não acredite, não tem a sorte, na estrada não tem isso de sorte.
P/1 – Vou voltar um pouco, pode ser?
R – Tá. É que a gente vai se perdendo no meio da conversa.
P/1 – Mas é isso mesmo, é muita coisa na cabeça, vem muitas lembranças, mas é isso, fique à vontade.
R – Ah, depois você edita (risos).
P/1 – Queria saber quais são suas lembranças da escola. De histórias, desse período, professores marcantes?
R – Então, a minha parte de história da escola foi muito intensa e pra mim assim, é… eu aprendi o que eu queria, eu aprendi o que eu queria e eu passava nas matérias que eu queria porque precisava passar, tinha as matérias que eu gostava? Tinha as matérias que eu gostava. Eu adorava História, adorava Português, odiava Matemática, Ciência eu amava, então tinha lá as matérias que eu ia hiper bem, eu não fazia nem a lição, eu não anotava no caderno, eu sabia de cabeça as matérias, pra mim era fluido, era fácil. Agora as matérias que eu não queria e que eu tinha que passar eram muito complicadas. E assim, eu tenho amigos da escola até hoje, desde a primeira série e guardamos até hoje.
P/1 – E juventude, você ficou na mesma cidade, você mudou?
R – Sim, sim. Dos seis anos até eu casar e vir para o interior. Eu fiquei dos seis até os 26 anos em Guarulhos, então a minha juventude toda foi ali. E eu saía bastante, eu frequentava muito o Centro de São Paulo, eu adorava o Centro de São Paulo, eu amava o Centro antigo de São Paulo, amo até hoje. Eu fui uma das frequentadoras do Madame Satã desde a década de 1980 (risos), mesmo minha mãe não querendo (risos). Então eu ia muito pro Centro, eu gostava de teatro, eu gostava de cinema, eu gostava de museu, era uma coisa visceral, era, nossa… Ir no Theatro Municipal, depois… ai como é o nome ali na Barra Funda? Quem tem… fugiu o nome… Memorial da América Latina, desde que fundaram ele, até eu mudar de lá, eu fui muito em Sinfônicas que tinha ali, eu gostava demais. Nossa, foi muito bom, muito bom, muito bom. Minha juventude foi muito boa, não tem o que reclamar não, minha juventude foi ótima, foi boa, e também tenho amigos que eu carrego até hoje de lá.
P/1 – E qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Foi em transportadora, como o pai tinha várias, meu pai trabalhava nessa época com carga seca. Eu comecei a trabalhar muito cedo, quinze, dezesseis, dezessete anos eu já tava trabalhando, e como o pai trabalhava em transportadora, eles me colocavam na transportadora pra fazer aqueles servicinhos de escritório e ia aprendendo ali, então os meus primeiros empregos foram assim, foram trabalhando, fazendo conhecimento, fazendo nota… essas coisinhas, era bom!
P/1 – Como desenrolaram esses trabalhos? Como seguiu a sua vida profissional?
R – Eu não parava muito tempo em vários empregos, em algum emprego, tipo assim é… é o que eu falei pra você, o TDAH tem um problema com isso, ele não fica, se ele não gostar do que ele faz, ele não fica muito tempo no mesmo lugar, ele sai, ele não para. E em relação a isso aí minha vida profissional foi assim, eu trabalhei em Aeroporto, eu até cheguei a gostar de trabalhar em Aeroporto, andava lá toda maquiada, com salto, com coque, com tailleur, mas eu troquei o salto pela butina e não troco mais, não quero (risos), não quero mais saber de salto.
P/1 – Como foi esse período de trabalhar no Aeroporto? Como você se sentia, tem alguma história marcante dessa época?
R – Não, não. Foi uma época… engraçado as épocas que eu trabalhei, as épocas passadas que eu trabalhei eu não tenho alguma coisa pra falar assim: “Nossa, essa época me marcou muito, eu gostava”. Eu não tenho, é como se eu tivesse passado meio que uma borracha (risos) não sei se você consegue me entender, mas é uma coisa assim, que em relação ao trabalho, era uma coisa tão ‘eu tenho que fazer’. Sabe quando eu falo pra você da parte do eu preciso? É, o eu preciso sem ter o amor, não dá liga, nem pra lembrar depois (risos).
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Nossa, meu marido eu vi ele… as primeiras vezes que eu vi ele eu tinha uns dez anos, no portão da minha escola, eu via ele andando de bicicleta do lado de fora, ele não sabia que eu tava lá dentro, eu sabia quem ele era, ele não sabia quem eu era. Ele foi na minha festa de quinze anos, porque ele namorava com uma amiga minha em comum de catequese. Quando eu fui trabalhar assim, numa empresa um pouco maior, que é a ______, ele tava lá, ele trabalhava lá, então quer dizer, a gente começou a namorar eu tinha dezenove anos, pra você ter uma noção eu tava com dezenove anos quando eu comecei a namora ele, e ‘tamo’ aí até hoje (risos). Olha quanto tempo faz (risos).
P/1 – E como foi esse começo de namoro?
R – Pertubado (risos). Ah, não foi aqueles namoros de falar assim: “Nossa, nós vamos namorar sério!” Não, não não… a gente namorava, a gente brigava, ele ia e namorava com outra pessoa, eu ia e namorava outra pessoa. Eu sei que no frigir dos ovos… que 1993, 1994 por aí que a gente acabou ficando junto de vez, aí estamos até hoje (risos).
P/1 – E vocês se casaram?
R – Sim, sim. Mas viemos nos casar agora, depois, depois que fomos morar juntos, depois que já estávamos com filhos, meu menino estava com quatro pra cinco anos quando a gente foi atrás de casar (risos).
P/1 – E como foi se tornar mãe, o que a maternidade representou na sua vida?
