Entrevista de Sonia Guimarães
Entrevistado por Lucas Torigoe
São José dos Campos, 18/05/2023
Projeto: Mulheres na tecnologia
Entrevista número: MTS_HV001
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Obrigada por você estar aqui, pelo seu tempo, espero que seja uma boa experiência para você. Com certeza vai ser para a gente. Eu queria começar perguntando uma coisa bem difícil pra você de cara, que é: Qual é o seu nome completo? Qual é a data de nascimento sua, e em que cidade, por favor?
R - Meu nome completo é Sonia Guimarães, eu nasci no dia 20 de junho de 1956, em São Paulo, capital, sou paulistana.
P/1 - Professora, alguém da sua família, seus pais te falaram como foi o dia do seu nascimento? Como é que foi a gestação da sua mãe? Como é que foi isso?
R - Não! Não me lembro de nada disso, que eles tenham comentado. Não, não! Nada de especial. Nada sobre minha filha. Só isso!
P/1 - Entendi. Aproveitando, então, me fala uma coisa: qual que é o nome completo da sua mãe e qual é a história dela?
R - Clélia dos Santos Guimarães, ela é uma pessoa extremamente inteligente, trabalhadora, muito trabalhadora, muito afim das coisas que ela quer, o que ela quer, ela é o tipo da pessoa que coloca, que se coloca em primeiro lugar, em segundo lugar, em terceiro lugar. É uma pessoa extremamente bem colocada na própria vida, estudiosa, ela sempre foi atrás, não de física, química, nem nada. Mas ela sempre quis aprender a cozinhar. Então, ela fez curso, depois de casada, antes de casada ela não teve oportunidade. Mas depois de casada fez todos aqueles cursos pra ter neném, pra cozinhar, essas coisas, jovenzinha ainda. Meu pai, quando eu tinha uns dez, onze, doze anos, foi diagnosticado com tuberculose. E ele ficou seis meses internado em Campos do Jordão, que fica aqui pertinho. Então, de repente eu sou a filha mais velha, ela ficou com quatro crianças pra cuidar, sozinha. Meu pai ficou internado. Olha, ela...
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Entrevistado por Lucas Torigoe
São José dos Campos, 18/05/2023
Projeto: Mulheres na tecnologia
Entrevista número: MTS_HV001
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Obrigada por você estar aqui, pelo seu tempo, espero que seja uma boa experiência para você. Com certeza vai ser para a gente. Eu queria começar perguntando uma coisa bem difícil pra você de cara, que é: Qual é o seu nome completo? Qual é a data de nascimento sua, e em que cidade, por favor?
R - Meu nome completo é Sonia Guimarães, eu nasci no dia 20 de junho de 1956, em São Paulo, capital, sou paulistana.
P/1 - Professora, alguém da sua família, seus pais te falaram como foi o dia do seu nascimento? Como é que foi a gestação da sua mãe? Como é que foi isso?
R - Não! Não me lembro de nada disso, que eles tenham comentado. Não, não! Nada de especial. Nada sobre minha filha. Só isso!
P/1 - Entendi. Aproveitando, então, me fala uma coisa: qual que é o nome completo da sua mãe e qual é a história dela?
R - Clélia dos Santos Guimarães, ela é uma pessoa extremamente inteligente, trabalhadora, muito trabalhadora, muito afim das coisas que ela quer, o que ela quer, ela é o tipo da pessoa que coloca, que se coloca em primeiro lugar, em segundo lugar, em terceiro lugar. É uma pessoa extremamente bem colocada na própria vida, estudiosa, ela sempre foi atrás, não de física, química, nem nada. Mas ela sempre quis aprender a cozinhar. Então, ela fez curso, depois de casada, antes de casada ela não teve oportunidade. Mas depois de casada fez todos aqueles cursos pra ter neném, pra cozinhar, essas coisas, jovenzinha ainda. Meu pai, quando eu tinha uns dez, onze, doze anos, foi diagnosticado com tuberculose. E ele ficou seis meses internado em Campos do Jordão, que fica aqui pertinho. Então, de repente eu sou a filha mais velha, ela ficou com quatro crianças pra cuidar, sozinha. Meu pai ficou internado. Olha, ela se virou, criou uma empresa, ela tem um buffet, hoje. Então é uma mulher, assim, de uma garra incrível, ela inventou o empreendedorismo quando essa palavra ainda nem existia. Então ela se virou, se virou com sucesso. O buffet de festas dela ainda existe hoje, quem cuida é a minha irmã. Enfim, super, super, super, ela é uma mulher, eu até diria feminista. Ela diz que não, mas nunca ela me disse: “Não, você não vai conseguir, não isso…” Nunca! “O que você quer? Toma o dinheiro”. Porque além de tudo ela tinha dinheiro próprio, ela era empreendedora. “Tó aqui o dinheiro.” “Onde você quer ir? Tó, vai!” Eu entrei na faculdade, ela: “Vai ali já procurar um lugar pra você ficar”. Enfim, sempre me apoiando, sempre, sabe. “Não, não vai, não que vai ser difícil”, “Não, São Carlos é muito…” Não, não! Tchau. “Vai lá e tenha sucesso, consiga tudo o que você quer.” (risos)
P/1 - E me conta uma coisa, ela é de São Paulo também? A família da sua mãe faz o que, fazia o quê? Como é essa história?
R - Meu avô, pai dela, era dessas pessoas que ficam pegando o tíquete no trem, no trem, no trem das onze do Jaçanã. Meu avô trabalhava como essa pessoa que trabalha dentro do trem, entendeu? E a minha mãe nasceu no Jaçanã, no bairro Jaçanã. E meu avô trabalhava nesse trem. Eu não cheguei a ver esse trem, quando eu nasci esse trem já não existia mais. A minha vó era dona de casa, cuidava de um monte de filhos, são oito filhos, minha mãe e os irmãos todos, oito filhos. Oito filhos? Seis, sete filhos. Bom, um monte… Eu tinha um monte de tios e um monte de tias. Desse pessoal todo, a minha tia, irmã mais velha da minha mãe, tinha um super emprego, então ganhava bem, tanto que ela pôde pagar pra minha tia mais novinha. Eu tenho uma tia com oito anos de diferença da minha idade, só. Uma escola paga… E minha tia não precisava. E minha mãe trabalhava numa loja de doce, antes de casar. E a outra tia eu não lembro. Ah, casa de roupa de noiva, eu acho. Todas elas trabalhavam. Os meus tios, mais ou menos. Um dos meus tios chegou até a entrar numa faculdade, pra fazer direito. Você é a primeira a entrar numa faculdade? Não, um irmão da minha mãe entrou na faculdade, mas ele nunca se formou. Todas as minhas tias foram casadas, tenho vários primos, a maioria deles… Acho que dos meus primos por parte de mãe, só um não fez faculdade, o resto todas fizeram, foram pra faculdade, se formaram na faculdade. Que mais? Não sei mais! O que mais você quer ouvir? Meu vô era um ótimo cozinheiro e se vestia de Papai Noel no Natal. (risos)
P/1 - Eu queria, professora, na verdade, perguntar pra você desse seu avô que você falou que se vestia de Papai Noel. Ele fazia isso todo Natal? Como é que era isso, assim?
R - Todo Natal. Era uma delícia! A gente escrevia cartinha pro Papai Noel. E os presentes vinham. Todos os primos e primas juntos, uma comida gostosa. Ele ficava cozinhando uma semana antes, porque tem que comprar o porco e essas coisas antes, temperar, matar o coitadinho do peru. O porco já vinha morto. Mas meu pai, meu avô, tinha criação de galinha, de peru. Isso em São Paulo, tá! A casa da minha vó tinha um terreno imenso lá para o fundão. Então tinha peru, tinha frango, tinha… E ele matava e servia nesse dia. Ele botava os pêssego… no pé de pêssego ele botava saquinhos pros passarinho não comerem os pêssego. E a gente comia pêssego do pé do fundo do quintal dele no Natal. Que mais? Ele fazia aquela fogueirona no final, pra fazer assado, fazia aquelas coisas assadas, fazia um… Não era uma churrasqueira era realmente uma fogueira lá no fundo, pra assar o porquinho. Um monte de panela, ficava aquele monte de panela fervendo lá na cozinha, um cheiro tão bom, um monte de coisa tão gostosa pra gente comer.
Todo mundo na casa, a gente ia embora pra lá e ficava na casa um tempão. O que mais? Era muito gostoso, era muito divertido! Brigas, né, porque a primaiada… eu não gostava que mexiam nos meus brinquedos, então daí isso dava briga. Mas em soma era muito divertido, a gente se divertia muito nessas festas. Tinha festa sempre, tinha Natal e tinham outras festas também lá.
P/1 - E o seu pai, me conta um pouquinho dele agora. Qual é o nome dele, a família dele? Enfim, histórias.
R - José de Souza Guimarães Filho. Meu pai tinha profissão de tapeceiro. Tinha uma capa da Cruzeiro, que o Juscelino estava na capa, sentado num sofá, que ele que encapou. A gente tinha essa capa lá em casa. Também era a tia da minha mãe, a governanta de Jânio Quadros, uma das minhas tias trabalhava na casa do Jânio Quadros. E quando a filha do Jânio Quadros não gostava de alguma boneca, a boneca vinha pra gente, minha tia trazia pra gente a boneca da filha do Jânio Quadros. A irmã da vó, mãe da minha mãe, que era essa tia. O meu pai, o meu pai só tinha uma irmã, mas essa irmã tinha um mundo de filhos, todos moravam na casa da vó Lourdes, que era minha casa. A casa da minha mãe lá em São Paulo, é 367 e a casa da minha vó era 1009, então essa família era uma família muito pertinho da gente. E a escola que a gente estudava, era um cadinho a frente da casa da minha vó, então todo dia a gente tava na casa da vó, na volta, naquela fome, na volta da escola, na hora do almoço, aquela fome, passava na casa da vó, um cheirinho bom. Mas não podia comer lá não, se a gente chegasse na casa da minha mãe sem fome, ela ficava zangada. Minha vó era dona de casa, minha vó aprendeu a ler e a escrever com a gente, porque tinha vezes que a gente voltava da escola e ficava lá na varanda. A casa dela tinha uma varanda e uma escadinha que dava pro muro pra casa. E aí a gente sentava ali naquela varanda pra fazer a lição de casa, ela sentava com a gente e ficava copiando a gente escrever, até ela aprender a escrever o nome dela. E depois de um certo tempo, ela entrou numa coisa que chamava antigamente, Mobral, que era como os adultos aprendiam a ler e escrever. Minha vó entrou no Mobral pra aprender a ler e a escrever. Mas ela acompanhava a gente, tava sempre junto com a gente, cheia de contar histórias de antigamente. Quando a gente ficava na casa da minha vó e dormia lá, era muito gostoso, a gente apagava todas as luzes e ela contava histórias de fantasma, era muito legal! Tem essa minha tia, filha dela, acho que ela era costureira, tenho várias primas cabeleireiras, manicures, as profissões que elas seguiram foram essas. Nenhuma delas entrou na faculdade, as filhas delas, pelo menos uma filha de cada uma entrou na faculdade, fez faculdade. E um dos filhos de uma delas, ganhou um monte de dinheiro na loteria e eles vieram morar aqui pra São José dos Campos. Aí depois eu vim também. Mas eles vieram muitos anos antes, ele comprou uma casa bárbara aqui e veio morar pra cá. Ele trabalhava na Globo, aqui em São José dos Campos, na TV Globo, aqui chamava…. Quando ele trabalhava chamava Globo mesmo, hoje chama Vanguarda. O que mais? Todas elas se casaram, minhas primas todas que casaram, tiveram filhos e filhas. O que mais? A minha tia trabalhava como costureira. O que mais?
P/1 - Você sabe como seus pais se conheceram?
R - Meu avô morreu quando eu tinha… pai do meu pai, morreu quando eu tinha seis anos, então esse eu conheci só um “bocadiquito”, porque ele morreu quando eu era muito pequenininha ainda. Mas era um grande amigo, a gente só vivia se contando histórias. Ele era umbandista, ele vivia contando história e ele dizia que eu tinha a coisa dentro de mim pra religião. Nunca desenvolvi, nunca fiz nada! Mas ele dizia que eu tinha a coisa dentro de mim. Que se um dia eu quisesse, eu seria bem-vinda. Fala! O que você ia perguntar?
P/1 - Eu ia perguntar se você sabe como seus pais se conheceram?
R - Bicentenário de São Paulo… Como é que era a história? Não! Eu sei que os dois foram no Bicentenário de São Paulo. Teve uma festa no Ibirapuera, ou em algum lugar… Anhangabaú e tudo mais. E eu sei que os dois estavam lá, quando São Paulo fez duzentos anos, trezentos, quatrocentos anos, alguns anos. Eles dois estavam lá no Vale do Anhangabaú. Acho que foi aí que eles… Bom, eu sei que é marcante esse dia para eles e eles comentam com a gente. Acho que foi o quarto centenário, porque são 460 anos, né? Que São Paulo tem … No quarto centenário de São Paulo, teve uma festa muito bonita no Anhangabaú e os dois tavam lá, aparentemente. (risos)
P/1 - E você falou que você morava perto da sua vó e toda família… Que rua que é essa? Que bairro? Como é que era na época?
R - A rua se chama José de Almeida, no bairro Vila Gustavo, inicialmente toda de terra. Quando eu era pequenininha a gente tinha carrinho de rolimã. E a rua da minha mãe é descida, eu nunca tinha o tampão do dedão, o tampão do meu dedão era um ótimo freio, eu nunca tinha, ______ ir para a escola sem o tampão do dedão do pé. E quando eu era pequenininha, tinha poço na casa da minha mãe, a água vinha do poço, então no carnaval, no meu tempo, a gente brincava com uma certa coisa chamada seringa, ou chiringa, ou seringa, que a gente enchia essa cheringa de água e jogava nas pessoas que passavam… Bom, a gente jogava entre a gente, jogava nas pessoas que estiverem…que estavam na farra. E como nossa casa era água de poço, portanto a gente não pagava água, era na minha casa, na casa da minha mãe, que todo mundo ia com as “cheringas” para encher e todo mundo jogava o balde lá embaixo, puxava a água e jogava numa bacia para encher as cheringas no carnaval, era uma farra! Uma vez foi um cara lá na casa da minha mãe: “Seus filhos estão tudo jogando água no meu carro.” A minha mãe: “A água é limpa, acabou de sair do poço. Agradeça, eles tão lavando seu carro!” (risos). Tudo zangado. O bairro, Zona Norte de São Paulo. É isso!
P/1 - E vocês brincavam do que mais nessa época?
