Projeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de Vicenta Perrotta
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 02 de agosto de 2023
Código da entrevista: VDC_HV002
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:26) P1 – ‘Bora’ lá!
R1 – ‘Bora’ ...Continuar leitura
Projeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de Vicenta Perrotta
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 02 de agosto de 2023
Código da entrevista: VDC_HV002
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:26) P1 – ‘Bora’ lá!
R1 – ‘Bora’ lá!
(00:27) P1 - Primeiro, eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por ter ‘topado’ dividir um pouquinho da sua história.
R1 – Obrigada!
(00:35) P1 - E, para começar, eu queria que você se apresentasse: dizer o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R1 – Tá. Eu sou a Vicenta Perrotta, eu nasci em Campinas, 3 de abril de 1979, a hora eu não lembro, mas acho que foi... eu sei que eu acabei de mudar o meu nome, retifiquei, aí eu tive... enfim, muito ocupada, aí eu achava que eu era de um signo e eu sou de outro. Olha que loucura! Um ascendente, na verdade.
(01:12) P1 - Descobriu há pouco tempo?
R1 - Descobri a nem um mês, olhando o meu horário de nascimento, que é áries com ascendente em libra e eu achava que era ascendente em virgem e eu era toda virgem, (risos) toda organizada, mas é libra, e eu odeio, às vezes eu não me ‘bato’ bem com gente de libra. Que loucura, né? (risos)
P1 – Vicenta, te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R1 – Contaram, mas eu acho que eu não lembro, porque algumas coisas eu vou ‘apagando’ da memória. Vou tentar resgatar isso. Eu estou em um processo de resgate agora, de mexer no trauma, entender o que acontece hoje, porque acontece hoje, onde que está o trauma. Uma coisa, talvez, um pouco incoerente, porque eu estou fazendo um tipo de autoanálise, mas pensando em um mínimo de um mínimo, antes de ter acesso a um psicólogo, ou psiquiatra. Às vezes eu não… eu fico pensando assim: inventaram doenças e inventaram remédio e aí eu fico nessa guerra. Eu acredito que tudo bem, já que existe essa doença, já que a gente está adoecida, a gente está longe do que seria alguma coisa que não é tão natural, nosso corpo já está todo medicado, traumatizado, cisgenerizado, cristão, cristalizado, (risos) então eu ainda não busquei um psicólogo, mas dentro desse processo de costura meu é um processo já que eu comecei a investigar como a sociedade é construída e agora eu estou investigando o indivíduo, então eu estou nessa fase agora. Então, eu não me lembro de como foi que eu nasci, eu não lembro como que foi o dia tal, mas já me contaram, mas eu meio que deletei por enquanto, (risos) memória seletiva. (risos)
(03:47) P1 - Você sabe a história da sua família, a origem, de onde veio?
R1 - Eu sei metade. Como eu venho de uma família cristã machista, eu sei assim: da parte do meu pai, que eu tenho um avô italiano, uma avó que é descendente de russo, eu tenho contato com ela, o meu vô chama Vicente também, quando eu nasci me deram o nome de Vicente Perrotta Neto, porque eu era a primeira pessoa, primogênito e esse meu avô foi fotógrafo, então eu tenho uma ligação muito forte com a imagem que é... como fala?... já da família. E eu lembro que quando eu era criança eu ficava mexendo no álbum das fotos dele, eu não sabia que ele era fotógrafo, eu fiquei sabendo também há uns, sei lá, quinze, vinte anos atrás, mas até então eu não sabia. Então é exatamente isso: às vezes a gente é retirado, a sua história é ‘apagada’, por conta de processos... como eu posso dizer?... da mecânica do mundo. Então a sua história vai sendo ‘apagada’, a história da sua família vai sendo ‘apagada’. Também acredito que a família é uma construção social, então a gente já nasce ali fadada a alguma coisa. Aí, quando você não corresponde ao que foi construído para você ou esperado de você, alguma coisa que foi feita ali, para você estar ali, então você também. Inclusive, eu percebo que a maneira de existir, de ser construída a sua subjetividade também é uma maneira de trabalhar o ser dentro de um processo estabelecido. Então, a sua subjetividade também é construída dentro de um processo subjetivo. Desculpa, voltando: a sua subjetividade também é construída, de certa maneira. Eu entendo que é o mecanismo do capitalismo, do neoliberalismo e aí, de fato, o que te leva a um processo para você não seguir isso é ‘apagado’. Então, acho que isso também foi ‘apagado’ de mim também, porque eu lembro que o meu avô tinha até uma confecção e eu lembro mais ainda, que a primeira peça que eu tive contato, dessa confecção, era uma peça de reuso. Uma loucura! Lembro que meu avô teve uma confecção e aí eu lembro que é a primeira peça que eu tive contato, que acho que ficou na minha memória mesmo. Acho que tudo isso, hoje, vem disso. Agora calma. E aí… espera aí, deixa eu voltar aqui, respirar, começar a mexer nos meus traumas. (respira fundo) E aí eu tenho essa memória de quando eu tive o primeiro contato, era uma bermudinha, que ele fez já com os retalhos que sobravam lá, eu lembro disso, mas daí eu também tenho uma outra memória em relação à minha família. Calma, porque eu também sou bem prolixa, então uma hora eu vou para lá, outra vou para lá fora e volto. E aí, da parte do meu pai, que é a parte de uma ‘galera’ mais italiana, branca, branquíssima, que também foram homens, eram três tios, essa minha avó, meu pai e mais dois homens, dois machos e dentro desse contexto tenho memória dessa masculinidade tóxica. Era meio classe média, meu avô tinha casa, era meio rico, era esse fotógrafo, parou... eu não sei qual foi a coisa da fotografia, onde parou, mas ele sobrevivia disso. Tem até uma história que a minha avó me contava, que ele tinha um assistente ‘viadinho’. Então, eu também não sei onde, qual que é, onde termina isso. E aí, da parte da minha mãe é uma família que veio de Pirassununga, acho que de doze, treze irmãos, dez são mulheres e três são homens, um foi assassinado e é uma família do interior, Pirassununga. Esse meu avô é um homem negro, a minha vó acho que é uma mulher portuguesa, espanhola, que também tinha relação com a costura, porque ela tinha que construir as roupas. Essa minha avó por parte do meu pai também, ela construía roupas. Tanto que a minha máquina principal é dela, da minha avó, mãe do meu pai, que é a que nunca quebra, ‘muito louco’, ela tem sei lá quantos anos. E aí é uma família de mulheres que veio aos poucos pra Campinas e elas foram, foram, foram. É uma família bem unida no sentido de um pacto ali, não sei qual é o pacto, mas eu sei que tem um pacto e também eu tenho muito trejeito delas. Então eu fui a primeira, aí dizem assim: “Ai, ela foi criada... ele foi criado por mulher, por isso que virou ‘viado’”, então tem isso também. Então, a minha história é cercada de violência, eu acho, a formação. Não sei se é a estrutura. Eu sei que ela é cerrada por processos violentos, traumas. Eu acho, assim, que não é sobre o indivíduo delas, também é, mas é essa subjetividade construída em cima de uma pauta, que também é ‘nebulosa’, que a gente nem sabe, às vezes, que a gente está reproduzindo violência. Também entendo que chega uma hora que você sabe o que você está fazendo, então a gente caminha por vários… eu acho que a construção do indivíduo e do coletivo não é só uma faceta, são vários processos que formam o indivíduo, dentro deles também tem a consciência. Então, às vezes, você faz com consciência. Por que você faz com consciência esse tipo de violência contra as pessoas que são lidas como abjetas? Porque eles querem te moldar, as pessoas querem moldar você, você tem que ter o projeto delas, você é propriedade privada. Então, pra minha família também tem a ver com propriedade privada. Essa questão, para mim, do amor, da monogamia, são acordos e chega uma hora que esses acordos, pra mim, não faziam mais sentido. Então, o que eu trago dessa família, que seria interessante, acho que é a minha força. Vamos dizer: se isso vem deles, ou não, eu não sei também, (risos) mas veio essa coisa da arte, da foto, da imagem. Meu trabalho hoje é de fazer e construir imagem, não só… porque a roupa… é uma outra coisa ‘muito louca’ também, porque o seu trabalho, o seu indivíduo, então, a artista, a Vicenta. Então, tem uma hora que eu também me entrelacei tanto a isso e que de fato é real, é um fato isso, mas que também isso às vezes me ‘puxa’ para um lugar onde eu me perca de mim, onde eu me perca de si, talvez. Então, hoje em dia, hoje exatamente, eu estou nesse ponto, dessa investigação de si, na transmutação de si. Então eu trabalhei todo um processo estrutural enquanto me tornar uma artista, trazendo esses traumas, talvez às vezes estancando esse sangue que estava escorrendo, mas que a ferida não fechou. Então, fica essa memória. Eu não sei, muitas vezes eu lembro também de uma memória de violência que eu trabalhei no meu último projeto; eu dei aula para 25 alunos e eu fiquei pensando assim: “Eu quero trabalhar agora trauma, então eu quero investigar”. Na verdade, eu não quero futucar as pessoas, mas eu quero investigar como são construídos espaços menos violentos. Então, foi dentro de um espaço público, então meu trabalho tem a ver com espaço público e aí também eu acho que muitas vezes ‘puxa’ de... sei lá, de uma certa… porque é público, porque o espaço público para mim é tão importante, eu ainda não entendi isso, mas eu entendo que é importante que as pessoas que são lidas como abjetas ocupem também os espaços públicos, porque isso também é tirado da gente: então é público para quem? Então, essa insistência de estar em espaço público para mim é muito importante e aí eu trabalhei essa questão de, por exemplo, autoestima, então a gente não tem autoestima. Muita da seleção feita, dessa vez eu selecionei pessoas, que também é um processo de exclusão, mas às vezes, enquanto estratégia foi necessário selecionar, por quê? Para ter uma direção maior do objetivo final. O objetivo era o processo, viver o processo, mas trazer pessoas que queriam de fato viver esse processo. Muitas vezes, como eu trabalho com corpos abjetos, lidos como abjetos, acabam surgindo muitos outros processos, outras facetas da vulnerabilidade e aí como trabalhar isso, sem preparação? Então, eu também venho me lapidando: como trabalhar isso sem uma preparação, sem uma estrutura para estar recebendo essas pessoas. Então, acho que essa seleção, esse processo de filtrar foi necessário pra eu poder, enfim, trabalhar esse lugar. E aí essa questão da autoestima era uma coisa que me ‘engatilhava’ muito também. As pessoas, às vezes, que estavam com um processo de autoestima muito baixo na hora de criar, é um grande problema. Por quê? Aí eu comecei a entender, porque a gente começou a fazer, foram 25 alunas, ‘alunes’, alunos e aí eu falei: “Gente, vamos falar dois minutos”. Simplesmente as pessoas não conseguiam falar menos que quinze minutos, então aí começou “bloblobloblo”, trazer e aí eu comecei me ver nisso, nessa problemática. Por que eu estou falando isso? Porque eu quero chegar em uma coisa: eu sou uma estilista que não faço croqui e eu lembro essas pessoas me contando: “Minha família admitia que eu era boa na costura, mas como eu sou uma travesti, não é para homem”, me boicotavam e algumas pessoas vieram falando e eu lembro que, quando eu era criança, eu tinha uma tia minha que namorava um tio meu da parte do meu pai, que era estilista e ela me ensinava a desenhar, desenhar, desenhar, até que um dia eu fui ‘tesourada’ disso, então isso virou um trauma para mim: fazer croqui. E aí eu desenvolvi uma tecnologia que eu não uso croqui para fazer. Olha que loucura! Então, olha como a gente é ao mesmo tempo desqualificada, é uma desqualificação proposital para que você não exista, para que você não pense, para que você não tenha a mesma estrutura que os cisgêneres e as pessoas brancas e as pessoas que [são] lidas como norma, as que cederam à norma, à compulsividade da norma e daí, óbvio, que a partir dessa problemática, eu desenvolvi uma tecnologia para sair disso, mas veja bem: como é que você consegue existir dentro de um lugar capitalista, de mercado de trabalho, onde você, para ser um estilista, tem que desenhar um croqui e você é podada disso, porque é homem, porque homem não desenha croqui. Olha que viagem! Isso já vai matando o seu eu de fato, ali, o seu eu. O seu eu vai sendo todo recortado, todo furado, todo matado, amputado e definido. Eles vão te cortando, eles