R – Nossa é uma reviravolta, porque você imagina assim, uma pessoa que não tinha responsabilidade nenhuma, com nada, que ia andar de skate, ia andar de bicicleta, que ia atrás de moto. Minha vida era, como eu disse, minha vida era muito mais interessante quando eu estava junto com moleque, então eu gostava de mexer em moto, eu gostava de mexer em carro, eu gostava de fazer o que eles estavam fazendo, então eu não tinha responsabilidade com nada, eu não… eu ia pra galeria, eu ia pra andar em São Paulo, eu não tinha… aí de repente te jogam uma responsabilidade desse tamanho no colo e falam assim: “Você vai ter que dar o exemplo para o seu filho”. Aí eu falava: “Que exemplo meu Deus? Que exemplo que eu vou dar pra eles?” É melhor eles não saberem (risos). Eu nunca me meti com nada errado, mas tipo assim, já pensou o trabalho que eles vão me dar se for fazer o que eu fazia pra coitada da minha mãe, porque eu era atentada, minha mãe vivia com o coração na mão comigo. É que nem eu te falei, eu nunca mexi com nada errado, mas assim, não era nada: “Ah, ela tá ali na casa da fulana, brincando com ela, conversando com ela” Não! Eu tava junto com os meninos que estavam empinando moto. Os meninos que estavam lavando carburador, estavam tirando racha, então a minha mãe ficava sempre assim: “Meu Deus do céu, cadê a minha filha?” E eu não queria isso pra mim (risos). Coitada da minha mãe, eu não queria isso pra mim (risos). Nossa, aí eu tive que ser séria nos extremos, tive que virar a chave, a maternidade vira a sua cabeça de uma forma muito radical, eu acho. Você tem que ser responsável, você querendo ou não, mas acho que isso já vem embutido, acho que o hormônio da gente vira e ai e fala assim: “Não, você vai ser responsável à partir desse momento aqui, você tem uma criaturazinha e você vai ter que lavar, você vai ter que dar de comer, você já ama, ama, ama, então você vai ter que cuidar, porque senão ele morre. Não é um gato, não é uma planta, é um filho”. Aí você fala assim: “Nossa, que coisa louca que é filho”, quando você vem do nada e fala assim: “Nossa, meu Deus do céu, olha a responsabilidade que eu vou ter agora”. Aí isso aí com o tempo vai virando aquela coisa normal, mas a primeira vista é um choque (risos) pra você que tá livre, leve e solto no mundo, é um choque. Acho que ninguém tá preparado pra ser pai e mãe, não estava isso na escola, ensinando: “Olha, você vai ter que ser assim”. Não, não tava (risos).
P/1 – Quantos anos você tinha quando você teve seu primeiro filho?
R – .O Gabriel eu estava com vinte e… 25… 24, eu tava com 24, foi em 1996, eu estava com 24 anos.
P/1 – E a sua segunda filha?
R – Não me faz pergunta difícil, eu já não sei mais (risos). Ana Luiza tá com 21, eu tava com 31 anos, 31 pra 32 anos.
P/1 – E como foi a chegada dela?
R – Então, não era uma coisa assim, eu estava trabalhando até, na época que eu fiquei grávida, de novo, eu estava trabalhando e não é uma coisa que eu falei: “Ah, eu vou parar de tomar remédio e eu vou engravidar, eu tô planejando ter um filho agora porque daqui a pouco eu não quero mais ter outro”. Eu sempre quis, a gente sempre pensou em ter dois filhos, que era o que dava pra… era uma alça, tipo é o que dá certo, dá certo financeiramente, dá certo pra eu cuidar, dois filhos é a medida perfeita, ok? Ok! Com dois a gente vai fechar a fábrica e tá tudo certo. Então aí a gente teve ela. A gente já tinha mudado para o interior, a gente resolveu vir para o interior para criar os filhos, pra eles não se criarem onde a gente estava, já estava ficando muito perigoso onde a gente tava, não era mais aquela cidade do interior, o meio do mato. Já não era mais, e a gente teve a iniciativa certa. Eles, nossa, eles vivem muito bem aqui, já faz 23 anos que a gente tá aqui.
P/1 – Simone, como foi essa mudança de casa, talvez de estilo de vida também, ir para o interior, como foi esse momento para vocês?
R – Não, não foi tão drástico porque é assim, o meu pai e o outro tio meu que trabalhava com caminhão na época, eles estavam aqui já fazia uns dez anos antes da gente se mudar, trabalhando aqui e indo embora pra lá, então eles ficavam a semana inteira aqui e iam pra lá. E aí o que acontece, a gente começou a vir trazer coisas pra eles e a gente falava assim: “Nossa, mas que lugar gostoso que vocês estão, a gente tá vivendo tão mal lá”. Aí meu tio que começou a procurar casa aqui, ele começou a procurar em Paulínia, aí foi questão de tempo dele vir embora, meu pai e minha mãe virem embora, os avós virem embora, a gente acabou vindo embora e acabamos trazendo sogro, sogra. Para você ter uma noção, aqui o bairro que eu moro, aqui na chácara, só na rua da minha casa tem quatro pessoas que moram em Guarulhos, lá em cima, que eram tudo conhecidos de lá que a gente acabou trazendo, nas ruas de cima também, então tem mais Guarulhense aqui do que pessoa daqui mesmo (risos). Então quer dizer, não foi um: “Ah, foi um choque de culturas”. Não. A gente estava atrás de paz e aqui a gente teve, se você quer um pouquinho de agito você só sai daqui e vai onde tá, só isso. Mas no mais a gente vive bem, a gente não precisa de muito pra viver bem, de repente fala assim: “Ah, mas lá eu estaria ganhando mais”. Para fazer o quê? Para quê?
P/1 – E nessa época você estava trabalhando?
R – Que eu vim pra cá, não. Eu trabalho faz doze anos só, que eu trabalho com caminhão, quando eu vim pra cá eu não estava trabalhando, vim trabalhar bem depois, por aqui. Porque aí foi quando eu falei pra você: “Ah, eu voltei a trabalhar no Aeroporto”. Eu trabalhava no Aeroporto lá em Guarulhos, depois eu vim pra cá e fui pra Viracopos trabalhar também. Eu trabalhei lá, aí depois eu trabalhei aqui e depois que eu trabalhei no Aeroporto, aí eu não trabalhei mais, aí eu fui estudar, que eu falei pra você que estudei acupuntura né? Aí eu fui estudar, aí minha vida virou, pro outro lado (risos).
P/1 – E como foi esse período de acupuntura, quais eram os planos dessa época?
