Entrevista de Roseli Kraemer
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 29/11/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV005
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vamos lá!
R - Vamos lá, bom dia!
P/1 - Bom dia, boa tarde! Primeiro, eu quero te agradecer demais ...Continuar leitura
Entrevista de Roseli Kraemer
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 29/11/2023
Projeto: Acolher Histórias
Entrevista número: ACOH_HV005
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Vamos lá!
R - Vamos lá, bom dia!
P/1 - Bom dia, boa tarde! Primeiro, eu quero te agradecer demais por ter recebido a gente aqui e por ‘topar’ compartilhar um pouquinho da sua história e, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome é Roseli Kraemer Esquillaro, eu tenho 61 anos de idade, sou nascida em São Paulo e hoje eu estou residindo aqui numa vila, num projeto social de acolhimento e é um prazer ter vocês aqui. (risos) Espero somar, né? Eu acho que é a informação da vida de uma luta. Vou entrar pra história! (risos) Meus netos, bisnetos vão me ver e é muito importante, eu acho que é esse momento, assim, da gente poder deixar, sabe o quê? A razão da gente estar aqui. Porque a gente corre tantos caminhos e acaba aqui. Aí eu posso começar. (risos)
P/1 - Eu queria te perguntar se te contaram o dia do seu nascimento.
R - O dia? Se me contaram?
P/1 - É, a história do seu nascimento.
R - Eu fui adotada com três meses de idade, então não sei, até três meses, o que aconteceu comigo. Então, eu tenho uma vaga lembrança ainda de uma fase assim dos meus três anos de idade em diante, tanto que eu fui adotada por imigrantes que vieram aqui pro Brasil depois da Segunda Guerra Mundial. Tanto minha mãe é alemã e o meu pai. Inclusive, minha mãe casou escondido, porque (risos) minha avó queria que ela casasse com outro alemão. Mas ela pegou e casou com o meu pai. É. Tem certas coisas que quando a mãe diz, escuta, viu? (risos) Que é importante. Então eu não sei de onde eu vim, mas eu sei que eu fui bem acolhida, tive vários privilégios de educação, de formação, de acolhimento. Inclusive, eu tive tantos privilégios que hoje meus filhos... eu não pude dar para os meus filhos, então eu vim de uma... o meu pai preferia... como se diz? Dar mesada, do que... porque era uma pessoa ausente, então ele só exigiu estudo. Estudo e mesada, e não criar problema. Era bem isso mesmo. Então, eu fui muito rebelde, por ser mulher, a última, eu tinha três irmãos, um irmão mais velho, um irmão excepcional, do meio, que faleceu ano passado e o meu irmão, que era um ano e três meses... que a gente era muito unido, um bem kamikaze, a gente curtiu muito, roubamos o carro, quando era pequeno, da minha mãe, quando ela dormia, tivemos moto sempre cedo, fizemos tudo quanto é tipo de esporte radical, então tivemos essa união, mas chegou num momento que a gente se separou e depois ele chegou a falecer. E eu mesma, com toda a minha educação, eu era artista plástica, eu pintava muito, e ‘curtia’ muito, ‘endoidava’ muito, me viciei logo cedo, com treze anos de idade eu comecei a fumar beck, mas antes era bebida alcoólica, eram aquelas festas de fundo de quintal, de banda de garagem, não sei se vocês já ouviram falar isso, mas a gente cresceu nesse mundo, que existia uma grande repressão, mas para a classe alta não tinha, a gente podia tudo, isso que eu aprendi quando era jovem. Apesar de nos meus três anos eu me lembrar que eu era abusada sexualmente pelo meu irmão mais velho, que era treze anos mais velho do que eu. Então, desde criança. E quando ele saiu do Exército, que ele serviu a PE, mas ele vivia mais preso, ele era motorista, mas quando ele saiu, eu tinha uns oito anos de idade, nove anos, eu fiquei com medo - oito anos, por aí - dele voltar (risos) a me torturar em casa, né? E ninguém sabia. E aí eu contei pro meu pai. Eu pensei: “Bom, agora eu vou ficar livre do meu irmão”, né? Realmente fiquei. Meu pai o mandou pra praia, mandou ele fora de casa, deu um apartamento pra ele na praia, um caminhão, (risos) uma grana legal, me contratou uma babá... não, uma dama de companhia para ficar comigo, minha ‘sombra’, onde eu fosse, (risos) coitada. Ela sofreu muito comigo, com meu irmão. Mas foi uma pessoa boa, crescemos praticamente juntas, poucos anos, porque a pessoa vinha do interior para trabalhar e estudar, meu pai pagou faculdade até, para ela, tudo, uma pessoa legal e assim foi a minha juventude. Aí, quando eu me formei, de tantas coisas que ‘rolaram’ durante minha vida, que era boa, eu viajava, eu ‘curtia’, eu fazia o que eu queria, mas vivia naquele sisteminha básico deles: receber mesada, morar em casa, ter casa, ter apartamento, férias e isso e aquilo, mas para mim era muita coisa. Minha mãe chegou a falecer, quando eu estava me formando e aí começou a vir as coisas, as mentiras. Meu irmão, (risos) pra se vingar de mim, o mais velho, falou que eu era adotada. Aí eu comecei a ver na minha vida realmente tudo que ‘rolava’, que minha mãe ‘segurava muita onda’ da gente, segurava mesmo. Ela acordava de madrugada, se a gente tivesse algum problema, para ela estar junto, para resolver, sempre ‘passando o pano’. Tanto quando ela morreu, era tanta gente em casa, que a gente não tinha noção de quantas pessoas ela ajudava, que ela era boa, que ela ‘curtia’ e ajudava o possível. Então, a gente cresceu numa mentira, né? Num mundo que nem (risos) o que tem hoje no governo, né? Faz de conta que é maravilhoso, país das maravilhas, tudo pode, né? O que não pode a gente manda trazer. E eu sempre muito rebelde, artista, com outra vivência e tudo, vi que aquilo não servia pra mim, aquele mundinho deles. Aí eu me formei, meu pai sempre exigiu estudo e eu acabei de me formar. Se minha mãe fosse viva, eu acho que até abriria uma escola pra excepcionais, como ela queria e tudo, né? Mas aí, pra me vingar do meu pai, eu virei e falei pra ele: (risos) “Põe na parede”, que eu ia virar hippie. Ele: “Você não vai conseguir”, mas eu consegui viver de mim mesma. Eu acho que é importante você ter a consciência que você pode sobreviver, de todas as formas. Você tem que desapegar de certas coisas mesmo, aprender a viver sem elas e viver de você mesma, porque a gente vive num extremo de vida, que a gente não sabe se você vai... que eu viajei muito, então a gente não sabe se vai pegar um temporal, se vai pegar uma seca, se vai ser comida por um bicho, (risos) entendeu? Essa vida ‘louca’ que a gente leva, que a gente vive, né? Então, a gente está sempre se recriando e quando a gente consegue ter e saber e aprender, que a gente consegue do trabalho artesanal ganhar e ser livre é muito importante isso. E isso eu me peguei muito forte, né? E com a liberdade de poder ir para qualquer lugar, fazer o que eu quisesse e ganhar para isso. Morando, (risos) a maior parte da minha vida eu sempre morei em hotel, em pensão, em algum lugar que eu alugava por um tempo e acabava ficando. Então, para mim sempre foi muito livre, né? E quando eu tive meu filho, o mais velho, que hoje ele mora em Dublin, na Irlanda, tirou cidadania italiana, um dia ele resolveu vender tudo, ele, a mulher dele, o filho dele e foram, tiraram cidadania, estão morando em Dublin, na Irlanda, hoje eles cuidam de pet lá, mas eles logo pegaram a pandemia, o começo da pandemia, que foi muito cruel. Eu tenho outro filho que mora no Guarujá, que foi criado pelo pai dele desde os cinco anos de idade. E minha filha, a Hare, que está comigo, (risos) meu ‘canguru’, minha amiga. Eu acho que é importante isso, a gente crescer com a verdade, que é fundamental. Que, pior que seja, a verdade consegue te fazer estruturas firmes de consciência, de você decidir. Tanto que eu fui criada na Igreja Apostólica Romana e tal. Sou à toa. (risos) Gosto da umbanda, gosto do candomblé, gosto do espiritismo, gosto de tudo quanto é religião, respeito todas, entendeu, acho que todas têm uma coisa só a dizer, mas eu sou bem assim, bem sem me pegar com essas coisinhas que não resolvem nada, né? A gente vê aí. Apesar que tem várias pessoas que eu conheço que fazem, que se movimentam pela fé, por uma evolução espiritual, uma evolução do ser humano mesmo, porque só existe um caminho, né, ‘meu’? Lixo não existe, eu acho que quando as pessoas nascerem já com direito de moradia, de educação, de tudo vai ser bem mais fácil, né? Não... eu acredito que os milionários vão ser sempre milionários, mas eu acho que todos têm o direito de ter o seu espaço, né? Que é o mínimo, né? O mínimo do mínimo.
P/1 - Vou voltar um pouquinho pra infância, tudo bem?
R - Tudo bem.
P/1 - Tinha alguma comemoração, alguma data muito específica, algum evento que a sua família fazia, era tradição?
R - Ah, minha mãe… a tradição era Natal, que ela conseguia reunir as pessoas. Inclusive eu tinha medo do Papai Noel e depois eu descobri que o Papai Noel era meu pai, que a fantasia estava guardada, (risos) foi uma decepção. Na época da Páscoa minha mãe fazia aqueles caminhos que escondiam o ovo no jardim, cada irmão ia achar o ovinho do outro, era uma coisa muito legal. Mas são momentos que nem aniversários de avós, que era aquela coisa de ir em família, reunir tios, primos e a família toda, mas enquanto minha mãe era viva mesmo ela conseguia fazer isso. Depois que ela morreu, acabou tudo isso. Tanto que Natal a gente passava em casa e Ano Novo a gente ia ‘curtir’ (risos) com os amigos. A gente chegou numa época, uma idade que não dava mais para nos segurar, então a gente passava o Natal com a família e logo depois do Natal já era estrada, né? Era se divertir, ‘meu’.
P/1 - E tem alguma história que represente muito os seus pais, assim, que você se lembra com sua mãe, com seu pai?
R - Com a minha mãe e com o meu pai era uma coisa assim, um ritual. De sábado e domingo meu pai velejava e a gente ia para o clube todo o final de semana, quando a gente era jovem, para velejar. Então, meu pai fazia os lanches, os pãezinhos lá, de... como é o nome?... de fôrma, presunto e queijo, suco, fruta, entrava no barco e saía velejando, voltava só no final do dia. E férias mesmo a gente também saía nos ‘rolês’ de barco, ia para a Ilha Bela, pegava o litoralzinho e voltava. Então, a minha infância foi muito marcada com isso, né? Porque a minha adolescência mais rebelde começou a partir dos treze anos e tudo, né? Mas até essa idade, mais ou menos, eu era muito família. Tanto que minha mãe viajava, eu sempre a acompanhava para fora, para outros lugares, eu sempre estava junto dela. Até meus treze anos, até depois também, porque minha mãe não dirigia, ela tinha medo, sabe, de trânsito, de ônibus e caminhão, (risos) ela tinha pavor. Então eu e meu irmão, a gente sempre a levava nos lugares que ela queria. Assim, a gente também, antes de ter carta, todos tinham o direito de dirigir, né? (risos) A gente juntava uma coisa com outra, né? Então, uma vez meu irmão capotou o carro pertinho de casa, três horas da manhã, eu e meu irmão acordando minha mãe, para ir lá no posto de gasolina, que o carro foi parar dentro do postinho de gasolina, virado, de ‘barriga’ para cima e nós dois ‘de menor’, mais um vizinho, e minha mãe lá, o policial olhava assim para a cara dela: “Mas a senhora que estava dirigindo?” (risos) Ela olhava assim para o carro e fazia assim com a cabeça. (risos) Mas o ‘cara’ não se conformava, ele falou assim: “Eu não acredito que era a senhora, ‘meu’”. “Mas é” - minha mãe – “era eu, não sei o quê” e meu irmão: “Não, ela está assustada e está em choque” e realmente ela estava em choque, mas a gente teve uma infância muito boa de carrinhos de rolimã, que a gente descia os ‘tapetões’, motocross, a gente se divertia, a gente ‘curtia’ à beça mesmo. Cavalos, a gente roubava o cavalo. A gente morava na frente da hípica, em Santo Amaro, né? Inclusive a casa está fechada lá, por causa do inventário do meu pai, que ainda não saiu, né? E aí minha madrasta, (risos) que é a típica madrasta e meu irmão mais velho, que é o típico irmão mais velho, que me odeia, no mínimo, acredito, não querem que eu more na casa, né? Então, só depois que sair o inventário, que for feito a divisa, aí sim. Mas é um absurdo né? Ela mora em Alphaville. (risos)
P/1 - E os dois, seus dois... pai e mãe eram alemães?
R - Não, minha mãe é alemã e meu pai italiano.
P/1 - Você sabe a história de como eles se conheceram?
R - Sei, porque minha mãe, com três meses de idade também, quando ela era jovem... não, um pouquinho mais velha, meu vô era atleta e ele veio para o Brasil e ele ainda praticava muito esporte. Aqueles esportes antigos, de olimpíadas, de discos, de salto, aquela coisa mais clássica e meu vô praticava esse esporte e começou a ganhar algumas medalhas aqui em remo, que ele ia no Clube do Tietê, inclusive tem foto dele lá, tudo. E sumiram com ele quando ele estava... minha mãe era nova, tinha três meses, seis meses, alguma coisa assim. E minha avó era costureira, ela costurava. Então ela pôs minha mãe num colégio interno alemão, em Rio Claro, onde ela saiu com 21 anos de idade do colégio interno, já saiu formada. Minha mãe sabia fazer tudo, ‘meu’, numa casa, de costura, de cozinha, de confeitaria, de tudo, e fora os esportes, né? Mergulho, dança aquática. É aquela mulher que sai pronta (risos) pra casar, né? Tanto que tinha pretendente já, de família e tudo. Tanto que ela conheceu meu pai, meu pai era um ‘pé de valsa’, que ele falava, quando era jovem. Italiano, né? Você sabe que italiano é ‘fogo’. E meu pai sempre foi muito mulherengo, ele teve várias mulheres durante a vida dele. E aí ela conheceu meu pai e casou escondida, porque minha avó não gostava do meu pai, não queria que minha mãe casasse com ele, casasse com outro rapaz. Inclusive o pessoal assim, tudo Kraemer, trabalhavam acho que na Volkswagen, aquelas coisas. Inclusive militar também, eu tenho família da parte da minha mãe. E meu pai, também meu vô era sapateiro, quando ele veio pra cá e aí eles começaram a construir, né? Meu pai sempre foi o que mais bancou a família, protegeu, meu pai trabalhou sempre com indústria. Plavinil, era suíça, então ele representava aqui, então até na parte mesmo - eu aprendi muito com meu pai - social da empresa, sabe, de final do ano, antigamente eles fechavam a loja, chamavam Papai Noel, entregavam presentes, faziam aquela festa de, principalmente, sindicatos, né? Então, eu lembro as peças que eram feitas na Plavinil, inclusive a Plavinil já foi fechada, demolida, tudo, só existe hoje lá no interior de São Paulo. Então, meu pai que fez toda essa construção, e outras empresas que abriram o território, aí foi todo o processo de vida. Inclusive, meu pai, no clube onde a gente era, terminou praticamente a vida dele, sendo que cuida da parte financeira do clube, velejava. Inclusive, (risos) quando ele morreu, ele foi cremado e foi jogado na represa. Eu falei: “Perigo de eu tomar meu pai na torneira, não?” (risos) Porque nunca eu iria fazer isso, eu ia jogá-lo no oceano, mas só me avisaram que meu pai tinha morrido por causa do inventário, porque ainda bem que eu tinha visto meu pai um mês antes, que eu tinha ido para o Guarujá e o tinha visto. Fui ver meu filho do meio e conversei com ele, que a gente conversava, mas se via escondido por causa da mulher dele, da filha dele e tudo. Então, cada um vivia a sua vida, eu tinha a minha, ele sabia o que eu fazia, que eu brigava muito pelo artista de rua, pelo artesão, pelo hippie, principalmente quando eu vim para São Paulo e comecei a aprender mesmo a entortar um arame lá na República, até com o Ventania, que me deu meu primeiro alicate. (risos) Então, eu tive toda essa vivência, de conseguir estar na rua e não morando na rua, que eu sempre ou alugava um quarto, um hotel, ou algum lugar para dormir, mas minhas coisas eram sempre básicas mesmo, era ‘trampo’, material e umas roupas para vestir e já era, comer comia fora, a vida da gente é assim: hoje está aqui, depois está num festival, numa festa, em algum lugar, trabalhando, porque sempre tem aquela coisa também de trabalho e lazer. O hippie consegue fazer isso, juntar as duas coisas. Você consegue trabalhar naquela visão maravilhosa de um mar na frente, de uma praia ou de um verde. Então, a gente consegue ter toda essa diversidade de espaços. A gente consegue ir para muitos lugares e continuar trabalhando sempre. Então, nunca me preocupei assim, em acumular. Eu acho que a gente ganhando pra gente poder viver bem, ter suas coisas, comer as suas coisas que você tem vontade, viver bem, né? E trabalhar, investir no seu trabalho, no seu tempo. Você não precisa mais do que isso, né? O resto é ostentação.
