Eu nasci em 24 de janeiro de 1970, em Belo Horizonte. Era um sábado, uma tarde rosa laranja, como diz minha mãe, no céu de Oyá, nasceu alguém especial.
Eu me afirmei exatamente com dois anos e meio, disse: “Eu sou menina”. Não tinha outra menina em casa. Eu disse: “Eu sou uma menina”, com dois anos e meio. E aí você tem que ter uma série de... imagina: você não come carne, você não come feijão, filho de mineiros dizendo que é menina, dentro daquele contexto todo, eu também imagino o bug na cabeça deles!
Odilon Domingos da Cunha e Salete dos Afonso Cunha. Ambos, os dois, mineiros. Ele de Rio Vermelho e ela de Datas. É um casal muito singular, porque o meu pai é negro, de pele muito clara, embora ele não se declare negro, mas o meu avô por parte de pai é um negro retinto, descendente direto de um escravizado. Inclusive um escravizado que era um reprodutor, que vai se envolver com a sinhazinha, porque o marido morre e ela o leva pra dentro da casa grande e aí vem meu avô. E aí que casa com uma portuguesa da gema, uma descendente direta de portugueses, eu não convivi com esses dois avós. Da parte de mãe eu tenho uma avó que tem uma descendência alemã com não sei o que e um avô que é indígena com negro. E que até minha mãe também narra que a minha bisavó foi pega no laço. Eu estou narrando isso por quê? É muito importante essa construção porque, quando eu lembro da minha mãe, imediatamente eu lembro também da relação com a minha avó, que ela era muito próxima, que visitava a gente, que frequentava a casa, que era muito religiosa e tem um fascínio pelo cinza, que dialoga com como essa mulher se vestia, mais que com como minha mãe se vestia.
Eu sou a terceira que nasce, são dez irmãos, mais dois de criação, os outros que entraram e saíram, esses outros que eu não considero irmãos, mas que passaram por ela, que a chamam de mãe, que ela foi como uma mãe. Ela é um fenômeno! Imagina, essa mulher...
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Eu nasci em 24 de janeiro de 1970, em Belo Horizonte. Era um sábado, uma tarde rosa laranja, como diz minha mãe, no céu de Oyá, nasceu alguém especial.
Eu me afirmei exatamente com dois anos e meio, disse: “Eu sou menina”. Não tinha outra menina em casa. Eu disse: “Eu sou uma menina”, com dois anos e meio. E aí você tem que ter uma série de... imagina: você não come carne, você não come feijão, filho de mineiros dizendo que é menina, dentro daquele contexto todo, eu também imagino o bug na cabeça deles!
Odilon Domingos da Cunha e Salete dos Afonso Cunha. Ambos, os dois, mineiros. Ele de Rio Vermelho e ela de Datas. É um casal muito singular, porque o meu pai é negro, de pele muito clara, embora ele não se declare negro, mas o meu avô por parte de pai é um negro retinto, descendente direto de um escravizado. Inclusive um escravizado que era um reprodutor, que vai se envolver com a sinhazinha, porque o marido morre e ela o leva pra dentro da casa grande e aí vem meu avô. E aí que casa com uma portuguesa da gema, uma descendente direta de portugueses, eu não convivi com esses dois avós. Da parte de mãe eu tenho uma avó que tem uma descendência alemã com não sei o que e um avô que é indígena com negro. E que até minha mãe também narra que a minha bisavó foi pega no laço. Eu estou narrando isso por quê? É muito importante essa construção porque, quando eu lembro da minha mãe, imediatamente eu lembro também da relação com a minha avó, que ela era muito próxima, que visitava a gente, que frequentava a casa, que era muito religiosa e tem um fascínio pelo cinza, que dialoga com como essa mulher se vestia, mais que com como minha mãe se vestia.
Eu sou a terceira que nasce, são dez irmãos, mais dois de criação, os outros que entraram e saíram, esses outros que eu não considero irmãos, mas que passaram por ela, que a chamam de mãe, que ela foi como uma mãe. Ela é um fenômeno! Imagina, essa mulher amamentava outras crianças! Essa mulher tirava leite do peito, pra oferecer pra outras mulheres. Pra gente curar coisa no olho, vamos buscar leite da Salete, vamos fazer não sei o que, sabe? E trabalhava.
Até a fala que eu trouxe da minha mãe, que é uma lembrança muito viva, é da minha mãe sempre cuidando de outras crianças, além dos filhos.
Depois, na primeira série, eu lembro das pessoas falando sobre ela, da empresa dela, do fenômeno que era ela e do sacrifício dela em criar os seus filhos. Então, tipo assim: pra essas pessoas, era bom bater palma pra minha dor, que era não ter a minha mãe, quando todas as vezes que eu mais precisava. Esse é um dos momentos mais marcantes e que, pra mim, foi impactante, porque embora meu pai fizesse todas as violências, eu não senti a profundidade de uma dor, como eu senti no primeiro abandono dela, assim. Porque isso é um abandono. Você não tem outra perspectiva enquanto criança e a sensação é de tipo assim: você é largada à deriva.