vão te amputando, vai amputando a sua subjetividade e você chega em uma hora que você está toda arrebentada, toda morta, destruída, esfaqueada subjetivamente. E aí isso explica muito assim, porque, por exemplo - eu estou voltando ao espaço público -, porque o espaço público é público para quem? Então, por exemplo, a gente percebe a estrutura da segurança. Os seguranças vão direto nas pessoas que não é para estarem lá, mas como não é para elas estarem lá, se o espaço é público? Então, esse meu último trabalho foi sobre exatamente essas percepções, abrir, estancar esse sangue... é o que está acontecendo comigo. Eu não sei se isso é ruim, se isso é de fato o que que é, se isso é uma irresponsabilidade, mas isso foi uma experiência que eu tive para começar a trabalhar essa questão individual mesmo. De onde que está vindo? O que foi tirado de mim? Por que eu estou agindo dessa maneira? Por que eu tenho esses ‘gatilhos’? Por que eu sinto essa carência? Por que eu estou me movimentando dessa maneira? Por que, por exemplo, que eu sou uma artista de 44 anos, que ainda nem faculdade eu fiz? Porque a faculdade não é feita para pessoas como eu. Por que eu estou na Unicamp, lutando por cotas? Então, tem todos esses processos que formaram o meu indivíduo. Eu posso ler isso ainda, que até eu sou uma vencedora, porque eu ainda fui para lá enquanto branca, porque existem os pactos ainda. Ocupei o espaço na Unicamp, identifiquei isso, falei: “Gente, não tem pessoas trans aqui”. Fiquei lá e aí, pelo pacto da branquitude, então assim: o sistema também é falho. Foi passando, passando, passando, passei, passei, passei pelos olhos, passei pelos olhos, passei pelos olhos, passei pelos olhos, aí começaram a me ver como violenta, perigosa, aquele lugar é perigoso, então eu também usei isso ao meu favor, porque é o que eu tinha ali, eu também não ia ficar provando: “Ai, não sou perigosa” e aí então é isso. Acho que é isso, não sei mais o que falar. Mas é isso, são essas memórias que eu tenho e essas memórias eu trago e vou tentando destruir isso através desses processos, mas é o que eu lembro. Eu convivi bastante com a minha família, mas teve uma hora que não deu mais e é ‘muito louco’, porque chegou uma época que... porque como que eu fui parar na UNICAMP também é um ponto muito importante da minha vida, porque esse meu avô, que era o homem que tinha mais dinheiro, construiu três casas para os três filhos, mas três machos brancos e é ‘muito doido’, porque um macho casou, o meu pai era o mais velho, então ele casou, só que ele era um macho branco traumatizado também e irresponsável, um macho branco, que acha que é dono do mundo e faz as coisas por inconsequência e vai fazendo e vai fazendo. Aí a família, o que acontece? Ele larga a família… me lembra muito a Malu mulher, minha mãe me lembra muito a fase da Malu Mulher, pensando na minha época que, para mim, a Malu Mulher também é um planejamento dessa mulher moderna que recusa do homem e que dá aval para o homem ser violento quando ela decreta a sua independência e não aceita que o homem… e que também já não tem força para pedir para o homem a responsabilidade que ele tem que ter. Então, o meu pai foi esse homem que abandonou, e aí minha mãe... às vezes eu me vejo muito nela também, quando eu não me expresso, quando eu não falo, então isso eu carrego dela também. Essa é uma grande luta minha, não agir da maneira que ela agiu, não trazer esse processo dela que, no final das contas, matou ela mesma, que eu acho que isso é um processo também de genocídio, no sentido de quem é que sai ganhando com o pacto, porque muitas vezes tem muitos cisgêneres que não ganham com o pacto. Eu vejo que a minha família, a partir desse homem que fez esse ‘bololô’ todo, todo mundo se ‘fodeu’. E é um bando de gente branca, olha! Então, até onde? A minha sorte é que eu me recusei a compactuar com isso. Então, pra mim, eu acho que ainda tenho até uma vida um pouco menos... hoje eu tenho uma oportunidade de estar entendendo quem sou eu, transicionei, não aceitei o que colocaram para mim, me recusei a conviver com essa violência, porque para mim a família também, para o meu corpo era só violência, por que que amor é esse? Que amor? Amor, pra mim, às vezes eu até brinco assim: “Amor à morte”, porque o que foi inventado enquanto amor é simplesmente um grande pacto do capitalismo, para a gente ficar se lambendo, se chupando, sentindo necessidade de algo que, na verdade, só serve para consumir. Então, o amor às vezes é um outro pacto, para que o consumo continue. “Ah, eu amo!”. O que é amar? É o quê? Se doar? Pra mim também se doar é uma grande armadilha, porque, no final das contas, você acaba vivendo aquele processo do outro e esquece de si. Então, é um processo que eu vivi muito também nessa minha trajetória de dez anos de ateliê, eu sempre acabei olhando mais para os outros. No meu caso, isso foi ao meu favor, mas também foi contra mim, por que eu acabo [com] o quê? Esqueceram de mim. Então, é um processo ‘muito louco’, muito complicado, mas estou aqui, cheguei viva, pelo menos cheguei com dez anos de carreira, cheguei com coisas também que foram vantajosas para mim, porque hoje eu entendo que os movimentos que você faz a maior beneficiada tem que ser você. Eu não entendia isso, hoje eu entendo. Então, eu estou nessa fase, agora.
(30:45) P1 – Posso voltar um pouquinho?
R1 – Pode.
(30:48) P1 – Que recordações você tem com esse seu avô? Vocês gostavam de fazer alguma atividade juntos?
R1 – Não. Só de consumo. Ai, eu tenho uma recordação: ele deu minha primeira boneca. Nossa, agora que eu lembrei. Que era uma boneca... como chamava? Felina, da She-ra, que já era a diaba. (risos) Porque eu pedi. Mas a gente não tinha muita relação, era uma relação... ele já era um velho violento, batia na minha avó, que eles eram meio ricos e aí essa coisa do consumo. Ai, ela não consumia, ela jogava fora as coisas, mas aí depois, ele também trocou de mulher. Eu lembro que ele era... eu lembro dele ser um homem violento mesmo, bravo. O que ele tinha uma responsabilidade era, talvez, de macho. Como ele tinha ‘grana’, então ele fez casa pros filhos, não abandonou minha avó, não fez o que meu pai fez, mas era isso, não era uma coisa muito legal. Era sempre uma coisa de ‘ai, o velho rico, o Vicente’, era isso.
(32:42) P1 – E tem algum parente, ou vizinho da época de infância, alguma pessoa que foi bem importante na sua infância?
R1 – Tiveram várias pessoas. Tenho até uma ‘gata’ que já morreu, que chamava Regina, que era paraguaia, amiga da minha mãe. Aí, o que aconteceu, em uma certa época? Minha mãe só trabalhou, pra poder sustentar. A Malu Mulher. Só trabalhou, trabalhou, trabalhou. Também esqueceu de si. Projeto Regina Duarte. (risos) É bem desse tipo, é ‘muito louco’. (risos) No final, a Regina Duarte é essa desgraçada, fascista, né? É bem isso. Eu lembro que tinha a Regina. Eu morava com a minha mãe em um apartamento. De lá era isso, ‘muito louco’. Aí meu pai era esse ‘cara’ que vinha só pra aterrorizar. Então, imagina, uma mulher que só trabalha, sustenta seus filhos, aí você ainda chega e aterroriza. Se sou eu, hoje em dia, ele ia tomar paulada. Pra mim é o que define. “Você quer me dar paulada? Então, você também vai tomar. Mas paulada literal. Você não vai pagar pensão”. Eu lembro disso às vezes, até tenho umas amigas - eu não faço mais isso, mas eu já fiz – que tiveram uma relação... porque esse homem também é um modelo. E quando eu comecei a morar na moradia tinha uma pessoa lá que fazia a mesma coisa que meu pai, eu ouvia até a voz do meu pai, eu falei, vou me vingar do meu pai nele: “Bota’ no ‘pau’, o faz pagar, porque pelo menos isso vai ter algum freio”, porque se você não freia esses ‘caras’ e o freio tem que ser de macho pra macho, tem que ser do juiz, senão ele não freia. Muitos nem freiam com o juiz. Minha mãe não fez isso, isso não é uma questão que foi um erro da minha mãe. Não é isso que eu estou querendo dizer. Quis dizer que isso é um processo estrutural, mesmo, de dar aval pro homem ser violento e veja bem: na Bíblia também é assim, o homem tem aval de ser violento. Então, é do típico homem cristão. Acho que lá também, pras bandas do Oriente, mas também tem a ver com Deus e Cristo. Eles são superviolentos, então é sobre isso. E aí a minha memória eu lembro que a gente saiu desse... eu lembro dessas memórias com ele, dele indo lá, ‘causar’, aí depois ele morava numa casa, que era do meu avô, aí a gente foi morar lá, porque já não tinha mais dinheiro pra pagar aluguel e tal, aí teve que ceder o espaço dele, coitado. Aí foi morar no fundo e a gente na frente. Eu lembro que ele fazia assim: não lavava roupa, não dava dinheiro, aí ela lavava roupa, pendurava, ele ia lá e jogava no chão. (risos) Não tem que tomar paulada? (risos) Eu também estou numa fase de redistribuição de violência, assim: você me dá violência, eu te devolvo, porque essa violência não é pra mim, ela é sua, então toma. E aí eu tenho essas memórias dele, tenho outras [também], [de] como ele ficava também entrando na minha mente, tentava de qualquer maneira entrar na minha mente, quando ele podia... porque ele queria que eu fosse cis, que nem ele. Só que: “Espera aí, você nunca me deu nada. Qual que é a sua?”. Eu sempre o questionei. Falava: “Mas espera aí, nem pensão você paga, ‘cara’, que é o mínimo. Tu não faz nem o mínimo do mínimo do Estado, já que você é o homem do Estado. Nem o seu pacto com o Estado você cumpre, o que você está me falando?”. A Jojo Todynho fala: “Não venha me falar de crítica construtiva, se você nunca construiu nada”. Um homem que nunca construiu nada. E esses homens têm o poder de construir e de se abdicar também. Ele fez isso. Aí eu lembro que quando eu mudei pra essa casa tinha umas vizinhas que moravam em uma construção, pessoas que não tinham ‘grana’ e também não eram brancas. Então, eu lembro que eu tinha muita amizade com elas, a gente brincava. Eu brincava, brincava, brincava, brincava, brincava. Eu também estudava. Eu lembro de memórias assim: tinham professoras importantes também que eu tive, na segunda série, mas que também foi violento na escola, porque na escola também é um processo problemático. O que é a escola, hoje? Define gênero: mulher é aqui, homem é aqui; mulher age dessa maneira, homem age dessa maneira; banheiro... não tinha muita abertura naquela... eu, hoje, vejo também a sociedade como projetos, gerações: geração Z é um projeto; geração Millenium é um projeto. Não lembro que geração que eu sou, acho que Millenium. 1979. Eu, às vezes, tenho até uma mania de falar assim: “Eu sou a geração que...”... ai, não lembro agora.
(39:24) P2 – Geração X.
R1 – É geração X, né? É a geração que não nasceu pra dar certo. É uma geração, um oco, que foi pra casar, ter filhos, pra formar os Milleniuns. Então, eu sou esse corpo já que não deu certo, que se ‘desencaixa’ da norma. Então, um corpo que não deu certo. Eu lembro, na escola, tinha um palco, eu fazia show no palco, da Madonna. 1990, 1991, 1992. Eu até tinha que fazer um teatrinho, na escola, sempre era show da Madonna que eu fazia. Express Yourself, que é uma música. Like a Prayer e Like a Virgin. (risos) Que já era toda ali: “Se expressa, bate sua punheta, goza, querida. Rasga, enfia a cruz no cu do padre”. (risos) Então, tinha tudo isso já, ali, pra mim. Acho que é isso, de memória. Eu lembro de professoras que eram importantes e tinha até uma professora que chamava Diva… só que não é sobre ela, mas ela chamava Diva. (risos) E aí era na sala... eu lembro que eu fui passada pra uma sala que era a dos problemáticos. Essa sala tinha um palco, mas era isso: ela era uma mulher mais aberta mesmo, uma professora mais aberta. É isso. Aí eu tinha umas amiguinhas também, eu tinha uma amiguinha que chamava Luana, que era uma ‘gata’ que era negra, só que ela era albina. Então, eu sempre dentro desse lugar. Eu lembro de memórias assim, que o povo me chamava de aidética. Então, sempre está ligado a isso, à doença, à morte. Isso é violento, no sentido de quando eles utilizam isso pra colocar a gente num lugar que não era pra você estar aqui. "Já que você é assim, não era pra você existir". Tipo: ‘ai, sua aidética’. Eles me chamavam de Cazuza, na época, porque acho que é o primeiro boom, o primeiro artista do Brasil que foi infectado com o vírus de HIV e morreu, porque acho que, enfim... acho, não, a gente sabe do projeto, (risos) também, que é a AIDS, então aí foi isso.
(42:32) P1 – Você conseguiu fazer alguma coisa com essa violência toda?