P/1 - Você comentou que teve uma adolescência rebelde.
R - Muito.
P/1 - De onde veio essa rebeldia?
R - Eu acho que era por causa dos meus irmãos. Eu era menina. Pensa nos meus irmãos e os amigos dele. Tem que ser muito ‘louca’ pra encará-los, (risos) porque é muito, muito, é muito...
P/1 - O que aconteceu?
R - É aquela disputa, aquelas brincadeiras, porque você é menina, então você não pode acompanhar, aquela discriminação dentro, então você tem que provar que você pode fazer, entendeu, que nem roubar um cavalo. A gente entrava na hípica, aprendemos a fazer aqueles açúcares, aqueles torrões, ia até a baia, escolhia o cavalo, aquele que era mais ‘da hora’, que fosse com a sua cara e a gente tirava da baia, subia no pelo e saía correndo. Então, era só homem, era só menino que fazia isso. Eu não, eu ia lá junto, eu estava junto, entendeu? Não ia alcançar o cavalo, mas dava um jeito e ia. E assim o coronel sentava na porta da casa dele, só via a gente sair com o cavalo e à tarde ele ficava esperando, com a espingardinha de sal. Aí a gente levava os cavalos, entregava os cavalos lá, no mesmo lugar, às vezes até trocado, mas sempre lá no pasto deles, fechado e saía, ia embora. E tinha um riozinho, (risos) que a gente tinha que atravessar, mas era bem raso, era tipo um córrego mesmo de água, mas água natural, de uma bica mesmo, sabe? Então a gente passava e era a casa do coronel, que era na Granja Julieta, ele tinha um casarão ali, e ele ficava lá na varanda dele, esperando a gente passar. E pá, com aquelas espingardinhas de sal. Meu irmão levou já duas, uma vez na bunda, outra na perna, mas vai fazer o quê? Ele se divertia, né? (risos) Isso era uma das coisas, tudo que você pode imaginar: paraquedismo, viagens. Eu de repente estava com os amigos, sexta-feira: “Vamos fazer o quê?” “Vamos embora, vamos viajar, vamos para a Argentina, vamos para o Chile” e ia embora. Meu pai, quantas vezes foi me buscar em viagens e tudo, porque eu não tinha idade, eu era jovem, adolescente, não estava nem aí, depois era fácil pegar matéria, eu tinha uma mente muito boa. Hoje que eu não guardo nome, (risos) não guardo telefone, data, nada. Mas naquela época, nossa, eu tinha uma mente muito boa. Eu acho que por causa do excesso de drogas e tudo, foi muito... uma vez, (risos) a gente adolescente também, com aquelas ‘viagens’ de cogumelo dos amigos, né? Todo mundo passa por isso, daquela época, né? E aí trouxeram da praia uns cogumelos, até lá perto do Forte da Prainha, onde tem o boi zebu lá, que você tinha que subir (risos) e cataram os cogumelos lá e levaram para casa. Minha mãe tinha viajado, né? Minha mãe ia passar o final de semana fora. Aí estamos lá na cozinha com caldeirão, (risos) com cogumelo, aquele monte de coisa dentro e tal, aquele fedor que, meu Deus, como fede cogumelo, o chá de cogumelo fede muito. Me lembro até hoje! E minha mãe chega. Minha mãe foi andando, viu aquela bando de gente, mas já estava acostumada, os amigos, tudo bem, né? Sabia que não estava, ia estar mais gente ainda. Ela vai pra cozinha e vê aquilo no fogão e fala: “O que é isso?” Aí meu irmão, de vítima: “Não, mãe, é por causa da minha dor de estômago. Nós fomos buscar um chás aí, pra fazer”. A minha mãe: “Eu também quero, porque não sei o quê”. Aí conseguimos, a levaram lá pra sala. “Não, a gente não está pronto, quando estiver pronto a gente leva”. A levaram lá pra sala, pegaram o caldeirão, deram a volta e olha, sumiram com o caldeirão. Eu sei que nós voltamos depois de três dias também. (risos) Muito ‘louco’. Mas a gente fazia essas coisas, não tinha consequência. Meu irmão, com aquela coisa de moleque, de fazer bomba caseira, sabe aquela coisa de soltar em estacionamento, em lugares que não têm nada a ver, que é feito de fundo de quintal mesmo, por que os moleques não têm o que fazer? Eles estavam nessa fase das bombas. Aí a noite eles pegaram: “Vamos soltar hoje essa bomba”. Foram, acharam um estacionamento vazio, foram lá e jogaram lá no estacionamento, numa caixa de lixo e tal e foram embora. Só que tudo filmado, fotografado, era o estacionamento de Israel, do Irã, não sei o quê. Em menos de 24 horas estavam lá na fábrica do meu pai, com metralhadora e tudo, (risos) pra levar meu pai pra interrogatório, por causa da bomba no estacionamento, que eles filmarem o carro, a chapa do carro do meu pai, no nome dele, né? (risos) Meu Deus, foi um tal de trocar favor, porque aí que a gente vê a influência, né? Porque aí um liga pra um, outro liga pra outro, não sei o que, tal, advogado, e mais gente que conhecia e ‘limparam’ a do meu irmão. Aí foi ele, foi quem estava no vídeo, junto com ele, pro interrogatório, só que não foi aqueles interrogatórios, né? Mas viram lá a intenção deles mesmo, que não era nada de terrorismo, que era de jovens inconsequentes, que não têm nada, ‘merda’ na cabeça, e fizeram isso, e não sabiam o que eles estavam fazendo. Aí foi liberado. Mas cedinho, de manhã, já estavam lá com meu pai: (risos) “Vamos embora, vamos embora, vamos embora”. Mas influência conseguiu segurá-lo. Minha carta foi comprada, praticamente, meu pai era amigo de um ‘cara’ que era grandão lá no negócio de carta também, eu já dirigia desde os quatorze anos, dezoito anos eu só fui lá pra assinar, mesmo. Outra coisa assim que foi muito hilária também, dessas viagens que eu fiz: eu e meu irmão fomos viajar ao nordeste pegando todo o litoral, falamos pro meu pai pra ele me liberar a viajar, que eu era ‘de menor’, meu irmão também, fomos com o primo. E: “Não, a gente vai trabalhar”. Toda a cidade era: “Manda dinheiro, manda dinheiro”. Aí passamos lá em João Pessoa, estamos lá em João Pessoa, aí tinha os Borboletas Azuis, não sei se vocês ouviram falar, uma seita que falou que o mundo ia acabar dia 25 de março. E meu irmão: “Mas como? É o aniversário da minha irmã, vai acabar o mundo?”. E eu marquei por causa da data mesmo, porque eu fiquei contrariada. Eu falei: “Que vai acabar no dia que eu vou fazer aniversário? Que nada, ‘meu’, não vou chegar nem no meu trinta, porra”, sabe? Brincando, tal, a gente era garoto. Eles eram uns caras que se vestiam de capa azul, chamavam-se de Borboletas Azuis, tinha um templo que eles falaram que o mundo ia acabar mesmo. As mulheres moravam dentro do templo, os maridos que não queriam nada com o templo, as mulheres se separavam, sabe? Foi uma coisa muito ‘louca’, não sei que final deu isso, porque o mundo não acabou, né? Mas essa seita dita lá em João Pessoa. Foi uma época, assim, muito ‘louca’. Nossa, nós rodamos tudo, tudo, tudo, tudo. Foi muito boa essa viagem que eu fiz com ele, aprendi muito. Aprendi muito com meu irmão, mesmo.
P/1 - Quem é esse irmão? Qual é o nome?
R - É que era Sérgio, né? Ele... o chamavam de Guzula. Inclusive, quando ele era escoteiro, ele era meio gordinho, o chamavam de Porpeta. E eu via que ele comia tudo, ele não parava de comer, tinha um monstrinho que tinha um desenho, o Guzula, que comia tudo, até ferro. Aí pegou o Guzula e ficou, Guzula o apelido dele, mas também ele morreu de paraquedismo, paraquedas não abriu. Meu filho do meio estava com cinco anos, mais ou menos, seis anos. Mas eu acredito que ele não quis abrir, porque ele era um ‘cara’ que ‘surfava’ no céu, né? Ele era muito ‘louco’, ele fazia aquelas surfs, viagens... andava longos percursos sem paraquedas. Era um kamikaze mesmo do... ele falava assim: “Ah, vamos surfar” e a gente saltava de balão, de avião, o que fosse. Era muito legal, muita adrenalina.
P/1 – O que vocês sentiam?
R - É muita adrenalina. Perigo, medo e aquela coisa de superação do medo, de você conseguir chegar no final e falar: “Pô, deu certo”. (risos) É sempre assim porque, quando você faz esportes muito radicais ou você está em lugares muito extremos, porque eu já tive em lugares bem extremos, é aquela coisa que você sente um medo tão grande, entendeu, que você tem que superá-lo. Então é uma adrenalina, entendeu, de você ver logo o final, sabe, de terminar logo. Uma vez eu tive um acidente, em Ubatumirim, de caiaque, porque eu gostava de pegar onda de caiaque e remar mesmo, pegar longas distâncias e eu acampava muito em Ubatumirim. Tem muitas ilhas à frente, tudo. Até quando caiu as latas, né? Não sei se vocês ouviram falar a maconha da lata. Nossa, eu estava lá na praia, fumei muito da lata, (risos) muito bom! Melhor droga, até hoje, insuperável. Tem várias histórias, tem no YouTube, até se procurar você vai ver a lata. Foi uma coisa bem marcante, foi uma época, um ano muito marcante. E o Ano Novo, aquele negócio de maré, sabe, quando dá aquela ressaca, é melhor, porque a onda é mais alta, que você consegue ter mais adrenalina, que você faz, pratica um esporte mais forte. E eu lá, com meu caiaque, tentando pegar a onda, tudo. Deu errado, a onda me ‘quebrou’, então fui para o fundo do mar. Eu pensei que ia acabar ficando lá mesmo. Aí eu pus a mão assim e já segurei, porque eu vi o meu caiaque subindo e a boca. Eu segurei na boca e ele me jogou para cima, mas estavam várias ondas quebrando. Aí eu consegui sair do mar. Pensa que eu fiquei na praia? Não, (risos) voltei e continuei pegando onda, que eu acho que é isso, sabe? A gente, quando... mas a gente tem também um preparo físico, um condicional de esporte, tanto de escalar, de tudo, né? Eu adoro, né? Mergulho, adoro. Parei de mergulhar porque eu tive quase um acidente dentro de uma caverna. Então eu falei: “Não, está na hora de parar”, porque também aí já vem outras coisas, também a idade, vida, consumo de tabagismo também começa a se limitar e você acaba provocando acidentes, né? Então você... eu fui parando. Aí eu tive minha filha também, que não gosta de esportes, que não gosta de viagens, que não gosta da praia, que gosta de São Paulo, de concreto. Eu acabei ficando ‘pardal’. Que nem a gente fala quando um hippie fica numa cidade e vira ‘pardal’. E eu acabei virando um ‘pardal’. (risos) Mais 21 anos, viva a liberdade!
P/1 - E escola? Que recordações você tem desse período, de professores?
R - Eu acho que foi uma coisa muito legal, assim, eu sempre fui bem atuante. Eu acho que também, por ter a única obrigação de estudar. Apesar que eu fiquei bem ausente, assim, no final, porque eu ia mesmo só pra fazer prova, entendeu? Já não estava muito me encaixando no sistema também, porque é muito... como se fala? Tem certas escolas que é muito fechadinho, né? E para mim não funciona. Eu acho que todo o conhecimento tem que ser compartilhado. Eu acho que todo tipo de conhecimento a gente está compartilhando. E quando você só vê um grupinho querendo... um ‘passando o pé’ no outro, (risos) é sinistro. Pra mim não... não gosto muito, não.
P/1 - E aí você contou que você virou hippie. Quantos anos? Como foi essa ‘virada de chave’?