R - Carrinho de rolimã, empinava papagaio, pipa, papagaio. No meu tempo chamava papagaio. Empinar pipa. O que mais? Um montão de coisas! Eu lembro da cheringa que jogava nas pessoas no carnaval. Depois minha mãe botava fantasia na gente e a gente ia numa tal de matinê, num clubinho que tinha na rua de cima. Toda a molecadinha, tudo fantasiado, ia lá dançar na matinê, no carnaval. Que mais? Meu pai era tapeceiro e nós nunca tivemos dinheiro para comprar calça jeans. No meu tempo calça jeans era caríssimo. E meu pai era tapeceiro e lá onde ele fazia, cobria os sofá, veio um corte de jeans enorme pra cobrir um sofá e sobrou um montão de retalho e minha mãe fez calça jeans pra nós. Calça, jaqueta, tudo de jeans, pra nós todos. Minha mãe também era costureira. E a gente saía de calça jeans tudo chique… em junho, na festa junina, que era dia de usar calça jeans, a gente saia tudo chique de calça jeans novinha que minha mãe tinha feito. Ninguém tinha calça jeans igual a da gente.(risos)
P/1 - E vocês eram quatro, então. Quem são seus irmãos, como é você nessa escadinha? Você falou que é a mais velha, né?
R - Eu sou a mais velha, depois vem o Elias, depois vem a Sueli, depois vem o Edgar.
P/1 - E vocês nessa época de infância, adolescência vocês faziam o quê? Tudo junto, ou não, vocês se davam bem? Como é que era a relação de vocês?
R - Briga dia e noite, briga dia e noite, mas a gente vivia junto toda hora, festa. Quando meus irmãos começaram a ficar, sei lá, com quinze, dezesseis anos, eles criaram o grupo, Soul Black Pink, que eram aquelas músicas que tinha antigamente, com aqueles cabelão, redondão, black power, que eles chamavam. Cada um botava uma caixa de som enorme. Meu irmão botava uma caixa de som na sacada do quarto dele, vizinho botava no dele, então aquelas caixas de som enormes, fazia maior som na rua toda pra dançar, fazia o baile na rua e os sons vinham das casas. E todo mundo junto. Ou mesmo no nosso tempo também… Isso aí eu já ia um pouco menos, porque eu já tava na faculdade e eu fiz faculdade em São Carlos, então isso eu não participei tanto. Mas existiam shows no Palmeiras. Tem um lugar “famozézimo”, não sei se ainda existe, que tinha show de música black. E eles iam pra essa farra toda. No Palmeiras eu cheguei a ir num show do Tim Maia, fui no show do Michael Jackson quando foi no Anhembi, ele tinha quinze anos. Eu já vi o Michael Jackson três vezes na minha vida. Agora não vou ver mais, ô dó! Que mais?
Isso aí a gente ia junto. Eu já ia um pouco menos, porque eu já estava estudando que nem uma louca. Então ia meus irmão e minha irmã, pra dançar e essas coisas. Eu já estava mais ocupada. Então dançava black, essas músicas blacks, eles iam fazer farra todo mundo junto. No meu tempo o meu pai não deixava, eu era a mais velha, então no meu tempo eu deveria ir sozinha, porque os meus irmãos eram bem menores, e aí meu pai não deixava. Aí o meu irmão é mais velho que a minha irmã e aí depois vem outro menino, então a minha irmã foi nesse sanduíche. E caia na gandaia e eles que levavam, eles iam juntos. Eu não, eu tive problemas pra ir, arranjei grandes encrencas com meu pai, por causa dessa história de querer cair na gandaia e ele não permitia. O que mais? É isso!
P/1 - E você estudou no seu bairro mesmo? Qual foram as escolas que você frequentou até o ensino médio, assim?
R - No meu tempo chamava ginásio, eu estudei no Gonçalves Dias, que é talvez o número 3000, 2000 e alguma coisa, da rua da minha mãe. Depois eu… Não, Grupo Escolar Vila Gustavo, até o meu ensino… até o fundamental, até o primário. Todo primário no Grupo Escolar Vila Gustavo. Depois eu fui fazer o fundamental no Colégio Gonçalves Dias. E depois eu fiz o ensino médio no Liceu de Artes de Ofício de São Paulo, aí esse tinha que pegar ônibus pra ir pro Liceu, esse foi o mais distante. Gonçalves Dias ficava, sei lá, uns dez, vinte minutos, a pé, mas ainda era bem pertinho da casa da minha mãe. Na outra direção, aí já já não passava mais na casa da minha vó.
P/1 - Entendi! E no primário e depois, como é que você era na escola? Você tem alguma história que te marcou muito? Me conta um pouquinho como é que era você na escola, professora?
R - Eu sempre fui ou a melhor, ou a segunda melhor da classe. Eu sempre fui a campeã de conjugar verbo em francês. Eu sempre fui uma das melhores alunas da classe, sempre. Pelo menos a segunda, a primeira eu nunca fui. Mas pelo menos a segunda. E aí no fundamental, que aí no meu tempo chamava ginásio, eu sempre pude estudar de manhã, os melhores alunos do colégio estudavam de manhã.
Isso era muito chique. Mas no meu último ano do fundamental, no meu último ano do ginásio, a filha da faxineira branca, queria estudar de manhã. Quem que eles tiraram de manhã? A única pretinha que tinha. E que colocaram a tarde. E isso acabou… eu fiquei arrasada! Eu fiquei muito danada! Vim correndo pra casa. “Mãe, mãe, me botaram para tarde. Vai lá! Vai lá! Eu quero voltar para de manhã.” A minha mãe: “A tua cabeça também foi para tarde, não vai acontecer nada de diferente.” Bom, eu tava muito, muito, muito prostituta da vida que eu tava estudando de tarde e na minha primeira prova de física, eu tirei tipo um seis, eu não lembro que nota era, mas eu lembro que era uma nota baixa. E eu nunca tinha tirado nota baixa na vida. Aí então, eu fui lá pra professora e contei: “Professora, eu sempre estudei de manhã, fui sempre pelo menos a segunda melhor aluna da classe, nunca tirei nota tão baixa e vai ser a última vez, eu vou voltar a tirar nota alta”. A professora virou pra mim e fez assim: “Você nunca vai aprender física na vida!” Eu terminei o fundamental com a segunda melhor nota de todo o colégio. Porque para permanecer naquele mesmo colégio, eu tive que fazer um vestibular pra ficar lá. E aí com essa nota eu deveria voltar pra de manhã. Eu tirei a segunda melhor nota de todo o colégio. A primeira melhor nota foi um menino. Mas aí eu fui pro Liceu de Artes. Eu fiz só porque tinha que pegar ônibus. E tinha o curso técnico e a pessoa que me falou do curso técnico, fez: ”Sonia, curso técnico é bom! Porque aí você se forma e já tem emprego.” Mas na realidade eu fui só porque tinha… eu nunca tinha pego ônibus pra ir pra escola, eu sempre morei muito pertinho da escola. E achava chique pegar ônibus pra ir pra escola. Aí eu fui pro Liceu de Artes. E eu fiz… eu sou técnica em edificações. Eu terminei o curso como a segunda melhor aluna de todo o Liceu e o primeiro melhor aluno… Técnica de edificações. E o primiero melhor aluno também é um menino negro, técnico em eletrônica. É isso!
P/1 - E me conte uma coisa, nessas de ir pro Liceu, você teve algum professor, ou professora, ou amigo que te marcou?
R - Eu sempre me apaixonava pela professora de matemática, mesmo que fosse do gênero feminino. Eu adorava matemática, se eu não fosse a primeira aluna de matemática, eu era a segunda. Eu ia hiper bem em matemática. Se bem que eu também gostava muito de línguas. Mas eu gostava muito do professor ou da professora de matemática, sempre, sempre. Matemática, eu ia lá e arrasava. Os professores de matemática que eu tive foram muito bons. Foi muito, muito legal. Eu gostava muito dos professores de matemática. Nunca pensei em fazer matemática na faculdade, eu não sei por quê. Mas eu gostava de matemática. Nunca tive problema, entendeu? Com esse lado na vida, com a matéria. Meu grande problema foi computação, códigos, software. No meu tempo chamava ______, essas coisas. Ninguém merece aquilo, ninguém! Aquilo era uma desgraça.
P/1 - E me conta uma coisa, tava pensando aqui, você fez todo esse trajeto. E o Liceu também, durante a ditadura no Brasil, né? Você assim, no seu dia, você sentia isso? A sua família, ou não? Como era viver nesse período pra você?
R - E o Liceu é grudado no DOPS, que naquele tempo, aquele quartel ali na Prestes Maia, era o DOPS, onde eles prendiam as pessoas. Não! Durante o tempo do Liceu, durante o tempo até o cursinho, nunca percebi nada. Eu sei… mas isso aí foi a minha mãe que contou, eu não vi. Um dia o meu pai foi chamado lá pra ser interrogado, meu pai sempre foi de esquerda, sempre participou do sindicato, isso era pecado naquele tempo. E teve um dia que ele foi correndo lá em casa e escondeu todos os livros dele, tinha Mao Tsé-Tung, tinha uns livros ele… era fantástico! Escondeu tudo, enfiou numa caixa e a caixa foi enfiada dentro do forro, o forro… Foi uma coisa maluca aquele dia na minha casa. Levaram meu pai para interrogatório, mas ele voltou, inteirinho, não machucaram ele, não aconteceu nada. Meu pai sempre participou dos sindicatos e isso era suspeito. Meu pai nunca falou nada, quando tudo se acabou e começou a ter Lula e PT, ele já era PT. Ele tinha todos os livros sobre Cuba. Meu pai tinha uma coleção de livros bárbara. Eu li, cheguei a ler. Porque depois tudo isso acabou e ele pode tirar os livros de onde estava escondido, e aí eu comecei a ler. Ele tinha uma coleção de livros, assim… Eu li sobre Mao Tsé-Tung nos livros do meu pai, eu nem sabia que existia Mao Tsé- Tung. Mas antes disso, não, eu era bem ceguinha pra todas essas coisas. A coisa estourou pesadamente na faculdade, até gás lacrimogêneo, com aquele negócio azul, que eles jogavam na gente, eu levei na cara, no cabelo. No cabelo é pior, depois não sai! E eu namorava um rapaz, que o irmão dele trabalhava no DOPS. E aí ele falava: sai fora, não vai no movimento, porque eles estão indo aí para São Carlos. Adivinha aonde que a gente tava? Então, pegamos barras pesadíssimas. Mas na faculdade, antes da faculdade eu não tinha essa… Assisti todos aqueles festivais da Record, a repressão. Eu fui ao Anhembi. Eu tava no Anhembi no dia que apagaram toda luz, o Chico, o Milton, o Ivan Lins iam cantar Cálice e o DOPS não permitiu. Cálice foi uma música proibida. Apagaram toda a luz do Anhembi e desligaram o som do Milton, do Chico e do Ivan Lins. Eles cantaram sem som e todo mundo cantou junto, foi uma coisa linda! Isso eu assisti, isso eu tava presente! Isso foi na época do ginásio. Ok, ok! Eu tava no Anhembi no dia da confusão, eu tava no dia que inauguraram o Anhembi que foi esse show, esse show do Som Livre e aconteceu essa confusão toda. O Ivan Lins tava zangado, ele cantava Madalena e falava: “Deixa a gente em paz, a gente tá aqui só cantando.” E cantando Madalena. Eu tava nesse dia.
P/1 - Maravilha! Quando você tava no Liceu, você… Antes vou fazer outra pergunta, você falou muito do ônibus, de ir pra lá. Você pode contar pra mim como era essa viagem, por onde você passava, o que você sentia quando ia e voltava? Enfim. Porque você ficou muito tempo na Vila Gustavo, né? Você falou.
R - No início, eu pegava ônibus e ia até lá. Aí o metrô foi inaugurado, então o ônibus ia até a estação Carandiru, aí eu pegava outro ônibus… Não, aí eu pegava o metrô e ia até a Prestes Maia, ou sei lá qual era a estação e descia até o Liceu a pé. É pertinho, não era muito longe. Era uma farra! A gente tinha uma “thurma” no ponto de ônibus, a gente tinha uma “thurma”, porque eu pegava ônibus na ida com a mesma “thurma”, não era pessoal estudante, não! Pessoas que tavam no ponto esperando naquele mesmo horário. E tinha a mesma “thurma” pra voltar. Então a gente tinha umas amizades, tinha gente que esperava a gente para pegar ônibus e ir pra Vila Gustavo. E na hora de ir a gente também tinha uma “thurminha”. Era uma farra, eu adorava! Maluco, né? Mas era legal! Era uma farra! Era bem gostoso! Tinha dia que a gente tinha besteirinha pra comer, a gente distribuía pra todo mundo no ônibus, tinha dia que tinha som, alguém tinha um som, pra todo mundo ficar ouvindo o som daquele lá que tava com o som no ônibus. Parecia uma excursão, mas era uma viagem de o quê? Vinte minutos? Trinta minutos? Deixa eu contar mais!
Aí num desses períodos, eu consegui um estágio, eu fui ser técnica em edificações na Fundação Bradesco, lá em Osasco. Tinha que pegar trem, que delícia! Eu saía de madrugada, porque além de tudo eu fazia o estágio de manhã, depois tinha que pegar o trem pra Osasco, voltar de Osasco, descer na estação da Luz e ir pro Liceu. Outra farra! A gente tinha outra turminha no trem, porque pegava o trem na mesma hora na ida e na mesma hora na volta. Outra farra! Era uma delícia também! E eu adoro, gosto de trem até hoje. Pecado que os trens… Metrô eu não não gosto tanto. Mas trem eu gosto muito. Pecado que os trens pra gente viajar já não existe mais. Mas era uma farra, a gente sempre arranjava uma amizade, alguém pra conversar, alguém pra contar história, alguém pra… sei lá, tudo essas coisas. Era uma farra! Eu gostava muito dessa coisa. Eu me diverti muito também nas viagens de ônibus e de trem.
P/1 - E nessa época você já pensava em: “Ah, eu quero ter essa profissão, eu quero estudar isso ou aquilo”? Ou você tava ainda refletindo e não sabia muito pra onde ir, enfim?