Com seis anos, eu tinha tomado uma surra do meu pai, que a ideia era matar, mesmo. A ideia era essa, foi posto, vai matar. Ele larga... é uma surra mesmo: me virou de cabeça pra baixo, pegou a cinta e bate, bate, bate, bate, bate, bate, bate... “Qual o motivo?” (fala do entrevistador) A existência de uma menina com um pinto. E aí ele larga e quem vai cuidar é a minha mãe. E aí eles têm aqueles métodos muito bem promovidos pelo cristianismo, que era simplesmente passar água, sal e vinagre. Mas chegou uma hora que já era tão grande a dor, você entra num transe... pra quem tem orixá deve ser isso, porque eu fui levada para os terreiros muito cedo, pra ter cura. Eu fui levada pra todos os lugares. Sei lá. A primeira gira que eu lembro com consciência é por volta de três anos e meio, quatro anos, que eu me lembro que é uma gira de criança que eu vou e as pessoas vinham fazer consulta comigo. Então, eu já tinha essa coisa. Então, eu me acordava no meio da noite, tinha visões. Essa parte mística ficou muito bem nítida e acho que também é uma parte que segurou muito porque, com essa religiosidade, salvou, porque eles diziam assim: “É uma pessoa que tem um outro processo, místico e a gente vai preservar isso”. Então, isso era muito bem tratado, nesse ponto. Acho que isso garantiu muita coisa, inclusive parte da minha sobrevivência. Mas é isso: ele faz essa surra, ela cuida. Ele é tão vítima quanto eu do ódio de uma sociedade. Ele aprendeu que aquela pessoa anormal deveria ser castigada, punida de alguma forma e esse era o método.
E essa minha relação com a escola, com a leitura, vai surgir com oito anos, porque, assim, eu já não aguentava mais violência e, na escola, as meninas disseram exatamente isso: “A gente não vai andar com você, porque você tem cor de sujeira”. Eu lembro o nome e a cara da pessoa que veio trazer o recado. E aí eu passei a não querer sair pro intervalo. Foi exatamente isso que elas disseram: “Você tem a cor do papel que embrulha os cadernos, pardo”. Aí eu cheguei em casa, pra minha mãe e falei: “Eu não quero ter essa cor, eu não sou dessa cor”. Minha mãe falou assim: “Mas você não é pardo. Eu vou te mostrar o que é pardo”. Puxa o pescoço da galinha, corta, deixa o sangue cair, bota o vinagre, coalha, vai limpar a galinha, preparar a galinha, põe na panela, põe o sangue, termina e mostra pra mim o que era pardo. Molho pardo. Não dá pra ser pardo. Negra de pele clara. É tão perverso o jogo que, sabe, as pessoas compram isso, né? Eu sempre digo isso: eu sou o depoimento vivo do estupro das minhas ancestrais, da mãe da mãe, da mãe de minha mãe, de como foram embranquecendo as negras, foram manipulando esse processo, inclusive, pra gente perder essa identidade. Bom, mas enfim, isso, pra mim, foi muito marcante, com oito anos.
E eu já fazia tratamento, uma série de acompanhamentos com oito anos e eu não sei por que, é nesse mesmo período, que ela vai me levar pra Clínica Mens Sana, do Frei Albino Aresi. Fiz um longo processo de acompanhamento com o Frei Albino Aresi, aqui na Vila Mariana e aí isso é muito importante, porque ela vai me dizer, anos depois, que o frei disse pra ela, quando ela chegou comigo: “Gracinha, é uma menina. Por que vocês querem que ela não seja uma menina? Qual que é o problema?” Só que é um frei que estudava Parapsicologia. Eu passei pelo pulsotron, que era uma máquina que garantia que você nunca iria adoecer. Talvez tenha funcionado, porque não tenho nenhuma doença grave, nunca tive nenhum bla bla bla, passei pela epidemia da Aids mais pela minha consciência do que qualquer outra coisa. Sobrevivi pela consciência, mesmo. Tem esse monte de coisa pra narrar enquanto mulher negra e não cis gênero.
A gente morou em várias casas, em vários lugares, sei disso porque eles não queriam morar nas favelas, mas com vida de favela. Sempre foi assim: “Não adiantou vocês falarem que não vão morar na favela, porque a vida de favela estava posta. A vida de favela não é só morar em barraco, morar em um lugar favela. A vida de favela é a precarização da vida negra”. A gente tem que discutir nessa perspectiva e colocar nessa perspectiva. Então, essa casa que a gente morava, acho que tinha a cozinha, o quarto do meu pai e da minha mãe e acho que uma sala improvisada ou a sala virou quarto, eu não lembro e o banheiro.