R - É, hippie eu acho que a gente sempre é, né? Porque mesmo pela arte que a gente pinta, tudo, não é só entortar um arame, acho que é a filosofia hippie mesmo. Tanto que meu pai me levava de sábado para a escola de arte e ele falava assim: “Você tem que tomar cuidado com aqueles cabeludos” e, nossa, a filha dele era uma usuária de droga, usava heroína, sabe? E com o dinheiro dele. Quer dizer, sabe? É um preconceito isso. Eu tô lá do lado dele, eu, o filho dele, o outro, sabe? Ele pegando e recriminando uma pessoa que ele nem conhecia, sabe? E isso pra mim sempre foi um choque muito grande. Tanto que a gente tinha liberdade também na escola, que era diferente, a gente ia pra outros lugares fazer aula, porque era arte, era desenho, era uma coisa meio... bem... ou eram modelos, porque era aquela fase, mas era a fase de criação. Então, praticamente fazia as coisas em casa e levava só para ter nota. Conseguia ter esse intercâmbio com os professores, que gostavam de mim. Até tinha alguns professores que viraram amantes também. Não queria nem saber, sabe? Eu era bem ‘louca’. Não estava nem aí com nada. Minha filha, se tivesse feito um terço do que eu fiz, da minha adolescência e tudo, de ‘doideira’ mesmo, de ‘loucura’, de não saber o que você faz, perde três dias da sua vida, que você está se drogando, aquela fase sexo e rock and roll, entendeu? Sexo, droga e rock and roll, liberdade, e assim a gente faz o... como se diz?... enfrentamento de família, né? A gente sai fora, não dá, deixa a família tranquila, entendeu? E a família não está nem aí com o que você está fazendo. O importante é quando você tem aquelas reuniõezinhas de família, o boletim, (risos) as notas, os amigos, entendeu? Ter aquele mesmo grupo, né? Agora, o que você é mesmo, o que você faz... eu virava noites e noites no meu ateliê, em casa, pintando, me drogando, virando dia e noite, e ninguém estava nem aí. O dia que eu falei pro meu pai que eu não ia pra escola, ele quase me levou pelos cabelos, que eu falei: “Eu não vou assistir aula, não vou” e não assisti aula, fui lá pro Trianon com professor, alunos e tudo e ficamos lá, passamos o dia lá, entendeu? Porque eu também sempre fui muito de ter opinião, né? Falo até hoje. Tudo que eu falo, não volto atrás. Pra eu voltar atrás eu tenho que estar muito errada, entendeu? Eu tenho que... pra mim também não tenho crise nenhuma de pedir perdão, desculpa, errei, entendeu? Mas o que eu assumo em fazer, que nem eu falei pro meu pai: “Não quero mais viver da sua vidinha, vou viver por mim mesmo”. Aí eu assumi viver por mim mesma, que foi muito ‘louco’. Parar de acostumar de dormir com o travesseiro, entendeu, de pena de ganso, de patê foie na geladeira, de ter mordomia, de ter dinheiro. E o dinheiro que eu tenho, contar para dar, entender? De ter que trabalhar todo dia porque, se você não trabalha, você não tem dinheiro para comer, para usar sua droga, para viver, né? Ou você vive na rua. Eu nunca quis isso, acho que eu não merecia isso, ficar na rua. Não tenho conforto nenhum, acho que o mínimo é uma cama e um chuveiro. Que não tenha nada, nem a cama, que você durma no chão, mas num tatame, mas paredes onde você pode se jogar e descansar, né? Porque eu vejo na rua, você não tem descanso, ‘meu’. Eu fiz um acampamento na frente da prefeitura por quinze dias. Consegui trocar a prefeita de lá, de Santo Amaro, a subprefeita. Fiquei quinze dias dormindo num camping. No chão, no frio, em plenas baixas temperaturas, ‘meu’. Sozinha. Ainda bem que tinha onde eu ir para ir ao banheiro, onde ir para tomar um banho, entendeu? Tinha uma ‘grana’ para comprar o que eu queria, entendeu? Meu cigarro. Porque eu estava dormindo, descansando durante a noite, sempre chegava um: “E aí, você quer uma sopa, você quer uma água, você tem um cobertor?”, entendeu? O pessoal mesmo que faz todo esse trabalho de rua, acaba não deixando a gente, (risos) quem quer descansar, dormir e descansar. Então você está sempre alerta, porque é legal isso, entendeu, as pessoas se preocuparem, mesmo você estando dentro da barraca, de você poder receber uma comida, uma água, um cobertor e tudo mais. E eu fiquei quinze dias nesse acampamento, pra falar pra você: “Não é vida, ‘mano’”. Eu acordei duas vezes durante a noite lá, teve um cachorro que me adotou, todos os dias ele dormia comigo, na barraca. Ele passava o dia, mas à noite ele estava lá, na barraca. E roubaram três barracas, eu tive que ir durante a noite atrás e achar as barracas e trazer de volta. E isso em Santo Amaro, na madrugada, entendeu? Mas vindo de tudo de uma articulação, de um conhecimento, de uma liderança, de um movimento, eu consegui, ‘meu’. Agora, se eu fosse sozinha, mulher, eu estava ‘fodida’, eu estava ‘ferrada’, porque a própria ‘mina’ que eu estava ajudando no dia, no acampamento, pra ela ter a sua casa, pra ela ter - porque ela morava dentro do coreto, na Praça Floriano Peixoto, e estavam querendo tirá-la - direito de ter uma casa, de ter um acolhimento, de ter um trabalho, entendeu? Ela ‘tretou’ comigo na madrugada, nós brigamos. Entendeu? Mas tudo para não perder um acampamento, para não perder uma luta que eu estava fazendo, travando em Santo Amaro, eu tive que relevar, respirar fundo, entendeu, e não ir para as últimas consequências. Mas falei com todo mundo depois, para eu continuar tendo o quê? A liberdade de ir, vir, andar e ter paz. Entendeu? Ter paz na minha luta, no meu trabalho, que era uma luta mesmo e todo mundo sabia que era uma luta, não era qualquer coisa, que fui respeitada. Agora, se não sou, se eu estou em outro território, eu vejo as pessoas que estão aí, que sofrem violência, que aceitam a violência, mulheres, que você não tem segurança nenhuma na rua, com nenhum tipo de lei, nada, porque você não tem endereço. Aí a pessoa continua sendo violentada, violada, abusada por aquela pessoa, para não ser... pelo menos é um, não todos, porque mulher é uma mercadoria na rua. Uma mulher é mercadoria de sexo na rua, de prazer na rua, entendeu? É isso. Desde que (risos) vieram pro planeta aqui, pro Brasil, entregando esses espelinhos, é isso, é um abuso. A mulher não tem... como se fala?... valor nenhum. Ela sempre está jogada pra ‘debaixo do tapete’. Ela ganha menos. Ela tem um... sabe? Ela é família, tipo assim: constituição de família. Entendeu? Então, a mulher é muito abusada, muito violada na rua. E a mulher, o idoso, porque é idoso, porque é velho, porque é deficiente. Quantas pessoas que têm problema de deficiência intelectual, que estão na rua? Que não dá, você acha que a pessoa é normal, mas ela tem deficiência. Quantas pessoas você vê assim, ó, hoje eu caí na rua, tô assim. Amanhã, uma semana depois você vai me vendo. Quando chega um ano, você desacredita no que você vê. E passou disso, tem pessoas que viram, sabe, na depressão, ela se... entra dentro dela mesmo, que ela não tem contato nem com o outro fora. Extremos, entendeu? E pode ter certeza que essas pessoas, 90% são mulheres. 90% é mulher, o resto é homem. Mas que está assim ‘no pico’ mesmo, sabe, no último. O suicídio que a gente escuta hoje aí é gigantesco. A pior droga que hoje tem é a adrenalina (risos) mesmo, porque você não sabe de onde vem a bala, de onde vem a agressão, de onde vem, ‘meu’. Você não sabe se hoje está acolhido, se amanhã não está, se você está de pé, se você não está. Você não sabe de onde vem a violência. Aí, o que você faz? Você bebe, que a pior droga da rua é a bebida, aí a bebida puxa uma droga e a droga puxa outra e você não pode dormir, você não pode descansar, você não pode ‘se jogar’. Agora, aqui, que nem eu tô morando nesse projeto, esse projeto é excelente, ‘meu’, é uma casinha, um banheiro, um quarto, duas camas, eu e minha filha, tem uma cozinha, tem uma geladeira, falta ainda algumas coisas, uma mesa, um armário, tal, mas você precisa mais do que isso? Você vai sair, você vai trabalhar, você vai voltar, você vai estudar. Por quê? O caminho natural, o que é? Uma casa. Eu tive casas e não dei valor, porque tinha, né? Tinha casa em praia, tinha casa em campo, tinha casa ali. Para que eu me preocupar com casa? Mas a partir do momento que eu não tenho casa, eu vejo o quanto é importante isso. E o meu pai não me ensinou isso, entendeu? Quanto vale isso, quanto vale o seu dinheiro. Meu pai foi meu primeiro patrão, que não chega... depois de um mês eu cheguei pra ele: “Você me ensinou uma coisa” “O quê?” “Não quero ter patrão nunca na minha vida. Nunca, nunca”. Entendeu? Por quê? Porque pra mim não cabia isso, entendeu? Você viver num sistema ali e tal, e depois você ser jogada fora. Eu sempre falei para os meus filhos, até para o meu filho mais velho, eu falei: “O importante é você gerar trabalho, não você ser escravo. Você gerar oportunidades, trabalhos, fazer alguma coisa, entendeu? Mesmo que você siga um trabalho, que você aceita e tal, tudo bem. Mas faça aquilo que você gosta. E, se possível, consiga viver de si mesmo”. Essa vila aqui, o que eu falo até para o Carlos Bezerra, para todo mundo, até para o meu vizinho Ricardo Nunes, que eu falo para ele que ele é meu vizinho, porque eu o conheço há muito tempo, e acho que ele tem mais é que cuidar do ‘quintal’ dele, mas, sinceramente, que isso teria que ser uma coisa independente a partido, a ideologia, a cargo, a qualquer coisa, é projeto. E isso é primeiro um projeto, mas daí você vê: não, ‘vira’, mas se for sustentável, ‘vira’ mais ainda. Se toda a energia for limpa, você tem um banheiro que vai acabar virando gás na sua cozinha, entendeu? Fazer orgânico, fazer uma estrutura de geração, de geração de renda, de uma porta de saída, de uma coisa que não dependa financeiramente, mas sim o imóvel ser melhor construído, uma parte mais sustentável, que é até melhor, né? Pegar o próprio pessoal da rua para fazer essa construção e uma formação, porque hoje a gente vê aí que é construção. Nós estamos na era do Playmobil, das cidades inteligentes aí, que é de plástico mesmo. Hoje a tecnologia está aí, né? E hoje a gente está vendo aí o meio ambiente, como tem que ser tratado, né? A gente tem várias cartas aí de sustentabilidade, de hidrogênio, da moeda verde. Quer dizer: tudo meio ambiente, sustentabilidade, né? Eu acho que esses projetos têm que acontecer e acabar isso que está aí, esses acolhimentos, esses hotéis, que é um absurdo esses hotéis. Uma família chega, cada pessoa sai quase três mil reais dentro de um hotel, uma família com cinco, quanto não sai? Quer dizer... então, sabe? Hoje tem aí o aluguel social que vai sair, da Vila Reencontro, mas espera aí, seis meses você com carteira assinada, você perde o projeto, você sai, você não tem mais o aluguel social. Quer dizer: esses dois anos é o mínimo, o mínimo do mínimo pra você se construir, depois de uma pandemia, de uma crise. É o mínimo. De uma moradia, de trabalho, você tem que se formar, você tem que estar, sabe, atuante nesse mercado que tem aí. Hoje é inteligência artificial, ‘meu’. Por que não formar esses jovens aí nesse tipo de inteligência? Investir mesmo, entendeu, hoje, na educação, na formação. Hoje o que deve muito é a energia solar, pessoas que instalam. Hoje tem mão de obra, por que não ter isso como educação e formação? Então, arte e cultura é o que transforma. Eu conheço pessoas que saíram da Cracolândia e são artistas, entendeu? Que vão pra França agora, ano que vem, fazer turnê na Europa, ‘meu’. E não é só isso, falar: “Não, vamos fazer uma turnê na Europa”. Não, é o conhecimento, é o caminho, é o ‘leque se abrindo’, entendeu? As oportunidades. Porque hoje o que o pop rua está... a gente está estigmatizado, é que você não consegue nada, você não tem direito a nada. E o que você tem está bom. Como assim?
P/1 - Roseli, queria que você me ajudasse a entender como foi esse processo. Você saiu de casa e decide se afastar de alguma forma da sua família e como vai se desenvolvendo a sua vida? Quais são os desafios, os aprendizados que você vai tendo? E como você vai se aproximando dessa luta, dessa causa, pensando na população de rua e na questão de moradia?
R - Então, é que nem eu falo: ser hippie, artista, eu sempre fui, desde criança. Sempre tive esse olhar. Que é conhecimento, aprendizado, arte, cor, luz e tudo mais. É interação mesmo, cultural. Acho que tudo é lindo, (risos) tudo pode ser transformado. Isso sempre teve dentro de mim, isso é incontestável. Acho que é o talento, o dom que a gente tem, que a gente consegue superar esse lado. E foi justamente quando eu tive meu segundo filho. Eu, com meu irmão mais velho, que era um ano mais velho do que eu, o Guzula, resolvemos vender um apartamento que eu tinha ali na Aclimação, do lado do parque, que era meu, para montar um negócio e ele lançou no mercado a terceirização de motoboy, ali na Francisco Dias Velho com Jurubatuba, inclusive existia ainda a favelinha ali, não tinha hoje aquela Roberto Marinho, nada, né? Então eu morei ali, morava em cima, na casa, era uma casa de esquina e a empresa embaixo. Então, eu até aprendi muito com meu irmão nesse negócio. Ele tinha também uma pizzaria ali mesmo, no Brooklin, e a gente se dava muito bem mesmo. A gente era ‘unha e carne’. Tanto os amigos falavam que a gente ia morrer velhinho, junto e ‘curtindo’, que a gente era muito unido. Principalmente quando eu descobri que eu não era irmã de sangue dele, aí que a gente se aproximou mais ainda, nesse negócio, que a gente era uma diferença de um ano. Tudo começou junto: beber, zoar, tudo, tudo, tudo junto. Então, montamos essa empresa. Eu entrei com dinheiro, né? Vendi meu apartamento na época, era treze mil dólares, o dólar estava muito bom. E montamos essa empresa, com ele. Metade, metade. Eu entrava com dinheiro e ele com conhecimento. Montamos essa empresa, deu certo, mas chegou um certo momento que meu irmão, por causa do uso de cocaína, começou a ter muito uso disso e foi vendida até uma moto que tinha, tudo, para vender uma dívida de droga dele, tanto que eu falei com o ‘cara’ que era o chefão, assim: “Se você vender mais uma grama, eu não vou pagar, daqui acabou, não quero mais ver ninguém e tal”. E eu e meu irmão começamos a ter brigas e até legalmente, até minha vizinha era uma delegada federal e tudo, nós pegamos e entramos com uma medida entre eu e meu irmão, que a gente não podia chegar perto mais um do outro. Aí eu peguei e fui para a praia, mas pensando na minha empresa, que eu tinha com ele, falei: “Vou vender minha parte pra você e vou pra praia. Vou fazer o quê? Ciclismo”. Inclusive fui. Fiz muito triatlo, biatlo. Praia Grande, o prefeito de Praia Grande estava fazendo aquela Miami Beach ali, aquela ciclovia, aquela coisa. O Mourão. E eu treinava, então já fiz algum... ele me ajudou bastante na parte de treinamento, de academia, de publicidade, de tudo o mais, de patrocínios e tudo. Então eu peguei e fui para a Praia Grande fazer isso. Eu tinha meu filho mais velho, tinha os seus quinze anos, e o meu filho menor, de cinco anos. Porque eu tinha uma diferença entre os meus filhos, de dez anos. E o meu irmão me roubou a empresa, me deixou assim, sem nada. Me deu uma ‘graninha’ pouquíssima, que não deu pra nada. E eu perdi o apartamento, que era meu. O apartamento de herança da parte da minha mãe e fiquei na praia. Da praia eu comecei a fazer tatuagem de henna, porque eu sou tatuadora. E aí apareceu o tatuagem de henna. Nossa, eu ‘chapei’ de ganhar dinheiro, muita ‘grana’. Eu tirei o pessoal muito do ‘aviãozinho’ da praia, da orla pra fazer tatuagem de henna, ganhar dinheiro. Então, eu fiz vários negócios. Fiz negócio com esporte, que meu filho jogava futevôlei. Então sempre fui integrada à arte, à cultura e tudo misturado. Graças a Deus aí eu consegui, eu tinha um ganho com isso. Eu tinha uma ‘grana’ ainda, que meu irmão tinha me dado, mas era muito pouca, não dava nem pra eu comprar nada, um apartamento, nada, absolutamente nada. E com o esporte, que eu fazia o ciclismo, divulgava a Praia Grande, até saí em algumas filmagens e tudo, de eu pedalando, fazia Santos, fazia cem quilômetros por dia de bike, fazia Juréia, fazia várias ações assim, pedalando e tal, treinamento e sempre levando o nome de Praia Grande. Aí eu tive um acidente de estrada, de uma chuva ali na Ponte Pênsil e tudo, aí comecei a perder meus patrocínios, aí apareceu a tatuagem de henna. Um amigo, meu tatuador falou: “Vamos fazer?” “Vamos!” Aí eu comecei a trabalhar com isso e vi que dava certo e comecei a ganhar maior dinheiro, muita ‘grana’, aí já misturou tatuagem, henna, piercing, então foi uma época muito boa de verão, alto verão, fazia filas. Eu começava a tatuar oito horas da manhã e terminava três horas da manhã, que eram aquelas filas que não acabavam mais, sabe, de gente assim, nas férias, final do ano, tatuando henna. Vai ficar quinze dias, vai sair, melhor coisa, né? E por saber pintar, desenhar e tudo, eu fazia qualquer coisa, de rosto, tudo, tudo, tudo quanto era tipo e por causa da tatuagem eu tinha uma vantagem maior ainda de fazer trabalhos ‘massas’, que parecia tatuagem mesmo, mas saía. E com isso eu ganhei muita ‘grana’ e comecei a me firmar. Voltei para São Paulo depois de um tempo e meu filho foi morar com meu pai, meu filho mais velho foi morar com meu pai, o do meio foi morar com o pai e eu fiquei sozinha.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Eu tinha… meu filho já estava com quinze anos, eu estava com trinta, quase quarenta anos. Mas sempre assim. Eu fazia fotografia, pintava uns quadros, fazia tatuagem, então sempre fui trabalhando nessa perspectiva. Aí comecei a aprender, em São Paulo, artesanato, crochê, isso, aquilo, e comecei a fazer meus ‘trampos’, meus brincos, colares e tudo mais, expor, fazer aqueles ‘panos’, porque os ‘malucos’ expunham, final do ano era praia para ganhar dinheiro. E na época que a gente expunha na República era muito turista, não era hoje, que nem tem muito roubo e tudo, era gente do mundo inteiro passeando na República, era uma vida noturna maravilhosa, era outra ‘vibe’, era hippie, não tinha muito camelô, então foi uma paz assim, boa. Mesmo depois que vieram os camelôs, foi essa fase que eu voltei pra São Paulo e comecei a fazer meu artesanato e tatuagem de henna, que eu já não estava mais recebendo nada do meu pai, que eu não o procurava mais pra nada, pra pedir dinheiro, nada. E segui minha vida, né, assim.