R1 – Eu consegui ser quem eu sou hoje, através dessa violência. Eu acho que talvez a violência tenha me ‘lapidado’, eu ainda não entendo, mas eu acho que enquanto artista, costureira, líder, enquanto desenvolver essa tecnologia, que é a transmutação têxtil, entender o lixo enquanto um processo que me potencializou, entender o espaço público enquanto um espaço que me potencializou, isso me atravessou bastante e quando eu faço essas roupas, elas já ‘quebram’ com a estética da violência, da morte. Essa roupa vem pras pessoas entenderem que... não é nem entenderem, é de fato construir processos menos violentos. Então, por exemplo, dentro do pacto do consumo... o pacto do consumo da moda é pra quem? É pra quem é magra, pra mulher magra, é pra uma mulher cis magra, pra mulher cis Eva. É pro homem cis Adão. É pra família. Você vê ali, são coisas que geralmente estancam as personalidades do indivíduo, estancam o indivíduo, desaparece o indivíduo, ali, quando você compra uma roupa industrializada. Porque, por exemplo, tinha uma época que já não tinha mais emprego, então precisei desenvolver algo pra eu trabalhar, pra eu ter dinheiro e é ‘muito louco’, porque quando a gente está falando também de mercado de trabalho, de trabalho, pra mim o trabalho é um... todo mundo fala que o trabalho dignifica, que é algo que hoje em dia é lido como um processo de dignificação, mas na verdade o trabalho deriva de um objeto de tortura. Então, a palavra trabalho, tripalium, vem de um processo de tortura. Os escravizados eram torturados com tripalium, com trabalho. Imagina! Então, por isso que hoje em dia… olha que loucura! Como assim? Então, eu sou atravessada pelo meu trabalho, o trabalho é uma tortura, porque hoje em dia a gente só vive pra trabalhar. Imagina a pessoa que trabalha no ‘chão de fábrica!’ Isso não é algo que dignifica alguém. Isso aliena. Isso é uma tortura, uma maneira de torturar. Então, quando a gente está falando como isso me formou, como eu venho me formando, foi pra, de fato, trazer pra mim mesma algo que fosse menos violento, a partir do momento que eu estou enxergando aquilo, que eu estou vendo que aquela violência está ali, aquilo está ali, contra mim. Então, eu quero fazer coisas que, de fato, sejam boas pra mim. Eu quero viver bem. O mínimo, nessa vida de violência, a gente quer viver ‘de boa’, quer ficar ‘de boa’. Como eu fico ‘de boa’, dentro desses processos? Ai, tudo é transfobia. Então, estou dentro do espaço público, o espaço público não é pra mim. Estou precisando comer... quando eu falo que eu trabalho... olha que loucura, pensando nas memórias: quando eu estou construindo uma imagem de pessoas trans inseridas minimamente na sociedade, eu estou construindo a imagem de travesti comendo, porque travesti não existe imagética de travesti comendo. Você vai em um restaurante, não tem travesti comendo. Você vai na universidade, no bandejão, não tem travesti comendo. Como que a gente entrava pra comer, na universidade? Pedindo pras pessoas, armando um esquema, pras travestis irem lá, comer, porque estavam passando fome, pedia RA pros alunos e aí a instituição vai ‘tesourando’. Então, o tempo todo você está ali, clandestina, pra poder comer um básico, pra ter o básico do básico da vida. Então, acho que isso que me forma. Muito do que eu sou hoje óbvio que foi buscando beleza, de onde foi tirado de mim colorido, o que me deixou feliz. Esse processo de costurar dessa maneira que eu costuro, essa tecnologia também acaba caindo num processo que a gente pode ler como um processo terapêutico. Por quê? Não um processo terapêutico no sentido profissional, da coisa, ali, do estudo, mas um processo onde você acaba abrindo - aquela pessoa trans, aquele corpo abjeto, que não deu certo, começa, através do lixo, dos retalhos, de percepção - um outro caminho. Caminhos que fecharam pra você e que limitaram a sua existência até ali, mas ali você abre outras portas e aí tem outras infinitudes, pra você viver. Então, acho que pra mim é isso. Eu venho desse movimento. É isso. (risos)
(49:37) P1 – Tem alguma história inesquecível pra você, na infância, começo de juventude?
R1 – Inesquecível? História inesquecível? Deixa eu lembrar, aqui. Eu lembro da minha juventude, eu tive uma juventude interessante. A partir do ponto da minha mãe, eu tive bastante liberdade, no sentido de que eu consegui fazer o que eu queria, dentro de um limite cisgênero. Mas tem muitas histórias. Poxa! Eu lembro da minha juventude... deixa eu, aqui... eu me lembro [de ser] muito artista, já, interpretando. Na escola, eu já era uma pessoa que tinha bastante personalidade, eu tinha até uma certa inteligência, mas eu não sei, agora. Não consigo ‘cavoucar’ isso. Eu lembro que eu dançava muito na rua, eu sempre gostei de fazer esporte, mas uma história específica agora eu acho que eu não consigo me lembrar.
(51:22) P1 – Não tem problema. Seus pais se separaram?
R1 – Bem lá no começo.
(51:28) P1 – Você era pequeno?
R1 – Uhum, pequeno. (risos) Foi logo que meu irmão tinha uns três anos. De verdade, eu não lembro do meu pai na minha infância. Não tenho memória dele. Eu tenho memória dos ‘barracos’ dele, mas dele, ali, não. Ele é um escroto, acho que eu deletei a minha memória dele. Não vale a pena você ter a memória de uma pessoa assim. Vale no quesito investigação, mas guardar uma memória interessante dele eu não tenho. Ele vendeu minha casa. Isso já não é mais na minha juventude. Quando eu tinha 31, 32, ele vende a casa e aí a gente vai morar na rua. Ele dá a casa pra um outro homem. Olha que macho benevolente! Ele passa a casa dele, que não era mais dele, porque se ele nunca pagou pensão e a gente morou mais de vinte anos na casa: a casa é de quem? Por dívida. E aí essa dívida não era uma dívida, porque não existia uma cobrança, você entende? E aí a gente sai da casa, foi aí que eu vou pra Unicamp. E aí mais uma vez ele vai e se refere... olha que ‘viagem’! Macho é uma coisa (risos) que é ‘muito louca’! Ele com ‘ar’ de vingança. Agora eu vou te falar outra coisa: um macho burro, porque ele deu a casa pra um outro homem, pra um médico e ele, hoje, não tem nada. Olha! E aí você vem me falar que isso é pecado, castigo? Não, é uma falta de estratégia. É uma consequência de uma falta de estratégia. Ele não está pagando espiritualmente. Existe ali uma consequência, por um ato mecânico que ele fez, que é pegar uma casa que valia tanto, por vingança de uma família que ele criou, que ele não deu conta nunca de assumir aquela família, de bancar minimamente, de ter responsabilidade por aquele corpo que ele ‘botou’ no mundo e ali, no final de tudo ainda, ele dá mais uma ‘cagadinha’ em cima, que é tirar até o que é dele, pra ele poder se vingar. Olha que inteligência! (risos) Então, isso, pra mim, me trouxe um movimento de pensar nos atos: “Olha, pensa antes de fazer as coisas, Vicenta, porque as coisas vão acontecer por etapas, a gente precisa ser mais planejada, pra não cair nesses ‘buracos’”. Isso de dez anos pra cá, quando eu saí dessa casa, que isso é muito mais evidente pra mim, muito mais transparente. Porque até lá, quando você mora em uma casa própria, você tem uma certa estabilidade, também. A partir do momento que você perde aquilo, aí começa a vir a vida, como ela é. (risos) Então, várias coisas começam a acontecer e que você não tinha conhecimento, até então. É isso.
(57:07) P1 – Eu acho que eu vou, se possível, voltar só mais um pouquinho.
R1 – Tá bom.
(57:13) P1 – Pensando nesse momento da infância, se você assistia programas de TV, ouvia músicas, as brincadeiras dessa época. O que você queria ser, quando crescesse. O que você pensava sobre isso. Se tinha alguma comida muito marcante pra você, nesse tempo.
R1 – Olha, eu lembro que eu brincava bastante de boneca. Eu sempre fui uma coisa... sempre estava relacionado, muito, à minha... como eu posso dizer?... eu acho até que eu tive uma infância ok, porque óbvio que minha mãe trabalhou pra que a minha infância acontecesse daquela maneira, então tem esse... às vezes a gente nunca é exatamente: “Ai, eu sou isso, porque eu sou isso”. Então, às vezes tem outras pessoas por trás também, se movimentando, pra você ser alguma coisa ali. Então, eu lembro que brincava de Queimada, na rua, à noite, com os vizinhos, então também tinha, ali onde eu morava, era um terreno de frente, redondo no meio, então era uma rua em volta. Aqui era uma rua, aqui era outra rua, aqui era outra rua, aí aqui [era] minha casa, na esquina. Aqui era um terrenão enorme, também. Aí eu brincava de Queimada; a gente fazia, às vezes, uns bailinhos na minha casa. Comida tinha uma muito marcante que eu lembro até hoje, que demorou muito pra eu poder descobrir o que era o sabor daquilo, que era um macarrão com molho bolonhesa, mas tinha um gosto específico, que era do manjericão. Demorou anos pra eu entender o que era o manjericão e até hoje eu sou uma pessoa que me utilizo do manjericão, nessa memória do paladar. Eu amo manjericão, amo molho de tomate com manjericão. Até ‘corto’ a carne, mas o manjericão tem que ter. Pesto de manjericão, plantação de manjericão. Nessa minha fase São Paulo, que é uma terra sem terra, (risos) sem sol, eu não tenho como comer manjericão. Eu também acho que eu tenho uma memória muito interessante: a minha vó por parte de pai, uma época, a gente começou a ter uma relação muito entrelaçada, desde criança eu tenho relação entrelaçada com minha avó por parte de pai. Até minha boca é parecida com a dela. A maneira que eu enxergo, acho que essa maneira de enxergar a vida, esse ‘truque’ da vida capitalista vem dela também, eu acho, porque ela era vegetariana, ela já era vegana. Tinha uma época, ela era uma mulher muito ligada à questão da estética, então ela se alimentava... e ela era enfermeira. E era costureira também, ela que fazia as roupas, a máquina é dela. Ela era vegana, então hoje eu sou vegana. Eu me alimento de... eu me lembro que ela tinha um livro na casa dela, que eu lia e que era sobre os alimentos. Até hoje eu sou ligada a isso. Então, eu tomo chá de alecrim, chá de manjericão, uso manjericão na comida, gosto de comer alimentos que me nutrem, tomar muita água, faço muita yoga. Hoje em dia, eu faço capoeira também. Hoje eu entendo o que é a capoeira, o que é a yoga, o que é a transmutação têxtil, o que é uma tecnologia social e não é nada especial, mas, por exemplo, a capoeira é uma tecnologia que as pessoas escravizadas... não sei se eles construíram isso. Não é uma filosofia, pra mim é uma tecnologia mesmo, porque pra criar uma certa visão, então os exercícios de capoeira, tal qual a costura, você tem que se utilizar muito da visão, então na visão você prevê o que vai acontecer. Na costura, ali, a visão, você tem um comando visual, então ali você vai também desenvolvendo outros processos cognitivos, tal qual a capoeira, você também vai desenvolvendo o cognitivo lutando capoeira. Os movimentos circulares. Essa coisa de hoje em dia, o movimento da branquitude, da cisgeneridade, do capitalismo, neoliberalismo, esvazia o ser. Então, você não tem visão periférica, só uma visão... e a capoeira não, ela te dá uma visão de 360. A questão europeia, de enxergar o céu como Deus, a capoeira é a terra, então é outro contato. Então, isso me deu um outro processo. Isso me ajudou muito na questão de quando eu entrei na Unicamp, inclusive enquanto estratégia de manter as pessoas trans lá, no meu ateliê; uma maneira delas também gastarem energia, porque também, quando eu falo de capoeira, eu estou falando de uma estratégia de vida, porque, pra mim, o neoliberalismo é uma estratégia de morte. É necropolítica. O que forma o neoliberalismo, os milionários, é a morte das pessoas. Pensando em um movimento atual, o Bolsonaro, o que o tornou milionário? A morte das pessoas. Então, tem esse detalhe. E aí, voltando pra minha vó, pra essa memória do paladar, essa coisa de não comer a carne, a questão de não comer a carne não é sobre, exatamente, veganismo, mesmo porque o veganismo já se tornou também um produto, mas é sobre algo que, pra mim, não digere bem, demora pra digerir; segundo, eu tenho mais energia quando eu não como carne; e eu entendo que a carne também é um movimento... enfim, pra mim é mais... eu prefiro comidas que me nutrem, não que desgastem tanto meu intestino, que fiquem paradas ali. Tanto como a gente tem a carne, a gente tem o glúten, o trigo, o açúcar, o café. O café, pra mim, hoje em dia, da maneira que a gente toma é sobre produtividade, sobre você ter uma energia também que vai te deixar ‘elétrica’, que você vai precisar gastar e pra você gastar aquilo, você não pode pensar. Então, é toda uma coisa de esvaziamento, mesmo. Eu acho que o que me fez ver esse processo necro, porque se a gente está falando de comida hoje, a gente está falando de indústria, da agropecuária, do agronegócio, a gente está falando de indústria química. Então, às vezes, quando a gente fala: “Você é o que você come”, você é um corpo, que você é o que você come, de fato, porque, se você é um vegano, você tem um perfil; se você é carnívoro, você tem um perfil. Então, essa questão da minha avó me trouxe esse lugar, de ter essa consciência, vamos dizer assim, na hora de me alimentar, mas essa comida, esse molho bolonhesa de manjericão demorou anos pra eu entender isso, até que um dia eu fiz… não lembro como foi que eu descobri, mas era buscando esse molho e hoje em dia eu faço esse molho, até hoje. É isso.
(01:07:22) P1 – E você pensava o que você queria ser, o que você queria fazer, quando você era pequena?
R1 – Na escola existia um... eu lembro que a minha maior memória é que, nos anos noventa, eu era bem fã da Madonna, eu queria ser a Madonna. Wannabe. Mas eu lembro que quem vestia a Madonna era o Jean-Paul Gaultier, era uma moda de rua. Eu faço hoje roupa pra você pegar ônibus. De mudança de estrutura molecular, mesmo. De mudar a maneira do seu dia-a-dia. Muitas vezes parece que é uma roupa especial e é, de fato, mas não nesse lugar do especial do exótico, porque muitas vezes as pessoas falam: “Não é roupa de desfile”. Não entende a roupa, porque o cognitivo, óbvio que não vai entender, mas é isso, o que ela vai impactar em cima do que ela está gerando enquanto um objeto que está propondo um processo de mudança molecular mesmo, tipo você vestir aquilo e aquilo te dar uma reação, você começar a pensar. Eu não lembro a pergunta, desculpa.