R - Nunca esquentei minha cabeça com isso. Mas, lembre-se, eu fui pro Liceu ser técnica em edificações por causa do ônibus, mas eu me formei em técnica em edificações. Então eu pensei, já que eu sou técnica em edificações, eu deveria fazer engenharia civil, ok? Ok! Aí eu fui fazer cursinho em engenharia civil, pra entrar em engenharias no vestibular. Eu fiz o último ano do ______, que é o vestibular antes de todos esses aí que vocês conhecem hoje. E naquela época, ____, era só as engenharias, portanto tinha noite que eu tinha física, primeira aula, no cursinho, primeira aula, segunda aula, terceira aula, quarta aula. Porque física era muito importante nos vestibulares de engenharia. Bom, quando… No meu tempo o ____ eram dezesseis opções em engenharias. Eu preenchi todas. E o professor do cursinho disse, preencham todas as opções, não deixem nenhuma opção em branco. Eu preenchi todas as de graça, porque era a condição que eu ia ter, não ia pagar uma faculdade de engenharia. Depois preenchi as outras todas, inicialmente todas as civis, depois fui botando, porque ele mandou preencher, eu fui botando as engenharias que tinha. E todas as engenharias davam só treze opções. E aí eu lembrei, “humm, gostei de física na época do cursinho, eu me divertia com física, eu achava, sabe?! Aqueles fenômenos todos sendo colocados nas equações, eu achava isso…. Lembre-se que eu adorava matemática. Então, falei: “Legal”! Botei as minhas treze opções, física! E o professor disse: coloca as primeiras coisas que você quer, por ordem de número de vaga, maior número de vaga primeiro e vai preenchendo tudo. Foi assim que eu fiz. E eu peguei uma das minhas opções. Física na federal. Não entrei em engenharia, mas entrei em física. Chegou a ter engenharia no meu segundo ano de física na federal, entrou engenharia civil. Falei: “Upa, vou fazer”! Fiz o vestibular, fiquei na lista de espera. Mas nesse mesmo ano eu comecei a fazer física moderna, em física moderna, você aprende as equações de Maxwell, na equações de Maxwell, existem operadores matemáticos que explicam o surgimento da luz. Na realidade de todo espectro eletromagnético que a luz tá incluída e todo resto, raio x, gama. Mas eu achei fantástico, a matemática explicando o surgimento da luz dentro da física. Falei: “Não, é física que eu quero continuar”. E nesse mesmo ano eu comecei a fazer física no estado sólido, com ______, que era a maior sumidade em semicondutores. Semicondutores é aquele material que fica entre combustão e isolante, mas ele é particular, você pode construí-lo de uma forma que ele pode conduzir quando, como. E ele é a base de todos os dispositivos microeletrônicos que existem hoje. Nos anos setenta ________ disse que isso ia acontecer. Eu falei: o quê? Gosto muito de semicondutores. E hoje eu sou doutora em semicondutores, a minha carreira inteira tem um semicondutorzinho fazendo alguma coisa. Então… você percebe, a coisa foi se formando assim tá, tá, tá. Eu nunca acordei um dia e sonhei: não, eu quero ser isso! Nunca esquentei a cabeça com isso não.(risos)
P/1 - Então pelo o que você falou, achei interessante isso de que você já gostava muito de matemática, né? Mas quando você viu… O que foi que te encantou nessa questão de ver… na física, ver essa tradução dos números na… não sei, na realidade física, é isso?
R - Matemática, talvez nem seja matemática, em cálculo ou soma. Matemática explicando um fenômeno físico, é lindo, é uau! Eu tinha um professor que dizia… super ateu. É o bendito _______, sempre o ______. Sabe, uma pessoa bastante pé no chão, físico de todo jeito e ele dizia: Deus está _______, Deus está lá em cima dizendo, tudo é igual, tudo é uma coisa só. Você tem só que colocá-los juntos, pra você ver que eles têm o mesmo efeito. Naquela época, ele é físico teórico, era físico teórico. Tava todo mundo tentando explicar alguns elementos, que agora tem os nomes quânticos, tudo chique. Mas naquela época eles não existiam ainda, eles não tinham sido descobertos. Eu não sei se eles já foram vistos até hoje, mas já são… existem comprovação que eles existem, eles têm um determinado efeito na vida da gente, mas tava muito difícil de ver, comprovar, enfim. Aí _______, dizia: “Deus tá com dedinho lá em cima, escondendo da gente. O dia que ele quiser, ele vai tirar pra fora e a gente vai ver.” Porque todas as teorias, todas as equações, tudo provava que aquela determinada coisa existia, mas ninguém tinha visto ainda.
Ele fez: “Ó, Deus tá com dedinho ali, a hora que ele quiser, ele tira.” Portanto, o criador, não sei se Deus, Alah, ou Oxalá, ou Babado Orixá, não sei! Fez a mesma coisa junto, tudo somado, nós todos viemos de uma única coisa, do bendito Big Bang, daquela imensa explosão há quatro bilhões de anos atrás. Então nós somos todos uma coisa só. Com a explosão nos separamos, nos transformamos no que nós somos hoje. Mas nós somos a mesma coisa, viemos do mesmo lugar, do mesmo tudo. Então na hora que a equação de Maxwell comprovou isso, com relação ao surgimento da luz, sabe? É real! A coisa é real! Adianta você dizer: “não, não é. Imagina”. Isso aí é um sonho de alguém. Não, é um fato! As coisas estão todas ligadas. E também existe essa briga, matemática, física, química. Não, não, não, é tudo uma coisa só. Cada um deles tem a sua forma de ver a mesmíssima coisa, a sua forma de calcular, a mesmíssima coisa. É um faz quimicamente, um faz matematicamente, o outro faz fisicamente. Mesmo o físico tem que usar muito cálculo, álgebra, matemática, computação, enfim. Mas se você perceber bem, tá tudo mundo junto no mesmíssimo lugar, no mesmíssimo lugar. Você sabe o que é ChatGPT?
P/1 - A gente tá tendo as notícias sobre ele. O gerador de texto?
R - Isso! Isso! Isso! Ele tá botando tudo isso na rua, tá botando tudo isso pra fora. Tá no comecinho… bom, agora não tá mais no comecinho, agora já é uma coisa meio comprovada. Mas lembra, antigamente você fazia tudo por computador, não é? Você tinha que fazer o programa… Bom, ainda você tem que fazer o programa pra um código, um programa, pra fazer o ChatGPT funcionar. Mas quando tá tudo certinho lá dentro, o ChatGPT te diz. Você faz a pergunta e ele te responde e te dá um texto, te dá um livro, te dá um artigo, prontinho pra você publicar. Quer dizer, entendeu? Primeiro você tinha que fazer todas… inventar o computador, todos aqueles dispositivos microeletrônicos lá de dentro, escrever um programa pro coitadinho funcionar, e aí ele te dava um cálculo, não sei o quê… Agora ele tá escrevendo textos. Isso significa que ele está começando a aprender e ele está lendo, até pouquíssimo tempo, o computador não conseguia ler. E agora ele já lê.
Mas do que ele lê, ele te manda um texto corretíssimo, correto na linguagem… Bom, no português eu não sei ainda, porque eu não sei se ele já sabe ler português. Mas em inglês, por exemplo, correto na linguagem, correto na gramática, correto de tudo. E ele tá dando pra você, ele ta te ensinando, tá respondendo uma indagação que você fez a ele. Então, as coisas todas, são todas uma só. É só o momento… no futuro e nem é um futuro muito longe, você vai ver, tudo veio de uma coisa só e agora tá todo mundo se unindo de novo naquela mesma única coisa que a gente saiu há quatro bilhões de anos atrás. (risos)
P/1 - Eu queria só depois dessa exposição maravilhosa sua. Só voltar um pouco aqui. Uma coisa que também me interessou bastante de pensar. Nessa época, então você teve o professor Luiz, isso foi no Liceu, ou foi já na faculdade?
R - Sobre semicondutores? Segundo ano da faculdade, da graduação.
P/1 - Ah tá! Então vou voltar só um pouquinho. Você teve os resultados do vestibular e como é que foi? O que veio para você? Como é que foi o dia, enfim?
R - Entrei na faculdade em São Carlos. Minha mãe: “toma!” Minha mãe tinha um mundo de dinheiro no bolso e fez: “Já vai pra lá, já escolhe a casa. Uma casa decente, não vai se meter num buraco.” Porque no meu tempo não tinha essa história de fazer a matrícula pela internet, você tinha que ir lá em São Carlos, assinar um monte de papel, tirar foto, fazer um monte de coisas. “E já guarda teu lugar na faculdade.” Meu pai: “filha minha não vai morar sozinha. Fica aqui!”
A minha mãe já era independente economicamente, portanto ela não precisava pedir dinheiro pra ele. Respondeu: “Ela vai, ela vai amanhã cedo pra não perder a vaga.” Meu pai: [áudio inaudível]. Minha mãe: “Ela vai, começa a fazer física, se um dia ela decidir que não é física e que ser engenheira, ela faz. Ela já passou nesse, porque não vai passar em outro? Ela vai sim, e vai amanhã cedo!”
Uma amiga do Liceu foi comigo pra eu não fazer a viagem sozinha, fui lá, fiz toda a matrícula, já fui no lugar onde tinha vaga pra estudante, já paguei meu primeiro mês de aluguel. E foi isso! Foi o maior barato! Teve festa! A minha mãe fez festa, por causa disso. E o presente era toalha, pijama, não sei o quê. Porque minha mãe queria que eu montasse um enxoval pra eu ir pra São Carlos. Que eu nunca fiz enxoval na minha vida. Nunca me casei, nunca tive esses planos. Então minha mãe queria que eu já tivesse uma série de coisas novinhas, bonitinhas, pra levar pra São Carlos. Minha mãe fez uma festa e cada um tinha que levar alguma coisa pra eu me mudar pra São Carlos. Foi uma festa na família, foi uma farra! Foi muito legal! Foi muito legal!
P/1 - E como é que foram os primeiros dias em São Carlos, as primeiras aulas? O que você achou?
R - O meu primeiro dia de federal? Cheguei lá com um aplique, minha mãe tinha uma peruca, era um rabo comprido de cabelo, assim. Eu cheguei lá toda jogando o cabelo, toda achando que tava abafando. Apareceu… Eram cinco negros na universidade nessa época. Apareceu um deles, virou pra mim e falou assim: “Você sabe que você é negra, né?” E eu sempre soube! Porque apesar de eu e a minha irmã termos a pele um pouco mais clara que as minhas primas, por parte do meu pai, que era essas que eu via todo dia. As minhas primas tinham a pele um pouco mais escura, mas elas tinham o cabelo liso natural. Elas alisavam. Mas elas não precisariam, o cabelo delas era liso natural. E eu e a minha irmã, não, sempre tivemos o cabelo bem crespinho como o do meu pai. Minha mãe é um pouco menos crespo. Mas o do meu pai era bem crespinho. Eu e a minha irmã sempre tivemos o cabelo muito crespinho. E na nossa família, desse lado da nossa família, cabelo crespo significa: você é negra! Cabelo liso, mesmo que a pele seja escura, você é branca. Mas cabelo crespo, você é negra, não adianta. Então eu sempre soube que era negra, nunca que eu tinha dúvida. Mas eles vieram já bem claro: “Você é negra! Você sabe que você é negra, né?” Isso aí foi no primeiro dia de aula na federal. Na federal nessa época tinha 1500 alunos e éramos cinco negros e eu era a única negra. E eu lá com meu cabelão. Bom, não durou uma semana, eu já cortei o meu cabelo bem curtinho e já comecei a usar crespo. Voltei pra São Paulo, meu pai: “Você não vai mais cuidar do cabelo Soninha?” Cabelo crespo dá mais trabalho ainda. Eu falei: “Não pai, agora que eu estou cuidando do meu cabelo”. Do meu cabelo, não era mais aquela coisa de ficar alisando. Foi legal! Eu tinha uma turma muito legal de colegas, tinham aqueles que não gostavam mais caspta, o que eu posso fazer por eles? Não posso fazer nada por eles. Inclusive a minha turminha da escola, tem gente que eu vejo até hoje, que entrou comigo no mesmo ano. Um deles só eu vi, logo quando eu voltei do meu doutorado, eu fui na Unicamp, encontrei com um deles. Um outro é um grande empresário, ele trabalhava com telefonia. E um outro foi pra Europa e não voltou mais. Esse eu acho que nem sei se ele mora no Brasil ainda. Um dia desses eu recebi alguma coisa dele, um e-mail, alguma coisa, mas só um cadiquinho, pequenininho. Ele queria saber onde que eu tava e ele já tava na Europa. Não sei se ele já voltou, se ele vive no Brasil, onde que ele vive também. Mas uma turminha legal, a turma da física a gente estudava junto, éramos cinco ou seis estudantes e a gente estudava juntos. Foi legal! Os professores nem tanto, alguns professores realmente não me aceitavam. Uma professora não me aceitava. Mas… Na minha vida inteirinha, eu só fui reprovada uma vez na vida, que foi exatamente esse curso que me deixou apaixonada por física. E agora, depois de todos esses anos, eu tô sabendo do professor, onde ele tá. E ele sabe também onde eu tô. E um dos amigos dele falou dele pra mim e aí eu falei: “Ele foi o único professor que me reprovou na vida”. Aí ele respondeu pra esse amigo: “Aquele ano eu reprovei todo mundo!” E um dia desses ele entrou em contato comigo, ele quer que eu dê uma palestra em algum lugar, mas parece que ele e as minhas assessoras não se deram muito bem. E ele é responsável também pela sociedade brasileira de física, e aí eu dei uma palestra para um encontro de ensino. E ele também tá na sociedade brasileira para o progresso da ciência. Eu dei outra palavra, porque ele me convidou. Mas… Então até o professor ainda, eu sei. Tá bem velhinho, magrinho. Eu dei aula para um sobrinho dele. Um sobrinho dele entrou aqui no ITA. E eles mesmo sobrenome, aí eu virei pro menino e fiz, assim: “porque você é Stuart, você conhece o Nelson?” Ele falou: “É o meu tio!” Aí eu virei pra ele e disse assim: “O teu tio foi a única pessoa que me reprovou na vid”a. Ele fez: “Hum, eu deveria ter ficado quieto! Já me arrependi de ter falado isso pra senhora.” Eu já dei aula para um sobrinho dele. Mas foi legal! Foi um período bem bom! Eu terminei… nós entramos na ordem de cinquenta alunos na federal, na graduação, se formaram no período regulamentar da ordem de seis alunos e duas meninas. Adivinha quem era uma das meninas que terminou o curso de graduação em quatro anos? Então foi um período bem legal, eu gostei! Viajei bastante, porque eu entrei no grupo de folclore. Eu tentei pedir… eu descobri, de repente na graduação, eu descobri que eu poderia pedir uma bolsa de iniciação científica. E desde pequenininha eu já sou pesquisadora. Quando eu era muito pequenininha eu era muito curiosa, ficava perguntando uma série de coisas pra pessoas e todo mundo ficava com raiva de mim. Minha avó me chamava de xereta. E ela não tava me elogiando não, ela tava de saco cheio das perguntas, porque eu fazia e ela não sabia responder. E minha mãe conseguiu uma professorinha aposentada que dava aula pra molecadinha pequenininha. Então com quatro anos e meio, eu já sabia ler, escrever e fazer continhas básicas. Minha mãe comprou uma enciclopédia, aliás ela comprou duas enciclopédias. E cada vez que eu fazia essas perguntas que ninguém sabia responder, eu já sabia ler. Minha mãe fazia assim: “Vai lá na enciclopédia que ela responde”. E respondia mesmo, todas as minhas perguntas. Então desde pequenininha eu já sabia fazer pesquisa. E na faculdade eu ia ganhar dinheiro pra isso. Eu fui correndo pedir uma bolsa de iniciação científica. E a resposta que eu tive: “Não, você não vai usar física pra nada, porque que eu vou desperdiçar uma bolsa com você?” Então de física eu nunca consegui. Mas na humanas, eu consegui uma bolsa de dança folclórica. Eu fui rainha do maracatu, eu sei dançar carimbó, eu sei dançar um monte de música por aí. E a gente viajava com esse grupo de danças pelo o interior de São Paulo. Tem um festival de música folclórica em Olímpia, a gente foi apresentar o nosso grupo lá. A gente foi em vários lugares dançar. Foi muito divertido. A gente ia no “interiorzão” de São Carlos. São Carlos já é interior, ok, ok! Tinha interior de São Carlos e a gente ia ensinar a molecadinha lá na fazendo, lá nos cantão lá, ensiná-lo a dançar carimbó, maracatu, contar história do folclore brasileiro. Era muito legal.