P/1 - Nessa época você morava...
R – Nessa época eu estava em São Paulo e BR. Eu ficava uma temporada em São Paulo, vinha fazer, comprar material e tal, ver o que eu tinha que fazer, mas sempre viajando, sempre viajando. Nunca fiquei muito em São Paulo. Voltei a ficar em São Paulo quando minha filha nasceu. Aí eu vim para São Paulo, meu filho também morava em São Paulo, meu pai, tudo na mesma região, então eu me aproximava do meu pai, mas nada de... só pra ver, saudade. Tudo bem que eu tinha um irmão também excepcional, o Bil, que eu amava demais. Então eu ia ver, mas nada de família mais, assim, não. Receber alguma coisa dele, nada. Aí eu... porque é muito bom conseguir viver assim. Meus filhos que não tiveram a vantagem que eu tive, né? (risos) Mas eles sempre fizeram o que eles quiseram, sempre os apoiei, sempre os ensinei a verdade, e eles sempre conseguiram desenvolver e ter a vida deles. Meu filho mais velho, nossa, eu amo de paixão. Tem a família dele, é um ‘cara’ 100% e é tão bom, porque eu vejo na luta, resumindo de tudo, acho que dos nossos pais, a gente, tudo, é que quando vale a pena. O quanto vale a pena, né? Eu acho que filhos, toda nossa luta, todos os sofrimentos, todos os caminhos que a gente chega e se, no final das contas, você tem filhos lá que são bons, eu acho que isso é tão importante, entendeu? Então, é o que vale a pena. Eu acho que o que vale é você ter filhos, que a gente vive um momento, um breve momento. Eu não tenho medo da morte, sabe? Não tenho mesmo. Eu, há dois anos, sofri um - dois anos, vai fazer - acidente no Autonomia em Foco, onde eu moro, que eu caí na escada, eu bati a cabeça, pensei que eu ia ficar ruim, viu? Mas não fiquei. Mas o medo, sabe, o maior medo não foi o medo de eu ter caído e tudo, de ter batido a cabeça várias vezes, até que eu fiquei me cuidando, para ver qual era a minha reação, como eu estava me portando, para eu não ter que correr para um hospital e fazer tudo. Mas o meu maior medo foi ver a minha filha naquele momento. Se eu não existisse mais naquele momento, o que faria? Onde iria? Como iria sofrer? Então isso foi uma coisa que impactou muito comigo, sabe? Uma coisa assim, de eu pensar assim: “Não, espera aí”. O que a gente tem que ensinar agora é a pessoa aprender a viver sem você. Fazer a sua passagem, ser uma coisa natural, fazer uma coisa assim, sabe, que eu falo para meus filhos: “Pensa que eu fui pegar uma BR, que eu estou esperando uma grande ‘onda’, estou dando um ‘rolê’”, entendeu? Porque eu acho que é muito legal isso, sabe? Porque eu vi quando minha mãe morreu, eu sofri demais, ‘meu’, eu sofri, nossa, eu fui parar em psiquiatra. Eu tentei me suicidar, sabe? Foi uma coisa assim muito ‘louca’, porque eu era muito ‘louca’ e de repente eu vi a pessoa que, nossa, eu amava demais e mentir pra mim também, porque deu aquela melhora antes de morte. Sabe aquele momento que tem pessoas que dão aquela melhora? Que pensa assim que vai ficar bem e não fica. É só pra despedida mesmo. E minha mãe de um momento pra outro estava no Guarujá, que ela foi passar com meu irmão mais velho, que nessa época meu irmão ainda morava na praia. Foi ver meu irmão, os netos dela, e foi internada. Quer dizer: ela chegou e voltou para São Paulo. Eu estava fazendo estágio, eu trabalhava com desenho animado. Eu estava em outra ‘vibe’, entendeu, também. Outra coisa, né? Estava em outro momento de criação. Então, a morte da minha mãe veio assim como - nossa! - um ‘fim do mundo’, entendeu? E outra: de você perceber que muitas coisas que tinham passado tinham razão, porque se eu visse de outra forma, e se essa outra forma, a verdade, fosse solucionada desde o início, seria tão importante para mim, para todos, entendeu? Eu acho que seria mais. Se meu pai tivesse agido diferente quando eu era criança, em vez de ter (risos) contratado uma babá para mim e ter feito de outra forma, entendeu? Então, certas coisas que quando eu levei minha filha na Cracolândia a primeira vez, todo mundo: “Ah, você vai levar sua filha na Cracolânia?” Eu falei: “Vou, porque eu quero mostrar que na Cracolândia existem pessoas que estão lá. Tem aquelas que estão se drogando, tem aquelas que estão vendendo, mas tem aquelas pessoas que estão presas lá, que são normais, ‘meu’. São iguais você, não é bicho, não vai te transmitir nada, sabe? Tipo assim, a verdade. O que é a verdade? São pessoas normais, são pessoas, são seres humanos. E que são artistas, tem sonhadores, tem poetas, tem músicos, tem professores, tem advogados, tem médicos”. Então, para mostrar esse outro lado, que a verdade ninguém está livre, entendeu? Basta você ver direito, entendeu, o que você quer, o que você pode evitar e como você trabalhar isso, ‘meu’.
P/1 - Como foi pra sua filha?
R - Foi ótimo. Ela gostou muito, viu que não era nada daquilo, entendeu? Foi mais duas vezes e tudo. Mas infelizmente é que nem eu falo: “Não adianta você ir e só absorver e não poder fazer nada”. Você tem que criar mecanismos que você consiga resolver tudo de uma forma assim de não só absorver, porque senão você sofre demais. Eu falo no comitê que eu sou a pessoa mais frustrada, (risos) no fórum eu sou a pessoa mais frustrada dessa luta, porque a gente pede, pede, pede, pede, e nada vem, ‘mano’, nada vem. Quando eu vi a pandemia, eu vi São Paulo parar, ‘meu’. Não vi ninguém na rua. Muitas vezes eu vi só eu andando na rua, um ‘gato pingado’ aqui, outro ‘gato pingado’ ali, porque não tinha pra onde ir. Eu falei assim: “Mas como assim?” E pararam mesmo, saíram das ruas. Todo mundo. Aí eu vi o quanto, sabe, é frágil, a gente. A gente pode, eu mesma... a gente não sabia o que estava lidando, se era contagioso, se a gente ia pegar. As pessoas se fechando e as pessoas estando ali, cada dia mais gente. Era que nem pipoca, né? As pessoas começaram a surgir assim, na rua, no primeiro ano, muito rápido. Muito, de todos os lados. E aí as pessoas, sabe, uma agindo, outra arregaçando a manga mesmo, indo. E o encontro no comitê a gente discute banheiro. Aquelas Vidas no Centro, discutindo um monte de coisa. E emergencial para mim era ali, na hora, no momento, mas não, as coisas demoravam a acontecer, a emergência era imediata. Aí foi quando eu encontrei a Vanessa Labigalini, do banho, até foi o Átila, que também era do comitê, me apresentou, começamos a fazer ações de banho e chamando empresários, o pessoal que podia ajudar com alguma coisa, porque tinha muita gente que queria ajudar, não sabia o que, aonde e como, porque muita gente aproveita também o pop rua para ‘sair na foto’. Tem muito. Eu fiz uma filmagem em Santo Amaro, na primeira ação do banho, tinha uma política, uma pessoa que corria pela política, ela fez uma filmagem, foto e o trabalho em si. Você vê, põe os dois do lado, quanto é a diferença humana, porque eu sempre deixei bem claro, sem partido, sem nada. É, sabe, humanização mesmo. Voluntariado, é fazer, ‘meu’, não é... pode sair na foto, pode tirar foto, mas não usar isso como ‘máscara de manobra’, política e nada. Então, eu sempre fui muito rígida com isso. Faça o bem sem olhar a quem. E aí, quando você começa a juntar um, outro, tal, você faz altas ações, muito lindas e com tudo e o que teria que acontecer diariamente, e não acontece, porque o pessoal fica dependendo de dinheiro, de investimentos, de apoio, de doação, para fazer. Você viu a ação do banho? É muito lindo, né? E agora, com a parte também religiosa, de unir a umbanda, o candomblé, o católico, todas as religiões, o budismo, todo mundo junto, falando uma coisa só, que é para dar um axé, uma oportunidade mental, espiritual para a pessoa, porque a rua também precisa você acreditar em alguma coisa, né? Muitos acreditam, para poder continuar inteiros, né? (risos) O que é bizarro. Vidas no Centro acabou, tenda na Praça da Sé não tem, está sitiada. A violência é extrema. Você é jogado de um lado para o outro, politicamente.
P/1 - Você estava contando a sua aproximação com essa...
R - Então, aí, nesse meio termo assim, também da cultura, que nem eu falei pra você sobre as três divisões do Largo 13, que foi um projeto do _____, que eu fui convidada a participar e eu pus uma feirinha de artesanato hippie, que foi ‘massa’, muito ‘massa’, com tudo quanto é tipo de cultura, desde o teatro, tinha o pessoal até anarquista que ia lá, que era muito ‘massa’. Um lugar aberto pra você se expor, circo e todas as intervenções de rua, que foi muito importante mesmo. Foi uma coisa que deu uma repercussão muito boa, num momento tão violento que nós vivemos, aqui no centro de São Paulo, geral, em São Paulo todo, uma ‘caçação’ às bruxa mesmo. E agora, depois da pandemia, e agora? Aí quando chegou na pandemia, que eu entrei no Comitê Pop Rua, eu fui convidada a fazer uma matéria, um ‘bate-papo’, uma live com a Vanessa Labigalini e com o Padre Júlio Lancellotti, no Sesc. E uma amada lá do Sesc, até eu esqueci o nome dela, perguntou pra mim assim, pra fazer a abertura, porque eu estava aqui, nesse local de comitê, de luta. Eu fiquei acho que quase um mês pra responder, demorei à beça. Fiz uma autoanálise, porque, como eu cheguei aqui, né? Então, eu penso assim: por que foi, eu acho que desde o momento que eu peguei e falei o não de abuso pro meu irmão, eu falei: “Não quero mais”, entendeu, isso desde pequena mesmo, pra depois ser também um momento muito assim, de ver o que eu vou fazer agora, do nada, entendeu? Como sobreviver? Então, espera aí, eu sou artista, né? Pinto, tenho uns quadros, vendo. Como eu posso ganhar o meu espaço? Então, foi com a arte. Aí, eu fui começando a me integrar, assim, com outros meios também que eu tinha. Condição física também, quando entrei no ciclismo; quando fui fazer fotografias; quando eu fui para o Xingu, fazer uma matéria lá dentro, fui acompanhando, porque você conhece, você já sabia a vivência, como era feita. Então, eu sempre fui acompanhando, durante o meu trajeto, esses momentos. E quando eu cheguei em São Paulo e que eu me vi num momento assim também de luta, de artesanato, de expor e mais espaço para trabalhar e estava sendo impedida a trabalhar, impedida de ter o meu trabalho, que meu trabalho era artesanal, era de mim mesma, não era comprado, não era industrializado, não era escravo, não era nada, eu me revoltei, né? Falei: “Mas espera aí, irmão, tem algo de errado”. Então comecei a batalhar pelo direito de trabalhar com arte. Então eu ‘bati muito forte’, muito presente no governo, que agia com zeladoria, prefeitura e tudo mais e cultura, pra ganhar e conquistar esse direito da gente trabalhar. Aí foi também a união de vários outros artistas e tudo, pra gente entrar no decreto do artista de rua, que era só estátua, música, teatro, não tinha o artesanato hippie nessa lei, nessa portaria. E aí nós conseguimos entrar, aí tivemos liberdade também de expor. E isso foi uma luta muito legal que a gente fez. Então, foi o primeiro movimento assim de luta de direito de trabalho. Aí depois, no comitê, uma amiga minha me apresentou o Comitê Pop Rua, e a Celina do Sesc me fez essa pergunta. Aí eu falei assim... porque no primeiro dia de reunião do comitê, eu falei que a gente poderia nos unir, todos os conselheiros, junto com a Cultura e tal e fazer um grande projeto. Todo mundo olhou para minha cara e falou: “Quem é essa ‘na fila do pão’?” Falei: “Não, tá bom, ninguém quer se unir”. Aí veio a pandemia e eu fui muito atuante, né? Eu, entre os outros, todos foram atuantes mesmo e eu também muito atuante, consegui ter esse lugar de fala. Eu entrei para um movimento também, mas também saí logo. Fiquei um ano e pouco, mas saí, porque também não me interessa nada que seja pirâmide. Eu acho que a nossa luta tem que ser horizontal. Não pode ser machista, não pode ser, sabe? Não uma pirâmide. Pirâmide, ‘meu’, já chega o governo que a gente vive. Vem o presidente, vem aquela ‘cascata’. Aí em alguns países, em algumas cidades, acho que essa ‘cascata’ é só eles, né? E aí que tá, que a gente tem que derrubar essas ‘cascatas’ mesmo, sabe, desse poder, ‘meu’. Tanto que eu falo que eu vou me vingar nas urnas, né? Vou mesmo. (risos) Vou enxotar o Ricardo Nunes. (risos) Esse governo de direita, não. E aí eu tô aqui, tô brigando, eu faço parte de vários... me convidou, tô indo, entendeu? Estão falando, discutindo sobre a reparação racial. Eu acho que não tem reparação, eu acho que todo ser humano devia nascer já com o direito de uma casa, educação, internet, (risos) porque hoje nós somos ‘escravos’ da internet, né? A gente tem que trabalhar mesmo. E eu acho que a única reparação que o governo pode fazer à sociedade, aos escravos, aos índios, entendeu, sem esse negócio de demarcação de terra, de... eu acho que os países mais evoluídos do mundo não têm lixo, todos têm o mesmo direito, todos ganham, uns ganham mais, outros ganham menos, mas todos ganham o suficiente para ter uma boa vida, uma boa casa, ter as mesmas oportunidades, então eu acho que é por aí, ‘meu’.