R - Então, eram bons. O meu professor era ótimo, ele era ótimo no que ele fazia, e eu até tinha planos de abrir uma clínica para trabalhar com isso, mas foram me lembrar que existia caminhão (risos). Aí não adiantou muito não. Mas é uma área que eu vou falar pra você, se for… se a pessoa se interessa por terapias, não deixa de estudar, não deixa de estudar, porque mesmo que eu não tenha trabalhado com isso, porque para eu começar a trabalhar com isso, hoje, eu vou ter que estudar tudo de novo, não é uma coisa que tipo assim: “Ah, você estudou posso trabalhar com isso amanhã”, não é assim, você tem que voltar, estudar de novo, aprender de novo pra você trabalhar com isso. Mas se a pessoa trabalha com parte de terapia, eu recomendo, porque mesmo que eu não trabalhasse, isso aí abriu a minha mente de uma forma fantástica. A medicina chinesa, a medicina tradicional chinesa ela é… pra idade que ela tem uma coisa fantástica, ela vai te tratar a causa, não o efeito, que é o que o Alopata tem hoje, ele vai te tratar o efeito e não vai te tratar a causa. Então pra quem tá tentando entrar nessa área, nossa, eu super recomendo! É uma coisa muito, muito gratificante de você aprender, mesmo que você fale assim: “Ah, eu não sei o que vou fazer da minha vida”. Vai fazer acupuntura que você vai se conhecer, pelo menos no mínimo pra você se conhecer.
P/1 – E me conta, como foi esse período de lembrar do caminhão, de relembrar desse sonho?
R – Para você ter uma noção a gente foi buscar… o dia que aconteceu isso a gente tinha ido com esse meu tio buscar um caminhão em uma cidade perto daqui, porque ele tinha deixado no conserto e foi atrás de buscar o caminhão. Não era pra eu montar no caminhão, ele tava fazendo ar, o caminhão não fazia ar, aí eu tinha… para você ver como a gente vai se colocando num lugar que você não abre mais a boca pra nada, é, eu chamei o meu marido e disse assim: “Ó, o caminhão dele não está fazendo ar por isso, por isso, por isso, vai lá no botijão dele, deve tá..” Sabe? Fui falando: “Deve estar com o ar isolado, deve tá isso, aquilo, ele não vai conseguir tirar o caminhão do lugar”. Aí meu tio fez assim, ele falou: “Peraí”. Aí ele foi lá olhar e era isso. Aí eu fiquei muito contente, soltando fogos abaixada no banco do carro, tipo: “Que legal, eu descobri o que o caminhão tinha, nossa!” Uma coisa idiota, e eu: “Putz grila, olha o que eu fiz”, aí ele disse: "Você quer tirar o caminhão daqui pra mim?" Nossa, a minha barriga, de verdade, a minha barriga deu um revertério assim, deu dor de barriga na hora, deu dor de barriga. Aí eu falei: “Jura tio, posso tirar o caminhão?” Ele falou: “É”. Aí fui e tirei uma carreta com três eixos juntos, tirei a carreta pra fora. Você não tem noção de como eu fiquei, aí ele falou assim: "Ah, você tirou a carreta pra mim, então leva até em casa". Meu Deus, e… eu não dirigia desde que eu era nova, desde que eu era moça, porque depois que meu pai começou a trabalhar com tanque a gente não podia mais mexer no caminhão, ele assim… eu tava com uns 23 anos por aí quando ele começou a mexer com tanque, então eu já não, sabe aquela coisa de você não pode mexer mais, ele trabalhava com a Shell, então era muito rígido, você não podia pegar o caminhão dele e simplesmente sair, igual eu fazia antes, então era coisa que eu não tinha mais posto a mão. Nossa, porque ele foi fazer aquilo? (risos) Aí, dali ele estava precisando de motorista porque ele estava com problema na carteira dele, e eu fui trabalhar, eu fiquei trabalhando com ele por seis meses. Aí meu marido falou assim: "É, vamos abrir o consultório, para acupuntura". Eu falei: “Não, pode fazer o carnê que se eu tava pagando caminhão pra ele, a gente paga o nosso”, tô aí até agora.
P/1 – E como foi esse começo de… começar a trabalhar mesmo nessa área e ter o caminhão próprio, como é essa questão de ser autônoma?
R – Então, eu falo pra você que meu marido foi os meus dois braços, a parte financeira, a parte de correr atrás de carga, a parte de receber frete, essa parte… então, ele foi os meus dois braços, porque aonde eu tinha que fazer as partes… porque eu fazia a parte do meu pai, eu e minha mãe, quando meu pai estava trabalhando, eu e minha mãe ficávamos correndo atrás de carga pra ele, eu e minha mãe que íamos atrás de pagar peça, que ia atrás de peça, se ele precisasse de mecânico essas coisas, íamos atrás de pneu, a gente que ia atrás dessas coisas. Então o meu marido fez o serviço inverso, eu fui pra estrada, eu fui trabalhar e ele que ia atrás de pneu, que ia atrás de carga, ia atrás de fazer pagamento, ele ia atrás de fazer o melhor negócio pra gente dar certo, então a parte burocrática da coisa. Foi os meus dois braços e minhas duas pernas, até hoje. E hoje ele é pai e mãe, porque ele que fica em casa com as crianças, então tem isso também, ele não só cuidou do caminhão, cuidou da casa.
P/1 – E ao longo desses doze anos, vocês foram trabalhando com cargas diferentes, vocês tiveram transformações no estilo de trabalho?
R - Não, não. A gente sempre trabalhou na mesma empresa, fazendo a mesma coisa que é o combustível, trabalhando com a Petrobrás, a gente sempre trabalhou com a Petrobrás, só no começo, no comecinho que eu não trabalhava pra bandeira branca, bem no começo, mas isso aí durou muito pouco, logo em seguida a gente foi trabalhando pra Petrobrás e foi ficando assim.
P/1 – Você comentou que vocês trabalham para uma empresa, qual é?