P/1 - E você falou… só acho que a pergunta que você… que já vi algumas entrevistas você respondendo isso. Mas me parece que esse ambiente que, às vezes, pelo menos a mim me pareceu um pouco hostil, não te fez desistir, né? Sobre desistir do que você queria fazer e tal. Mas em algum momento você achou que não ia conseguir, enfim… que os professores não colaboravam, os colegas, como foi esse tempo em São Carlos?
R - Jamais! Desistir é a única forma de você não conseguir uma coisa. Eu tinha que conseguir, caspita! “Ah você não vai conseguir!” Eu pego e não consigo? Não, não, não! Eu vou lá consigo e ainda sou a segunda melhor aluna da turma, porque imagina, duas meninas só que se formaram, nós entramos em cinco ou seis meninas desses cinquenta alunos de física, entramos em cinco ou seis meninas, duas se formam em tempo regulamentar e eu sou uma delas. Gente, imagina, eu não tenho tempo pra isso. Tenho coisas pra fazer, eu não posso ficar ouvindo essa gente e me impedindo de chegar onde eu quero. Não que eu tivesse planejado nada, mas em soma, não consigo? Você vai ver! Você vai ver o ‘não consegui’. Eu vou lá e consigo, sim senhora. Desistir não faz parte do meu vocabulário. E em todas as minhas palestras que eu dou pra esse Brasilzão a fora, é a máxima que eu digo pra todas as meninas negras, ou meninas, ou mesmo meninos. Uma vez eu dei uma palestra… E eu incentivo as meninas. Então eu fico tudo no feminino, um menininho deste tamanho chegou perto de mim e falou, assim: “Professora, eu também quero entrar no ITA, no ITA não pode entrar menino?” Eu disse pra ele: “Só tem menino, eu só quero que aumente o número de meninas”. Ele tava tão ofendido com o meu feminino na história. Então, na minha máxima, para todas as pessoas que me ouvem, não desista jamais! Pode ser que você não consiga na primeira vez, tente a segunda, pode ser que você não consiga na segunda, tenta a terceira. Mas enfim, vá atrás do teu sonho até você conseguir. Porque a única coisa de resultado de desistir é você não conseguir, e daí? Não vai parar teu sonho, caspita! Não, não! Nunca nem se _____ pela minha cabeça. Já tive medos, muitos medos, mas nem medo nunca me fez parar, eu me engulo, engulo bem forte assim e vou!
P/1 - Quando você terminou a graduação, você já foi fazer mestrado? O que você acabou fazendo depois?
R - Imediatamente! Terminei, peguei o diploma aqui, já estava com a matrícula no mestrado. Na realidade eu tentei até ir pra Campinas, mas não fui aprovada e fui pra USP de São Carlos pra fazer o meu mestrado. Imediatamente! “Tchuki tchuki!” Imediatamente! Sem parar! Lembre-se, eu não ia conseguir, eu não ia fazer nada com física, né? Então eu tinha que fazer alguma coisa com física. Eu não ia nunca aprender física. Eu tinha que fazer mestrado.
P/1 - E você montou sua dissertação sobre o quê, quem te orientou? Como foi?
R - Se chama Milton, ou Nilton, não vou lembrar o nome do meu orientador mais. Milton Soares, Milton Soares, eu acho. Eu montei um elipsômetro, o elipsômetro analisa, estuda a camada… O elipsômetro que eu montei era pra estudar camadas anti refletoras de células solares, sempre semicondutores, sempre dispositivos microeletrônicos. É muito importante que a tua célula solar, transforme o máximo de energia solar que entra nela, em energia elétrica, isso é importante. Tudo que for refletido e energia perdida, você não quer perder, você quer a eficiência máxima. Então esse elipsômetro estudava, eu ia variando as camadas anti refletoras que eu ia colocando nas minhas células solares e ele dizia: “Tanto tá sendo, tá excedido, tanto tá sendo refletido”. Eu ia mudando pra que as respostas que o elipsômetro me dessem, fosse de maior eficiência, pra eu escolher qual a camada anti refletora mais eficiente. Eu mostrei esse elipsômetro. E pra montar esse elipsômetro veio a Katherine Dumont, da Itália. Quando eu comecei o trabalho lá na USP de São Carlos, tinha um professor visitante, Juan Carlo Tchelote. E ele viu todo o meu trabalho, ele fez: “Sonia, tem uma garota lá na Itália que tá fazendo a mesma coisa que você, você não quer que ela vem aqui te ajudar a montar esse equipamento?” Eu falei: “é lógico que eu quero!” Conseguimos uma bolsa, professor visitante, a Katherine foi lá pra São Carlos, morou com a gente um ano. A gente montou o elipsômetro e a gente… E eu consegui escrever a minha tese e defender a minha tese de mestrado. Foi assim que aconteceu.
P/1 - Maravilha! E nessa época você… Me conta como que tava você pessoalmente? Você morava em São Carlos? Quem eram seus amigos? Você falou de namorado uma época, como que tava sua vida pessoal nesse período também?
R - Eu morava em São Carlos. Nesse momento minha irmã fez vestibular, minha irmã estudou numa escola lá de… Escola de educação física de São Carlos e agora ela tá dentro da federal lá. A federal encampou essa escola, mas quando ela estudava lá ainda era uma escola… Eu não sei se minha mãe pagava escola pra ela. Eu acho que era uma faculdade municipal, não sei! Mas minha irmã foi pra São Carlos também, fazer faculdade. Então nesse momento eu morava com a minha irmã, Katherine foi morar com a gente nessa casinha, um quarto, uma cozinha, uma coisa pequenininha, casinha de estudante mesmo. Sim, eu tinha um namorado nessa época, esse meu namorado fazia engenharia na USP de São Carlos. E eu sou mais velha que ele, eu entrei um ano antes, ele era bicho. Bom, é que ele entrou na USP e eu entrei na federal, mas se ele tivesse entrada na federal seria bicho meu. Então, nesse momento ainda ele tava na graduação… Ah, e eles fizeram uma greve imensa, imensa e eles todos da USP perderam um ano. Então, além dele tá um ano atrasado de mim, ele ficou dois anos atrasados de mim, por causa desse um ano que eles perderam. E a reitoria, toda a USP, decidiu que todo mundo foi reprovado, a escola inteirinha foi reprovada. Então eles tiveram que fazer um ano a mais de graduação de engenharia. Então, nesse momento ele morava no alojamento da USP… Eu tinha um namorado, eu fazia o mestrado. E é isso! Ah, fiz o concurso pra ser professora do estado, passei! Cheguei a dar seis meses de curso no estado.
56:42
P/1 - E você saiu porque já foi pro doutorado então?
R - Direto! Direto! Bom, Juan Carlo Tchelote, quando eu defendi minha tese de mestrado, Tchelote fez assim: “Sonia, você não quer vir fazer doutorado aqui com a gente?” Com a gente não, porque… Bom, ele fez essa visitinha lá em São Carlos e se apaixonou pelo o Brasil e não voltou mais pra Itália, ele se tornou adicto científico Brasil-Itália e se mudou pra Brasília. Então ele tava no Brasil ainda nessa época, ele não voltou mais pra Itália. Esses italianos no Brasil é fogo. E aí ele fez: “Sonia, você não quer fazer seu doutorado lá na Itália?” No instituto de onde ele veio, ______. Aí eu falei: “É lógico que sim!” Só que na Itália você termina a graduação dottoressa, você já sai dottoressa da graduação. Portanto, a Itália não fornecia um doutorado como CNPQ e o CAPS, que são os órgãos de financiamentos de pesquisa que aceitam. Então eu fui para a escola de engenharia Politécnica da USP de São Paulo, me inscrevi no doutorado da Poli, fiz seis meses de curso lá. Na realidade nem fiz esses seis meses de curso, eles tinham um elipsômetro lá que não funcionava e eles queriam que eu colocasse o elipsômetro deles pra funcionar. Então esse já seria os meus créditos para o doutorado. E isso já matava uma parte do meu doutorado, eu pedi o que eles tinham antigamente, não sei se ainda existe, a Bolsa Sanduíche, na qual eu iria desenvolver a minha tese de doutorado lá na Itália, voltaria pra Poli, pra defender a tese de doutorado na Poli. E foi isso que eu fiz! Consegui a bolsa, fui pra Itália, fiz todo o meu trabalho de doutorado. Eu tava com o trabalho prontinho pra defender na Poli, uma colega teve o marido transferido pra Inglaterra. E ela chegando lá na Inglaterra, em Manchester na Inglaterra, ela fez: “Sonia, vem já pra cá! Já consegui um orientador pra você, ele já conhece os teus trabalhos, ele já conseguiu uma bolsa pra você, vem pra cá! Você defende essa tua tese aqui e não precisa mais ir pra Poli defender a tua tese, você já sai da Inglaterra com um PHD em física.” Que é o doutorado que a gente obtém lá na Inglaterra. E eu fui pra Inglaterra! Sai da Itália e já fui direto pra Inglaterra.
59:26
P/1 - Caramba, como foi pra você ir pra Europa, como você se adaptou, como foi?
R - Maravilhoso! Eu fui pra casa da Katherine, que eu já conhecia, que ela já tinha morado um ano com a gente, então eu já sabia dela, já conhecia. E já tinha um quartinho prontinho pra mim lá na casa dela. Um pessoal maravilhoso, que me recebeu lá. No meu primeiro dia de Itália, eu cheguei de madrugada, não tinha nem dormido direito. “Pennnn!” Aí lá vai a Katherine: “Sonia, você precisa….” Eu: “De pijama”. “Sonia você precisa descer lá embaixo, porque o carteiro precisa te conhecer, porque agora tua correspondência vai chegar na minha caixinha e tem só o meu nome. Já vou colocar o teu nome lá, mas aí ele já sabe quem é você.” Porque vai vir correspondência do Brasil, porque antigamente tinha carta escrita no papel. “Vai chegar correspondência, ele gostaria de te ver.” Cheguei lá, tinha um Baci Perugina pra mim, que é um bombom italiano, de boas vindas. Ah aí, “pennnnn” de novo, eu tava lá embaixo, aí eu vou no portão, aparece um cara e faz: “Você é a Sonia?” “Sim!” “_______, que são pães quentes pra você.” Eu peguei os pães quentes. E ele gritava em italiano ___________. Ele queria ser a primeira pessoa lá do departamento a me conhecer. Quem fosse a primeira pessoa ganhava uma aposta. E era algum dinheiro, porque ele saiu realmente muito feliz. E esse pessoal me recebeu muito bem. Na minha primeira semana de Itália, eles me levaram num restaurante, que não é uma trattoria, é um restaurante chique, com toalha na mesa, copos de cristal, aquela coisa chique. Nunca, eu em trinta anos de ITA, nunca ninguém no ITA me convidou pra ir pra lugar nenhum, na minha primeira semana de Itália… E vire e mexe a gente dava essas saídas aí pra comer, pra beber, pra tudo. Era muito legal, um pessoal maravilhoso. Teve um ano que tinha um congresso na Sicília e eu não tinha nada pra ir pra esse congresso, umas das minhas colegas me deu a passagem dela e a estadia dela pra eu ir pra Itália pra esse congresso. Ela não foi, eu fui no lugar dela. Isso nunca aconteceu em nenhum lugar que eu estudei, que eu participei, que eu trabalhei muito menos. No ITA eles inventam coisa pra que eu não vá. Então, foram um ano e dez meses, assim, no céu, tratada como se fosse uma rainha. Um deles achava muito estranho que eu estivesse na Itália estudando eletrônica. Porque eu fui lá pra estudar dispositivos microeletrônicos. “Que diabos que você saiu do Brasil e vem estudar eletrônica aqui, porque você não foi pro Estados Unidos?” Ninguém me convidou nos Estados Unidos e lá Itália eu tinha convite. Porque ele achava que a Itália num tivesse pesquisa. Ele era advogado. Ele não estudava com a gente, nem fazia pesquisa com a gente. Mas era da “thurminha”, de beber, de farra e tudo mais.
E ele fazia assim: “Mas porque você veio pra cá, por que você não foi pro Estados Unidos?” Porque ele achava que os Estados Unidos era mais adiantado que a Itália. Ok, sim, deve ser mesmo, caspita, mas a Itália tem pesquisas muito maravilhosas em eletrônica e tudo mais, em astrofísica, em física, em tudo mais. Não, não! Ele tava bem… Eu falei pra ele: “Vamos lá no _______, vou te mostrar o que eles têm lá”. Porque caspita, eles tem todos os equipamentos que eu precisava, estavam lá. As pessoas com o conhecimento que eu precisava estavam lá, as pessoas hiper dispostas pra me orientar. Tinha um lá que trabalhava com microscopia de de varredura, que é uma microscópica que aumenta muito, muito, muito, pra você ver coisas realmente muito pequenas. Ele ficava muito zangado! “Sonia, porque que você faz com Some?” Que era meu orientador lá. “Porque que você vem fazer aqui _______”. Eu falei: “Some que chegou primeiro!” Bom, chegando no Brasil, qual foi o meu primeiro trabalho, que eu fui fazer? Qual foi a primeira pesquisa… adivinha a pesquisa que eu fui trabalhar? Microscopia eletrônica de varredura. Eu mandei um email pra ele. “Adivinha do que eu tô trabalhando aqui?”