P/1 - Então você já esteve na situação, você já viveu na rua?
R - Não, viver na rua não, mas é quase que nem isso, porque eu fiquei sabendo que quem vive em hotel daqui pra lá, que não tem lugar muito fixo pra morar, que eu sou uma nômade, né? Apesar que por causa da Hare eu virei um ‘pardal’, né? Mas você está em situação de rua, né? Hoje a população de rua é um caramujo, porque ele vive hoje com a casa nas costas. Porque nós vivemos num país, numa cidade higienista, que está limpando toda hora, tem um decreto pelo STF que não pode ser retirado nenhum pertence do pop rua, principalmente de sobrevivência, que é uma barraca, um colchão, uma lona e tal, e eles estão tirando, continuam. E ainda no último parágrafo, se não tiver acolhimento e nada, a prefeitura deveria dar uma barraca. Quer dizer: isso aí eles nem olham, a última linha, porque nunca que eles vão dar barraca, pelo contrário, eles tiram. Teve uma época, com a Rede Rua, nós entregamos barraca lá em Santo Amaro, nessa pandemia, muitas barracas para as pessoas lá, o pessoal olhava para minha cara e já via uma barraca. Não podia andar na rua, que o pessoal queria barraca, que é uma coisa que funciona, já que não tem acolhimento. Pelo menos proteger de insetos, de ratos, da chuva, apesar que, se você não tiver uma loninha boa, você ‘naufraga’ nessas barraquinhas pequenininhas, mas é uma forma de você se proteger, né? Ter um mínimo, um mínimo de privacidade, né?
P/1 – Mas, Roseli, então sua aproximação se dá na época da pandemia, ou já antes?
R - Já antes, a minha luta foi sempre, né? Eu acho que a gente luta, assim, mais de trinta anos, vai, que eu luto pela arte e a cultura, pelo direito de você trabalhar, de expor, de mostrar sua arte, porque ela não é um trabalho escravo principal, ela não é uma indústria principal, você tira, faz tudo no artesanato hippie. Então, isso é uma forma que você é sustentável, é a sustentabilidade do ser, de trabalho, de uma profissão que é antiguíssima, milenar, que é um artista, um ourives fazendo, um indiano fazendo na terra colares, brincos, joias, né? Então, eu acredito que eu aprendi, né? Eu consegui aprender várias técnicas, né? E hoje em dia, com o YouTube, então, ‘meu’, você aprende tudo! (risos) Tudo, né? Você aprende tudo, o que você quiser fazer, você faz pelo Google. Tudo, tudo mesmo. Tanto a informação, que é importante, também o que está ‘rolando’, quais são as leis e tudo, onde você pode se engajar, onde você encontrar pessoas que estão na mesma luta, de poder criar um trabalho. Eu acho que é muito importante esse trabalho de... eu vejo também: cada movimento que nós temos hoje no Brasil, em São Paulo, são bons, entendeu? São movimentos fortes, que lutam por uma política pública. Indiretamente ou diretamente, é importante. Hoje nós temos aí o comitê da população de situação de rua, que é do _____ Rua, que é do governo, né? Quer dizer, então a gente está... não é hoje só o pop rua, hoje a gente está ocupando um espaço que é do governo, entendeu, dialogando com direitos humanos. Porque eu falo: tem que ter o mecanismo, tem que ter ética, tem que ter moral, ‘meu’. Aonde está a ética e a moral, meu? Aonde? Como eu consigo, com o nome da lei, praticar tantos abusos? Como é possível, entendeu? Genocídios, mortes, violações, aonde está escrito que pode? Tem que ter ética, tem que ter moral, tem que ter um mecanismo que barre isso, entendeu? Interesses políticos, espera aí, esses políticos da direita estão muito errados, estão ‘fora da caixinha’. Nós estamos em 2023, ‘meu’. Eu pensei, quando eu era jovem, que eu tinha meus treze, quatorze anos, que eu ia estar no ano 2000, eu ia estar flutuando, eu ia estar que nem a família... como se fala? ... que tem a espaçonave, que mora no... que tem... como é o nome? Não me lembro do... qual?
R2 - Família do futuro.
R - É, sabe, uma coisa assim, ‘meu’, sabe? Ter vários, falar com o mundo inteiro, não é uma coisa legal? Do que você ficar, sabe, limitado, preso? Tem pessoas que são cerebrais, entendeu? Hoje falo no... sabe, como assim? Sustentabilidade é um tema que a pop rua hoje tem que entrar, tem que fazer parte, tem que fazer parte de movimentos. Aí eu tô aqui num projeto, tudo maravilhoso, tal... quer dizer, maravilhoso, tem muita coisa a mudar, entendeu, tem muita coisa a construir, mas é uma estrutura que daí você pode fazer portas e sair da geração de renda, você tem espaço, você tem saúde, você tem tudo dentro. Então, o que você tem que fazer? Você tem que fazer essa máquina girar, não fazer: não, é dois anos, mas eu acho dois anos, pra mim, eu quero menos, eu quero que em seis meses, um ano eu já tenha dentro de uma casa. Eu estou lutando pra isso, entendeu? Então, eu acho que isso tem que ser. Eu acho que mentalmente eu já faço uma redução de danos, eu acho que ainda não estou muito ‘louca’, apesar que eu esqueço várias coisas, eu tenho uma dificuldade de lembrar datas, pessoas, porque que nem eu penso assim: o passado passou, entendeu, não me acrescenta nada. Que nem da minha família, todos morreram, acho que só falta o meu irmão mais velho, porque pai e mãe já foram. Quem me acolheu, quem me recebeu, já foi desse planeta. Quem me odeia ainda está aí, (risos) então ‘pega a fila’, entendeu, que eu não tô nem aí. Então, eu acredito que essa luta não para, né? Eu estive na Argentina há pouco tempo, nós vamos fazer um encontro agora, ano que vem aqui também, latino-americano, que é muito interessante. Infelizmente a Argentina ganhou um presidente aí bizarro, não merecia isso, porque a Argentina é linda. A Argentina é para fotografia, tudo no seu lugar. Lá é tudo muito bem dividido. Lá é dividido a classe A, classe B, classe C, rua. Quer dizer, não se misturam. Incrível. (risos) Eu vi isso na Argentina, sabe? Mas existe um grupo de pessoas interessadas em fazer a diferença, em fazer alguma coisa, em criar políticas públicas e ter resultados, de tirar essas pessoas que estão tão vulneráveis e ajudar. Isso é em todo lugar do mundo. Você vê no Chile, na Argentina, na Bolívia, no Peru, no Brasil, na Irlanda, em qualquer lugar do mundo. Hoje existe... a vulnerabilidade da pessoa hoje é muito grande. Infelizmente, nós temos uma previsão de mais de duas mil pessoas na rua agora, com o negócio do desapropriamento. Ainda mais com esse projeto do prefeito aí, de urbanização central, ele vai começar a desocupar as ocupações, os terrenos, para poder fazer as moradias deles e os pontos sociais, vamos ver o que vai sair, mas vai ser um grande desmonte, infelizmente. Mas aqui o que é passado na mídia é que está tudo lindo, né? Tudo maravilhoso. Você olha pra Praça da Sé só tem polícia, né? Não tem nem pop rua, é só polícia. Nós estamos sitiados. Você anda na rua, dá dois minutinhos e já vê um polícia. Entrou agora uma cota de policiais de mais de mil e quinhentos soldados novinhos, assim, com ‘sangue no olho’, porque eles fazem máquina, eles têm uma fábrica de opressão, né? É uma fábrica de opressão mesmo. Paulo Evaristo Arns falava em Brasil Nunca Mais, né? Você começa a torturar, você não gosta, mas depois de um tempo você se vicia nisso, né? Então, é uma condição mesmo. As pessoas estão saindo, estão sendo condicionadas a ter muita violência, né?
P/1 - E nesse tempo todo, qual foi a ação ou o projeto mais importante para você, assim, com essa população?
R - Projetos são vários assim, né? Eu acredito que os projetos da Vanessa, de banho, acho que são muito importantes, então são... que deveria ter mais. Tem o Edu, que faz pros cachorros, os pets, há já muito tempo, antes da pandemia mesmo, de levar um tratamento, um acolhimento ao animal. A gente fala do pop rua, imagina os bichinhos, que não têm castração, que não têm vacina, que não têm nada na rua. É muito gritante. Ainda mais com a pandemia, muitos jogaram os seus cachorros na rua, seus animais. O projeto também que deu bastante impacto, que eu aprendi bastante, foi na Cooperativa Bloco da Rua, junto com o movimento. Então, eu aprendi, eu fazia a parte de formação, mas eu aprendi que é possível mesmo. É possível a cooperativa hoje, junto com o governo mesmo, de incentivar as pessoas à construção civil, à reciclagem, à cultura, ao artesanato, de formar. É que nem trabalho, o POT, tudo bem, o POT está aí, tem que acolher mesmo, tem que dar emprego, mas é dois anos só. Eu acho que a gente tem que ser empreendedora, cuidar dos seus negócios, de promover a sua empresa, o seu trabalho, a sua prestação de serviço. Do que ser só aquele que vai trabalhar, limpando praça, limpando não sei aonde e aí, o resto, né? A informática, a formação é muito importante, a educação. O Jovem Aprendiz, que vai vir uma leva boa agora para Jovem Aprendiz. Então, é tudo isso que é um processo de saída. E a cooperativa é justamente, que você integraliza, várias pessoas se unem, começam a conviver junto, a traçar os seus limites, os seus interesses e nessa começa a fazer uma construção, onde todos convivem bem e têm um único objetivo: é ter liberdade na sua expressão, no seu trabalho, no seu dia de vida, o que fazer, o que consumir, porque que nem eu falo: a droga, a descriminalização ajudaria bastante para poder liberar vários jovens e mulheres que estão presas por bobagem, enquanto o tráfico de órgãos está aí, de prostituição, de eletrônicos, de droga pesadíssima, está aí circulando, livre, leve, solto, legalizado e enquanto nós estamos sendo jogados, as periferias, por causa de nada. Ainda uma terapia até que cura, né? É que eu baseio e peço muito a cura do psicodélico e canabinoides, que eu acho que é importante, hoje está tendo uma temática mais profunda, e os assim mesmo de trabalho, geração de renda, de oportunidade, porque a cannabis aproveita tudo, desde o cânhamo, até para a construção civil, para a roupa, para a saúde. Quer dizer, existe uma infinidade de coisas, que nem eu acho que em escola mesmo, na parte da alimentação, de segurança, existem tantas pessoas que se unem para fazer alimento para as outras, de doações, humanitário e tal, por que não essas pessoas fazerem formação de escolas, de produzir alimento para outras pessoas que estão tão vulneráveis em ocupações, em periferias? Se a gente reclama daqui do Centro, as ‘pontas’ então estão muito mais abandonadas, muito mais ninguém vai, saúde nem aparece. Quer dizer: o censo (risos) eu trabalhei, da pandemia. Tanto da população de rua, e minha filha também trabalhou na Criança e Adolescente. No dia da contagem do pop rua a gente ia aonde tinha os fluxos de pop rua e não tinha. O que eu via era o quê? Polícia apagada, o pessoal dos ônibus catando o pessoal e levando para outro lugar e a população que ocupa o espaço não estando. Quer dizer: é a Faria Lima, é o governo, ele mostra o que quer. Gasta a maior fortuna pra fazer o trabalho deles, que deveria ser feito, real, mas não, sabe? Eles jogam o que eles querem, promovem o que eles querem, eles põem um número tal, então eles vão fazer todo o trabalho financeiro, tudo de projeto, para aquela quantidade de pessoas. Quer dizer: nunca vai fechar o número, porque a realidade é outro número. E mesmo esse número, que é pelo IBGE, pelo censo que eles fizeram pelo IBGE, porque no IBGE também eu não fui contada, ninguém me perguntou nada. Eu não existo, não estou na contagem. Não sei pra que, entendeu? Vão fazer agora uma que espero que saia, que vem agora, do governo federal e a gente como movimento e as lideranças e todos vamos trabalhando junto nessa construção. Espero, né? Porque, também, se não for eu vou falar, porque não dá, entendeu? E aí eles trabalham com aquele mentiroso número de quantidade de população de vinte, trinta mil. Quanto era, na oficial? Trinta e poucos mil, que é um absurdo, estamos quase beirando os noventa, né? E agora, com os desalojamentos aí, com as ocupações, vão tornar maior esse número. Então, infelizmente a gente vive nesse mundinho paralelo. Agora nós estamos discutindo, no Comitê Pop Rua, novo regimento interno, que eu acho importante, a participação tanto do governo como a sociedade civil na mesma mesa, que a gente só fica ‘figurando’, é só ‘figurinha’, né? Porque nas reuniões importantes não vai o pessoal que deveria ir pra discussão, e a gente fica só com as denúncias, denúncias e denúncias e não tem resultado, né? Eu vou estar em Brasília agora, no começo do mês, no... como é o nome? Encontro Nacional da Saúde e da Assistência Social, que é uma temática também, que eu acho que o pessoal está preocupado com os salários, com o RH, do que com a população de rua, porque eles não põem população de rua, eles só põem as temáticas financeiras de equipes de trabalho. Tudo bem que tem que ser aumentado, as pessoas têm que ser valorizadas, têm que ganhar pelo trabalho que exercem, mas as políticas trabalham para nós, nós estamos na ‘ponta’, na ‘ponta da ponta’, a gente tem que ter direitos também adquiridos, para a gente poder ter saídas, não manter esse sistema.
P/1 - Como funciona o seu trabalho no Comitê Pop Rua?