R – Pra Pujante, a gente… meu marido gerencia a Pujante aqui em Paulínia, e ao mesmo tempo que ele faz parte, ele toma conta da Pujante aqui em Paulínia, e a gente também tem uma cooperativa, porque antes de trabalhar com isso aí, ele trabalhava com caminhão também, trabalhou cinco anos com caminhão, transportando óleo preto, ele trabalhava com óleo preto e eles tinham uma cooperativa, nessa cooperativa eles… sabe quando as pessoas começam a agir de forma não muito clara? E ele sempre foi muito honesto, muito correto, e ele via certas coisas que ele não gostava, aí eles acharam melhor sair daquela cooperativa e formar outra cooperativa, foi o que eles fizeram depois, formaram essa cooperativa que a gente tá até hoje, e ele que arruma carga, gerência carga da própria Pujante pra outros agregados e também cuida dessa parte financeira deles com a Pujante, até facilitando pra quem era na época motorista a adquirir caminhões novos, depois, pra facilidade pela empresa pra comprar caminhões pra essas pessoas.
P/1 – E como funciona essa cooperativa?
R – Então, cada um tem o seu caminhão, que presta serviço pra Petrobrás e essa empresa Pujante. A maioria dos agregados que têm na cooperativa, ou eles vieram com caminhão próprio ou eram motoristas que conseguiram pela empresa comprar um caminhão e continuar prestando serviço pra Petrobrás e pra Pujante. E ele toma conta disso aí.
P/1 – E me conta como foi, você lembra da sensação de dirigir seu primeiro caminhão?
R – Nossa, eu chorei nos três (risos), mas eu acho que eu chorei mais no último, esse último caminhão que eu tive eu acho que eu chorei. Nossa, minha cara ficou inchada, uma bolacha do tanto que eu chorei. Assim, o primeiro caminhão eu não acreditava que eu ia conseguir, então era aquilo, eu tava montando num caminhão, mas com aquelas vozes ainda na minha cabeça: "Ela não vai dar conta, ela não vai conseguir". Então, eu montei a primeira vez com aquele receio. Do: Será? Será que eles têm razão?” Agora, o último… teve um outro que eu tive, também foi uma conquista muito grande pra mim, os três eu tirei zero, fui na fábrica e tirei a carreta zero e o caminhão zero. O terceiro eu tinha ido na Fenatran ver esse caminhão, então era uma coisa que eu olhava, eu falava assim: “Não, eu não… não é pra mim, é muita coisa pra mim, não é uma coisa que eu vou chegar naquilo ali. Não é pra mim”. Então o dia que eu consegui foi uma coisa assim: “Não acredito!” E assim, eu sempre fui, eu sempre tive contato com o pessoal da Volvo pela internet. Quando eu consegui esse caminhão, o que aconteceu? Eles me deram - pra você ter uma noção da interação que a gente tinha - eles deram pra gente passagem de avião, então quando eu fui na Volvo buscar eles deram passagem, pra você ter uma noção da interação que a gente tinha pela internet, a gente já tinha uma amizade virtual com a Volvo, porque eu já tinha um caminhão anterior que era deles, a interação da gente era tão grande, e eles estavam mais… não sei se eu estava na expectativa de liberar o caminhão ou eles… porque eles deram a passagem de avião pra mim e para o meu marido, pra gente ir lá buscar o caminhão, coisa que geralmente se entrega na concessionária, a gente foi na fábrica, então quem veio entregar o caminhão pra gente foi o pessoal da fábrica, aquelas pessoas que conversava comigo pela internet. Então você imagina o tanto de choradeira que foi, foi na festa de 25 anos do FH, então foi assim, nossa! Quando eu sentei e me dei conta, quando eu sentei no banco do caminhão, falaram assim: "Tó a chave, entra lá". Eu sentei no banco do caminhão, eu olhava e eu não acreditava que aquilo ali era pra mim, não era pra mim, era muita coisa pra mim. Eu não sabia se eu era digna de tá recebendo aquilo ali. Não dá pra te explicar. Quando eu olhava pra dentro do caminhão, eu falava assim: “Não gente, não é possível, não é possível.” E a cor do caminhão a gente escolheu por causa da cor do olho da minha mãe, ela chegou a ver, ela chegou a ver o caminhão, eu fui mostrar pra ela, e a gente fez uma filmagem e mostrou pra ela lá na fábrica, e tinha sido pra ela a cor do caminhão, a cor dos olhos dela, então você imagina, muita emoção junto pra quem era desenganado, muita emoção junto pra quem não tinha: “Ah será que…”, “Será que vai dar em alguma coisa?”.
P/1 – E quando você se deu conta de que deu, deu muita coisa boa?
R – Ah, eu chorei horrores, eu chorei litros, eu chorei rios, até a minha ficha… olha pra você ter uma noção, tinha hora que eu tava andando no caminhão eu parava, eu olhava assim tudo. Ou eu parava na frente dele e ficava olhando. Porque eu fui na Fenatran ver esse caminhão quando ele saiu, e eu falava assim: “Meu Deus, eu nunca vou conseguir um caminhão desses”, é coisa que você olha e não… Hoje é fácil você ver desses caminhões por aí, as pessoas que estão trabalhando como motoristas, tem várias pessoas que vão e estão trabalhando com ele, não sei se a emoção é a mesma, de falar assim: "Eu não sei se um dia vou trabalhar com um caminhão desses, não sei se um dia vou conseguir ter um caminhão desses”. Eu acho que a emoção deve ser a mesma porque é um mérito, não é… o patrão não vai te entregar um caminhão com o valor que tem na mão de qualquer um, se ele está entregando um patrimônio daquele na sua mão é porque você fez por onde tá ali, para estar trabalhando, você tem responsabilidade, porque você tem que ter responsabilidade para estar com aquilo ali, e muita! Então eu… nossa, minha ficha demorou para cair que eu tava com ele, demorou mesmo eu estando com ele, acordando e dormindo todo dia com ele, demorou muito pra cair.
P/1 – Simone, e viagens… teve alguma muito marcante pra você?