Ele fazia: “Bem feito, eu falei que você tinha que ter trabalhado comigo, não com o Some.” Mas foi muito bom! A Itália foi maravilhosa. Meu problema na Inglaterra… eu odeio chuva, frio. E chuva me deixa realmente down, são duas coisas… Odeio frio, ok, mas frio é necessário, segundo Newton, precisa vir a chuva e o frio pra florescer, depois do inverno vem a primavera. Ok, eu aguentava! Mas o ano inteiro, todo tempo, my god! Essa parte foi a mais difícil. Na Itália, não, teve o inverno, que o inverno foi rigorosíssimo, mas o verão, uau! Quarenta graus, sorvete todo santo dia. Era uma delícia, uma delícia, uma delícia! Praia realmente quente, com sol, uau! O inverno realmente é uma coisa que… Toda vez que eu falo das viagens que eu fiz, o pessoal: “Mas por que você voltou?” Frio! Frio é realmente… E dois alunos meus pediram minha carta de recomendação, que eles foram estudar em Paris. Eu falei: “vocês…” E os dois de Fortaleza. “Vocês estão sabendo do inverno de Paris?”
Porque Paris é maravilhoso, eu amo Paris, mas o inverno. Eles disseram: “Professora, a gente já está preparado.” Porque foi a pior parte na minha brincadeira, o frio. O frio realmente, uau, meu Deus! Senhor! Como que eles sobrevivem. Eu ficava justificando, por isso que os ingleses saíram da Inglaterra pra descobrir o mundo, porque quem é que aguenta essa coisa horrorosa. Aquele frio, aquela chuva, aquela coisa horrorosa. Meu Deus! Uau!
P/1 - Mas mesmo assim você defendeu seu doutorado lá?
R - Sim, na Inglaterra, defendi.
P/1 - Aí logo em seguida você volta pro Brasil, é isso?
R - Sim, imediatamente! Sim, acabei as minhas defesas todas, já vim com o meu PHD. Sim, sim! Imediatamente. Na ida, eu tava num desses aeroportos, eu encontrei com Mammana. Mammana foi uma das pessoas que criou o centro de tecnologia da informação em Renato Archer, em Campinas. Ele é físico e a gente já tinha se encontrado em congressos de física, anteriormente. Ele encontrou: “Sonia, o que você está fazendo aqui no aeroporto?” “Eu tô indo pra Itália, porque eu tô indo fazer o meu PHD em dispositivos microeletrônicos. Ele fez: “Sonia, quando você terminar me avisa porque a gente vai ter um lugar pra você aqui”. Quando eu tava… Uma semana antes ou duas antes de defender a minha tese, ou já depois que eu tinha defendido, não sei! Mandei uma carta. Antigamente tinha carta real. Mandei uma carta mesmo, não foi um e-mail, um papel mesmo. Deixa eu pensar. Não tinha e-mails, eu tinha e-mails pro pessoal dentro da _______, mas não sei se tinha e-mails pra fora da Inglaterra, ainda. Mas em suma, mandei uma cartinha pro Mammana. “Mammana, vou defender minha tese tal dia, tô indo embora pro Brasil. ainda tá válido?” “Sim, sim, sim!” Então quando eu voltei pro Brasil já fui direto pro CTI. Já fui trabalhar direto lá, com microscopia eletrônica de varredura. Oh my god! Trabalhei lá três anos.
P/1 - E nessa época, quando você volta pro Brasil, pro CTI, você já tinha quantos anos?
R - Trinta. Exatos. No dia que eu defendi a minha tese, no dia que eu tava fazendo a festa, já tinha defendido…. Não! 34, 34. Já tinha defendido tudo, tava com mala pronta para voltar para o Brasil, eu fiz uma festa na minha casa, pra dizer tchau pra Inglaterra. E naquele dia eu fazia 34 anos. Não! Isso foi em agosto. Mas fazia pouco tempo que eu tinha feito 34 anos. Bom, no dia que eu defendi a minha tese, fazia trinta anos que eu estudava… eu tinha estudado trinta anos da minha vida, porque eu comecei a estudar com quatro anos e meio, então… Isso, isso mesmo! 34 anos e meio. Então trinta anos que eu estudava na minha vida, no dia que eu defendi a minha tese de doutorado. Demorei trinta anos pra defender uma tese de doutorado.
1:08
P/1 - E o que seus pais pensaram de todo esse processo? Vocês conversavam ainda, por carta, enfim, como foi pra eles?
R - Sempre, sempre mandava. Meu pai nunca foi pra Europa, minha mãe ia um ano sim, um ano não. Deixa eu pensar. Eu fiquei um ano e dez meses na Itália, minha mãe foi uma vez. Eu fiquei três anos na Inglaterra, minha mãe foi uma vez. Meu pai não! Nem pensar, pelo amor de Deus! Mas eu sempre mandava carta pra ele e tudo, a gente conversava. Minha vó, por exemplo, mãe do meu pai, cheguei da Inglaterra e virei pra ela e fiz assim: “Vó, agora eu sou doutora!” Aí ela respondeu: ”Soninha, então agora se eu precisar de algum remédio eu posso pedir pra você?”.
“Não vovozinha, eu sou doutora em física.“ “Ah, esse doutorado seu não serve pra nada!” Eu não sei te dizer…. Eu entendo tudo isso, porque era uma realidade tão… A minha queria saber quanto eu ia ganhar por mês, isso era importante pra minha mãe. Mas eu não sei se eles entendiam tudo isso, tudo… O que você percebe, minha mãe, ponto. Minha mãe fez até faculdade, porque depois, quando a minha mãe fez cinquenta ou sessenta anos, eu não lembro mais. Ela entrou na faculdade da terceira idade. Então minha fez até faculdade, mestrado, doutorado, que ela ficou nessa faculdade uns dez anos. Então ela fez tudo, mestrado, doutora, tudo! Ela é doutora já na faculdade da terceira idade. Meu pai estudou até… talvez o… não sei se meu pai fez o ensino médio, porque até o ginásio, ou fundamental dois, ele vinha do serviço, olhava meu caderno se a minha nota tava boa. Ai de mim se a nota não tivesse, o coro comia. E sempre tava. Quando eu entrei no ginásio, quando entrei no fundamental dois. Não, quando eu entrei no ginásio, ele fez: “Bom, daqui pra frente agora e por tua conta. Agora eu não vou conseguir saber se você tá fazendo tudo certo ou não.” Agora, faculdade, mestrado, doutorado, eu francamente não sei… ele nunca me perguntou nada, sempre tava muito contente com tudo que eu tinha conseguido, ele ficava muito contente. Bom, quando eu fui pra Europa… Bom, quando eu fui pra São Carlos você lembra o que ele falou, né? Quando eu fui pra Europa, meu pai: “Ah não, é muito longe! E se ela precisar de nós?” Meu pai com a minha mãe. Minha mãe: “Ela tá indo pra Itália, o que ela vai precisar de nós?” Eu acho que eu quase matei meu pai do coração, porque era muito longe. “Pai, eu to precisando de você aqui?” Como é que ela ia chegar lá? Entendeu?
Então, eu não sei quanto ele entendia disso tudo, quanto que ele entendia, era uma coisa… ele nunca foi pra fora do país, meu pai, nunquinha! Pra viajar… meu pai tava muito feliz no sofá dele, na frente da tv, isso já era a glória, esse era o reinado dele e estava tudo bem. Dinheirinho no bolso, comidinha na barriga, um carro, uma casa e um telefone, fim. Acabou. Você não precisa de mais nada além disso. Isso aí era a máxima dele, um carro, um telefone e uma casa própria, acabou. Então, tudo isso, uau. Eu não sei o que que ele pensava. Enfim, eu não sei, o que ele…
P/1 - E você voltou em que ano pro Brasil, Sonia?
R - 1989. Agosto, 89. Agosto. Eu cheguei num dia e já não podia nem fazer o título para votar no Lulinha, já não dava mais tempo. Quando ainda era Collor, ainda foi a primeira vez do Collor. Eu voltei em agosto desse ano e já não podia mais votar. O meu título já tinha vencido, quatro anos e dez meses no exterior, eu já não tinha mais título. Então não pude votar.
P/1 - E você ficou então três anos no CTI, é isso?
R - Fiquei três anos. Trabalhei lá três anos, aí depois comecei fazer um mundo de concursos pra… Porque no CTI eu fui contratada por algum tempo, um ano e dez meses, não me lembro mais, um tempo. Aí entrou, porque antigamente… Quando eu voltei pro Brasil, tinha o reserva de mercado, todos os microdispositivos tinham que ser fabricados no Brasil pra você colocar no seu computador, você tá fabricando um computador, você tinha que ter coisas nacionais. Entrou o Collor e ele tirou isso. E quem me pagava pra trabalhar no CTI era o Itaú, o Itaú produzia esses computadores. Aí o Itaú… o Collor tirou isso, o Itaú falou: “Ops, não preciso mais de vocês, bye, bye!” E nós fomos todos mandados embora. Mas aí o CNPQ criou uma bolsa ____ pra pessoas que tinham chegado com doutorado, e aí eu fiquei por bolsista o resto do tempo. Mas eu já tinha sido bolsista durante a minha vida inteira, a vida inteira, sempre que eu pude ter bolsa, eu tive. Eu falei: “Gente, isso não é vida”. Aí comecei a fazer concurso pra ser professora, ou qualquer coisa, pesquisadora. Todos os concursos que pintavam, eu fiz. Então eu passei em São João Del Rei, dei aula um ano. Não, dei aula alguns meses, dois, três, quatro, cinco meses. E fiz o concurso no ITA e passei. Ai mainha fez assim: “Ah Soninha, São José dos Campos é tão mais pertinho do que São João Del Rei, né?” Porque pra ela ITA, Universidade São João… é tudo outra coisa, mas São José dos Campos, era muito mais pertinho. E nesse meio tempo eu tinha me inscrito pra fazer o concurso na universidade federal de Minas Gerais, que também tava com concurso. Muito bem! Mas não fui, porque eu entrei no ITA, acabei indo pro ITA. Só que quando você tem um doutorado no exterior, você tem que validar esse doutorado. E você faz isso numa universidade federal. E naquele tempo a mais perto era a de Belo, lá em Minas Gerais. E antigamente, bom, ainda tem isso, mas não é mais com a gente. A gente dá o vestibular do ITA no Brasil todo, a gente dava, os professores iam dar o vestibular do ITA no Brasil todo. E eu pedi pra ir pra Belo, que daí eu levava meu diploma em inglês pra lá, pra eles validarem na universidade federal de Minas. Cheguei lá, o carinha fez assim: “Pô Sonia, você se inscreveu pra fazer aqui o concurso e nem veio fazer o concurso. Aqui é uma universidade, tem vários cursos.” Porque o ITA é só um instituto de engenharia, tem só engenharia, não tem mais nada. “Aqui tem humanas, tem tudo, talvez você se desse melhor aqui.” Aí eu respondi: “Mainha não deixou!” Belo Horizonte ainda é muito mais longe que São João de Del Rei. Mainha ficava desesperada. “Mainha não deixou, eu vim fazer o concurso aqui”. Eles deram risada.
P/1 - Entendi! Então foi uma decisão bem pessoal ir pro ITA, então?
R - É realmente mais perto, São João Del Rei era gostoso, mas era horrível chegar lá, senhor! O ônibus era horrível, a estrada, oh my god! Era horrível, era horrível chegar. Porque eu cheguei a dar aula. E como eu dava aula só três dias por semana, eu ia e voltava. Não morei lá, não cheguei a morar. E logo eu passei no ITA, nunca eu morei lá, não aconteceu nada, meu concurso lá só foi mesmo pra… porque eu tinha feito e tinha sido aprovada, em soma. Aí vim pro ITA, é isso! E uma vez passei no ITA, nem cogitei mais de fazer nenhum concurso, nadinha, nadinha, nadinha.
P/1 - Vamos começar a conversar sobre o ITA. Como foi o concurso lá? Como foi a banca, enfim?
R - Maravilhosa, com pessoas maravilhosas. Detalhe, eu sou doutora, então eu escolhi um ponto no qual eu ia dar aula e fim, esse foi o meu concurso. E o ponto que eu escolhi foi exatamente uma aula que eu tinha dado em São João Del Rei, a respeito de astronomia. Astronomia? Astrofísica? Bom, uma parte de… que eu já tinha dado aula. Eu tinha a minha aula pro meu concurso pronto, porque eu já tinha preparado pra dar aula pros meus alunos lá em São João Del Rei, foi a mesma coisa. Eu falei: “ô, beleza!” Então eu dei uma super aula, porque eu estava super bem preparada. Foi supimpa. Eu não respondi um uma pergunta de uma pessoa que não era da banca e ele nunca me perdoou por causa disso. Ele não era da banca, ele não podia me reprovar. Mas eu não respondi a pergunta dele. Sabe? Por ele eu nunca teria sido professora do ITA, jamais! Nunquica, nunquica, nunquica! Mas as outras pessoas que estavam na banca, respondi as perguntas. Eu tinha explicado tudo que tinha as coisas todas. Eu tinha feito desenhinho, eu tinha feito… você não faz ideia da aula que eu dei, eu devo ter essa aula até hoje. Então o pessoal da banca ficou super satisfeito, o meu currículo era fantástico, eu tinha artigos publicados, eu tinha acabado de chegar da Inglaterra, o meu período no CTI foi super… Eu trabalhei muito, eu publiquei muito, eu aceitei trabalho em muitos lugares. Então eu, sabe? Fui super aprovada. Mas em segundo lugar, uma pessoa passou em primeiro lugar. Mas a pessoa do primeiro lugar não pode assumir. Então eu fui contratada. É isso! Foi esse o começo.
P/1 - Isso no começo dos anos noventa?
R - Isso, 93! Eu acabei de fazer trinta anos de ITA, acabei de fazer, dia dezesseis de fevereiro, trinta anos que eu dou aula lá. Teve um intervalo por causa deles. Mas eu dei trinta anos, dei aula trinta anos lá.
P/1 - Legal! Então você entrou e você começou a dar aula em que cadeira lá?