R - O comitê funciona assim: durante... semanalmente tem reuniões, tem o comitê também de zeladoria permanente, que é uma vez por mês, tem assembleia... não, tem a primeira reunião mensal, onde foram, são feitos os pedidos, as devolutivas e assim vão, porque a gente acolhe as denúncias de acolhimento, de altas temperaturas, de baixas temperaturas, de banheiro, de acolhimento, de alimentação. Então, todas as pautas que são da população de rua a gente pede no governo uma resposta. A última agora de ontem foi feita... hoje está tendo uma reunião da zeladoria. Eu não estou nela, mas o pessoal já sabe as minhas demandas, que eu já mandei. Então, o que acontece? É onde a gente consegue, tipo assim: por causa de trabalho, ou GT... não, Secretaria de Trabalho, de Saúde, tudo, que a gente pede os óbitos, ou as vacinações, porque a gente, no comitê, conseguiu que priorizasse a população em situação de rua tomar vacina, independente de idade, a criança que está sozinha também, porque não queriam nem aplicar nas crianças que são solos. Então, são essas demandas que a gente leva na discussão, onde a gente questiona a SMADS, o POT, Saúde e tudo, tudo que a gente precisa, da falta de... como se fala?... do centro pop, do pedido... como se fala?... de endereço para o pop rua, as pessoas que são retiradas do equipamento e ficam restritas, entendeu? Então, a gente pede o quê? A redução de danos. Eu principalmente sempre peço redução de danos, participação do governo, uma cota, que nem aqui, nesses equipamentos, que já são três, mas vão ser vários que estão sendo abertos, que tem que ter uma cota para pessoas idosas, deficientes, as pessoas trans, entendeu? Então a gente vê... porque foi destinado ano passado mais de cinquenta, quase oitenta milhões só para hotéis, para serem abertos durante a pandemia, para fazer o acolhimento. E esses hotéis geralmente metade fica com a SMADS, para os acolhimentos e metade fica para o hotel continuar trabalhando a operação dele e não fechar, e ter toda a estrutura. Então tem tudo isso: a gente fazer visitas, os equipamentos, para acolher as denúncias de funcionários, de ONGs, em geral, a gente pega tudo, a violação da zeladoria, a retirada de material. Então, a gente se reúne num dia da semana, que geralmente é quarta-feira, ou algumas extras, agora a gente também está discutindo, porque tem que ser aprovado esse mês, que é o regimento interno, para ano que vem, as pessoas que forem trabalhar no comitê - porque eu me aposento agora, são só dois anos, né? - em dois anos pode ser reeleito.
P/1 - Dois mandatos.
R - Dois mandatos. Eu estou no meu segundo e eu vou parar. E eu acho que quem vai é a Hare, a gente está pedindo pra ela se candidatar. Porque ela já consegue, porque todo mundo a conhece e sabe, né? E outra que a gente tem um trabalho, né? Muita gente votou em mim, então a gente tem esse lugar de fala. E aí viraram pra mim, tudo bem, porque eu sempre ando com carteirada mesmo, dou carteirada, peço zeladoria. Ontem mesmo uma amiga minha que veio, eu a levei lá na Cracolândia, depois eu quis entrar até no MASP ali, no parque, pra mostrar pra ela a nova área do Sesc... do Sesc não, da Pinacoteca, que abriu, que é muito legal. Inclusive o pop rua pode entrar, pode usar o banheiro, pode interagir. Muito massa o espaço, tem várias oficinas. E tem uma prioridade o pessoal, a população em situação de rua, mas isso vem de uma construção que a gente faz direto, a gente começou a fazer o Festival Internacional de Pop Rua, que aconteceu ano passado, lá no Museu da Língua Portuguesa, né? Foi um trabalho de mais de um ano e meio, para poder fazer aqueles três dias. Então, a gente faz todo esse trabalho. Então, o que a gente faz? Que nos movimentos também, que estão lá, as ONGs, a Rede Rua, Luiz Gama são pessoas que a gente está sempre articulado junto, para poder pontuar, geralmente são essas demandas de auto violência das mulheres, a falta de Modess, a retirada das crianças, das mães usuárias, ou porque está em situação de rua. Então existe muita, uma demanda assim gigantesca que a gente participa. E tanto no comitê, a gente leva essas demandas, as mais emergenciais, o que está acontecendo e o que a gente está protelando, que nem o STF, a discussão da portaria da retirada dos pertences, a gente discute sobre geral, principalmente pontuando agora a apreensão das pessoas sendo presas compulsoriamente, a violação dos direitos, da violência muito acentuada, que é do pessoal da Cracolândia e dos territórios, a continuidade da retirada dos pertences da população de rua, a falta de acolhimento nos equipamentos e a baixa estrutura que muitos equipamentos têm. E outra pauta muito pontual que a gente está discutindo, que é aquela: “No meu quintal não”, entendeu? No meu quintal não. Então, que nenhum equipamento desse, tudo bem, é a SMADS, ótimo. Graças a Deus que é o Carlos Bezerra, porque a ‘janela’ lá, sei lá como era o nome dela, a outra que estava no lugar antes do Bezerra não conversava com a gente, com a população de rua, não conversava. Inclusive a gente fez vários manifestos, a denunciei diversas vezes aos Direitos Humanos, pela omissão à pop rua, ao abandono e tudo mais. Então, é um momento e é um lugar de luta. Aí, dentro dessa luta existem outros comitês, né, que tem o comitê de zeladoria, agora de baixas temperaturas, do LGBTQIA+, da AIDS agora, que entrou na Saúde. Então, tem todas essas demandas que a gente faz essa discussão. Aí entra o fórum também, que eu faço parte do fórum, que é o fórum de São Paulo, da população de rua, o GT da ALESP, que o Suplicy me convida a participar da mesa, da Câmara, dos vereadores também, que tem o GT da Cracolândia, que a Luna me chama, porque eu já faço parte, já estou no meu segundo ano discutindo sobre Cracolândia, que eu estou pedindo uma Vila Reencontro com a Cracolândia, para trabalhos alternativos, trabalhos terapêuticos, com terapia psicodélica, que está funcionando muito bem, do que é essa vacina aí, que a gente não sabe como a pessoa vai ficar. Então, eu estou sempre na luta, e agora também estou fazendo parte do grupo do transfeminismo latino-americano, que eu acho muito importante isso também, gostaria muito que ano que vem vai fazer vinte anos da luta, no dia de luta da pop rua, da Praça da Sé, da chacina, e vai ter um grande encontro, um mês inteiro a gente faz vários trabalhos, todo mundo se reúne pra fazer trabalhos gerais, e agora é latino-americano já. E a gente quer trazer, eu até vou atrás de patrocínios e apoio, para poder trazer as meninas para cá, para conhecer o nosso enfrentamento, que é muito maior do que os países que eles têm, mas eles têm outros tipos de luta, mas que não deixam de ser também por moradia, de acolhimento, de tratamento, de preconceito, mas de poder fazer esse intercâmbio, porque tem muita coisa que funciona, que nesse projeto aqui eu acredito que, se fosse sustentável e ‘impartidário’, seria excelente, porque iria acabar sabe o quê? Essas ONGs que ganham com a rua, que estão nesses acolhimentos, subfaturando a nossa vida e querem manter a gente na rédea, tutelados, porque nós somos tutelados, porque você vive no sistema onde você tem que estar, você tem hora para acordar, tem hora para entrar, tem hora para alimentar, tem hora para vestir, tem hora para tudo. Agora você vai ficar só nisso, você não vai ter um trabalho, você não vai ter uma porta de saída, você não vai ter um acolhimento. Se você trabalhar à noite você não tem lugar para ficar, porque onde você vai dormir no abrigo, no albergue, como, se todo mundo está acordado durante o dia? Então você vai dormir nas praças, vai dormir na rua para poder trabalhar à noite. Quer dizer: então é uma coisa assim, sabe, que não bate nunca, que nunca vai fluir. Então, acabei ficando aqui. Então o comitê, eu espero que agora, esse mês a gente consiga concluir o regimento interno do comitê para que ano que vem ele tenha mais apoio e mais estrutura igual, não só governo, porque o governo é sempre sendo o governo e a gente fica só de coadjuvante, porque tem que ter, porque é lei, tem que ter um comitê o governo pra discutir justamente as políticas públicas pra população de rua. Aí a gente vira um fantoche, a gente só sai na foto, está ali, está presente, eles aparecem de vez em quando, falam o que querem, você é por isso mesmo, depois vai, retorna e passa o mês, uma semana, e o emergencial, o imediato, é agora. É ontem, entendeu? É que nem uma amiga minha fala, a Cintia, que é tudo pra ontem. E é mesmo, a situação que nós nos encontramos é mesmo, tudo pra ontem mesmo, não é pra amanhã, depois. É emergencialmente mesmo.
P/1 - De todos esses espaços que você frequenta, o que você mais escuta? Quais são os relatos da população de rua que mais te marcaram?
R - É que não tem casa, que não tem uma moradia. Simplesmente isso. Eu acho que o básico mesmo é aquela oportunidade também para um trabalho. Muitos gostariam até de sair do uso compulsivo da droga, mas não tem um tratamento legal, alguma coisa que dê resultado mesmo, então você fica ‘enxugando gelo’. Eu acho que também o conflito que existe hoje, geral, porque a redução de danos não é só o uso de drogas, de álcool, é o emocional. Se você não tiver uma boa terapia, se você não tiver um trabalho com você mesmo, de te resgatar... eu, pra me resgatar, porque eu era muito kamikaze, eu não queria saber se eu estava viva hoje ou não, se meu ‘paraquedas’ ia abrir ou não, eu queria viver, eu queria fazer uma mais ‘louca’, eu queria ser mais ‘louca’ que o meu irmão. Era uma competição. Quem é mais ‘louco’? Quem toma mais? Quem é mais ‘doido’? Então chega num momento que você vira e fala assim: “Não, espera aí”, sabe? Quando eu falei que eu ia ser mãe, meus amigos, meus irmãos falaram assim: “E aí, você vai contratar babá, uma enfermeira, né?” Porque ninguém me via, nunca segurei um bebê. O primeiro bebê que eu segurei foi meu filho, entendeu? Aprendi com ele ser mãe. Potinho da Nestlé eu tinha de tudo quanto era coisa, armários, porque eu nunca tinha cozinhado, eu não tinha essa educação de cozinhar, tinha quem cozinhava, entendeu? A primeira vez que eu fiz um café, ‘meu’, eu pus sete colheres de café e três de açúcar. Quer dizer: eu fiz isso totalmente ao contrário. Quer dizer: então eu aprendi a ser mãe com o meu filho. Tudo que eu li era De Lamare. Era o que os outros falavam pra mim, entendeu? E quando eu tive a primeira experiência de mãe mesmo, tanto que ele sentou na hora, eu queria ter parto natural, na água e no fim ele sentou, eu tive que fazer cesárea. E outra que eu também depois descobri que eu não tinha passagem, entendeu? De todo jeito, ia ter que ser cesárea. Então, eu com seis meses mergulhando em Fernando de Noronha com os golfinhos, querendo ter meu filho lá. Meu pai: “Não, pelo amor de Deus, vem pra casa, vem pra cá, vem pra cá, vem pra cá”. E eu voltei. Ainda bem, né? Tive meu filho. E tive uma infecção instrumental que eu quase morri. Em uma semana eu estava... nem três dias eu estava voltando para o hospital, entre a vida e a morte e meu filho indo pra outro... meu irmão tinha acabado de casar e meu irmão cuidou do meu filho, porque eu tinha acabado de sair do hospital, ido para casa e voltei no outro dia com uma infecção generalizada, por causa de instrumental. Aí fiquei no hospital de novo, saí do hospital meu filho já estava com um mês, eu falei: (risos) “Esse aqui não é meu filho”, estava totalmente diferente, entendeu? Então foi enfermeira que me... eu ia no pediatra, eu chorava. Não era meu filho que chorava, eu chorava demais, porque eu não sabia o que fazer. Então, minha mãe já tinha morrido, que poderia ter dado esse apoio, essa transição, porque eu era sozinha. Eu tinha feito um aborto alguns anos antes, uns dois anos antes, que meu pai chegou simplesmente e deu dinheiro pro meu irmão e falou: “Ó, leva lá na clínica, você sabe onde é, né? Então leva lá pra tirar”. Não perguntou pra mim se eu queria, se eu não queria. Lógico que eu não iria querer, porque eu era muito jovem, né? Mas ele não me perguntou nada, ele simplesmente pagou. E quando, depois, eu tive um filho, eu engravidei, eu falei assim: “Não, está todo mundo falando de produção independente”, né? Que era auge produção independente, eu falei: “Vou entrar nessa”. E falei pro meu pai que eu estava a fim, mas eu já ganhava muita grana com pintura. Então meu pai falou: “Não, tudo bem”, estava ‘debaixo do berço’ dele, também. Meu pai adorava, adorou meu irmão... meu filho, né? Então, foi essa fase. Então, eu tive o filho pra me salvar da minha ‘doideira’, entendeu? Porque eu falei não… quando meu filho nasceu eu mudei totalmente, entendeu? Da ‘vida louca’ que eu tinha, totalmente ‘pirada’, pra uma outra fase. Quer dizer, era mais consciente, mais centrada, tentando entender aquilo que estava acontecendo comigo, né? O meu filho, o que era. ‘Meu’, era um bebê, ‘mano’, entendeu? (risos) Então, quando começou a rabiscar as paredes, quando começou pra mim foi auge, sabe? Porque foi um encontro. Tanto que quando o professor de futebol dele, de futevôlei, chegou pra mim e falou assim: “Você sabia que seu filho tem uma vida sexual ativa?” eu quase tive um treco! Eu falei: “Como assim ativa?” Que eu pensava que eu ia acompanhar tudo isso, mas não, porque ele era menino e eu não sabia o que se passava com o menino, não sabia o que aconteceria com menino. Então, foi tudo um crescimento e foi ‘muito louco’. E o importante que eu sempre falei pro meu pai: “Pai, pelo menos eu tento. Não deu certo, eu não posso fazer nada, pelo menos não tem nada que eu tenha querido ter feito e não fiz”. Eu fiz, entendeu? E eu consegui criar meus filhos assim, sabe como? Eles decidindo o que é melhor para eles, que tipo de religião eles querem, que tipo de mulher que eles querem, que sexo que eles querem, o que eles querem ser, porque para mim foi tudo entregue: “Você vai fazer isso, você vai ser isso, você vai ser aquilo”, entendeu? Eu falei: “Não, espera aí, eu não sou nada disso”. Então, eu tive essa minha escolha, que foi virada para a arte, para a cultura, pela liberdade, o espírito livre mesmo, de paz e amor e vamos cuidar desse planeta, que a sustentabilidade é possível você viver e tirar da terra seu sustento, sua vida, você vive muito bem. Ou virar esse escravo que a gente vive, dentro dessa sociedade, que é capitalista, que é um corre-corre, espera aí, vamos consumir, consumir, consumir, ‘meu’, fazer parte disso, entendeu? E até que limite? Espera, eu posso consumir, mas aqueles também podem e têm direito também, entendeu? Então, hoje tudo é uma coisa de imagem feita. Eu tenho câncer na boca, eu não tenho dente na boca ainda por causa do tratamento. O tratamento é muito terrível, eu sei e eu vou ter que ficar quieta e eu vou ter que parar o tempo, entendeu? Eu vou ter que viver bem, porque a recuperação é muito, você tem que se recuperar. E você tem que ter uma estrutura financeira para isso, para poder se reestruturar, para você se tratar e ainda se curar, né? Ainda quando se cura, né? Porque senão volta de novo. Então, são certas coisas que você tem as suas escolhas. Eu tenho minhas escolhas. Então, eu escolhi o quê? Não viver mais na função do meu pai, viva o capitalismo, a vida, sou grata porque ele me deu uma puta de uma educação, tive vários privilégios, aprendi e sei que é possível. Eu sei o que eles podem fazer, o que eles trazem, porque traz mesmo e manda trazer, entendeu? E sei aqui essa outra ‘ponta’, do que é viver por você mesma, do que é lutar pelos seus direitos, porque quando você dirige uma Mercedes, pode tudo. Quando você está andando só a pé, está com a sua calça rasgada, não sei o que, a figura já te olha assim, entendeu? Então, essa é a grande diferença, porque na época que eu dirigia o Mercedinho estava ótimo, eu podia estar rasgada, podia estar colorida, podia estar fumando, podia estar usando minha droga, estava tudo bem, entendeu? Estava tudo bem, estava naquele grupinho, então pode, né? Vamos fazer aquelas pecinhas, vamos reunir todo mundo e vamos ‘endoidar’? É isso que faz, entendeu? Deu problema, deu polícia, paga aí, paga não sei o que, passa. É isso, desliga aí um pouquinho, liga depois. É isso, tem lugar que eles nem entram, entendeu? Agora, se eu vir reunir com os amigos na porta de casa, fumando beck, eu posso levar um tiro, eu posso ser humilhada. Eu, graças a Deus, nunca tomei um enquadro. Quer dizer: tomei um enquadro uma vez, porque eu estava com uma amiga de Brasília e um outro ‘maluco’ de São Paulo, que tinha uma faca tatuada aqui e por causa deles eles pararam e deram uma ‘geral’ em todo mundo. ‘Meu’, é uma humilhação, ‘cara’. É uma humilhação, entendeu? Por nada. Então, hoje que eu vejo aqui a polícia dando multa, porque eles ganham extra, do que fazer o trabalho deles. E hoje o crime organizado se mistura na pop rua, nas ruas, para poder ‘passar batido’. E hoje eles têm coragem de olhar da nossa cara, na minha cara, inclusive, (risos) e falar de corrupção De Braços Abertos, que foi um dos maiores projetos de São Paulo que não deu certo, por causa de corrupção, enquanto as armas estão sendo vendidas, as drogas estão desaparecendo dos... não, os ratos comeram, né? Os ratos entraram lá e comeram toda a droga, né? É isso que sai na Federal e tudo. Os ratos comeram. Lógico, voltou pro fluxo. E é isso que eu falo pra eles. Então, o tráfico humano, a prostituição... como se fala?... o abuso infantil, aliciamento de mulheres, o tráfico de eletrônicos, de drogas e armas e tudo mais pode. Isso é liberado, né? Que é pago, mantém todo esse sistema andando e aí fragiliza a gente que está na rua, né? Então, eu acredito que a nossa luta juntando aqui um, aqui um, um ‘louco ali’, (risos) um ‘louco’ lá, a gente se soma, né? E uma hora alguém vê, né? Graças a Deus que nosso presidente deu e está dando uma visão à população de rua. Acho que não sei se vai conseguir melhorar, se a gente vai ter algum resultado, enquanto a direita estiver ocupando esses lugares de poder, de prefeitura, de governo, do Exército, que eu falo que nem para o Exército, para a Marinha, para a Aeronáutica legal vocês, fazendo aí ações no outro planeta e aqui ninguém vê nada de vocês. Cadê as barracas de sobrevivência para o pessoal que está morrendo de frio, precisando de um atendimento médico? Cadê, né? Não, eles saem daqui, gastam milhões e aqui não fazem nada, né? Jogam fora, né? Barracas, equipamentos caríssimos. Então, é umas coisas assim que eu não consigo entender.