R – Ah, as viagens todas elas… eu tenho quase todas elas gravadas aqui no HP (risos). Mas é uma coisa assim, agora de falar… a pessoa vai lembrar de perrengue, você não vai lembrar de viagem boa, você não vai lembrar, você vai lembrar dos tocos que você tomou. Toco é quando você carrega e fica lá três, quatro, cinco dias para carregar ou mais, muito mais, ou uma semana, duas, três para descarregar, isso é toco. Eu já fiquei presa, retida no Rio Grande do Sul por estar com nove eixos que tem uma dimensão maior, numa estrada que não tinha licença e fiquei presa uma semana, por estar passando num lugar que não tinha licença, a minha licença não era para ali. Já fiquei encalhada no meio do mato sem água, sem nada, já aconteceu um monte de coisa (risos). Ah, caminhão… caminhão é uma escola, ele te ensina alguma coisa todo santo dia. Você fala assim: “Ah, não. Caminhão…" Caminhão ensina! Caminhão é uma escola, todo dia ele tem uma liçãozinha pra te dar, nem que seja uma mínima, ele tem.
P/1 – Teve algum perrengue que você queira dividir?
R – Ah, não. O pior acho que foi esse dia, que eu fiquei encalhada, eu acho que foi o pior, de ficar retida por conta de documentação, é sistema burocrático, não adianta, de policiamento de estrada, de empresa. Na época eu não estava nem com meu caminhão, não era esse meu caminhão, eu estava em uma transição esperando o meu caminhão chegar, era o caminhão da empresa e era a empresa que tinha que ter a licença daquele lugar, agora, isso aí não foi tanto, mas essa vez que eu fiquei encalhada, meu Deus do céu! A água acaba, chega uma hora que a água acaba, você pode até ter a comida, mas a água acaba, e os sitiantes que tinha por ali, eles passavam ali uma, duas, três vezes ao dia. Até um motorista se encher e ir lá tentar passar e não conseguir atravessar a carreta no lugar, pra nem eles passarem… porque eles não perguntavam pra gente se a gente estava precisando de água, e a gente via que… você tá ali, parado você vê que a pessoa que tá indo e voltando, indo e voltando, indo e voltando e a água… a gente não tinha água pra beber, não tinha onde pegar, não tinha sítio perto, não tinha nada perto, aí você imagina assim: “Poxa vida, a empatia ficou aonde, né?” E é o que a gente até chegou a conversar… poxa vida se tem um ser na face da terra que sabe o que é empatia é o motorista de caminhão, porque ele sabe o que é passar necessidade, ele se coloca no lugar do outro, porque ele sabe o que é a necessidade, ter a necessidade e a necessidade não ser suprida, então ele se coloca muito no lugar do outro, o tempo todo. E se não fosse… achou que ninguém veio buscar, ninguém veio tirar, não teve ninguém que veio ajudar, o povo teve que esperar a estrada secar e a gente por si ir se ajudando e tentando sair, tanto é que quando a gente conseguiu sair, tava acho que na média de uns dez caminhões onde eu tava, quando a gente conseguiu sair, o último caminhão conseguiu sair, a chuva desabou de novo, então quer dizer, se a gente não tirasse naquele intervalo de tempo, que deu de manhã de tá seco, de não ter chovido, a gente… ih, enquanto estivesse chovendo a gente não saía dali. E sem água, o pior é sem água, sem banheiro, essas coisas a gente até se vira, mas e a água? Você faz o que sem água?
P/1 – Simone, como é estar na estrada, o que te encanta? Estar na sua cabine, tá dentro do seu caminhão, tá na estrada?
R – Eu não sei explicar o que é, você montou num caminhão, você bateu a mão na chave, é um negócio tão mágico que não dá pra explicar, não sei se é o caminhão, não sei se é a estrada. A gente fala que é a estrada, mas ao mesmo tempo você lembra do caminhão e você fala: “Nossa!” A gente, se você for ver, o caminhoneiro vive de saudade, a vida dele é uma eterna saudade, caminhoneiro é uma eterna saudade, se ele tá no caminhão, ele tá lembrando da casa dele. Se ele tá em casa, ele tá com a cabeça lá no caminhão. Então ele vive de saudade. Quando ele não tá com saudade da casa, ele tá com saudade do caminhão. Então, quando você tá dirigindo é uma coisa tão mágica, eu não sei te explicar, não consigo explicar, mas tudo começa na hora que você bate a mão na chave, a hora que você liga o caminhão, que você escuta ele funcionando, não sei te explicar o que é isso (risos). É uma coisa que você está em casa e tá lembrando dele lá (risos). Mas quando você tá lá, você tá lembrando daqui, você tá aflito por causa daqui, porque você quer que as coisas aqui estejam funcionando direitinho, você quer que esteja todo mundo bem, você quer tudo funcionando certo, você quer que esteja todo mundo saudável, se alimentando direitinho, que a casa esteja funcionando direitinho, os seus filhos estejam bem, seu marido esteja bem, aí você tá aqui, você tá lá: “Será que ela tá bem?” (risos).
P/1 – E você se sente segura na estrada? Como é isso?
R – Não (risos), você não se sente segura na estrada não. É o que eu te falei do negócio lá da fé, a gente é movido pela fé. E agora começou a safra e é muito caminhão, que nem lá no Mato Grosso que eu tô indo agora, é muito caminhão, muito caminhão, a estrada é precária, é pista simples, muitos trechos dela não tem acostamento, buraco, mato. Você tem que parar o caminhão pra passar dentro do buraco, porque bate a roda no buraco daqueles que te tira a direção, ou você vai pro outro lado ou você vai pro mato, e é uma estrada perigosa, não é uma estrada fácil. Se eu falar pra você que é fácil eu tô mentindo, é muito caminhão, geralmente quem tá com o graneleiro, quem tá com caçamba que roda mais solta, pra eles o tanque é um problema na estrada, eles não gostam muito de tanque e a gente anda muito com regra, sou movida a regra, muita regra. A gente tem limite de velocidade, a gente tem que andar abaixo do limite de velocidade, a gente arrasta muito peso, então não é aquela coisa que eu tenho que embalar pra subir, eu vou descer freando e vou subir devagar, isso atrapalha quem anda solto, então eles não gostam muito de tanque, não. E é como eu te falei, a gente, como tem muita regra, a gente tem câmera, eu tenho câmera virada pra frente, câmera virada pra… o que não falta no meu caminhão é câmera, e é online, elas são online, então isso aí pra mim é um pouco de segurança, quer dizer, se alguém tentar qualquer coisa fora do comum, impune o cara não vai ficar. Porque eu não tô puxando arroz, eu tô puxando alguma coisa que vai me matar, vai matar ele e vai matar quem tá em volta, então mesmo assim eles não gostam não, a câmera tá pra ajudar um pouco nisso, mas essa época do ano é complicada pra trabalhar, lá pra cima pelo menos é. E tem também a parte de segurança quando você vai pernoitar, que são os ladrões, ou lugares que eles te pegam andando, ou eles querem o caminhão ou eles querem a carga. Aí quer dizer ou o problema é a violência de ladrão ou é o perigo da estrada, dela está em mau estado de conservação, e a pressa dos outros, pressa com direção não combina, fala-se que álcool e direção não combinam, a pressa e a direção mata muito mais que o álcool, sabia? Pressa mata muito mais.