(01:09:04) P1 – (risos) Imagina!
R1 – Ah, lembrei! Então, eu sempre fui atravessado... atravessado, nossa! Eu sempre fui atravessada pelas podas, mas como escapar dessas podas? Como construir essa resistência, essa resiliência, não sei se esse é o nome, se essa é a palavra certa, mas eu sempre tive um ‘pé’ na arte, sempre. Eu lembro que, na época, existia um processo, na escola, de teste de aptidão e nunca tinha nada sobre arte, lido hoje como o ‘artista não é nada’, a não ser que seja rico, trabalhe na Globo, em Hollywood. E é ‘muito louco’, porque aí eu queria fazer Biologia e aí eu começo o meu estudo na moda estudando sementes. Aí, a partir das sementes, eu estudo a população, as etnias que viviam no entorno e como elas lidavam com o consumo dessas sementes. E aí vem todo um estudo sobre consumo e formação de estereótipos e aí chega na moda, chega na indústria. E aí a gente entende a indústria hoje como - a gente, não, eu – um grande produtor, é uma fábrica de pessoas, no fundo, no fundo, porque as pessoas já são pré-fabricadas, não é? Você já nasce: “Menino, ou menina?”, “Não, amor, não, não. Ela vai decidir o gênero dela quando ela...”. Isso, pro capitalismo, eu acho que não poderia existir, não pode existir. Imagina você se entender! Você não pode se entender. Você tem que ser da maneira que criaram, que foi pra você. Então, essa relação com a minha avó trouxe muito isso pra mim. Muito esse lugar de chegar nesse lugar, esse caminho. Inconsciente, talvez, dela, mas a família da minha mãe também, dessas mulheres todas, me ajudaram a chegar nesse lugar questionador, porque, por mais que é um bando de gente alienada, são alienadas também, mas de alguma maneira são, por exemplo, mulheres, várias, não são mulheres que são brancas, lidas como brancas. Elas são lidas como brancas, mas eu também vejo que existe também a questão dos fenótipos, a gente sabe que fenótipo não define o ser humano, mas dentro da subjetividade do racismo, o fenótipo está ali. Então, elas também, como são filhas de um homem que tem raízes, elas também trazem fenótipos, cabelo crespo. Elas são mulheres também que foram, pra além de serem mulheres, também são mulheres... não são lidas como racializadas, mas eu acredito que uma certa parte da opressão vem pelo processo do racismo. E aí são mulheres que conseguiram, que são fortes, então essa força acho que também vem delas, da minha avó, delas e da minha mãe também. Realmente, do que eu lembro, que às vezes eu fico pensando da memória da minha família: “Ai, eu estou agindo que nem o meu avô, por que ele agiu dessa maneira? Será que eu estou bebendo muito? A bebida me deixa irritada, aí eu vou agir igual a ele”. Então, às vezes eu também trago esse ódio desses machos, saca? Mas só que de outra maneira: a força do ódio, não a força do ódio machista, mas a força de um inconformismo, de não admitir, não aceitar o que foi dado. Às vezes eu tenho... por muito tempo, eu tenho andado em ‘bolhas’ trans, ‘bolhas’ de artistas, ‘bolhas’ de artistas trans e eu vejo assim: saindo um pouco da ‘bolha’, que também é um lugar... às vezes eu fico pensando assim: “Existem lugares que a gente... existe esse processo do conforto, que é esse lugar onde o cisgênero está, na ‘bolha’ de conforto, mas existem também lugares que a gente, que é atravessada pela violência, o corpo lido como dissidente, às vezes necessita de construir espaços que nos confortem. E aí é mais uma ‘bolha’, no caso, e está tudo bem, porque ali é um lugar que tem menos violência. Ali vai gerar outras violências, mas não é a mesma ‘bolha’ que está o tempo todo ‘fodendo’ com a gente”. Aí eu dei uma saidinha, um pouco, dessa ‘bolha’, voltei a dialogar um pouco com os cisgêneros e com alguns cisgêneros conformados e é bem difícil, (risos) porque as pessoas têm um grau tão grande de alienação, que elas não conseguem enxergar. Por exemplo, eu estou procurando casa aqui em São Paulo. As casas em São Paulo não têm janelas. Se tem, é ‘desse tamanho’, não bate sol, tudo mofado. Como uma pessoa consegue construir uma casa que não vai ter janela, por que ela prefere viver no mofo e está tudo bem? Azulejo. Então, fico pensando nesse conformismo. Aí eu estava conversando com a minha mãe, por exemplo: “Ai, só tem azulejo, as casas”, “Mas é mais fácil de limpar”. Espera, como assim é mais fácil de limpar? Você não consegue ter, minimamente, uma saúde, porque você vai viver no mofo, você vai ter asma, doença, vai ter que tomar remédio. Você vai ter que viver uma vida tomando remédio, porque você não sai do mofo, tu vai ter uma doença, que vai ter que estar sendo medicada ali, pra você não ter sintoma, mas a doença vai estar lá. Então, esse corpo medicado são vários processos... isso que eu estou dizendo é um pontinho assim, só pra um exemplo de como as pessoas estão alienadas, mas é muito maior do que isso, do que uma casa sem janela (risos) e com azulejo, cheia de morador de rua, em São Paulo, onde o prefeito e o Poder Público não fazem nada. Tem isso também.
(01:17:31) P1 – E a sua juventude, esse momento de efervescência, de descoberta de si e do mundo? Redescobertas. Como foi, mais ou menos, esse período?
R1 – A partir do momento que você é uma pessoa não conformada, atravessada por violência, eu fui uma jovem rebelde. (risos) Eu lembro muito de rave, gostava de ir em rave. Eu lembro que eu comecei a fumar maconha com dezoito anos, às vezes tardio, não sei. Depois de um tempo eu aprendi a beber, também. Eu lembro de uma amiga. Ai, ó. Eu sempre andei com gente muito linda. ‘Muito louco’ isso. Linda assim: aos padrões, aos ‘olhos do padrão’. Aí eu tive uma amiga que era muito linda, que a gente ia a pé pra escola. Eu morava em um bairro, tinha que atravessar uns dois, três bairros, pra gente ir a pé, que também a construção, assim, então hoje eu tenho bastante resistência pra respirar, pra andar, pra fazer esporte, porque sempre, a caminhada, pra mim, foi também um ponto de liberar serotonina, de autocuidado mesmo. Daí eu ia pra escola com ela, aí eu lembro que, quando eu comecei a estudar à noite era um horário que chamava vespertino, acho que era das cinco às nove, alguma coisa assim. E [era] essa mesma escola que eu estudei do primeiro a oitavo. Tem vezes que eu até sonho com essa escola, até hoje. ‘Muito louco’. Que era a escola que tinha um palcão, tinha a sala também, que tinha o palquinho, tinha um gramado enorme, de tobogã, mas bem grande mesmo, escola pública, na frente de um parque, lá em Campinas, também. Então, lá eu tive vários processos dentro de... aí eu já comecei a ser uma revoltada, brigava muito. Eu lembro que eu brigava, batia, dava porrada, era meio perigosa, uma época. (risos) Eu andava com uma ‘galera’ também perigosa e a gente ‘causava’, era uma ‘galera’ que gostava de ‘causar’.
(01:20:37) P1 – Isso na escola, ou fora?
R1 – Na escola e fora. Quando eu passava nesse bairro aí, que tinha um bairro que era um pouco mais periférico, então aí a ‘galera’ perigosa. Então, eu era ‘causadora’. ‘Causava’, depois a gente começou a ir pra raves, aí nas raves acho que eu bebia bastante, eu não me drogava. Álcool é droga, mas era maconha e álcool. Acho que quando eu tinha uns 25, eu comecei a usar cocaína. Aí eu era violentona. Aí eu comecei... a relação na minha casa era ‘muito louca’, porque minha mãe não se conformava comigo, eu não me conformava com ela, a gente vivia uma relação tóxica, esse imbróglio. E aí onde eu era mais feliz era na rua, fora de casa, mas hoje acho que eu até entendo. Não entendo tudo, porque, pensando em planejamento, como você vai podar alguém que você, um dia, vai precisar, de repente, dela, já que esse pacto está dado? Então, tem uma outra coisa também: meu pai ‘virou’ Testemunha de Jeová. Minha avó também, essa minha vó que era minha amiga. Aí, a partir disso, eu já não conseguia mais. Eu tentava ir lá, na igreja, fazer estudo bíblico, mas eu não conseguia, eu dormia, era horrível pra mim. Até uma época que eu acreditava em Deus, mas forçadamente. Mas hoje em dia eu já entendo que Deus, de fato, não existe etc. Nessa época que eu era mais cristã, a gente começa a viver baseada em culpa, também. Então, nosso corpo é muito atravessado por culpa. Então, essa minha juventude também foi, talvez, atravessada por fuga dessa realidade, dessa pressão e de outras maneiras de existência, mas toda vez que você busca viver outra maneira de existência vai ter uma coisa de uma culpa ali, porque não é pra você viver daquele jeito, do jeito que você gostaria, ou que você se entende enquanto você. É pra você viver de uma maneira na qual foi determinado pra você viver. E essa determinação, a Bíblia embasa. Depois, esqueci o nome agora. Ai, espera aí. A catequização. Pra mim, eu vejo a religião cristã como um pilar do capitalismo, porque ali ela embasa tudo, ela delibera o que é gênero, quem tem que morrer, quem tem que viver, uma maneira... ela cria um sujeito ali, uma subjetividade na qual tem alguém te observando e aí a culpa vem disso: tem alguém te olhando. E eu vejo que eu carrego essa culpa até hoje. Tudo que eu faço, às vezes, tem culpa, eu fico me explicando. Os meus textos vêm uma explicação da explicação da explicação, é ‘muito louco’ e eu também tenho uma memória de que uma vez eu passei no vestibular, pra fazer Moda, a minha família é Testemunha de Jeová e me impediu de fazer. É, ‘muito louco’.
(01:25:44) P1 – Como?
R’ – “Não, você não vai fazer, a gente não vai te ajudar, ‘foda-se’, você não vai fazer Moda. Você não tem nem que estudar. ‘Viado’ não tem nem que estudar”. Então, isso é um trauma e aí eu insisti e é ‘muito louco’, porque aí eu vivia junto com a minha mãe, nessa casa que era do meu... né? Lá eu tinha um ateliê, já, mas pra ela era um terror esse ateliê. Ela odiava. Isso me fazia muito... ao invés de ‘soltar o anjo’, quer segurar. Então, eu tive essa adolescência assim, ‘muito louca’, muito revoltada. Aí eu fui trabalhar em shopping. Aí lá que, de fato, eu começo a desenvolver um mecanismo onde eu pudesse trabalhar com moda.
(01:27:19) P1 – Como você ouvia isso da sua família: “Não, você não pode”? Pensando de dentro.