R - Física instrumental. Não sei se um ou dois, primeiro ano. Eu acho que física instrumental. A primeira física instrumental, não me lembro mais o número, física instrumental, laboratório, trabalhava com os meninos. Meninos só, não tinha meninas nessa época. No laboratório professor Roberto, era o meu tutor, porque eu nunca tinha dado aula no ITA, então ele estava sempre junto comigo pra minhas aulas. Comecei a dar aula de física instrumental, que é a minha área, eu nunca fui física teórica, eu sempre trabalhei com produtos com… eu sempre trabalhei com física instrumental, nunca, nunca, que eu fiz nada teórico, nada, nada.
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P/1 - E pra quem não conhece o ITA, não sabe nem o que é a sigla dele, que essa entrevista vai ficar para posteridade. Como você pode explicar pra gente o que é o ITA? Como é a formação, o perfil dos alunos da instituição? Daí por diante?
R - Instituto Tecnológico de Aeronáutica. O ITA é a escola onde os engenheiro, agora engenheiras também, vão aprender a trabalhar com… Bom, nos dois primeiros anos, todos os estudantes que passam no vestibular e as estudantes que passam no vestibular do ITA, fazem dois anos de ensino fundamental, nos quais eles fazem, aprendem Física Um, Dois, Três e Quatro fundamental, Um, Dois, Três e Quatro, mas lá não chama Um, Dois, Três e Quatro, é Dezesseis, o número lá e todo diferente. Aprende todas as matemáticas, aprende introdução a computação e aprendi algumas humanidades, algumas matérias de humanidades, nos dois primeiros anos todos eles fazem os mesmos cursos. No final do segundo ano, eles e elas escolhem qual engenharia que eles e elas querem… quais engenheiros e engenheiras eles querem ser, baseados na nota do vestibular e as notas do primeiro ano. Se essas duas coisas são altas, eles são os primeiros a escolher aqueles cursos que são os mais difíceis, que todo mundo quer. Então são eles, engenharia aeronáutica, engenharia aeroespacial, engenharia civil ou estruturas para construção de aeroportos, engenharia eletrônica embarcada em aeronaves, foguetes, enfim, e engenharia da computação. Eu sempre esqueço uma. Aeronáutica, aeroespacial, civil, estruturas, computação e mecânica para construção de aviões. E nesse lugar que os engenheiros… e no ITA que os engenheiros são formados nessa área. Até pouco tempo ninguém mais tinha esses cursos, agora já tô sabendo que algumas faculdades tem, mas o ITA é o “tchanthan.” Vai fazer 73 anos amanhã, então é o principal, é o coração, o ouro, o diamante das forças aéreas. Eu dou aula, nesse momento, comecei com Física Instrumental, hoje eu dou aula no segundo semestre do primeiro ano, do aula de Física Dezesseis Experimental, Metrologia. E dou aula no primeiro semestre do segundo ano de aula de inércia, corpos girantes e corpos rígidos. Meninos e meninas agora.
P/1 - Vamos chegar nessa questão também. Mas o ITA tem uma conversa muito grande com as forças armadas e com a Embraer, é isso? Como é que é isso?
R - Um Iteano, o Zig Silva, que criou a Embraer, em 1950 eles começaram a… começaram a formar os engenheiros, em 1960 eles criaram uma indústria. A meta do ITA é pesquisa… É ensino, pesquisa e oficializar essa pesquisa. Tem um nome, eu não vou lembrar o nome. Essas três coisas, ensino, pesquisa, certificação da pesquisa industrial. E isso deu a Embraer, uma indústria, a única indústria de avião que o Brasil tem, baseado ensino, pesquisa, certificação. E eles fizeram, eles enfiaram uma indústria e hoje existe a Embraer. Não existe mais nada o que ser dito a respeito de uma coisa bem feita, bem programada, bem estudada, bem planejada. Não existe mais nada a ser dito. Só pode dar certo. Só pode. Passou por maus bocados, mas as empresas aéreas passaram, devido aos problemas que o covid trouxe, a falta de viagem. Porque os aviões no chão, ninguém compra avião, e aí foi um transtorno. Mas a ministra da tecnologia, informação e comunicação, já disse que vai separar 390 milhões para as pesquisas da aeronáutica. Quer dizer, sabe? Só pode dar certo, sabe? Eles tem um mundo de gente extremamente capaz e recursos e intenção pra aquilo, quem que vai fazer? Quem que vai impedir? Quem que vai dizer não? Quem que vai fazer tudo ao contrário? Jamais, jamais, jamais!
E um senador, um senador astronauta, ele foi formado pelo ITA. Que dizer, eu não dei aula pra ele, não dei aula!
P/1 - Agora me fala um pouquinho sobre isso que você falou, dos meninos, das meninas, tem esse lado também do ITA, que é um pouco… bem conservador, né? Como é que você viveu? Como é que você vive isso com seus alunos, com os colegas, enfim?
R - Um inferno! Um inferno! Um inferno! Eles não me aceitam, eles me odeiam, já me impediram, eu nunca vou chegar a professora titular, trinta anos de ITA e eu nunca vou chegar a professora titular, jamais! Jamais! Jamais! E eles estão bem contentes com isso. Um inferno! Um inferno! Até 1993, as meninas não podiam nem prestar vestibular, nem prestar vestibular. Isso é o fim do mundo! Quando houve o primeiro vestibular entraram quatro meninas, mas acho que só duas, três meninas continuaram. Uma não era aquilo que ela queria não. Em 2021 entraram dezessete meninas e algumas que realmente não são brancas, mas eu não posso falar isso, eles não querem que eu mencione, eu estou proibida de falar das cotas raciais do ITA. O ano passado, o ano retrasado, 2021, 22. Entrou a Bruna, a Bruna conseguiu o meu celular com a minha aconselhada e ela ligou pra mim e fez assim: “Professora, professora, eu preciso muito te conheçer pessoalmente. Eu assisti uma palestra tua e você disse que eu podia estar onde eu quisesse, oiá eu aqui no ITA!” Menina simples, negra, os pais nunca fizeram faculdade, ela passou no Instituto Militar do Exército, duas vezes, mas no Rio o pai dela não deixou ela estudar não, aí ela passou no ITA, o pai dela deixou. Ela é de Guaratinguetá. São José dos Campos, Guará é pertinho, então em São José dos Campos o pai dela deixou. Esse ano, a primeira melhor nota do vestibular é uma menina e a terceira melhor nota também é uma menina. Que dizer, as meninas estão chegando lá pra comandar o ITA e isso vai ser lindo! Mas no meu terceiro ano de ITA, professora com PHD obtido na Inglaterra, concursada, aprovada no concurso. No meu terceiro ano de ITA, entra na minha sala um colega de trabalho, com doze avaliações dos meus alunos. Eu dava aula para 120, ele tinha da ordem de doze avaliações, nas quais estavam escrito: “A professora Sonia não sabe física.” Eles eram do primeiro ano, segundo semestre de engenharia de _____ e eles já sabiam todo o meu conhecimento e aparentemente o meu conhecimento era zero. “A professora Sonia é a pior professora de todos os tempos.” Primeiro ano, segundo semestre, eles já conheciam todas as professoras de todos os tempos. E que a minha roupa chamava muita atenção pro meu corpo. Eu tinha que deixar a minha bundinha em casa, aqui em casa e dar aula sem bundinha, porque a minha bundinha estava atrapalhando a aula. Por causa desses três motivos, eu fui expulsa do ITA. Eu fui expulsa! Expulsa! A professora concursada, PHD obtido na Inglaterra.
O meu chefe estava viajando, ou vice chefe, disse: “você está sendo perseguida, cai fora!” O reitor não me recebeu. O vice reitor disse: “você está sendo perseguida, cai fora!” Quando essa pessoa que está te perseguindo for embora, você volta. E foi o que aconteceu. Eu voltei depois de mais de 10 anos, pra sala do desgraçado. E nesse período que eu fui expulsa, eles me mandaram para um Instituto Aeronáutica Espaço, onde eu inventei a técnica pra obter sensores de radiação infravermelha. Esses sensores uma vez encapsulados, porque eles funcionam a 70 graus, a 70 kelvin, que é a temperado nitrogênio líquido, que é uma temperatura muito, muito, muito baixa. E uma vez encapsulados, esses sensores se transformariam em detectores. E eles vão na cabeça do míssil. Eles vêm a temperatura de 600 Kelvin, que é a temperatura do funcionamento de um avião.
Esses detectores são como um míssil de um avião, aí persegue e acaba com o avião. Quando ele encontra o míssil, explode o avião! Eu pedi patente, a patente saiu. Então além de cientista, eu sou inventora. Eu tenho uma patente. Lembra aquela neguinha que nunca iria aprender física? Lembra aquela neguinha que jamais ia usar física pra nada, por isso que eu nunca tinha uma bolsa de iniciação científica de física. Além de cientista, porque eu tenho doutorado, agora eu sou inventor. E em 2021 eu ganhei o prêmio Professora Emérita Guerreira da Educação por Mesquita. Dada pelo Centro de Educação pesquisa escola e pelo Estadão do São Paulo. Mesquita, Estadão. E nenhum professor do ITA tem esse prêmio. A pior professora do mundo, é professora emérita guerreira da educação. Nesses 23 anos que esse prêmio é dado, tem vários ministros, muitos ministros, um presidente da república. E foi dado para quatro mulheres, eu sou a quarta mulher, única negra. A mulher do Fernando Henrique, Ruth Cardoso, ganhou, foi a primeira, ela foi a primeira a ganhar o prêmio. A Maria Esther de Figueiredo Ferraz, foi ministra da Educação, também ganhou. Tem uma médica de intestino, uma sumidade em intestinos, Angelita, Angélica, também ganhou. E eu! Sabe a pior professora do mundo? É Professora Emérita Guerreira da Educação. Bom, voltei pro ITA depois que o desgraçado se aposentou, eu voltei! Meus colegas fazem questão de me… eu sou o lixo, do lixo, do lixo. Porque eu fui expulsa uma vez, alguns alunos tentam me expulsar ainda. E eu sou avaliada em cursos que eu nem de, mal, pessimamente! Em cursos que eu nem dei. Aí eu chego na chefia, da antiga a chefia e perguntou: “Pô, eu nem dei esse curso? Que diabo que eu fui avaliada nele?” “Ôh, a gente não tem controle sobre avaliação dos estudantes.” Quando foi pra me expulsar eles bem rapidinho fizeram isso. Agora que eu já sei bem como me defender. “A gente não tem nada com isso, não sabemos quem tem a ver com isso!” Então a minha situação lá ainda continua péssima, eu dei uma entrevista para um jornal do sul do Paraná, por causa dessa entrevista, eu disse uma coisa que é verdade, a coisa não fui eu a culpada do que aconteceu, a coisa teve consequências ruins. E eu estou sendo sindicância. Só porque eu falei aquilo. Eu gostaria tanto de saber se o responsável pela besteira está sobre sindicância. Isso eu nunca soube. E amanhã… E o meu advogado já pediu cancelamento, já pediu tudo e a resposta do reitor foi “não”. E amanhã eu vou ganhar uma medalha das mãos do reitor. Pergunta se eu ganhei, se eu já recebi o convite do evento de amanhã? Pergunta, pergunta! E no ano que a minha patente saiu, o reitor deveria ter me entregue o papel… porque eletronicamente eu já tenho, lindinha, lindinha! Mas existe um documento, que não é preto do branco, é azul no branco, mas em soma e documento que eu deveria… é um fato importante! Uma patente é uma coisa importante! E portanto o reitor deveria ter-lá me dado. Eu não sei em que ano, ano passado, ano retrasado. Pergunta se eu fui convidada pra estar no evento? Pergunta se eu tenho a patente até hoje na minha mão? E no evento de amanhã eu também não fui convidada. Mas eu recebi um e-mail: “Sonia você tem que vir tal dia, tal hora pra treinar.” Porque é tudo uma coisa meio militar, então tem toda uma, eu vou ficar em uma determinada posição, o diretor do DCTA vai estar lá. Sabe? É um negócio meio complicado, quando tem toda essa gente. Vai vir ministro, ou não sei se algum ministro vai estar lá. E o reitor que vai me entregar essa medalha.
Por que você acha que eu não recebi esse convite, será? Mas eu recebi um convite pro treinamento. Eu falei: “eu vou ganhar uma medalha?” Ela falou: “vai! Você não recebeu o convite?” E eu falei: “não!” Aí eu recebi o convite da pessoa que me convidou para um treino, não do RH que é quem deveria ter mandado esse convite e o convite anterior. Detalhe, toda vez que é a hora de entregar a média do meu curso, média, faltas e etc. Tem um e-mail malcriado. “O dia de entregar nota e tal, se você não entregar a nota tal dia você vai sofrer sindicância e o diabo a quatro.” Sabe? Para isso eles lembram que eu tenho e-mail, tenho WhatsApp, tenho tudo! Assim, um dia desses no meu WhatsApp: “Sonia nós não temos o comprovante do teu doutorado.” Trinta anos depois? E isso me foi pedido em seis meses… eu entrei em fevereiro, o vestibular foi em dezembro, já em dezembro do mesmo ano que eu entrei, eu já tive que entregar, porque eles tem que saber. Porque eu começo a receber como doutora, eles tem que saber. Trinta anos depois: “Sonia nós não temos o comprovante, a autenticação do teu diploma.” Caspita! O que vocês estão esperando pra me pedir agora? Mas pro evento eu nem recebi, nem WhatsApp, nem e-mail, nada, nada, nada! Eles não são lindinhos? Eles me adoram! Eu cheguei… eu fui no programa do [Pedro] Bial, e o Bial perguntou: “Sonia, como é que é dar aula num lugar militar, masculino e branco?” Eu falei: “eles me odeiam!” Oh my good! O mundo caiu! O diretor do DCTA ficou muito prostituto da vida. A minha chefe me proibiu de dar palestras, não era mais pra eu dar palestras, a menos que fosse pra falar da minha carreira de física e dos trabalho da minha pesquisa, se fosse pra falar de qualquer outra coisa eu estava proibida de sair do ITA. Olha, os meus colegas, a direção, o vice-reitor de graduação, de pós-graduação, os representantes dos alunos fizeram um caminhão. “Imagina, nós te amamos!” Assim, os representantes dos alunos não me amavam, porque eu era muito ruim, eu era muito, eu era péssima! Por isso que eles não me amavam. Aí começaram a colocar todos os problemas que eu tenho, as dificuldades e tudo mais. Lá na reunião, com toda essa gente, no dia seguinte da minha entrevista com Bial. O negócio foi feio, o negócio foi feito, muito feio, muito feio! Tudo que eu passei, eles me odeiam ou não? Mas tem a Bruna, a Bruna me ama. Tem a Mariana, a Mariana me escreve assim no relatório no fim do meu curso: “Foi uma honra ter você como professora, e o nosso grupo está muito honrado com o teu trabalho.” Deixa eu te contar como é que foi esse curso desse semestre, desse mês. Esse meu curso, eles têm que trabalhar com corpos girantes, então eles tiveram que montar um helicóptero, mas com coisinhas da casa. Sabe, copinho de isopor, elastiquinho. Bom, tinha uns lá que… Você tem que ver o que que eles apresentaram de helicóptero. E o melhor helicóptero de cada turma, o grupo que montar o melhor, o mais rápido, o que voa mais alto, que ganhasse o campeonato dos helicópteros da turma, vai passear no Black Hawk, vai passear de helicóptero de verdade. Olha, foi uma briga! E tem um grupo que não gostou da classificação e tá comigo. “Professora, você já mandou os nomes de quem vai viajar?” Eu falei: “eu já mandei sim, porque?” Um silêncio. Mas dois grupos não gostaram do resultado. Quem ganhou. Entendeu? E eu acho que ainda vai ter contente, vamos ver o que que vai dar isso. Mas eles amaram, eles adoraram montar o helicóptero, foi uma experiência fantástica. Eles adoram esse curso. E essa história de ainda passear de helicóptero, bárbaro, bárbaro.