P/1 – E Simone, por acaso você lembra de alguma experiência na estrada, na Régis Bittencourt, ou não?
R – Não, ali na Régis eu trabalhei direito, trabalhei quatro anos seguidos, quando eu tava com a carreta ainda, não tava com nove eixos, estava com a carreta, então eu podia ainda, ainda eu podia rodar não pela Petrobrás, a gente fazia viagem por fora, e eu podia rodar a noite, estando com a carreta, então eu trabalhei muito ali, graças a Deus nunca aconteceu nada. É uma estrada muito boa de trabalhar, gosto muito, se eu pudesse eu ficava só lá embaixo, a estrada é boa, as pessoas que você vai lidar ali são muito boas, é um povo muito acolhedor, eles são muito… é muito família, muito acolhedor, não tem tanto período de ladrão, quanto tem mais pra cima, não tem tanto perigo. É uma rota que se eu pudesse escolher e o frete fosse bom eu gostaria de ter ficado, muito. Mas não é do jeito que a gente quer, nem sempre.
P/1 - Pensando aqui em toda sua trajetória nesse ramo, quais foram os maiores aprendizados que você tirou dessa trajetória profissional?
R - É o que eu estava te falando da determinação. O caminhão… o que ele te ensina? Ele te ensina, primeiro, a empatia, todo mundo ali precisa de todo mundo o tempo todo, então você aprende a viver em grupo, da forma que você fala assim: "Mas eu nem conheço ele”, “mas eu tenho que me colocar no lugar dele porque poderia ser comigo" Sabe? No caminhão tem muito isso. E o caminhão é aquilo, você não tá ali passeando, você tá ali trabalhando, trabalhando bastante, porque você tem que trazer o sustento pra casa, no caso do agregado ele tem que ir lá pagar o caminhão dele. Então o caminhão é isso aí, é uma superação por dia. “Ah, isso aqui é mais, isso aqui é menos”. É uma superação por dia, é um desafio por dia. A gente nunca está na mesma estrada, a gente nunca está com as mesmas pessoas, cada dia é uma coisa diferente, o clima vai tá diferente, um dia vai tá muito sol, vai tá chovendo demais, ou vai tá frio demais, a chuva demais tem os seus riscos, o sol demais estoura pneu. Agora você imagina que você está numa estrada sem acostamento, cheia, carregada, numa estrada carregada de caminhão e um pneu seu estoura, você faz o quê? E não tem posto perto, não tem onde você enfiar aquele caminhão, não tem, você tem que se arrastar em cima da pista, com o caminhão pesado, e tem que se arrastar porque estourou o pneu, você tem que se arrastar, tem que andar muito devagar, porque senão acaba estourando outro. Então, são muitas coisinhas que as pessoas não percebem, fala assim: “Poxa, mas tá chovendo. O que pode tá vindo de encontro comigo? Ele pode virar, ele pode dá um ‘L’ e vir pra cima de mim, ele pode escorregar, o carro pode escorregar e vir pra cima de mim”, então tem muitas… Na Régis tem muito isso, não é pista dupla, não é pista simples, desculpa, é pista dupla, mas assim, choveu, é o que eu te falei com o negócio da pressa, as pessoas esquecem que tá chovendo, ao invés dela reduzir, ela continua andando do jeito que ela achava que tinha que andar quando tava seco, o que acontece? Dá acidente, não adianta, dá acidente, ele vai… ou vai pro mato ou vai pra cima de outra pessoa. E aí a gente já sabe o que dá, né? Então o caminhão é isso, são várias situações, ‘N's’ situações, muitas situações pra gente se superar todo dia, a gente se supera todo dia. E é o que eu te falei, tem que gostar, se não gostar não fica, ou se fica, fica reclamando o tempo inteiro (risos).
P/1 – E como foi, pra você, ser mulher, dirigir um caminhão, trabalhar numa área que é historicamente, culturalmente considerada uma área masculina, o que isso representa pra você? Qual a importância disso na sua vida?