R1 – Era sempre ‘gatilho’ atrás de ‘gatilho’. E aí a resposta é a fuga. Enquanto você não entende porquê você está fugindo... e a fuga, de fato, não é pejorativa. A fuga é o seu corpo respondendo àquilo que você, que o seu cérebro... eu penso assim: o cérebro e o corpo. Não é uma coisa. Um está dentro do outro, mas às vezes o seu corpo age de uma maneira que você programou no seu cérebro e o seu corpo não consegue fazer. Então, era ruim, era horrível, porque sempre é um estímulo, às vezes não é falado, às vezes é só... tem essa coisa da minha mãe, que não falava. Eu também sou assim, eu não falo. Hoje em dia, eu aprendi a falar, mas aí eu grito. Eu ainda guardo muitas coisas que não são necessárias guardar, por esse movimento meu, que já virou um movimento que já é do meu corpo. Eu sinto necessidade de não agir mais dessa maneira, mas ainda ‘bate’, volta, tem flashback, situações nas quais eu não consigo lidar e isso volta, é um vórtex pra mim, mas eu quero (risos) sair disso, eu não quero carregar isso pra sempre. Pode ser que eu carregue pra sempre, mas com menos ‘peso’, aparecendo menos isso. Mas era muito ruim. Até que eu me dei bem, no sentido de representar esse ódio em objeto, (risos) limpar minha cabeça desse ódio foi costurando, mesmo. Acho que a partir do momento que eu começo a costurar, que também é tardio, porque logo acho que, sei lá, com 27 anos eu fui internada numa clínica, porque eu já estava assim: “Uehhhhhh”. (risos) E foi ótimo. Era uma clínica espírita, cristã, ecumênica. E eu precisei me utilizar dessa clínica, pra eu poder estancar aquela coisa da compulsividade, porque isso... às vezes eu não sei o que te leva a ficar viciada porque, por exemplo, o açúcar é um vício, acaba se tornando compulsório; o café; a carne; os movimentos que você faz. Então, usar cocaína que, na verdade, não é cocaína, é um pozinho, te leva... sei lá, é ‘muito louco’ os receptores. Então, como parar esse movimento? Você tem que parar. Agora, como parar isso aí também é uma outra construção de vida, porque o seu corpo, às vezes, pede; seu cérebro pede. Pra mim, não foi muito complicado parar de cheirar, mas foi um processo. Eu tive que me dar esse tempo. Então, hoje eu entendo que a gente precisa, inclusive, ter o nosso tempo. Nesse meu último curso, eu trabalhei isso também, com os alunos, eu falei: “Gente, a gente está num espaço público, a gente tem as máquinas de costura, todo o material, comida, um espaço que é lindo”, que eu mandei montar o ateliê num espaço belíssimo, onde bate sol, uma luz assim, ó. Então, você vai estar liberando serotonina. Nós somos corpos que não podemos ser lidos como artistas, porque a gente precisa trabalhar; nós somos corpos que não eram pra estar aqui, então a gente está aqui, a gente não precisa se preocupar com metade das coisas, já. Então, vamos viver o empírico, o fundamento, mesmo. Por que eu estou falando isso? Eu percebo que a cisgeneridade também tem sua metodologia de parar. Por exemplo, se utilizam da yoga, porque a yoga é um tecnologia indiana, africana, pra poder se recuperar, se manter, parar pra pensar. O corpo abjeto não, você tem que ficar correndo contra tudo o tempo todo: “Eu preciso comer, viver”. É insano. “Eu estou com baixa autoestima, eu preciso ficar bonita, não sei o quê. Eu preciso trabalhar, de ‘grana’, morar” e, por exemplo, quando você vai numa galeria de arte, o corpo branco, o corpo cis, ali você vê aquelas pessoas olhando aqueles quadros, que só realimentam quem são elas. Então, a arte também, pra mim, é um ponto importante sobre transformação e/ou alienação. E a gente, que é corpo abjeto, vai numa galeria de arte e fica só no ‘gatilho’. To, to, to, to, to, to, to, ansiedade. To, to, to, to, to. Não consegue. Primeiro, porque aquilo não foi feito... aquela imagem já não é pra mim. Eu não vou querer ver flor. Minha vida não é flor. Não vou querer ver europeu ‘trepando’, não é isso. Então, hoje, no caso onde eu queria (risos) chegar sobre isso é que existem tecnologias que foram cooptadas pela branquitude, nas quais a gente não mais sabe o tanto que isso é importante pra gente, porque eles roubaram isso da gente. Os europeus fizeram isso. Por exemplo, quando a gente fala que o indígena é vagabundo, sendo que o trabalho é um objeto de tortura: quem é vagabundo? A maneira que eles vivem, hoje eles não precisam trabalhar, meu amor, então tem todo esse jogo. É um jogo. É a Caverna do Dragão. Você não sabe onde está a saída, (risos) nunca. Então, é isso que eu penso. E quando eu falo de ‘bolha’, como ali a gente construiu um espaço confortável, onde você pudesse minimamente tirar alguns ‘gatilhos’. "Não se preocupe com seu ‘gatilho’ enquanto você estiver aqui. Trabalhe outros processos no seu cognitivo". Que é isso, que aí eu acho que vai gerando uma força dentro, que você vai entendendo a partir da costura, a partir de todos aqueles elementos que estão ali: o sol, a costura, a possibilidade de enxergar outros movimentos. Se isso seria fuga é uma fuga da realidade? É, mas de uma realidade na qual foi criada pra gente e que, na verdade, essa realidade é uma invenção capitalista, da branquitude, da cisgeneridade, da Europa, não é pra gente, que é brasileiro. Então, como a gente vai construir uma maneira de existência menos violenta, que traga menos trauma? O tempo todo eu estou falando disso. Quando você vai remexer, quando eu vou remexer meu passado eu só vejo trauma. Então, ai, coisa boa, oh, que coisa boa! (risos) As fugas que eu tive que enfrentar foram boas. Quando eu fui morar na Unicamp, a minha vida acho que deu outro boom, que aí eu me livrei de carregar a família nas costas, de carregar o trauma, aquele ‘peso’ de não ser eu. Acho que o ápice da minha vida foi ir morar na moradia da Unicamp.
(01:37:48) P1 – Quantos anos você tinha?
R1 – Trinta e um, 32. Tarde, já. Já era estilista, já estava investigando, mas ainda dentro de uma propriedade privada, na qual estava emergida na culpa cristã, nesse processo maldito de existência cisgênera.
(01:38:16) P1 – Te ouvindo, estou entendendo que a moda, essa linguagem, esse jeito de se expressar está presente na sua vida desde nova, de referência, né?
R1 – Uhum. Sim.
(01:38:33) P1 – Mas em que momento você considera que agora você ‘entrou’ nisso? Em que momento da sua vida você começou a... não sei se necessariamente trabalhar, mas isso...
R1 – Praticar, né? Ter uma prática?
(01:38:52) P1 – É.
R1 – Acho que o momento que eu começo a praticar a coisa da moda foi quando... primeiro momento: vou trabalhar numa loja de shopping. Então, é meu primeiro momento com a moda. E aí eu aprendo técnicas de vitrine, dessa coisa do visual, merchandising: como montar uma loja, como organizar uma loja, como manter o estoque, como manter o layout, como montar uma vitrine, como ter uma linguagem visual da cor. Aí, lá nesse shopping, eu conheci uma pessoa muito importante também, uma ‘bicha’, uma amiga minha, uma gayzona e ali a gente começa a ter diálogos mais aprofundados sobre moda. Daí eu saio desse shopping e vou trabalhar, lógico, ‘tombada’, ‘gongada’. Eu sempre fui uma boa vendedora. Falo, argumento, sempre fui estilosa, enfim, mas ninguém quer ver uma travesti ascender. Então, era o alvo, ao mesmo tempo. Eu também nunca ‘deitei’ pra patrão, então mandava meu patrão se ‘foder’ numa boa. “Você que precisa de mim, meu bem. Quem é a melhor vendedora daqui, dessa ‘merda’, dessas roupas cafonas? Quem faz a pessoa, que constrói? Sou eu, não é você. Você é o dono da loja. Então, contrata alguém melhor do que eu”. ‘Muito louco’, porque é uma maldição: eu saía das lojas, elas fechavam. (risos) A maldição da travesti. (risos) Não duvide de uma travesti, porque eu estou vendo de outros ângulos. Às vezes eu fico muito ‘puta’ com pessoas, também, falo: “Gente, como vocês duvidam de uma pessoa trans falando? Eu estou falando que está acontecendo isso, você está falando que não. Para de ‘viajar’”. Então eu começo a ter uma relação muito intensa com essa minha amiga, com essa ‘gata’, e a gente começa a se aprofundar. Aí, logo na sequência, nisso, meu sonho já era ser estilista, é um sonho, aí eu começo a fazer a coisa da semente. Aí eu lembro que uns amigos meus... então, eu já estava ‘rasgada’ pela: “Não, você não vai estudar moda”. É ‘muito louco’, porque hoje em dia eu ‘quebrei’ o pacto com a moda. Eu não faço moda, é isso que eu penso, porque a moda é um pacto também, a moda é sobre indústria. O que eu faço é rasgar esse contrato, porque não é sobre fazer alguma coisa pra alienar. É sobre fazer alguma coisa pra mudança molecular, pra pessoa ser arrebatada, sair desse movimento. Isso não é importante pra indústria, também. Importante pra indústria é que você seja uma estilista que faça uma roupa palatável pra cisgeneridade, uma roupa superfeminina, uma roupa supermasculina e supermasculina de homem cis e superfeminina, de mulher cis. O tempo todo é isso e o tempo todo a indústria vem forçando a gente a ser aceita. A pessoa fala assim: “Ai, precisa ser mais...”. Não, não vai ser assim. Eu não faço acabamento... primeiro, pra aprender a costurar, eu não conseguia, não tinha cognitivo pra aprender costurar roupa cis, nunca consegui. E pra eu aprender a costurar, minha avó não me ensinou, minha outra avó tentou me ensinar, mas eu também não consegui e aí eu comecei meio que costurar sozinha, aí eu comecei a ver umas imagens e a querer replicar aquilo, que é até hoje isso, que são os retalhos, grudar os retalhos e misturar textura e criar uma nova possibilidade e isso, pra mim, já vai se tornando, imageticamente, um corpo, porque a roupa cisgênera tem aquele corpo já, predefinido. A roupa que eu faço destrói o corpo pré-definido, muitas vezes não tem cintura, tinha época que eu não fazia cintura. Hoje eu faço cintura, porque muitas travestis modificam seu corpo e querem mostrá-lo. Então, ela quer a cintura da travesti, mas cintura da travesti não é a da cis. Então, não é uma roupa cis. Ela já quebra a imagética, também. Então, vamos dizer que esse processo da minha família não me deixar fazer moda, de fato, aconteceu, porque eu não faço moda. É um plano que deu certo! (risos) Mas que me trouxe, também, grandes problemáticas. É isso. Acho que eu vou demais, não sei onde eu vou parar. (risos)
(01:45:51) P1 – Mas é isso que eu estou querendo perguntar.
R1 – O que você tinha perguntado?
(01:45:56) P1 – Esse início.
R1 – Ah, tá. Aí eu começo a fazer esses colares de sementes. Dentro dessas redes, eu comecei a entender, de uma maneira bem errada, a questão da importância do território Brasil, terra brasilis. E aí eu começo a investigar as sementes e isso até então, pra mim, era Brasil, na sua pura branquitude, lida através dos olhos da branquitude e eu começo a investigar a brasilidade. Então, a partir das sementes, eu começo a investigar o Brasil, a importância de ser uma moda brasileira, de ser uma artista brasileira, de investigar o território, de ver o micro, pensando na semente de certa região, ali é um micro processo social acontecendo, não é um macro. Então, eu começo a ver, observar como que a sociedade, as tecnologias, a sociedade ancestral, os povos originários, os povos africanos, lidavam com essa questão de construção dos ornamentos. E aí a gente entende, por exemplo, pra pegar uma semente, pra você fazer um ornamento com uma semente, você precisa esperá-la cair da árvore, diferente da maneira que o consumo foi construído, que é sugar, até acabar. Não, você faz parte daquilo. Então, entender que a gente faz parte de um processo. Quando eu falo molecular é porque o processo é, de fato, molecular, eu faço parte de um movimento, que vai gerar outro movimento, que a gente vai sair uma da outra, que a gente faz parte daquilo. Quando o movimento é esse processo capitalista, a palavra ser humano, pra mim, soa muito como distinguir quem é humano e quem não é. Então, quem é humano? Porque a pessoa negra não é lida como humana. A pessoa travesti não é lida como humana. A pessoa indígena não é lida como humana. É como selvagem. É um corpo que não deu certo, um selvagem. É um preto. É um PcD. É uma gorda. Então, isso, pra mim, já vem nesse movimento. Então, começa, é o início da investigação. Dali fiz, fiz, fiz, aí eu me inspirava muito nos indígenas e aí eu começo um processo de investigar e recriar peças inspiradas nesses looks, nesses ornamentos ancestrais, vamos dizer assim. E uma época eu também percebo que eu estava começando a me apropriar desse lugar. Também é uma percepção muito importante pra mim, porque a partir daí eu me utilizo dessa técnica, pra trazer e entender que isso, dentro do processo capitalista da necropolítica, se utilizar de tecnologias ancestrais é trazer à tona um processo de vida, mesmo, de transmutar. Então, quando... e aí, pensando na semente, no consumo, chega um certo verão... um certo inverno, que a semente já não vende mais, aí eu parto pra fazer objetos de lixo. A partir disso... eu fazia objeto mesmo: bijuteria, joia. Dentro dessa internação eu fiz um curso de joalheria, com uma ‘bicha’ muito famosa, que faz joia pra Beyoncé. Então ali também já começo a ser lida por outros profissionais, coisa nas quais as pessoas que convivem comigo não viam em mim. Isso acontece comigo até hoje. Eu não sei como eu me movimento, como eu tenho que me movimentar, ou se eu preciso... hoje eu não preciso me movimentar mais, mas pras pessoas me lerem dessa maneira, como artista, eu vejo ainda que isso acontece muito... isso é um processo que não é sobre mim, mas as pessoas, às vezes, não me leem como artista, da maneira que eu deixo elas me acessarem. Olha