P/1 - Para você, o que é mais urgente para ser feito ou refeito em relação à população em situação de rua em São Paulo?
R- O que eu acho que tem que ser feito e que tem projetos excelentes, de todos, tudo quanto é tipo de jeito no planeta. Hoje mesmo, ontem, hoje, está tendo em Brasília um encontro internacional sobre moradia. Pensa nuns projetos bons! Pensa, projetos tem, ideias tem, pessoas interessadas tem, dinheiro tem. Falta o quê? O interesse de alguém fazer, mesmo, entendeu? Tudo bem, consultório na rua, médicos, CEAS, Bompar, Ampara, são todas as pessoas que estão aí, entendeu? Muitos e tem que ser sempre mais agraciados, mais valorizados, mais trabalhando, mas tem que executar um trabalho humanizado, entendeu? Não é só para sair na foto, não é só ‘cabide’ político, não, entendeu? Acho que tem muita ideia, tem muito projeto. Projeto de banheiros, tem banheiro que aparece, desaparece, de tanta tecnologia que a gente foi estudar fora. Tem banheiros que você usa, já sai, já é higienizado e o custo é mínimo, entendeu? Então, existe projeto. Falta é interesse político, social, econômico, financeiro, de ter uma saída, entendeu? A apreensão, você ser preso compulsoriamente não funciona, porque tudo que fala que não pode é aí que a gente quer, não é verdade? Não vai fazer, aí você faz. Não pode, aí você quer. Você não está nem pensando, mas aí você quer. Uma coisa, é um gatilho automático isso. Desde criança, se você falar pra uma criança, ela está ali, ‘de boa’, ela até olha para você, sabendo que você não quer, mas ela te atenta, porque ela já espera de você o não, não é? Eu vejo assim minha filha. A gente, quando começa a falar muito não, não, não, a criança acaba num automático também, no não, não, não. Aí quando você fala: “Não, espera aí, tem que ter também a sua decisão, você tem que escolher e saber o que é certo e errado” melhora tudo, entendeu? Então, acho que politicamente é bem por aí mesmo, acho que as pessoas têm que ter a sua consciência, entendeu? Porque está na luta e porque está na luta, porque tudo bem que é uma carreira, que você quer melhorar, que você quer ter sua casa, que você quer ter a sua qualidade de vida. Excelente! Quem não gosta de ter qualidade de vida? Por mais simples ou mais... todo mundo. A qualidade de vida é fundamental para você ter uma consciência e uma saúde limpa, orgânica, porque você está se organizando no seu espaço, você está sendo produtivo, entendeu? Todo mundo. É essencial à vida isso, né? Você está conectado. Tem aqueles que gostam da ‘vida louca’ mesmo, do enfrentamento, mas aí você sabe que é só isso que você vai encontrar na sua vida, esse choque constante, que você não sabe de onde vem, entendeu? E a vida da gente sempre caminha para diversos caminhos. Você hoje está ‘numa boa’, amanhã você não sabe se você está trabalhando, se você está com a saúde legal, se você tem... a gente, depois dessa covid, que veio alastrando, depois de outras doenças que vieram no passado, que aí a gente acaba se adaptando, se acalmando e esquecendo, que a mente do ser humano é bem curta e é bom até, porque a gente não fica remoendo passado, dores, sofrimentos, mas a gente tem que ter uma consciência que, ‘meu’, nós estamos na tecnologia, as pessoas estão querendo dominar o mundo, estão criando cidades, entendeu? O lixo não é só aqui na terra, é no céu também, que daqui a pouco começa a cair satélite, começa a cair naves, entendeu? E assim vai ter problemas, tem lugares do mundo que não vão conseguir mais se reconstruir, vai demorar séculos, então vai ficar deserto, vai ficar inundado, vai demorar. Quer dizer: então a gente tem que estar sempre se adaptando a essas transformações e essas mudanças e criando direitos mesmo, que é tão simples e fundamental e a sair dessas lógicas, basta não ter tanto esse interesse político que é de, sabe: “Eu tô no poder, então eu posso, eu vou massacrar aquele, eu vou fazer, eu vou trocar de favores, então eu vou fazer isso, mas você vai me dar aquilo”. Então, uma troca de favor, porque todo mundo se conhece no governo, sabe? Estão todos nas festas de confraternização, dando tapinha um nas costas do outro e se amarrando em promessas. ‘Meu’, é só isso que eu vejo, só isso. E eu acredito, eu espero mesmo desse governo que está aí, dessas políticas, desses... como diria?... essas ações que estão sendo feitas, de direitos humanos, saúde, na geral mesmo, no trabalho, em geral mesmo, na economia, em vida mesmo, de moradia primeiro, tudo saia do papel, sabe? Porque eu vejo direitos humanos, a constituinte, tudo é papel, né? E eu acho que a gente tem que resgatar isso, porque a gente vê que infelizmente o Bolsonaro perdeu... graças a Deus ele perdeu, mas infelizmente a mentalidade das pessoas que estão aí é bolsonarista, é violento, é excludente, é separação mesmo. Eu acho que nessa covid veio uma grande separação de classe, que já estava predestinado a acontecer, mas acho que iria demorar um pouquinho mais, mas se acelerou justamente com esses novos trabalhos virtuais, porque também é um caminho de uma evolução, das pessoas ficarem mais isoladas e terem esse trabalho mais futurista, que é futuro mesmo, e a mão de obra fica uma coisa mais robótica. Eu adoraria ter um robô que fizesse as coisas para mim, que limpasse, que comprasse, que trouxesse, não ia? Um cachorrinho que não morresse, que balançasse o rabinho e latisse também, quem não gostaria? Tem várias crianças aí que gostariam de ter um cachorrinho que não morre. Eu adoro, queria ter cachorro, minha filha também, mas um tipo de equipamento desse não pode. Pra você ter, você tem que ter sua casa. Quer dizer, existem vários limites, que é gigantesco nesse sistema todo que a gente se encontra.
P/1 – Como foi a pandemia na sua experiência de vida e também ouvindo, já que você está próxima a população em situação de rua, como você os viu vivendo esse momento, atravessando esse momento?
R - Ah, eu vi, acho que nem na leitura do Raul Seixas, eu vi O Dia em que a Terra Parou, porque eu acho que foi o momento que a gente teve consciência da fragilidade da humanidade, do ser humano. Que hoje ele está aqui e daqui a dois minutos ele não está mais, ele está entubado, ou ele morreu por uma coisa que você não consegue ver, sabe? Um vírus. Então, acho que foi uma coisa assim, que nem uma bomba mesmo, que se espalhou no mundo geral, porque não teve país que não teve, apesar que teve no Brasil, em São Thomé das Letras não teve um caso de contaminação, porque eles se fecharam, né? São Thomé das Letras, impedindo que o turismo entrasse, só ficaram eles e eles se cuidaram. Foi uma coisa, assim, fantástica. Você devia dar até uma olhada nisso. São Thomé das Letras não teve. Teve uma iniciativa muito grande, ainda que falam que é do crime, que é do PCC, não sei o que: Paraisópolis com a orgânica, sabe, salvou vidas e as pessoas se cuidaram, teve ambulância, teve um empenho, entendeu? Que nem eu vejo assim, em diversos lugares, como a gente vê em diversas regiões de São Paulo, de você poder levar comida, levar roupa, levar máscara, levar produto de higiene, primeiro-socorros, vacina. Então, foi uma mobilização que a gente viu que tinha que ser feita. Não tinha outra coisa. É um painel de guerra mesmo. Você vê na mídia aqueles cemitérios lotados, você conhecendo pessoas lá dentro do hospital falando como estava sendo, como estava sendo feito, como estava sendo manipulada as informações. Então, ‘meu’, foi uma coisa assim, muito chocante. Eu me senti na guerra, né? Porque a perspectiva de guerra que eu tive da Alemanha, assim, da minha mãe, aqui no Brasil, o quanto eles foram perseguidos também, porque eram alemães, não podiam falar alemão na rua, por causa da Segunda Guerra. Quer dizer, ‘meu’, aqui é Brasil, né? Aqui é um país que é mais acolhedor do mundo, que aqui não tem catástrofes gigantescas, tem alguma coisa ou outra, que também nada é perfeito, mas é um país que tem mais... como se fala? ... equilíbrio ambiental, que é acolhedor, que tem samba, Carnaval, porque tudo funciona depois do Carnaval, infelizmente ainda continua sendo assim. Esses anos de pandemia que parou o Carnaval, acho que o pessoal ‘pirou’, o pessoal que ganha com o turismo. Tanto o turismo fez as tendas de Vidas no Centro, que foi muito importante, mas foram milhões, entendeu, naquelas tendas com banheiro, lavanderia, que não deveria ter sido desmontada. Eu acredito que enquanto existir pop rua na rua tinha que ter essas tendas de acolhimento, de atendimento, de banho, de banheiro, apesar que não funcionava a noite toda. Quer dizer: ninguém tem dor de barriga durante a noite. Eu fiquei num acampamento uma semana, lá em Santo Amaro, eu tinha que fazer no saquinho, ‘meu’, no baldinho e no saquinho e depois de manhã jogar no lixo, ‘meu’, que coisa! É um absurdo isso, por não ter banheiro públicos. Quer dizer: você imagina você vivendo diariamente assim, sem ter um banheiro, sem ter um lugar para você lavar uma mão, para você tomar uma água. Como é que você fica? A doença mental é aquela coisa, a privação de sono. Se você começa a perder o sono, não dormir, você começa a criar já um grande distúrbio mental, por falta de sono e de descanso. Aí junta com a alimentação, junta com a opressão. ‘Meu’, você se torna não sei o quê. Não sei o que você se torna na rua. Não sei. Você se torna uma máquina prestes a explodir, para surtar. Tem muitos que tomam medicamento, deixaram de tomar medicamento, bebem. Aí ‘pira’, a sociedade ‘pira’. Apesar que eu acho que o pessoal da rua está bem-comportado, se comportou muito bem nessa pandemia e depois está aí, se comportando, poderia estar... lembra aquela época que eles invadiam o mercado? Aquele pessoal que saía vandalizando os comércios, supermercados, quebrando tudo. Ninguém fez nada disso. O pessoal está se comportando de bem, não está? Está vivendo ‘de boa’? Está aí, ocupando as suas praças, os seus lugares, vivendo como pode, correndo um dia pro outro, pra cá pra lá, você perde o dia inteiro atrás de alimentação. Eu servia alimento ali em Santo Amaro, ajudei o pessoal da alimentação, da Rede Cozinha Cidadã, um ano e meio ali em Santo Amaro. ‘Meu’, mil e seiscentos alimentos todos os dias, de segunda-feira a segunda-feira. Ainda tinha dias que não dava conta, de você chegar e falar assim, que acabou. E quando acabou mesmo essa linha de alimentação em Santo Amaro, foi caos. Vinha gente de todo o território, até índios vinham lá, se alimentar. Idosos, eles vinham de madrugada já, de manhãzinha, cinco horas da manhã, ficavam na fila até meio-dia, ainda você perde um tempo para levar comida para dentro de casa, para o seu avô que está lá, a sua avó, que não pode ter uma locomoção, idoso, criança. ‘Meu’, é sinistro. E existem aquelas pessoas que aproveitam também de tudo isso para comercializar, para vender, para trocar. Mas, ‘meu’, é a única coisa que a gente tem na rua. A gente via ______ (risos) uma vez nós estávamos entregando com o pessoal do Casulo, ela falou assim: “Não, eu quero levar uns casulos lá para a Espraiada... não, ali para o Socorro... não, Rio Bonito, que tinha uma Cracolândia bem gigante ali perto, no final da Kennedy, ali com Interlagos, um Passa Rápido e ali existe uma Cracolândia que o pessoal ficava mesmo nos meios, no meio fio ali, morando, né? E o cachimbo queimando, ‘fritando’. E minha amiga falou assim: “Então vamos levar uns casulos lá?” (risos) Eu falei assim: “Vamos, é tudo família”. Eu olhei assim pra cara dela: “Vamos, vamos”, levamos, entregamos os casulos. No outro dia eu tô lá, tal e tinha um ‘cara’ lá querendo vender um casulo pra mim, ‘meu’. Eu vou ficar brava? Eu falei pra ele: “ ‘Meu’, dez ‘contos’ não, vende cinquenta, ‘meu’, o casulo custou cem ‘contos’, ‘meu’. Vende um preço bom, pelo menos”. Mas aí o que eles vão fazer? Não tem outra coisa. É uma moeda de troca. E isso não é só com casulo, é com qualquer coisa que chega, porque o consumo é muito compulsivo. Então existe essa troca, esse jeito de ‘se virar’, de dar o jeito, né? Que a gente também tem que ter essa visão, né? Eu dava risada quando ela falava: “Vamos levar lá pra cima?” (risos) Falei: “Vamos”. Sabia que o pessoal, a maior parte ia vender, apesar que tem, inclusive eu vejo até hoje o pessoal ainda carregando o casulo pra cima e pra baixo, que é interessante, né, meu? Hoje a gente virou tudo uns ‘caramujos’, de andar com a casa nas costas, pra cima e pra baixo, é isso que você vê, infelizmente, porque são poucos os lugares que aceitam a população de rua estando num local, né? Uma barraca, umas famílias, porque aí é tudo cigano. Porque eles tiveram sempre preconceito comigo, que eu sou hippie. Porque todo mundo chegava pra mim: “Você é hippie, ou você é cigana”. Eu não gostava de ser chamada de cigana. Eu: “Hippie”. E assim muita gente, preconceito mesmo, sabe, de achar que você é um ‘bicho papão’. Que você guarda sua nave num guarda-volume. Que não sabe como você vive, que você toma banho, que você come, que você mora. Não, eles acham, tem pessoas que acham que você é um extraterrestre. Isso eu vejo bastante, eu sempre acompanhei esse... como se diz?... preconceito com o hippie, com o cigano, com os moradores de rua, com pessoas trans, gays, lésbicas, o que for. Sempre teve aqueles preconceitos, que sempre foram muito gritantes. Socialmente também, nas periferias. Apesar que nas periferias, quando a gente vai, você vê o pessoal se diverte mesmo, estão nos encontros, o pessoal está sempre unido, não tem essa mentalidade que a gente vê aí durante o governo, na propaganda, nas novelas, nessa formação, que a gente tem uma formação contínua de reprovação, que não... que rouba, porque está sujo, porque não quer nada, não quer vínculo com a sua família, porque está nessa vida porque quer, porque é bom estar nessa vida, morando na rua, dependendo de um prato de comida. Então, são essas coisas que são geradas na rua, de informações da elite, que acaba... várias pessoas acabam acreditando nessa mentira, que a gente está na rua porque quer, porque não tem o que fazer, porque (risos) não tem nada. Porque é bom, é legal estar na rua. No frio, no sol, na chuva, ‘sem eira, nem beira’, piorando, ‘endoidando’, ‘pirando’. Aí quando você vê uma pessoa surtada na rua, você sabe: não, porque é muita pressão mesmo, que a pessoa faz surtar daquela forma ela já está recebendo aquela violência há muito tempo, ‘meu’. Muito, muito tempo.