R – Olha, de eu ser mulher e trabalhar com caminhão pra mim, pra mim não tem empecilho nenhum, não tem… Se eu falar pra você: “Ah, eu sofri bullying, eu sofri preconceito”, não! Mas lá no fundo a gente sabe, não comigo, isso não aconteceu comigo, não tive descriminação, mas se você for ver assim no geral, o que a mulher conquistou. O caminhão é um serviço bruto, não é nada leve, você vai erguer o pé numa carreta carregada, poxa vida é pesado, você vai desenlonar, enlonar um caminhão, é pesado, não é leve. E você vê como a mulher tá forte, ela vai lá e ela consegue fazer, não com a mesma força que um homem faz. A gente não, não desmerecendo, mas poxa vida, a trancos e barrancos ela vai lá e faz, ela tira o pneu do estepe, ela pega o peso de um pneu, ela tira o pneu do estepe e vai lá pra colocar, pra trocar. No meu caso eu aprendi porque meu pai me ensinou, não é tanta força, mas é jeito, então eu acho que a mulher conquistou um espaço que poxa, olha que coisa linda. Minha mãe que falava isso: “Olha que profissão linda”, minha mãe sempre falou isso: "Olha que profissão linda que você tem" E tem muita menina que tá vindo por aí com essa gana de falar assim: “Poxa, olha que profissão linda, imagina eu trabalhando ali, que máximo que vai ser”. Se ela gostar vai ser o máximo mesmo. E assim, nossa eu dou um incentivo fora do comum, porque eu acho que todo mundo merece um lugarzinho no sol, todo mundo merece brilhar, o céu é tão grande, pra tanta estrela, então eu acho que quem tá começando aí, poxa vai, vai lá, tenta! Não é fácil, não vou falar que é, nunca falei que é, e não é mesmo, é tudo caro, é caro pra você tirar uma categoria D, é caro pra você ir lá e tirar uma categoria E, você tem que se especializar, você tem que estudar para estar ali, se engana quem acha que: “Ah… é bronco, vai trabalhar com caminhão”, “Ah ele não sabe fazer nada da vida, vai lá trabalhar com caminhão”, não é assim. Não, não é! Ele vai ter que estudar o caminhão que ele está andando, ele vai ter que estudar a carga que ele está transportando, ele vai ter que estudar a estrada… não é mais a mesma coisa que era há anos atrás, que a pessoa ia lá se aventurar igual meus tios, que iam lá pra Transamazônica, não é mais a mesma coisa. Ainda é porque ali é meio complicado (risos), mas mudou muita coisa. Tem as facilidades, mas as exigências para logística aumentou muito, você tem que tá capacitado pra tá trabalhando ali, hoje tem… Você tá numa empresa, se você tá na carreta, você não pode sair e ir pra um nove eixo. “Ah, eu vou sair da carreta e vou trabalhar com nove eixo”, não! Você vai ter que se especializar primeiro com o bitrem articulado, bitrenzão que é o meu caso. Eu comecei a trabalhar com ele. A empresa não vai aceitar simplesmente te tirar de uma carreta simples de um toco, de um truque e te colocar lá no nove eixo, ela não vai fazer isso, você tem que se capacitar primeiro. Então tem a meninada vindo aí, nossa, numa ansiedade louca que você nem imagina, de querer tá lá trabalhando. Então é isso que eu tô te falando, eu não passei pelo preconceito, mas eu sei a importância de está ali né, como você perguntou: “O que você acha de você tá ali?" Eu sei a importância de tá ali, porque eu sei o quanto eu estudei, todas essas etapas aqui eu passei para tá ali, para tá trabalhando e trabalhando com excelência, não é só tá trabalhando, só tá trabalhando qualquer um trabalha, você tem que fazer por onde pra ser o melhor pra você, você tem que ser o seu melhor, não melhor que os outros, mas o seu melhor, você tem que ser o seu melhor, você tem que se superar todo dia. Então eu que… pra mulher… olha que fantástico, ela tá em um lugar que não é dela, aquela profissão ali não foi feita pra ela e ela conseguiu superar tudo isso aí, ela tá trabalhando igual o cara tá trabalhando, ela tá trabalhando igual. Porque hoje os caminhões são muito mais fáceis de lidar, a tecnologia chegou no caminhão, coisa que não tinha, antes era um botão para ligar e um afogador, e um para ligar a luz, pronto. Era o caminhão, era aquilo ali, um freio, aquela coisa muito básico, hoje você tem que pegar uma bíblia 'deste tamanho' para você estudar para você saber lidar com o caminhão que você tá mexendo, porque ele tem sensor de faixa, sensor de freio, tem sensor disso, sensor daquilo e você tem que saber lidar com tudo isso, não é simplesmente entrar e bater a mão na chave, é muita coisa envolvida até chegar no bater a mão e sair, muita.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos?
R – Agora? Ah, eu já não tenho mais o sonho de “Ai, eu vou trocar de caminhão” Como o meu pai… meu pai tá com 78 anos, todo dia que eu converso com ele, ele fala que vai parar. “Mas pai, você está onde?” “Ah, eu to na Usina carregando”. “Pai, o senhor não falou que ia parar?” Então eu to esperando pra ver se… eu não quero chegar nisso, não quero! Não é minha meta de vida chegar e… “Aí, eu vou ficar velhinha igual a senhora Nadir”, senhora Nadir eu acho que é o nome dela, Nair, eu não me lembro, desculpe mas eu não me lembro, mas ela tipo ficou muito, com a idade bem avançada em cima do caminhão e não é isso que eu quero. Eu quero daqui um tempo… eu já trabalhei bastante (risos). Eu quero daqui um tempo curtir mais a família, ficar mais em casa, ficar mais fechada, ficar mais perto dos filhos. Mesmo eles já estando adultos, mas eu quero ficar mais perto deles, não é uma coisa que eu tenha metas de ficar rico, não, não! Ficar rico em cima de um caminhão você não fica (risos), você não fica. Mas fazer o seu pé de meia para você ter uma vida útil daqui pra frente, melhor, esse é um sonho, uma vida mais digna. Meu marido trabalhou muito na vida e eu também trabalhei, para ter pelo menos um final de vida. Ah, vamos colocar uns trinta anos de final de vida, tá bom (risos). Trinta anos para viver bem, já pensou? Isso é um sonho, eu não quero passar trinta anos trabalhando (risos). Não, né.
P/1 – E, Simone… diga, desculpa.
R – Não, eu não ia falar nada não.
P/1 – Queria saber se você quer acrescentar algo mais, alguma coisa que eu não tenha te perguntado, algum momento?
R – O que será que eu esqueci que a gente conversou antes (risos)? O que será que eu esqueci de falar, e agora? Ah, minha vida é tão, tão… minha história foi tão maluca, na vida, é tanta coisa, eu não saberia te falar assim: “Ai, eu tive”... eu passei muita coisa, eu passei bastante coisa. É o que eu estava te falando, o caminhão é uma escola, todo dia ele ta te ensinando alguma coisa, então são muitas, várias histórias que te ensinam a ser uma pessoa melhor, aí vai de você querer ser uma pessoa melhor ou não também, não é só ele te ensinar a ser uma pessoa melhor. Conheço muita gente que tem lição de vida todo tempo e tá lá entortando a vida dos outros, então vai de você querer ser uma pessoa melhor ou não, e o caminhão é uma ótima escola, é uma ótima escola. Graças a Deus a maior parte das pessoas que eu conheço, que são do meu ciclo de amizades, tanto do caminhão… ah, ainda tem a parte que eu te falei que é do Grupo do Fusca, a gente faz parte de um Grupo do Fusca, os mais antigos, então é… que é outra meta de vida, dar mais voltar, mais rolês de fusca e de kombi (risos). Então é, é uma coisa que a gente quer pra vida da gente, então tanto a parte do caminhão quanto a parte do fusca. Você vê que as pessoas têm uma chance muito grande de serem melhores, elas tem a chance de serem melhores, tá lá a escolinha da vida ensinando.