que loucura! Eu deixo você me acessar, ainda você acaba comigo. Mais uma vez, você me mata. Já não basta quem me matou, você vem e me mata de novo. Isso, pra mim, ainda é um ‘gatilho’ e que eu já estou fitando nas pessoas. É difícil sair disso. Aí, dentro disso, eu começo, eu sinto necessidade de que: “Bom, agora chegou a minha hora de fazer roupas”. Aí eu entro num curso, numa ONG, lá em Campinas, pra quarenta pessoas, o curso, quarenta máquinas de costura. Aí lá eu aprendo a costurar. Não sozinha, em coletivo. Aí eu começo a desenvolver, já descubro a overloque pra fora, começo já a costurar na overloque. Já faço meu primeiro pano, porque eu lembro que eu queria... não, desculpa, vou voltar. Eu [não] começo a costurar nessa hora. Eu começo a fazer roupa antes de aprender a costurar. Eu começo a montar umas camisetas, ir pra São Paulo, comprar tecido. Eu já ia pra comprar semente, aí eu vou pro Brás comprar tecido. Chega no Brás, eu começo a ‘garimpar’, porque eu sempre pensava assim: “Eu não posso fazer alguma coisa que a indústria está fazendo, porque eu não vou concorrer - eu não tenho... eu não sou ninguém perto da indústria – com a indústria. Eu não posso fazer isso. Eu preciso construir algo que seja inovação, que tenha personalidade, que vá longe pra, se eu quiser concorrer de fato, que seja de fato algo que traga uma diferença imagética. Então, eu começo. Aí, lá no Brás, eu também descubro que seis da tarde jogam todos os retalhos pra rua, das confecções. Aí lá eu descubro o lixo. Eu já tinha feito esses brincos de lixo, de papelão, mas aí eu começo... porque os brincos já tinham os desenhos dos recortes. Era papelão que eu grudava tecido e bordava. Então, ali já estava o fundamento inteiro, (risos) feito à mão, de lixo, com retalho. Aí esses brincos começam a virar roupa. Aí esse curso de joalheria me dá uma certeza de que cada roupa é única, como cada pessoa é uma pessoa, cada ser é um ser único, a individualidade. Então, começo a... então, o que me dá visão é a costura, mesmo. Por isso que eu falo dessa coisa, entendo... não é uma comparação, quando eu vejo que a tecnologia, por exemplo, a visão da capoeira e a visão que a costura me deu. É isso que eu trabalho, quando eu estou fazendo essas peças de roupa. Eu trabalho a visão de uma outra possibilidade, de você conseguir minimamente visualizar, ou projetar, plantar uma sementinha na sua cabeça, porque, de fato, começa na semente e essa semente vai virando uma floresta. Aí eu começo a ter dificuldade pra costurar, pra trabalhar com a costureira. E o que eu fazia? Eu alfinetava as roupas e levava tudo alfinetada, pra costureira. Aí começou a ficar caro e aí aprender a costurar me deu essa independência também, inclusive de não ser só uma estilista, mas de ser uma artista independente. Então, eu não dependo mais... eu dependo da máquina, mas eu posso também costurar à mão, que são várias técnicas. E aí eu venho experimentando técnicas de costura, de bordado, por exemplo, e aí eu começo a me ver também enquanto designer, porque eu começo a trazer soluções estéticas pra todas essas problemáticas. Então, eu começo a desenvolver, por exemplo, estampa de tecido bordada, então vem de novo o brinco, o fundamento do brinco. Aí eu começo a trabalhar os fundamentos enquanto imagem, então eu começo a trazer imagem de cocar, imagem de mapa da África. Isso era uma apropriação? Era, mas também era trazer uma visão pra esse processo ancestral. Então, entender isso, pra mim, também foi um processo. Entender o que é apropriação, o que não é, de ter essa delicadeza, de trazer à tona o que foi construído, pra eu não precisar mais me utilizar também dos processos capitalistas de existência, já que são negados pra gente e o processo ancestral não é negado. Então, o processo é oferecido, enquanto acolhimento. E aí, então, eu vou pra essa ONG e aí aprendo a costurar, lá eu já começo a costurar, costurar, costurar, costurar, costurar, loroloroloroloroloro, retalho, tudo, era lixo, lixo, lixo e aí, o que acontece também? Nisso, eu já me torno uma empreendedora, porque é natural, e pra mim também [o] empreendedorismo é um outro grande problema, visto que eu coligo esse discurso do empreendedorismo. Eu vejo, nem coligo, que é o Estado não quer ter vínculo com a sua força de trabalho. Então, ele chama de empreendedorismo isso. Aí você trabalha, trabalha, trabalha, trabalha, consome da indústria, mas não tem vínculo [com] sua força de trabalho, nenhum, nem com o Estado, nem com a indústria. Isso é empreendedorismo. [O] corpo da travesti não tem vínculo com o Estado, a gente não tem nem nome, não tem gênero na certidão, nada. Então aí ele engana você, que você é empreendedora. Não é. Isso é uma prática de ganhar dinheiro, de trabalhar mesmo, de fato tornar o trabalho, que eu não sei se eu posso chamar isso de trabalho, mas de fato tornar-se uma maneira de se sustentar, então aí autossustentabilidade, autossustentável. E é perigoso também a gente ‘cair’ nisso, então sempre trazer por esse processo de entender o que, onde o Estado quer te matar e onde você não vai aceitar. Então, quando eu falo essa coisa que eu não faço moda, realmente, eu não faço. Eu faço é uma prática, uma tecnologia social onde, a partir da costura, dos resíduos industriais, ou não industriais, a gente descobre outras possibilidades de existência. É isso. Visão, tecnologia. Aí, sim, eu posso chamar de moda, no momento que eu transformo tudo isso num produto. Então, eu não sei nem se o produto, de fato, é um produto, porque, pra mim, quando é produto, já está vazio de novo. Então eu não posso nem chamar de produto, de repente, porque é uma peça que não é esvaziada. É uma peça que vai trazer pra você um processo intelectual de questionamento, de mudança molecular, mesmo, que eu já falei.
(02:02:09) P1 – Isso é transmutação têxtil?
R1 – Isso é transmutação têxtil, o encontro do corpo lido como pejorativo e com o lixo, que também é lido como pejorativo e transformar isso em puffffff, que é o Projeto Semente, que é parte da semente. Então, é uma investigação até chegar aqui, nisso, onde a gente está, nesse momento ainda, que não chegamos até o fim, mas já existe um processo feito, impactos, já a geração de dados sobre isso.
(02:02:52) P1 – Queria te perguntar sobre como funciona, se der pra tentar descrever um pouco desse processo criativo. E aí, já emendando, como foi seguindo. Tudo isso que você estava contando até agora você estava em Campinas, né?
R1 – Uhum.
(02:03:13) P1 – Mas quando foi pra moradia, o ateliê, enfim.
R1 – Meu processo criativo começa... sempre transmuta também. É bem transmutável. Mas eu passei por vários anos, eu tive essa coisa de construir imagem, pesquisar imagem; pesquisar música, eu também já trabalhei. Meu trabalho é muito coligado à movimentação cultural, em geral. Então, é música, são movimentos atuais, que essa ‘galera’ dissidente vem trazendo enquanto produção de imagem, resistência, arte, arte-resistência, projeto de vida, questionamentos do que foi dado. Então, eu venho dessa geração. Eu tenho 44 anos, mas eu ainda venho com uma ‘galera’ que é um pouco mais jovem que eu. Então, como que eu faço? Eu já tive vários processos. Primeiro na questão da roupa, eu comecei construindo patchworks, trazendo exercícios. Eu já trabalhei com RRR: reutilização, re... esses processos da sustentabilidade, já caminhei por isso. RRR, eu não lembro: reutilização, reciclagem e reuso. E de fato é, mesmo. Então, eu estou reutilizando, reciclando, refazendo. Venho disso, desses exercícios. Eu venho de um processo de patchwork, de manualidades. O Brasil... nem o Brasil, o processo ancestral é construído com muita manualidade, então eu venho dessa coisa da importância do manual, de sentir, do tato, de tatear. Então, isso também vai dando uma outra... abrindo seu campo de visão pras coisas. A maneira de me inspirar também é ‘muito louca’, porque eu me inspiro no que está acontecendo hoje em dia, no movimento atual, no que as pessoas me falam. Então, quando eu vou pro Ateliê TRANSmoras, pra Unicamp, eu entro no ateliê, eu já fazia esse processo de reciclagem, de reutilização, de patchwork, já tinha aprendido a costurar, já tinha passado pelo Senai Costura, que também me deu mais força. Óbvio, que é essa força da indústria, então me deu essa... que quando eu comecei a costurar, eu não parava mais. Eu fiquei acho que dois anos costurando, só costurando, que foi construindo fundamento, as peças. É difícil, hoje em dia, por exemplo, ouvir coisas que tragam esvaziamento do meu trabalho, porque meu trabalho tem bastante fundamento. Eu me aprofundei, de fato. Eu tive oportunidade, inclusive, de me aprofundar, porque quando eu vou pra moradia da Unicamp, quando eu descubro o espaço público, quando eu crio aquele espaço público, quando eu observo aquilo, entro ali e faço daquilo uma maneira de sobreviver, eu tenho total liberdade de me aprofundar no fundamento da costura, porque tenho todo o tempo, não preciso pagar aluguel, não preciso me preocupar com pagar conta de luz, estou no espaço público, e aí eu construo um processo de transparência, porque eu estou utilizando um espaço público, mas pra fazer um processo de devolver pra sociedade um negócio que eu estou criando lá dentro. Então, pra mim, é um movimento bem redondinho, dentro da burocracia cisgênero. Então, eu também crio um movimento de “Cala sua boca, que eu estou fazendo da maneira que tem que ser feita; do que vocês tinham que estar fazendo, vocês não fazem [e] eu estou fazendo”. E, ao mesmo tempo, eu também começo a criar, ali, política pública, porque ali, a partir do momento que eu começo a receber as pessoas, é uma moradia estudantil, é um andar, uma parte de cima bem cheia de janela, bem grandona e eu começo a costurar e começa a subir gente, eu começo um processo de acolhimento. E ali começa a me atravessar tudo, os processo de discussão de gênero. Foi ali que minha cabeça fuuuuuuuuuuu, começa a abrir, que eu descubro Paulo Freire, tudo, o fundamento político do meu trabalho. Lá que eu entendo que eu estou fazendo política pública. Lá, eu entendo o que eu estou fazendo, que isso é uma tecnologia social. Lá que me vem o fundamentozão do meu processo. É lá que é, enfim... eu descubro que, primeiro, a coisa da escuta. Então, muita informação, essas informações eu vou costurando, eu já fazia as peças dentro daquelas informações atualizadas, atuais, o que é de hoje em dia, o que está acontecendo hoje em dia, então, olha, roupa de gorda, vamos vestir gorda, vamos criar possibilidades das gordas se movimentarem. Roupas sem gênero. Vou fazer agora a série, to, to, to, to, to. Agora, séries de estampas. Estampas feitas à mão. Estampas costuradas. Estampas tingidas. O espaço me proporcionou, porque é um espaço grande, então eu podia tingir tecido, deixar no sol. Isso começa a impactar os alunos também, então pra eu estar ali, na moradia da Unicamp, foi o principal, enquanto transmutação de si e têxtil. Na moradia da Unicamp, tinha um ponto de ônibus que as pessoas jogavam objetos ali, um ponto de troca. Como é um lugar moradia estudantil, é troca de casa o tempo inteiro. Chega gente o tempo inteiro, de seis em seis meses, de um em um ano, então ali [tem] coberta, toalha, roupa, roupa, roupa, roupa, roupa. É lá que eu começo a ‘quebrar’ as roupas, que eu pego a roupa, a ‘quebro’ e a transformo em outro corpo, crio outra possibilidade com o que já está dado. Lá, eu começo esse exercício de destruir o gênero, de construir um corpo enxertado, deformado, disfuncionalizado. Eu disfuncionalizo a roupa masculina. Eu pego a gola e ‘boto’ na perna. Eu ‘quebro’ a visão de função. A tal função, a maior função da humanidade, que é reprodução, que é a ‘boceta’ e o ‘pinto’, o útero e o homem, o espermatozoide. Isso já vem na roupa que você compra, ali já está o útero. Ali já está a feminina. Quem é feminina? Quem tem útero. Então, ali já está essa ideia de função. Então, tirar uma manga daqui, ‘botar’ aqui, eu tiro a função da manga. Isso, imagético, causa um impacto. As pessoas não conseguem entender aquilo. Não conseguem, até hoje. Eu uso às vezes meia, uma de uma cor, eu só uso uma meia de uma cor e de outra, porque as meias que eu uso eu não compro, eu pego. Pegava lá, pego nas doações. Às vezes, é um pé. As pessoas não conseguem ter cognitivo suficiente pra visualizar aquilo. Então, lá é um espaço muito importante. Na sequência, o acolhimento. Então, eu descubro e observo as problemáticas da universidade, os pactos da branquitude, porque, sim, a instituição é racista. A Unicamp, por exemplo, ganhou prêmio, já, mas é uma instituição racista. Só de ser instituição pra mim já é racista. Então, ali eu me utilizo também do pacto da branquitude, pra eu poder ‘navegar’, habitar ali e eu descubro que ali também, eu já sabendo que estar dentro de um espaço público é uma grande responsabilidade e também é uma grande abertura, é uma potência, tanto ali com o lixo, com o espaço público, com as máquinas de costura e com a ideia e com os alunos e com a ‘galera’ vindo assim, ó, trazendo informação. Tanto que todo mundo que entrou nesse ateliê, hoje em dia, são pessoas incríveis. Todos os alunos lá, eu já formei duzentas pessoas, porque eu estou lá há dez anos. Então, eu vi as pessoas entrarem e saírem, (risos) entrarem e saírem. Todo mundo já participou do ateliê. Hoje em dia, o ateliê é uma associação. Grande parte das pessoas que fazem parte do corpo... esqueci o nome... são da Unicamp, são ex-alunos, são alunos, pessoas que me atravessaram demais, são minhas amigas, porque, às vezes, quando eu estava