P/1 - Agora, você pensa em ir amanhã ou não? Você já se decidiu?
R - Eu fui buscar minha mãe. Você não me conhece! Ainda vou sorrir. O meu cabeleireiro falou assim: “Faz assim pra ele, ó!” Porque ele não quer que eu sorria. Eu vou sorrir, vou agradecer. Não vai ter discurso. Mas eu tô fazendo discurso pra tudo quanto é canto, as minhas assessoras já pediram pra eu gravar um discurso meu, com a minha videomaker e fim, acabou! Que elas vão postar no insta, vão enviar pro insta, tudo essas coisas aí. Não é à toa que eu sou odiada, pensa bem! Era pra eu ser quietinha, dizer “sim senhor”. Na hora que eles disseram que eu não ia conseguir nada, eu não conseguiria ser lavadeira. Bom, eu adoro as minhas lavadeiras, é uma maravilha, amo! Sem ela eu ia andar por aí com roupa suja. Mas era pra eu não ser nada. E não é bem isso que aconteceu, então não é a toa que eles estão zangados, não é a toa que eles me odeiam, não é à toa! Não era pra eu dar certo, não era, não era, não era! (risos)
P/1 - E conta uma coisa… como é que é da aula pra uma turma… para turmas que só tem 120 meninos, que dormem em alojamento e todos brancos, todos, enfim, de classe média, média/alta. Como é isso e quais são as mudanças que você tem percebido durante esses últimos anos, que você já comentou um pouquinho. Mas conta como é essa experiência pra gente, professora?
R - Foi como foi quando eu te falei… quando eu voltei, eles ainda estão tentando me expulsar novamente. Quando os coordenadores do meu curso falaram pra eles que eles não precisavam fazer nada do que eu mandava. Esse mesmo coordenador tentou impedir que um dos meus cursos desse certo, que foi aí que eu falei lá nesse jornal do Paraná e contei essa coisa que agora eu tô sobre sindicância. É assim, inclusive as meninas, tá! Tem menina que não me olha na cara. Eu sou professora, tô lá na frente falando. Não me olha… tem menino também. Sabe, assim? E assim? Não me olha na cara! Fazendo o trabalho direito. Sabe? O problema não é meu, esse problema ai é meu? Não é meu! Eu sinto muito! E por outro lado têm alguns que, uau! Faz exatamente o que eu pedi, capricham. Porque além de tudo, eu corrijo. Porque eu quero de um certo jeito… corrigia, que agora já não vai ser assim mais, nesse próximo semestre. Eu corrijo e digo: “eu quero desse jeito!” Se me devolver corrigido, lindinho, eu esqueço a nota feia e boto a nota alta. Tem uns que se recusam, eu boto a nota baixa. Se acha que eles estão me avaliando, esses que estão indo com zero? Tem gente que eu dou zero, porque não fez. Como dá nota se não fez? Se acha que eles me avaliam? E tem detalhe, a avaliação é anônima, então eles escrevem cada coisa, você não faz ideia. Só falta falar mal da minha mãe, só isso, eles não botam minha mãe na brincadeira, mas só isso. Mas sabe? Tem avaliação que ela nem coloca lá, porque o palavreado é tão baixo… esse aqui foi desclassificado, entendeu? Porque é anônimo, ele pode falar o que quiser. É nesse momento que os racistas podem botar… Sabe? Uma delícia! Eu realmente não presto, expulsa ela de novo… Mas eu não posso fazer nada. Me mostra um trabalho bem feito. O trabalho tá bem feito? Supimpa! Quando o trabalho não está bem feito, “bye bye, bye bye, bye bye.” E o coordenador, fala: "Sonia, tem um grupo aqui com nota um” Eu falo: “Ué, eles não entregaram!” Um dos alunos… porque na pandemia, eu sou idosa, então eu não podia estar presencial, eu pedi pra eles gravarem. E um dos alunos fez: “Professora, eu não tenho um celular pra gravar!” Eu falei: “Vai no laboratório, pega o celular do laboratório, grava e manda” Você foi ao laboratório pegar o celular? Portanto ele não mandou nada, ficou com zero! “É, mas eu não tinha celular!” “Mas eu falei pra você pegar o celular, você não foi e ficou com zero”. Quanto você acha que ele deu de nota pra mim na minha avaliação? Quer dizer.. Se tá entendendo? A coisa é realmente periclitante.
Em 2019 começaram as cotas raciais, então a coisa começou a mudar. Um dos meus alunos me mandou um email bem assim: “Professora, aquilo que você disse no Bial é exatamente o que acontece. Quando a gente chega no ITA, a gente nem tem aula”. Porque eles só me veem no segundo semestre. “A gente nem tem aula com a senhora, e já vem uma aula pra nós… professora Sonia é louca, e ela que odeia a gente.” Sabe? Eles nem me conhecem e já são todos regulamentados porque eu sou uma porcaria. Eu começo a dar aula já… sem nem nunca ter sido vista. E essa Bruna aí que me adora, falou: “Professora você precisa ir, vai ter uma exposição de artes, você precisa ir! Você precisa aparecer lá com sua cara bem linda, e ver a exposição de artes!” Porque eu nunca, nunca, trinta anos, eu nunca tinha entrado no H8, que é o alojamento dos meninos. A Bruna que me levou! “Você precisa ir lá e conhecer e todo mundo precisa saber que você foi!” Agora vai ter uma… “você precisa ir lá e todo mundo precisa saber que você foi”. Porque devido a essa recepção que eles me deram, eu cedi no primeiro instante, porque eu não preciso ir num lugar pra apanhar. Eu não gosto de ser agredida, eu simplesmente não gosto. Eu não fico bem de roxo, eu prefiro ficar na minha casinha, não preciso ser agredida, não preciso. Gente, pra que que eu vou num lugar onde todos me odeiam? Não preciso! Eu só vou dar aula porque, caspita! Eles que vem com alguma estupidez pra cima de mim que eles vão ver. Porque além de tudo eu sou muito grande, então, presta atenção, se você não for grande o suficiente, você vai apanhar. Então, é uma… Uau, uma vez eu contei tudo isso numa palestra e alguém disse: “E por que você está lá até hoje?” Bom, como foi que foi no meu fundamental? Como foi na minha graduação? Quer saber o que aconteceu na Inglaterra? Um dos caras que tava na minha banca odiava o meu orientador. O meu orientador era uma pessoa muito poderosa. Como o meu orientador era uma pessoa muito poderosa, ele sempre jogava as raivas no meu orientador. Sabe, do tipo, “você nunca vai conseguir defender a tua tese, você não sabe inglês, isso que você escreveu na sua tese nunca vai ser aprovado”. Sabe? No CTI, quando eu… pintou uma bolsa, Mammana conseguiu muitas bolsas pro pessoal ir pro exterior. Eu falei: “Ipa, vou fazer o meu pós-doc!” Resposta: “Você já passeou!” Não Mammana, uma outra pessoa!” Você já passeou muito por aí, você não precisa pegar uma bolsa dessas pra fazer pós-doc.” O que eu faço, eu saio de todos os lugares? O que que eu faço? Aí eu respondi pra essa pessoa: "Você quer que eu vá pra marte?
Mas como será que os marcianos recebem as brasileiras negras?” Como será? Porque eu também não sou marciana, em suma, pra onde que eu vou? Porque eu francamente não sei! E detalhe, eu dei uma palestra sobre todas as mulheres negras, pesquisadoras, com prêmio, doutoras, tudo! Todas, todas! Todas elas passaram por algum perrengue muito parecido com o meu, muito, muito. Nenhuma delas foi impedida, foi expulsa, nem nada, mas todas elas... Sabe? Negras, poderosíssimas, com prêmios, uma delas tem nove patentes, nove prêmios. Outra delas tem 82 patentes, essa dai foi simplesmente execrada, ela não existe mais pra alguém. Sabe, assim? Ela foi execrada, publicamente execrada, 89 patentes.
Então vou pra onde? Me diga? Me diga? Me diga que vou correndo. Se você tem um lugar que eu vou ser recebida e tratada como se eu fosse gente, eu to indo pela manhã cedinho. Porque, caspita! Não existe um lugar. Tá aqui, assim, sabe? A pele, o gênero, esse meu jeito de ser, “ah, eles não gostam!” Eu tinha que ser, sim senhor! Tá bom, sim senhor! Ok, sim senhor! Ser bem, sei lá, não sei, francamente eu tinha que não existir, só isso! Eu tinha que não existir.
P/1 - Eu queria perguntar pra você, de tudo que você passou, vem passando ainda, obviamente. Como é que você olha pro futuro? Você dá muitas palestras, né? Como é que você olha pro futuro, pras mulheres, pros homens negros, pras mulheres negras, como é que voce vê o futuro pra essas pessoas no ramo da engenharia, na academia, no proprio ITA? Qual é a sua visão com relação às perspectivas para esse pessoal?
R - Com relação ao gênero, a mulherada vai tomar conta da porra toda, como diria a Ludmila. Já temos a melhor nota no vestibular esse ano, já temos a terceira melhor nota. No ano passado, a melhor engenheira formada no ITA, a nota dela nunca foi mais baixa do que 9,5, sendo que o máximo na nota do ITA é dez. Em 72 anos de ITA, 37 pessoas tiveram isso. E ano passado foi uma menina. Em 2014 também foi uma menina. Elas tão vindo, é só uma questão de tempo. E elas vão conseguir, não vai… olha, vai ser muito difícil de segurar, ITA, gênero feminino. Meninas negras,
Ok, ainda somos muito poucas. Mas sabe, eu vejo a luz do túnel ali na frente, as universidades em geral. Eu dei uma palestra na UNICAMP, um ano, no vestibular daquele ano, já tinha cotas, eu dei de novo nesse ano, eu não vi nenhuma menina negra… Uma só, só uma! Silêncio! E falei, falei, falei, ai elas começaram a falar. “Meu pai é negro, minha mãe é branca, eu peguei a branquitude da minha mãe e tudo, mas a partir de hoje eu sei que eu sou negra e vou começar a gritar isso.” A outra foi fazer intercâmbio no Mississipi, nos Estados Unidos, ela nunca soube que ela era negra, nunca! Mas ela foi pra Mississipi, nos Estados Unidos. Não existia lugar mais racista pra ela ir do que esse, mas ela foi. E lá ela descobriu que ela é negra sim e foi tratada como negra, sim! Ela é negra! E mais duas outras falaram: “Depois da tua palestra, eu sei que eu sou negra”. Uma negra no início da palestra, seis se auto declararam. Naquele vestibular, naquele final de ano, tiveram as cotas. No ano seguinte fui dar a palestra, física. O centro acadêmico de física chama Sonia Guimarães, na UNICAMP. Eu fui dar palestra de novo, “oh my good!" Dava pra contar quantos branquinhos tinham. Se bem que quando sou eu que vou dar palestra, não é todo mundo físico. Então eu não sei quantas meninas físicas tinha, mas não é todo mundo físico. Mas, uau! Tava muito colorido. Quando eu entrei na federal, éramos 1500 estudantes e era a única negra. Eu fui lá em 2017, agora na federal são vinte mil estudantes, cinco campus, inclusive o campus de Sorocaba, chama Universidade Federal de São Carlos. Em Sorocaba, é ridículo, não é? Mas o dono da fazenda que deu o lugar, exigiu, tem que chamar Universidade Federal de São Carlos. Cinco campos, vinte mil estudantes, e eu fui dar palestras pros físicos e físicas, engenheiros e engenheiras, físicas, tinha negra lá, que o pai e a mãe eram doutores. Porque até bem pouco tempo, dependendo do lugar que eu vou, a “negadinha” são as primeiras a fazer faculdade na família. As meninas fazendo engenharia física, e é o “tchan tchan tchan” da física, tá?! E os pais eram doutores. Engenheiros, não eram físicos. Mas sim, está mudando, mas mudando mesmo, muitos negros, muitas negras, mas muitos, nao sei dizer quantos. E perguntei, a resposta foi 20%. Faz a continha, 20% de vinte mil. Sabe? 2017! Tá mudando, tá mudando! Uma amiga minha que é professora na São Francisco, tem um aluno negro, porque agora tambem tem cota na São Francisco. Dizendo: “professora, porque eu que não sou filho legítimo do meu pai, não tenho os mesmo direitos do que os filhos legítimos do meu pai? Minha mãe não amarrou meu pai na cama e o estuprou, não! Ele foi pra cama com ela por que ele quis, e eu nasci! Porque não tenho os mesmo direitos?” E você acha que esse futuro advogado vai lutar por? Tinha coisa que nem imaginava. Aquela coisinha que você bota lá o dedinho quando você tá com COVID, pra saber se você tá com COVID. Quem fez aquilo lá desconsiderou as peles escuras, simplesmente desconsiderou. Então se você é preto, aquilo não funciona pra você. Pra medir a oxigenação do teu corpo, simplesmente porque… Quem inventou, esqueceu que existia gente preta que poderia ter COVID ou falta de oxigenação no corpo. Agora os médicos negros tem que começar a colocar essas coisas na pesquisa. Você tá entendendo? Tá mudando sim! Ok, que segundo um escritor de… um famoso escritor que ta escrevendo sobre escravatura, vai demorar 125 anos, eu não… vou tá morta, mas as coisas… Eu nunca vi tanta gente preta nas propagandas da TV. Tem propaganda que é só preto. Falei: “Gente, eu tô no Brasil. Porque nos Estados Unidos, em Atlanta, por exemplo, é assim que é. Se vai pra Miami não é, dependendo de onde você tá em Miami pode ser. Mas se vai pra Atlanta, _____, gente preta... E só porque aumentou de 13% pra 15% das pessoas em Atlanta são pretas. Não, em Atlanta é bastante. Mas no Brasil são 56% e tem coisas que você não vê preto nenhum. Agora as propagandas da TV, de cabelo, de dente, de roupa chique, com preto dentro das roupas chique. O diretor da “Raça”, foi lá na Mercedes pra falar: "Porque a Mercedes não bota propaganda na revista Raça?” E a Mercedes respondeu pra ele, porque a revista Raça é uma revista de negros e negras, Raça Negra, chama a revista. A Mercedes respondeu: “Porque a Raça não tem uma clientela que vai comprar Mercedes.” Ele respondeu pro cara: “Vou falar isso pro Neymar!” Neymar, pode vender a tua Mercedes, porque a Mercedes disse que preto não dirige Mercedes. Então, as coisas estão mudando, sabe? As coisas estão… Porque tem que mudar, sim! Tem que mudar!