P/1 – Ah, estamos chegando no fim…
R – Ah, então é isso. A gente veio morar no mato, a gente saiu da cidade grande e veio morar no mato, eu continuo trabalhando com caminhão ainda, mas não é para sempre, espero parar em breve. Eu falo isso pro meu pai, falo: “Pai, o senhor já tinha que ter parado, o senhor tinha que ter ido viver a vida, já trabalhou a vida inteira”. Meu pai começou a trabalhar ele tinha seis anos de idade, você imagina uma criança de seis anos de idade trabalhando? Que é a época que ele pegou em uma enxada, foi trabalhar na roça, meu pai e minha mãe eram da roça. Então você fala assim, uma criança de seis anos ela deveria estar brincando, não, o meu pai estava trabalhando com seis anos, ele brincava? Ele brincava! Mas ele estava trabalhando, então ele passou a vida inteira trabalhando, imagina uma pessoa passar setenta anos trabalhando, não ter vivido, não é esse o meu sonho de vida (risos). Não é esse o meu sonho de vida. Meu sonho de vida é fazer um pezinho de meia pra ter metade pra lá melhor, viver melhor, não trabalhar a vida inteira pra gastar o dinheiro na velhice com saúde, não, porque se desgastou.
P/1 – Sim. E como foi pra você ter dividido um pouco da sua história com a gente, de ter passado esse finalzinho de tarde?
R – Ah, é gostoso. A gente não imagina que alguém vai querer saber da nossa vida (risos). Mas eu fiquei assim, eu fiquei feliz de poder dividir um pouquinho, porque a gente sempre incentiva alguém, porque a história que a gente tem é uma história de, poxa vida! A gente… Brigou para estar ali, a gente brigou pra se superar, pra ser uma pessoa melhor, pra conseguir, pra vencer, e tem tanta gente que tá lá no mesmo desengano que você tava. Poxa vida, se eu tivesse uma pessoa para vir soprar no meu ouvido, sabe? "Oh, você vai conseguir, você tem que ir por esse caminho que você tá indo aqui, você vai conseguir" Poxa, como eu queria ter tido isso. Alguém ter vindo falar pra mim: “Você vai… sabe aquele sonho que você tem? Você vai conseguir". Então, com esse pouquinho, a minha história não é nenhuma história fantástica, é a história de qualquer pessoa, mas se puder ajudar um pouquinho, um pouquinho que seja, essa sopradinha no ouvido, de um que fala assim: “Poxa, eu não tive a chance" Não! Eu também não tive. Eu também não tive essa chance, mas eu fui atrás dela. A hora que eu achei que tava tudo assim: “Poxa… você vai fazer o que da vida?” Ah, isso! O sonho que eu tinha veio e caiu no meu colo. O universo jogou, falou assim: “Tó filha, sua oportunidade tá aqui, se você quiser aproveitar bem, se não quiser, eu joguei". Então tem muita gente que eu vejo por aí que tá com a oportunidade passando assim ó, no nariz dela. Eu vejo, eu vejo muito, a internet possibilita a gente ver isso, fica lá: "Poxa, mas o que eu faço, pra onde eu vou?" Vai atrás. Quer trabalhar com caminhão, não tem a oportunidade do primeiro emprego, porque não dão, vai atrás de uma casa de material de construção, vai atrás de qualquer empresa que tem entrega, pra começar, fala: "Ó, me dá uma chance, me dá uma chance, eu preciso ter na carteira lá que eu trabalho com caminhão". Porque ele não vai conseguir, ele não vai sair da onde ele tá e montar no caminhão que eu tô hoje. Ele não vai fazer isso, mesmo que ele vá lá fazer escola, começando do zero, ele vai ter que ter o tempo dele de direção pra ele estar nesse, nesse… por exemplo, numa carga perigosa, num produto perigoso, carga perigosa não, um produto perigoso. Ele já vai ter que ter um tempo pra tá ali, mas tem que ter um começo, ninguém dá a oportunidade do primeiro emprego, todo mundo fala: “Ah, mas você tem que trabalhar". Mas quem te dá a oportunidade do primeiro emprego? Isso é pra tudo, pouca gente dá oportunidade, então… Só de eu poder dar esse, essa soprada no ouvido, de falar: "Vai lá cara, você vai conseguir. Vai lá menina, levanta daí e vai lá, vai lá que você consegue, daqui a pouco você tá querendo aposentadoria que nem eu, você nem vai ver o tempo passar" (risos). E isso ficou mais forte pra mim depois que eu tive Covid, a pandemia veio pra ensinar a gente muita coisa que a gente não sabia, que nem eu falei pra você, eu tive duas [vezes] Covid, em dois meses. E a segunda deu complicações, e nessas complicações que a gente vê o valor que a vida tem, porque a gente não via quando a gente tava focado tanto no trabalho. Essa pandemia levou um monte de gente querida que a gente tinha, que tava ali do lado e você falava assim: “Poxa, mas ela estava tão empenhada nos sonhos dela". Foi ceifado, foi ceifado. Nessa primeira leva que eu peguei foi muita gente, então fez a gente refletir muito nisso, quanta gente ficou com o sonho interrompido. Então a gente tem tão pouco tempo, vai fazer o que quer. A gente não sabe quanto tempo a gente tem aqui, vai fazer o que quer, o mundo tá tão incerto, vai lá que o tempo tá correndo.
P/1 – Querida, te agradeço demais! Que presente poder te ouvir com tanta clareza, foi muito gostoso, esse projeto tá sendo muito especial pra mim, te agradeço de verdade. Eu e [também] em nome do Museu da Pessoa, te agradecemos.
R – Não sei se eu atendi suas expectativas, de vocês aí.
P/1 – Ultrapassou todas!
R – Mas, é uma história simples. Não é nenhuma história exorbitante, mas é a história de alguém que se superou, em um monte de coisinhas (risos).
P/1 – Muito obrigada por dividir um pouco dela com a gente.
R - Espero que ajude alguém em algum lugar.
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