falando da minha infância, eu nem lembro, porque ali eu comecei uma movimentação de vida muito grande. E entendi também que lá dentro... olha que loucura!... pela roupa, pela moda, dita moda, por entender que a moda pode transformar. Ao mesmo tempo que a moda e a arte, esses mecanismos capitalistas, podem alienar, eles também podem transformar. Então, é nesse lugar que eu estou. Lá, eu começo um processo, então, de entender o que é universidade. Pra além de ser um lugar que não quer a gente lá dentro e que produz conhecimento que está restrito à cisgeneridade e branquitude, mas como é um espaço público, a gente tem direito também de construir e adquirir conhecimento. Então, eu começo a entender isso e começo a ver que ali tem um problema, que quando eu trago as travestis lá pra dentro, as travestis começam a ficar mais bonitas, mais gordas, começam a fazer capoeira, a estarem num espaço que, pra além de violento, já é menos violento, uma ‘bolha’, mas por que não também viver numa ‘bolha’? Entendo que, por exemplo, pra uma pessoa que tem problema de moradia, passar no vestibular pode... desculpa, voltando: eu entendo que uma pessoa que passa no vestibular… por exemplo, eu já tenho casa, eu sou um aluno branco, eu passo no vestibular e vou morar na Unicamp. É mais do mesmo. Eu sou uma travesti, não tenho casa, porque eu fui expulsa de casa, passo no vestibular... primeiro, como é que eu vou passar no vestibular? Começa a problemática ali. Tem evasão escolar. Então, eu entendo que, se a travesti passar no vestibular ela vai conseguir se organizar melhor dentro da universidade, porque ali ela vai ter comida, casa, água e luz, vai tomar banho e ainda por cima vai ter acesso a conhecimento e produzir conhecimento. Possibilidades e [mais] possibilidades, nas quais os cisgêneros sempre têm, entram nesse lugar de exotificação porque, por exemplo, uma cisgênera estudando gênero, trans, o que ela está fazendo ali, se ela não abre as portas pra travestis entrarem? Isso, pra mim, já é um ponto-chave. Pare de fazer isso. Então, eu começo a futucar isso. E aí, enfim, não só eu que percebo isso, sozinho, [é] muita gente. Aí a gente começa a se organizar cada vez mais, fazer os desfiles lá dentro. A gente começa a se organizar lá, construir as coleções, aí eu sou convidada pra fazer uma... pela Karlla Girotto... não, desculpa. Lá dentro, eu começo a trabalhar muito a questão do empreendedorismo. No caso, aqui, eu vou chamar de empreendedorismo, mas o mercado. Começo a fazer esses mercados... lá eu faço as roupas e aí eu vendia nesses mercados públicos também que, na época, era o Mercado Mundo Mix, que foi o ponto-chave também pro meu trabalho, por conta de que o dono do Mercado Mundo Mix, o idealizador, o Beto Lago, me coloca pra morar na casa dele também. Então, não só isso, mas isso é muito importante, porque aí eu tenho já um acesso em São Paulo, pra dormir, uma evasão pra poder vender, pra produzir renda, então começo a fazer esse... e aí essas feiras que ‘rolam’ na rua, dessa ‘galera’ jovem, de ‘balada’, dos hipsters, começa a vir esse movimento e eu estou lá, vendendo, dos novos empreendedores, dos novos estilistas, dessa mania, quando abre o MEI, do microempreendedor individual, dos pequenos ateliês, da arte independente. Aí eu começo a fazer esse movimento lá também, então eu sou uma pessoa que sou meio hiper focado, (risos) em tudo. Esse tempo que eu ficava costurando, costurando, costurando, costurando, saía pra vender, voltava, me organizava de novo. Então, todo esse processo de loja foi somando e todo meu processo foi cumulativo também, vai somando e aí vem também esse lugar do acolhimento, da comida, então começo, trago as travestis pra moradia, a gente tem uma linha, lá dentro, eu começo a criar redes de apoio. Então, a ‘galera’ da capoeira foi uma rede de apoio. A gente acordava, tomava café, ia pra capoeira e almoçava, voltava, tinha uma rotina, porque nem isso a gente tem, uma travesti [não] tem nem direito a rotina. Isso vai fortalecendo seu corpo, sua mente, transformando seu cognitivo, vai trazendo uma mudança molecular mesmo e aí a gente começa a aprender, aprende a costurar. Por exemplo, eu não tenho, pra receber uma travesti, estrutura nenhuma, só tinha lá o buraco clandestino ainda. Aí vamos aprendendo a costurar, organizando o ateliê, vai vindo todo esse processo. Vai saindo, vai arrumando emprego, vai indo pra outro lugar. Aí, nisso, nascem outras casas de acolhimento no meio do caminho, nasce a Casa Chama, a Casa Sem Preconceito, a Casa 1, isso começa a vir à tona também, essa importância do acolhimento, de fato trazer dignidade pras pessoas trans, porque não existe. O Poder Público não quer que essas pessoas tenham dignidade, essa é a real. Eu estou fazendo política pública, eu estou fazendo o que o Estado deveria estar fazendo. Por que o Estado, então, não me cede o espaço público? Por que o Estado não me paga um salário? Porque eles não querem que isso aconteça. A gente faz porque a gente é inconformada com a norma. E aí eu consegui unir isso: a costura, a moda, destruir a moda, destruir o pacto da moda, destruir a indústria, perceber. Dentro do ateliê também começa a vir as pessoas com HIV, então começa a vir, a borbulhar tudo que foi tampado de potência nas pessoas. O espaço, o Ateliê TRANSmoras se torna um espaço confortável pras pessoas acontecerem. Esse é o grande ‘babado’. Quando a roupa vira produto, aí eu fico pensando assim, a rede cresce, que aí a gente propõe: “Você, pessoa cis, que tem dinheiro, compra essa roupa, não compra da indústria, compra das travestis, que estão fazendo roupa de lixo, porque você já vai estar fazendo parte dessa rede também”. Então, começa também a nascer discursos importantes pra gente se manter, por que o que não mantém mais a gente? É a falta do dinheiro, falta de oportunidade e isso está o tempo todo em iminência. A gente não consegue ter uma estabilidade, simplesmente pelas políticas públicas não estarem... e quem tem o poder de tudo isso não está querendo construir isso com a gente. Então, é isso: a gente fica nessa daí, mas é esse o meu processo criativo. (risos)
(02:24:49) P1 – Aí, pensando acho que nesse caminho, como foi sair da moradia, algum desfile marcante.
R1 – Vou falar dos desfiles, então.
(02:25:03) P1 – Tá.
R1 – Eu sou convidada pela Karlla Girotto, pra fazer uma residência artística na Casa do Povo, que também é um processo bem significativo pra mim, porque traz a história, a luta de um povo oprimido e um espaço de acolhimento também e aí, lá, eu faço essa residência e termino num desfile que chamava Travesti VIVA!, que aí nasce um movimento de fato, da gente pensar... não nasce só daí, não quero dizer que foi um projeto exclusivo pras travestis, não, mas é um projeto que trouxe um processo de confirmação do que a gente já tinha vivido no Ateliê TRANSmoras, que é trazer à tona a vida, não se apegar mais, também, não trazer mais a morte como um ponto principal, mas a vida como ponto A, como ponto mínimo. Então, lá a gente faz um desfile Travesti VIVA! e ali nasce o fundamento dos desfiles, que é a performance, um desfile com uma narrativa, onde não tem modelo padrão, então ali nasce o fundamento. Dali, eu sou convidada pra fazer a Casa de Criadores. Na Casa de Criadores, nosso primeiro desfile, que chamava Onde Estão as Travestis?, que é esse questionamento: onde estão as pessoas trans? Até hoje não estão, né? (risos) E ali a gente, praticamente, abre a ‘caixa de Pandora’ e ali nasce, de fato, um movimento histórico pra mim na moda brasileira, que é romper com todo esse processo padrão de morte que a moda coloca. Então, ali vem todas... é um desfile com 47 pessoas; os nossos desfiles nunca foram pequenos, porque é o único desfile onde uma travesti poderia ser chamada pra desfilar, então eu não convidava as pessoas, elas que se convidavam e eu me sentia na obrigação de não falar não, porque mais um ‘gatilho’, então eu, junto com a equipe, com a Manauara Clandestina, com a Rafa Kennedy, com a Antônia Moreira, a gente já tinha percebido isso. Então vem todo aquele pessoal que foi acolhido naquele TRANSmoras, aquela ‘galera’ que já estava fazendo parte, que queria fazer parte, que precisava fazer parte disso, pra estar dentro de uma plataforma de moda. Então, esse desfile foi acho que um... não foi... enfim, foi um desfile que teve uma ruptura nacional, de movimento de travesti nacional mesmo, de impacto, não só na moda. Eu vejo que hoje, a partir desse desfile, quebram-se essas barreiras, onde a moda, ali, torna-se um espaço mais palpável, porque até então era um espaço que era difícil chegar, pra qualquer pessoa. Você tinha que ser padrão, modelo, magra, branca, cis, tem que parecer ser cis. Então, de quebra, esse movimento estético mais uma vez produzindo imagem, o impacto que a imagem... o que a imagem impacta nas pessoas, o que fica na memória. Hoje, esse foi o mais importante. O segundo mais importante também foi o desfile Transclandestina 3020, que era pensar no corpo da travesti daqui mil anos, construir essa imagem. Acho que essa foi uma ideia da Manauara Clandestina, que é nossa grande diretora criativa dos desfiles, que hoje ela é uma artista internacional. Detalhe: todo mundo que passou pelo Ateliê TRANSmoras – (suspiro) vou até me emocionar agora (choro) – foram impactadas pelo nosso trabalho e hoje elas são artistas reconhecidas mundialmente. Museu, enfim. A maioria está em museus. A maioria saiu dessa perspectiva de morte, de fome, de baixa renda. Hoje em dia, a gente tem esse processo, uma possibilidade de construir uma possibilidade de cotas na universidade, que também é um projeto político bastante importante, porque vai limar uma parte do processo de necropolítica. Vai formar travestis com a sua total potencialidade, a partir do momento que ela consegue produzir conhecimento. Hoje em dia, ela produz conhecimento, mas embasado, já que a gente precisa ser embasada, então a gente vai ser. O Transclandestina é um desfile superimportante, porque é isso: a gente vem construindo... era uma encruzilhada, onde as pessoas que desciam pra passarela deixavam uma memória, daí se pulava... saía de uma igreja, desse cotidiano da periferia: igreja-bar. Então, ela vai, desce, passa pela encruzilhada, deixa sua memória, traz a sua memória... como era? Ai, não lembro. Ela vem, deixa a memória, desce, passa pelo bar e volta e aí a gente constrói uma... aí todas elas param numa escadaria. Então, essa imagem, qual a imagem da travesti no futuro? Uma imagem de pessoas potentes, potencializadas por si, transmutadas, vivas. Mais uma vez, Travesti VIVA!. Então, é ‘muito louco’, porque aí, nesse processo, foram três desfiles mais importantes. O terceiro desfile mais importante é o Brasil Campeão Mundial de Travestis. É inspirado no jornal... ai, esqueci o nome, ‘caralho’, do jornal O Lampião [da Esquina], que é essa matéria, Brasil Campeão Mundial de Travestis, que fala sobre a época da Operação Tarântula, que as pessoas trans eram assassinadas com o aval da polícia e da Ditadura Militar: era uma operação que ‘caçava’ travestis e as matava, em São Paulo. E aí sai essa matéria. Por que aqui é o país campeão mundial de travestis? Porque as travestis que conseguiam ir pra Europa eram lidas como campeãs, porque elas fugiam da morte. Então, esse desfile fala sobre isso. Primeiro, sobre um país que tem um movimento de travestis campeãs. Hoje, se não me engano, o Brasil é o país que mais produz projetos científicos por pessoas trans, no mundo. Então, também tem essa construção de imagem. Na época, era do Bolsonarismo, já. Que é o que eles pegam a bandeira brasileira e transformam nesse símbolo fascista. Por que a gente faz questão, também, de usar o símbolo brasileiro, por mais que um símbolo construído, tem a ver mais com colonialismo? Mas, porque nós somos travestis brasileiras também, o país é nosso, não é dos fascistas. Então, é de reafirmar nossa identidade enquanto território. Esse desfile é muito... e aí tem mais de cem pessoas na passarela. Então, a gente redobra a questão da corporeidade, porque a gente também trabalha a questão das masculinidades trans, outras questões artísticas, outras questões de performance. A trilha sonora é um set, uma live, é uma artista que é a Miss Tacacá, que é uma DJ do Pará incrível, que também é trans, então é toda uma produção de mais de cem pessoas trans, uma equipe de maquiagem, pra maquiar essas pessoas, que também foi construída pela Magô Tonhon, que é uma ‘gata’ que é uma artista do make-up (maquiagem). Enfim, esses foram os desfiles mais importantes. Eu vejo que até hoje os desfiles são uma referência pras outras travestis estilistas e eu acho que isso... o que eu penso sobre a transmutação têxtil e sobre essa questão de ser uma ‘ref’ que a moda, como é construída de um ponto impalpável, que as pessoas não conseguem atingir, que eu acho que esse é o grande segredo, você não conseguir atingir, porque você vai viver uma vida tentando, já a transmutação têxtil é um processo onde é uma tecnologia construída por pessoas trans e que essa tecnologia tem que ser repassada. As pessoas podem se inspirar, têm que se inspirar, é uma tecnologia de vida pras pessoas trans, é uma possibilidade de existência, não é só sobre costura, só sobre moda, mas é sobre imagética, artes visuais, performance, construção de políticas afirmativas, construção de política pública, de novos caminhos, que tragam vida e existência pras pessoas trans. Acho que esse é o ponto principal dessa tecnologia e é isso. (risos)
(02:37:15) P1 – O que você sonha pro futuro da moda?