Aí a minha mãe fez essa relação com a Neusi, com a Dona Mariana e com o bairro etc e tal e surgiu o Alexandre na minha vida, que foi o meu melhor amigo. Branco, cis, gay. E o Alexandre também falava assim: “Mas eu não sei se você é gay. Você não é bem gay, né?”. Tipo... mas com doze anos, eu trabalhando como mensageiro, subindo e descendo a rua, pra cá, e falar, entregando, não sei, tive frieira, me fodi inteira. Só me fodi. Só me fodi, pra ser boa. Tanto é que eu falo, eu repito o tempo todo: “Eles me fizeram tão mal, mas tão mal, que só sobrou o melhor de mim”. Eu só podia ser boa. Eu só podia dar uma coisa boa. Porque foi muito perverso. Era perverso. Eu não sei por que, sabe, tipo mata de uma vez, mas não faz isso. Mata. Mata ali na hora que você percebeu que vocês não gostam. Mas mata. Não faz desse jeito, que não é bom.
Mas já estava andando com o Alexandre. Com doze anos a gente foi parar no Centro de São Paulo pela primeira vez, à noite. Primeira vez que eu vi as travestis. Aí eu sabia quem eu era. Elas estavam ali. Materializadas. As minhas mais semelhantes. A gente não voltou. A gente foi ali, viu, fizemos a louca. Eu dormi do lado de fora de casa, no banco, porque eu cheguei no horário que não se deveria chegar. Isso se repetiu várias vezes. A porta era trancada e você tinha que dormir ou no chão do banheiro, ou naquele banquinho ali na área. Era o preço a ser pago, pra viver um pouquinho de quem se é.
Com essa frequência no Centro de São Paulo, que eu entendo quem são as minhas semelhantes, elas me orientam: “Você gosta de estudar, você consegue enfrentar isso, a gente não. E você é muito inteligente”. E aí eu entendi que estava ok, porque elas reconheciam.
Essa discussão sobre a lei de identidade de gênero, eu já acompanhava. Era sempre a discussão de “nome social”, “nome social”. Eu sempre chamei “nome social” de migalha. Eu vi a minha amiga morrer, a Charlotte, ser enterrada com outro nome, não ter esse nome, o direito desse nome na lápide. Não ter esse documento legitimado, uma série de pessoas. Eu já tinha sido muito humilhada. Não quer dizer que isso vai acabar, né? Agora, o problema é humilhar e aguentar o que vai vir. Muito humilhada. Inclusive, por um médico, por uma série de situações. E eu comecei a pesquisar as coisas. Eu falei assim: “Ah, quer saber de uma coisa? Esse povo vai matar. Eles vão matar, do jeito que eles estão acostumados a matar. Mas esse gostinho eles não vão ter. Vai ter nome. Vai ter gênero”. E aí eu falei assim: “Tem duas coisas que gosto, que precisam ser resolvidas com a gente: o direito à morte digna e o direito a ter nome e gênero”. Eu falei assim: “Eu vou entrar sem nenhum laudo. É a minha condição. Nenhum laudo. E, acima de tudo...”. Gente, eu não queria que tivesse nem foto, só narrasse a história. Tanto é que o Eduardo montou o processo sem eu ver, com fotos. E o que mais ele colocou no processo? Ai, uma coisa que eu fui obrigada a fazer, isso foi a coisa mais perversa do processo todo: eu tinha que ter declarações de reconhecimento social, de pessoas dizendo que eu vivia e era esta mulher que estava sendo declarada. Pare e pense. Declarações de reconhecimento social. Quem são as pessoas, pra decidir como eu me sinto, como eu vivo e sobre como eu estou existindo?
Mas eu também disse uma coisa, muito sério: “Vai ser a última vez que alguém vai fazer isso”. E eu consegui. Porque hoje você vai no cartório, você diz o nome que você quiser, sem laudo nenhum. Eu não tive isso. Eu não tive esse benefício. Porque é isso que é, um benefício.
E levei um ano, depois que eu consegui a causa, pensando que não podia ser só pra mim. Um ano eu levei, pra começar a usufruir desse benefício concedido pela Justiça. Eu levei um ano e foi angustiante. Porque eu falava assim: “Não pode ser só pra mim”. E eu continuei tocando. E eu ainda quero uma lei de identidade de gênero. Então, talvez, aí vai ter que ter outro processo político. A gente está pensando como ainda, já que vocês vão pensar sobre o futuro. O futuro é super incerto. Eu quero morrer com dignidade. E vou lutar pra isso. Agora é o resto de vida que eles me deram. É isso. Eles me concederam. Imagina você chegar na sua vida, aos quarenta e quatro anos: “Agora eu posso existir”.
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