P/1 - E você acha que pode mudar a ciência também, a forma como se estuda, ou que se estuda, como é que é isso?
R - Tem que incluir! Tem coisa em ciências que simplesmente ______. “Mesmo porque negro é mais burro, negro nao vai entender, negro…” Ah, ah, ah! Computação é coisa de preto, foram os africanos que codificaram o primeiro no mundo há seis mil anos atrás. A Europa nem existia! A Europa jogava a água usada dentro do rio, que depois ela ia lá e beber a água. Os africanos já tinham esgoto, água usada, água potável separado. Os primeiros códigos foram os africanos que escreveram. Toda essa parte de inteligência, mesmo a inteligência artificial, eles já tinham conhecimento como estudar isso, seis mil anos atrás, tudo isso tem que ser considerado, tem que ser levado, tem que ser ensinado, tem que mudar. Essa história de que negro não sabe computação, não! Ele tem naturalmente isso no sangue, no DNA dele. Ele tem só que ser instruído. “Ah não, ele é muito burro, ele não vai aprender!” Não? Ensine, e você verá. E você vai ver o que ele vai conseguir escrever. Tem que ser inclusivo, tem que botar todo mundo na roda. Toda vez que você exclui uma parte da população, parte do país, vai ficar excluído porque a população tá naquele país. Tem que haver inclusão, em todas as áreas, de todos os jeitos, tem que haver inclusão. Não adianta, não adianta! E isso sim pra ciência, pra tecnologia, pra informação, pra comunicação, pra tudo. Do jeito que o Brasil era ontem, não pode mais, não pode! E isso tem que incluir contratos, professores, professoras. Existe universidade no Brasil que o departamento de física não tem ninguém do gênero feminino, quem dirá uma professora negra. Isso tem que mudar, sabe? Por que não? Quantas professoras negras com doutorado existem aí? Por que não tem? E esse porque, a resposta é infame. Tem que parar, tem que parar! Tem que incluir! Tem umas que nao tem nem professor negro, caspita! Ei? Sabe? No ITA, escola de engenharia, eu disse que… Ah, eu conheço um professor negro, ok, ok! Conheço um professor negro, mas sabe engenharia? A maioria das engenharias são homens. E não tem professor negro? Ou, qual é a de vocês? Então, isso tem que mudar, tem que ser incluído, inclusivo. E no momento que você incluir, sim, a ciência também, porque vai ter cabeças pretas com ideias pretas pra aquilo. Agora são um bando de branco, com a mesma classe social, com as mesmas ideias, fazendo as mesmíssimas coisas e chegando a lugar nenhum. Da licença! Tem que vir as outras cabecas, mulheres, brancas e negras, homens negros, porque tem outras cabeças, outras ideias, outro estudo. Esse reconhecimento facial que é tão famoso, de algum jeito o pessoal do reconhecimento facial colocou, face preta, criminoso. Sabe? Ei, isso é racismo! Suspeito! Tem fenótipos negróides, suspeito! Suspeitíssimo! Você nem conhece o cara. Então, tem que ser incluído lá. Fenótipo negroide, pessoa normal, pessoa normal, você não sabe qual que é a dele, você não pode já colocá-lo como suspeito. Aí você vai na delegacia, suspeito, já dá um tiro nele já. Suspeito tem que morrer!
Então, isso tudo tem que mudar. Tem que incluir, inclusivo, em tudo, em tudo, em tudo, em tudo. Não adianta, do jeito que tá, não dá pra continuar.
P/1 - Indo pras perguntas finais, então professora, o que você gostaria de deixar como legado pro futuro? Você pensa nisso ou não, mas enfim? Me diz o que você acha?
R - Eu gostaria de convencer o maior número de meninas negras pra virem… se for pra física, perfeito! Mas pode ser pra ciência, pras engenharias, pra tecnologia.
Você sabe fazer um pouquinho de código? Pelo amor de Deus, faça esses cursos! Todo mundo… Os centros de integração empresa escola, ta dando… Tem sessenta mil vagas pra cursos de tecnologia. Você gosta de computação? Gosta de montar jogos? Gosta de fazer códigos? Gosta de escrever programas de computação? Vai lá, vai lá, vai lá, vai lá! Se forme, se qualifique, comece a ganhar dinheiro, vai lá fazer…vai, vai, vai, vai, vai! E essa história: “Isso não é coisa de menina! Isso é só pra menina!” É balela! Pelo amor de Deus não ouça isso! Porque além de tudo é o futuro, é o que vai acontecer amanhã… é o que tá acontecendo hoje! Já tá precisando dessa mão de obra. E a negadinha tá tudo sendo excluída dessa brincadeira. Vai lá, consiga! Tomara que seja isso que você realmente quer. Vai lá, consiga, tenha sucesso e tenha uma carreira maravilhosa, porque… sabe? Essa história: “Não. Preto? Você não tem inteligência suficiente!” Ha ha ha! Vai lá e mostra que a sua inteligência é mais do que suficiente, é superior daquilo que eles estão esperando. Eu vou ficar muito contente, vou bater palma. E quando você conseguir me avise, porque eu quero falar nas minhas palestras como foi que você conseguiu. Adoro dar boas notícias.
P/1 - Eu não perguntei uma coisa. Você falou que você nunca se casou, você também… Tem filho, tem filha, ou não?
R - Não tenho filho, nem filha, não!
P/1 - E tem alguma coisa que eu não perguntei pra você que você queria que eu tivesse perguntado? Alguma história que você queria contar antes da gente terminar, que a gente não abordou? É meio difícil essa pergunta né, mas…
R - É! Eu acho que eu contei… certamente tem um monte de histórias, mas a gente não botou, não entrou no assunto. Porque eu tenho sempre uma história pra contar, na hora que se coloca o assunto, entendeu? E os assuntos que você colocou, eu contei uma historinha, eu sempre contei uma historinha. Mas nesse momento eu não me lembro de nenhuma historinha extra. Você tinha que botar mais algum assunto, aí se eu lembrasse da historinha, aí eu contaria. Mas eu sempre tenho uma historinha pra contar. Muitas histórias! Eu sou muito velinha, eu to vivida.
P/1 - Então pra terminar, eu queria perguntar uma coisa que eu fiquei bastante curioso mesmo. Se você poderia contar pra gente uma das histórias que seus avôs, suas avós contavam pra você, que você disse que eles contavam muitas histórias. Tem alguma que você poderia contar pra gente que eles contavam?
R - A vó da minha vó era índia. Antigamente os escravos pegavam as índias no mato e as faziam de esposa. Não sei o que… porque se fosse hoje seria sequestro, estupro, etc. Mas o pai… o avô da minha avó encontrou a mulher dele, ou a mãe da minha vó, no mato. E a fez de sua esposa e a minha avó nasceu. Então elas contam das coisas terríveis, porque o sofrimento era muito grande, a violência era muito grande. Então, os fantasmas, porque onde eles ficavam acomodados, ou mesmo a minha vó deve ter sido quando era pequena, deve ter vivido enquanto pequena, em soma, era os lugares onde as atrocidades ou aconteceram no passado, ou ainda estavam acontecendo. Então os fantasmas que viam, as aparições, as coisas brancas, as pessoas que sofreram muito antes de morrer. Ou vai saber em que lugar que elas estão. Voltavam porque elas precisavam… minha vó fazia… benzia a gente, fazia umas coisas pra que aquele corpo, aquela alma, aquela sofrência, fosse pro lugar que tinha que ir. Então ela contava as coisas que elas faziam no chão, as rezas, cantavam as cantigas, o que se bebia pra esses dias, como que eles vinham, porque eles vinham pedir ajuda a essas pessoas. Minha avó chamava de alma penada. As almas penadas vinham pra pedir ajuda, porque elas não queriam ficar penadas pro resto da eternidade. E elas vinham. E ai elas apagavam todas as luzes e a cara dela ficava toda branca. Ela mostrava como é que é que fazia. Ai vinha, ai ela fazia, “buuu”. Pra fazer susto na gente, a gente ficava tudo apavorada quando acendia a luz. “Não, não, tem que escutar com a luz apagada”. E continuava contando. Tinha uns que ela sabia até nomes, sabia… às vezes ela sabia até como que ele tinha morrido, ou ela tinha morrido, as sofrências que elas tinham passado. E ela contava! E contava, assim, eu não sei como… eu nunca soube como que foi a vida da minha avó, negra, pobre, deve ter sido terrível. Ela nunca colocou nesses pés nessa coisa, mas ela sempre contava, assim, com curiosidade. Como que salvaram essa pessoas que sofreram demais. Provavelmente devem estar mortas a algum tempo, ela não faz ideia a quanto tempo e como se salvaram. E aí quando a gente chegava meio macambúzia, triste, que aí ela dizia que a gente tava com quebrante, aí ela vinha e rezava, fazia aquelas rezas, jogava aquela aguinha, fazia a gente beber aqueles líquidos. E logo a gente ficava boa! Então é uma espiritualidade, eu não sei que nome, porque além de tudo, devido toda a essa minha vida e todos esses meus estudos, eu sou… não muito cética, mas eu também não sou… algumas coisas eu simplesmente não aceito, simplesmente, sabe? Não dá pra acreditar nessa coisa! E ela viveu essa coisa vivida lá, passou por isso, assim. Não era um sonho que ela tinha tido, nem nada. Então deve ser essa tal dessa espiritualidade que as pessoas negras tem dentro de si. Meu vô disse que eu tinha também, meu vô dizia. E uma vez eu fui num lugar que uma pessoa… foi a primeira vez que eu fui naquele lugar e uma pessoa espiritualista, espírita, eu fui por causa de uma menina espírita que foi pegar uma coisa e tudo. E a hora que a menina me viu, ela falou: "Você tem, você tem! Se você quiser desenvolver, você vem aqui”. Mas raspar a cabeça, ficar sem comer, ficar em quartos escuros pra desenvolver, não! Isso pra mim é besteira, eu acho isso, sabe? Eu não acredito nisso. Eu acho que as coisas tem que ser simples, sabe? Mesmo nessa história de Deus, Alá, não sei o quê. Eu não acredito num deus que fique punindo porque você fez uma coisa errada. Como tem a música do Gil, "Não é possível que Deus criou o prazer, pra depois te condenar porque você teve prazer.” Me poupe. Então por que ele criou, né? Então, sabe, algumas coisas eu acho besteria. No catolicismo, esses pecados todos, sabe? Sinto muito, eu acho estúpido. O criador ter tido todo esse trabalho pra depois nos condenar porque a gente gosta daquela coisa. E, então por que fez? Deixasse a gente tudo pedra, ou sei lá o que a gente era antes de ser seres humanos e ponto. Ninguém ia pecar nem nada, não ia acontecer nada, né? Não, ele transformou, fez o que fez e agora quer nos condenar porque a gente gosta disso ou daquilo? Ah, ah, eu não acredito nisso, eu não acredito nisso! E uma amiga minha que segue, ela raspa a cabeça, veste branco, fica num tal de um lugar um tempão, toda pintada. Não, não, não deve ser assim. Deve ser simplinho, ó, é assim Sonia e ponto e basta. Aí eu acreditaria.
P/1 - Professora, como é que foi pra você contar um pouquinho da sua história hoje pra gente? Você já deu muitas entrevistas, eu sei. Mas como foi?
R - Você não faz ideia, maio, foi uma atrás da outra, porque tem o bendito treze de maio… Não, março, uma atrás da outra, porque tem o bendito oito de março e 21 de março e não sei o quê. O treze de maio é uma coisa que eu… Não falei nada, eu sou Presidenta da Comissão de Justiça e Equidade, diversidade e inclusão e a cada dia histórico, é suposto um de nos falar alguma coisa. E treze de maio eu não coloquei nada! Alguém colocou em meu nome, mas não foi eu que escrevi aquilo. Mas as entrevistas, sempre, sempre, sempre, mesmo quando eu to fora, quando eu dou uma palestra, tem sempre um jornal, uma rádio, ou alguém querendo que eu fale alguma coisa pequenininha. Ou alguém querendo que eu grave um vídeo pra falar um pouquinho desse lado, porque somos poucas cientistas, doutoras. Somos poucas. Um dia desses no supermercado, uma moça virou pra mim, branca: “Sonia, você é aquela física que fala de filosofia?” Filosofia? Eu menciono, porque eu estudo um pouco disso, mas eu não falo… Bem, eu falo de filosofia africana. “Ai que lindo uma física que sabe filosofia”. Mas sabe, não é bem assim. Eu estudo, porque me interessa e quando me perguntam, eu respondo. Mas em suma, é maluco, é uma coisa muito doida. Mas a minha advogada falou: “Presta atenção no que você fala, porque eles estão ouvindo e eles colocam lá na sindicância."
P/1 - Maravilha! Professora, então eu agradeço muito a sua presença aqui. Foi um prazer pra gente ter essa conversa com você, vai ser um prazer guardar a sua história no Museu da Pessoa também. Eu vou me certificar que você, a sua assessoria, acompanhe passo a passo, do que que…
R - Por favor, mande pra elas que elas vão querer.
P/1 - Sim, como é que é a transcrição, como que a gente faz a edição, até por conta dessas questões com o instituto, né? Mas enfim, isso fica pra frente, pra depois, por agora eu só queria deixar o agradecimento mesmo, foi uma honra, foi um prazer, foi muito bom, a gente aprendeu muito com certeza aqui, com a sua história de vida. Só agradeço demais mesmo. Muito obrigado, viu!?
R - Eu é que agradeço a oportunidade, foi bárbaro! Gostei também! Foi meio longo, mas foi bárbaro.
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