R1 – Ai, não queira ouvir isso! (risos) Eu sonho que... o meu sonho pro futuro da moda? Às vezes eu acho que a gente... eu vejo muitas dificuldades ainda, mas vejo que a moda não para, que as pessoas foram educadas pra que esse processo necro não pare, é compulsório, mas eu acredito real que as travestis brasileiras, as pessoas trans brasileiras e travestis estão fazendo um movimento de moda e de arte e de imagem que a gente vai chegar em um ponto onde a gente vai ser a ‘ref’ pro mundo e aí a gente traz caminhos que podem ser grandes armadilhas, mas que, pra gente, enquanto não vivenciou esse processo de potência, poder, vai ser importante. E eu acho que isso vai crescer muito ainda, as pessoas trans e o lixo na moda, eu estou vendo isso acontecer. Por exemplo, na Casa de Criadores já são mais de sete pessoas e coletivos trans estilistas, colocando não sei quantas pessoas na passarela; e esse é o sonho, de ver essa potência crescer e a gente ser referência uma da outra abertamente, porque eu acho que todo mundo é indivíduo e as cópias são irrelevantes, pensando num mundo que só existe terno, terno, terno e terno preto e blazer preto. A recriação, já faz uns cem anos que recria o blazer preto. Então, a gente ainda está ‘engatinhando’, mas eu acho que a gente ainda vai conseguir ramificar mais isso, se adentrar mais nesse mercado, porque, também, como eu falei, não é só isso, é produtora de moda, stylist, uma visão de pessoas trans; e o que eu acho mais interessante, é que a pessoa trans traz já o movimento involuntário e consciente, de propor um processo de mudança molecular. Então, eu vejo isso pro futuro da moda brasileira. Enfim, é isso.
(02:40:22) P1 – E o que você considera como seu processo dentro da moda? O seu papel.
R1 – O meu papel dentro da moda foi, eu acho... eu vi que ali tinha uma lacuna, eu entrei e abri, pras outras pessoas entrarem também, porque é sobre isso, sobre movimento de vida. Como eu disse: a moda é um movimento que quer deter o poder. Não é sobre deter poder, é sobre a gente construir processos de vida. Não é sobre a gente construir processos de morte. Por que só eu tenho que ter? Não faz sentido. No meu caso, não faz. Eu acho que isso me potencializa, cada vez mais. Cada vez que entra uma pessoa trans no mundo da moda, mais as outras crescem e mais ela cresce também e a gente vai se apoiando. Talvez é um certo... uma mesma movimentação que o pacto da branquitude faz, mas que não é um pacto, mas que também é alguma coisa de: “Vamos nos cuidar, porque a gente já tem gente matando a gente, então vamos se concentrar aqui, pra gente construir o nosso caminho”. Acho que também tem a ver com isso. É um processo bem grandioso, bem forte e eu acho que pra moda brasileira o meu trabalho tem bastante relevância hoje em dia porque, como eu falei: não só as pessoas trans foram impactadas, mas praticamente todos os estilistas. Foi um marco no tempo da moda do Brasil. Foi quando a gente entra na passarela pra fazer o desfile Onde Estão as Travestis?.
(02:42:24) P1 – Que era em que ano?
R1 – 2018. Foi o ano de eleição do Bolsonaro, né? Foi 2018. É recente. Imagina! Em 2017, o povo estava ouvindo Elis Regina e (aplausos), bossa-nova e (aplausos), samba da ______ (risos).
(02:42:50) P1 – Qual que é, hoje, o seu maior sonho?
R1 – Aiiiiii, eu quero, de verdade, abrir uma escola. Eu quero morar numa chácara e abrir uma escola. É isso. Escola de travestis costureiras. É esse meu sonho.
(02:43:13) P1 – E como que a pandemia impactou a sua vida?
R1 – O corpo trans já foi ‘botado’ à margem, à parte. Então, quando o mundo entra à parte também... a gente já era um corpo isolado, então o que a gente fez? Se organizou entre grupos trans e começamos a se apoiar, a nos apoiar e produzir uma linguagem artística de vida. Então, essa vida não foi só... quando a gente está construindo um processo de vida, é pra além da nossa existência, que ‘vaza’ pras pessoas que estão matando a gente, também. ‘Escorre’ pra elas. Por isso que eu falo que uma pessoa trans nos espaços é de uma grande importância, porque por todo processo de morte que a gente viveu a gente criou tecnologias, resiliência, resistência, outras maneiras de visualizar o ambiente e aí a gente traz a vida enquanto potência. Então, na pandemia, as travestis saíram da rua, a gente começou a arrumar comida, porque a necessidade principal era a vida, estar viva, se alimentar. Então, as travestis engordaram. Pelo menos as da nossa rede. Não estou, de maneira alguma... como que eu posso dizer?... diminuindo ou trazendo algum processo que desconsidere as mortes, mas a nossa rede, a gente ascendeu muito, se organizou, foi um momento que a gente se deu. A gente já sabia como ia ser o isolamento, porque a gente já vivia isolada, então a gente estava planejada, já. A gente começou a fazer festival na internet, começou a movimentar dinheiro, comida. Ai, a gente está até hoje sofrendo esse impacto, ainda, do que a gente produziu na pandemia. Poucas de nós, pouquíssimas pessoas trans dessa rede que vieram a falecer, por conta do covid. A gente estava planejada. Não é que a gente estava planejada, a gente já estava ali, entendendo como ia ser, subjetivamente mesmo. Tem até travesti que fala assim, tinha várias que falavam assim: “Gente, estou vivendo a melhor fase da minha vida”. (risos) É ‘muito louco’. Porque também a gente conseguiu se aprofundar, dormir, deitar, não ter necessidade de ter que sair pra rua, de ficar vulnerável na rua. A rua traz muita vulnerabilidade. A rua é importante, é comunicação, é Exu, mas no nosso caso a rua também é um lugar de vulnerabilidade. Então, a rua é comunicação, mas também traz um processo ruim pra gente e a gente conseguiu sair de uma maneira mais forte, mais viva, da pandemia.
(02:47:29) P1 – Vamos caminhando pro fim. Queria saber o que você gostaria de deixar como legado.
R1 – Acho que meu legado já está dado. Foi o que eu falei: as travestis uma hora vão estar, assim, comandando a moda brasileira, fora a mundial, mas a brasileira eu tenho certeza. Esse legado já começou a ser construído, já tem estrutura, a gente está construindo agora os muros do prédio.
(02:48:08) P1 – Você gostaria de contar alguma coisa que eu não tenha te perguntado, falar algo, alguma história, alguém, algum momento...
R1 – Acho que não. Acho que já falei bastante. Você acha? (risos)
(02:48:28) P1 – Eu? Não sei, se você quiser. Sempre vai faltar. Sempre falta, mas algo que considera importante e que eu não tenha...
R1 – Deixa eu pensar. Eu não sei. Eu já falei que a gente é, hoje, uma associação, já falei do futuro. Acho que está tudo bem, tudo ok. Já joguei a ‘maldição’: as travestis vão estar comandando a moda brasileira daqui, no máximo, uns dois, três anos. (risos) É sério. (risos)
(02:49:11) P1 – Qual que é a sua primeira lembrança da vida?
R1 – Hummmmm, puts. Gente, não sei. Nossa, que pergunta difícil! Primeira lembrança da vida?
(02:49:33) P1 – Não precisa ser a primeira, primeira, mas...
R1 – Que eu lembre lá atrás? É isso?
(02:49:37) P1 – É.
R1 - Ai, não sei, também, te responder. Acho que eu me lembro muito... não sei, mas o começo é bem, bastante, a família. Essa é a lembrança. Eu lembro também, apesar de todos os pesares, as pessoas também tentaram... eu sou porque elas também foram. Apesar da violência, mas também ali era uma violência, como eu falei, inconsciente e consciente, compulsória, talvez. Então, eu lembro dessas memórias das festas da minha família, as primeiras memórias eu lembro eu no colo da minha vó, assistindo Pinóquio. Eu lembro... acho que a gente pode parar aí. (risos)
(02:50:57) P1 – Como foi, pra você, dividir um pouco de todas essas lembranças e histórias com a gente, reviver algumas coisas?
R1 – Eu já sabia que ia ser meio ‘puxado’ na questão... porque eu estou vivendo esse movimento de estar trazendo meu trauma à tona, de estar discutindo a violência comigo, porque quando eu abro, eu também ouço. Então, é um tempo que eu tirei pra mim mesma fazer isso. Eu já sabia... eu pensava que o Museu da Pessoa já era esse espaço, mesmo, de trazer as verdades, as memórias, estar construindo esse lugar de memória e tal, então eu vim bem aberta pra que isso acontecesse e eu já estou, há um mês e meio, dois... não, mentira, até mais, uns três meses, mais até, cinco meses, reavaliando a minha vida, reorganizando o meu processo criativo; eu parei com tudo, eu fechei os dois ateliês, eu tranquei, falei: “Ninguém mais entra”, porque, primeiro, todo mundo já é artista, todo mundo já está em museu, quem não está em museu está caminhando pra isso, já sabe costurar, escrever projeto, enfim, já não está mais ‘engatinhando’, já é uma promissora no mundo da moda. Ou seja, já é uma estilista. Acontece que ‘desmamar’, porque aí eu comecei a viver esse processo de ‘maternidade’, as pessoas me colocaram na maternidade e eu comecei a viver a maternidade e aí eu fiquei pensando, falei: “ ‘Porra’, se você está falando que eu sou essa mãe santa, eu não sou cristã, eu não vou. Eu tenho direito. Pode abortar, não é? Vou abortar, então”, porque eu também tenho a minha vida, a minha vida o tempo todo foi atravessada por toda essa multidão e aí eu acabo me perdendo de mim. Então, agora eu estou vivendo um momento mais solitária, que está sendo ótimo, onde eu possa me reavaliar, reavaliar meus processos de comunicação, de entender que, por exemplo: “Olha, eu não estou recebendo pra fazer política pública, então o seu problema não é meu, o seu problema é estrutural. Então, não me cobre algo, vai pedir pro Bolsonaro, pro Dória, pro prefeito de São Paulo”. Então, estou nesse movimento de rearranjar, porque também a gente está infectada de processos tóxicos. Óbvio que a gente vai ser tóxico, todo mundo é tóxico, doente. Então, muitas vezes eu tive que lidar com pessoas querendo destruir os projetos, então muita ‘dor de cabeça’, muito problema que não precisava trazer. Pra estar aqui, hoje, pra mim já é uma grande vitória, porque não é qualquer uma que iria fazer o que eu fiz. Então, é isso também: eu estou reavaliando como as pessoas estão me vendo. Se você não me valoriza, eu preciso me valorizar. Eu sei que eu tenho que ser a pessoa mais contemplada com a minha força de trabalho, porque eu não ganho nada pra isso. Eu só tenho meu corpo, aqui, pra estar fazendo isso. Então, eu estou vivendo esse momento de transmutação de si, é o que vai aparecer nas minhas coleções e nas coleções dos meus alunos a partir de agora e eu acho que é um movimento importante, pra gente não chegar lá, num outro lugar, mais... menos violentada possível, a partir do momento que a gente se junta, porque ainda os processos, às vezes você chega toda arrebentada, pra além da cisgeneridade, a gente se destrói. Então, estou vivendo esse momento agora, de ‘peneirar’, porque ‘desmamar’ também é um ato de amor, pensando o que é amor, então ‘desmamar’ é amor também, meu bem, porque você já sai, vai agora. Então, estou vivendo esse exato momento e procurando um lar também. Eu sempre morei com muita gente, então agora estou querendo viver um momento mais meu. Esse é o meu sonho de curto prazo. (risos)
(02:56:41) P1 – Quero te agradecer infinito, assim. Muito ‘foda’ te escutar. A norma retalha, acho que era isso que você estava querendo dizer no começo e não à toa você trabalha com esses retalhos.
R1 – Retalhos.
(02:57:00) P1 – Essa junção de pedaços e tira do lixo a vida.
R1 – Uhum. É. Tem um ‘cara’... se você colocar assim... deixa eu ver no YouTube: "transmutação de si", ele fala disso. Guattarri, eu estou estudando também; Sueli Ronik. Quero ser amiga da Sueli Rolnik.
(02:57:28) P1 – Eu acho muito lindo te escutar, apesar de toda...
R1 – Ele chama Luiz Fuganti.
(02:57:45) P1 – Vou procurar.
R1 – Procura. É uns vídeos curtinhos, dele. Luiz com z.
(02:57:52) P1 – Vicenta, obrigada por dividir um pouco da sua história ‘foda’!
R1 – De nada. (risos)
(02:57:59) P1 – Te desejo muito sucesso nessa sua caminhada boa, que você voe alto.
R1 – Obrigada! (choro) Bem emocionante falar de mim! ‘Muito louco’! Mas está tudo bem, eu vou dar conta, eu já estou dando conta, mas agora eu estou vivendo esse momento. Até uns dias atrás, eu estava com dúvida de um monte de coisa, mas a dúvida, também, pra mim, foi um processo de entender por que eu estou com dúvida. E se eu estou com dúvida foi alguém que ‘plantou’. Essa dúvida vem de dentro, mas eu também entendo que as coisas vêm de fora e aí você produz aquilo. Então, é um ‘gatilho’. Como a gente também tem que lidar com os ‘gatilhos’, como é acionar trauma. Então, por exemplo, quando eu falei que eu estava nessa coisa de, às vezes, as relações, você só aciona trauma na outra, a outra te aciona trauma, a outra te aciona trauma e a gente fica vivendo isso por cinco anos. Então, eu também precisei identificar isso. Eu era uma pessoa que não falava ‘não’, mas, hoje em dia, sim, eu acho que é chique falar não. É o mínimo. Ai, é isso. Então, estou vivendo mais esse lugar, assim. Não estou, nem na internet mais eu estava entrando, pra não... hoje foi o primeiro dia, acho que eu fiquei um mês sem postar. Nossa!Recolher