P/1 - Você comentou um pouquinho de como foi ter seu primeiro filho. E os outros?
R - Ah, foi o meu... eu tive... eu acho que fisicamente eu sempre tive um grande problema, acho, físico, pra ter filho, mas eu, muito bem teimosa, tive. O meu primeiro filho eu tive esse problema, meu segundo filho também eu não queria engravidar, não queria, tal, mas aí o ‘carinha’ que eu estava, até meu pai nunca se meteu no meu relacionamento, se meteu nessa vez, falou que o ‘cara’ não prestava, inclusive não prestava mesmo, mas eu acabei me envolvendo com ele e acabei engravidando e eu falei pra ele que eu não ia ter uma gravidez sozinha, porque eu assumi um filho, não iria assumir dois. Tanto que quando o Igor fez cinco anos, tudo, eu levei o Igor pra ele acabar de criar, me ajudar, porque eu não tinha condição de criar dois filhos sozinha. Aí ele começou a criar o filho, mas me proibiu a minha visita, em ver, encontrar. Aí quando meu filho ficou ‘de maior’, ele veio, me procurou e a gente teve um entendimento. E a minha filha eu estava tão sozinha, tão livre, tão ‘louca’ de novo, voltando para minha ‘vida louca’, tal, eu falei: “Pô, eu não tenho nada para fazer, eu estou sozinha, né? Eu quero um filho”. Aí eu estava em Florianópolis, conheci o pai dela, vi que minha saúde estava boa, a dele também, eu falei para ele que eu queria ter um filho mesmo e ele ‘topou’, argentino. Mas ele pensou que eu ia ficar com ele, mas eu não. Acho que por causa de tudo que aconteceu comigo na infância, em gravidez já não queria ver na minha frente, não quero mais ficar junto e acabei ficando de novo uma gravidez sozinha, que é sozinha mesmo, todos os meses, ter e tudo. Aí, na gravidez dela, eu fui para a praia, para a Praia Grande, para Itanhaém, que São Paulo estava muito violento por causa do crack, que chegou muito ‘no pano’, chegou muito no tráfico, ali na República, muita violência e tal. Aí eu peguei e fui pra Itanhaém. Aí chamei meu filho, o mais velho, que eu ensinei, todos eles eu ensinei artesanato, porque eu sempre falei: “Pelo menos” - a henna e tudo – “é uma coisa que, se der uma dor de barriga, você dá um mangueio e já arruma um dinheirinho, né? Então, eu sempre os ensinei tudo o que eu sei. Nunca gostaram, ainda bem, cada um tem o seu caminho, mas todos sabem, sempre ensinei. Aí eu também estava me sentindo muito sozinha, aí quando eu engravidei dela, eu vim para São Paulo, voltei para São Paulo e fiquei. Eu tive uma gravidez também de risco, de perder, desde o início. Por isso que eu chamei meu filho para me dar uma ‘força’ lá em Itanhaém, nós montamos uma banca legal de henna, de tatuagem, oito jovens, todo mundo me chamava de mãe, todo mundo achava que eram meus filhos, eu ensinando eles a serem hippies, ter uma experiência de fazer um artesanato e trabalhar em temporada, com henna e tal. Adoravam, porque pintavam aqueles corpinhos, todos jovens. Então me paparicaram muito e eu, lá em Itanhaém, onde tinha uma... fizemos, até hoje funciona uma feira de artesanato lá. Nós conseguimos fazer uma feira de artesanato hippie mesmo. Não tinha, né? Era bem ali no trem, né? Como se fala? Na estação ali, que não funcionava e a gente fez. Foi muito legal a Hare ter nascido lá, mas também foi uma gravidez meio complicada. Tanto que à noite nós fizemos, acabou a temporada, tudo. Fevereiro, Carnaval, aí fizemos um luau hippie. Aí aquela lua gigante. Cheia, que você via, parecia dia. Aí ela, de madrugada, veio. Aí eu chamei uma ambulância, tal, fomos pro hospital ter. Ela pegou uma infecção - porque o hospital estava em reforma - de conjuntivite, de pele. Até eu estava fumando um ‘baseado’, quando a ambulância chegou e eu falei: “Não, agora, nesse momento, você vai deixar eu acabar de fumar pra ir pro hospital”. (risos) Aí chegou no hospital, passou toda a ‘brisa’, que o médico, nossa, olhou pra mim e falou: “O que você está fazendo aqui, você deveria estar em outro hospital”, aí eu entrei pânico, mas deu tudo certo, ela nasceu bem, mamou até... quantos anos, Hare? Até três anos. Eu não amamentei meus dois filhos por causa de problema na gravidez, no parto. Agora ela, em compensação, mamou até os três anos. Eu tive que falar: “Pelo amor de Deus, para de mamar”. (risos)
P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você, hoje?
R – (risos) Minhas coisas mais importantes são... como se fala? Ter uma consciência que eu tenho hoje mesmo, que mudou bastante, cresceu. Ter meus filhos. Minha filha, além de tudo, é uma companheira, uma amiga. Eu acho muito importante isso, que tiveram umas fases meio complicadas, mas eu acredito que é tudo uma fase, um processo de crescimento, de consciência. E por ela ser minha companheira, porque ela poderia estar vivendo a vida dela também. Já está com 21 anos, viva a liberdade! 21 anos, tudo. Mas ela está ainda comigo. Está junto, quer ficar junto. Até eu acho que também ela se realizar profissionalmente, ter o espaço dela também. Eu acho que aí ela vai ter mais liberdade e foco também, que eu posso pegar uma BR, né? Não? (risos) Ela não gosta. Você já viu uma pisciana gostar tanto de terra e de aquário, né? Eu devia dar um aquário pra ela, peixe, ficar num aquário. Peixe gosta de nadar, conhecer o mundo todo. Não, não quer, quer ficar só aqui. Totalmente o contrário, né? Muito terra.
P/1 - E seus sonhos, quais são?
R - Quero sabe o quê? (risos) Posso falar? (risos) Eu quero que seja transformador esse planeta, viu, ‘meu’, quero mesmo. Quero que as políticas caminhem, comecem a andar e ter mesmo um caminho mais... como se diz?... humanizado. Acho que ninguém tem que ser atrelado a ninguém, acho que ninguém tem que ser preso a ninguém, acho que é tudo uma grande convivência humana entre as pessoas se conviverem, tanto em vizinhanças, como em territórios. A liberdade de você poder viver, ser quem você quiser ser, e estar em qual área esteja, ser respeitado por existir, sem ser sempre comparado, ou uma pessoa esperar muito de você, ou esperar muito que você seja, ou que, sabe, sem esperar o que você é, sabe, é se aceitar. Eu acho que o primeiro passo é esse, né? De você conseguir se desapegar e aceitar quem você é mesmo nesse mundo. E que você está por um breve momento mesmo e tentar fazer um dia atrás do outro bom pra você. Só isso. E quanto às políticas públicas, que aconteçam mesmo, que as pessoas tenham direito à moradia, independente a qualquer partido, a qualquer raça, a qualquer cor. Reparação, não existe reparação, ninguém repara um sofrimento que já existiu, uma tortura que tenha passado, uma prisão que tenha sido feita, nada. Uma morte, nada. Nada é reparável. Você aprende a viver com ela, depois de um certo tempo. Mas eu acho que não tem forma, maneira financeira, que fala: “Não, você vai ser reparado por essa...”. Não, eu não acredito. Eu acredito que a sociedade, em si mesma, a política, o planeta, eu acho que o país que você escolheu pra viver e que você honra e que qualquer coisa que aconteça você vai estar disposto a ajudar, a participar, dar sua ‘cara a tapa’ eu acho que esse próprio país também tem que ser acolhedor com você, entendeu? É só isso. Acho que não faz mais do que a obrigação, entendeu, de suprir a qualquer pessoa, sabe, o direito de ter uma casa, uma educação, uma formação, alimentação, saúde, é o mínimo. Cultura, é o mínimo do mínimo. Eu acho que aí entra aquela coisa mesmo de ética e moral de tudo, de filosofia, de etnia, de ideologia, tudo, porque eu espero que... eu acho que eu não vou ver isso, essa plenitude. Apesar que existem países aí que são super evoluídos. Só se eu me mudar pra lá, mas eu gostaria de ver isso aqui. Mas conviver um pouco acho que deve ser até monótono, se as coisas forem tão perfeitas, tão iguais. Então, acho que não deve ter problema. Que problema você vai ter num país assim, onde você vive bem, come bem, faz o que você quer. Deve ter uns _______ de jardineiro, né? (risos) Acho que deve ser isso, né? Uma coisa assim, meio básica de convivência, de cores, alguma coisa. Agora, de ideologia, eu acho que não vai ter nada. Eu acho que a única monotonia seria a monotonia de ser um lugar perfeito. Então, aquela coisa de você esperar, sabe, que o Brasil é tão maravilhoso, tem lugares tão maravilhosos, pessoas tão potentes. De poder ter esse lado mesmo de... que nem o... até o Padre Arlindo fala: esperançar. Eu acho que seria isso mesmo, de dar esperança, né, porque eu sou ateia, ‘meu’, não tenho essa coisa de ficar imaginando, porque cada vez que eu vejo uma reunião, um diálogo, uma coisa, sempre é uma troca de interesse e uma coisa bem falsa, sabe? É aquela coisa de governo sendo governo: “Não, porque vamos fazer um festival pop rua”, mas quem vai ser os protagonistas não é a rua, é o governo. Quer dizer, então... é muito sair na foto, né? Interesse mesmo, político. Eu acho que a hora que aparecer um político, não importa quem ele seja, porque eu acho que é importante, entendeu, que não vai poder também, porque ele tem que ter uma maioria, né? Eu acho que é uma consciência coletiva, que devia ser um vírus de pegar a consciência coletiva de ética e de moral. Que eu acho que deveria ser o próximo (risos) vírus a pegar o Brasil. Qual é o vírus que pegou no Brasil? (risos) É a ética e a moral, meu filho! (risos) Eu acho que é a única coisa que eu acho que ainda funciona. Uma coisa assim, um vírus. Um vírus de humanidade, de amor, porque está todo mundo triste, está todo mundo violento, está todo mundo lutando, já não aguenta mais, muita coisa que a gente absorve, sabe? E vem aquela coisa que você não tem como não absorver. E que nem eu falo: “Não, deleta, né? Abstrai. Aquilo que você não pode controlar, abstrai”. Mas não tem jeito, a gente ‘coloca na veia’ isso e que deixa a gente muito doente, né? Muito, muito, muito doentes. Então, acho que só um vírus, que nem foi a covid, que veio e pegou todo mundo e não teve jeito, mesmo se isolando. Primeiro ano de covid, o que mais foi vendido no Brasil, que bateu o recorde, foi iate. Os milionários, o que mais compraram foi iate, para poder ficar aí com seus barquinhos, com seus escravos, com a sua tripulação, longe, mas para não pegar... como se fala?... covid, é um absurdo. São coisas bizarras que a gente vai escutando, que a gente vai convivendo diariamente, diariamente. Nós estamos discutindo banheiro desde 2020 e nada. Até hoje não saiu esses banheiros, meu Deus. Até hoje não saiu esses acolhimentos, até hoje não saiu essas moradias. Entendeu? Custo zero. A pessoa que não tem nada, né? Porque a gente não está pedindo assim só para pessoas que têm um, dois salários. Aquele que não tem nada, nada de nada mesmo, que é tão difícil.
P/1 - E o que você gostaria de deixar como legado?
R - Como legado? Eu sei lá, eu acho que uma política pública (risos) de resistência, de resiliência, de resultado. Eu acho que são portas e saídas que é possível, que é importante, que é simples, de ter uma saída qualificada, né? De você poder se empoderar da sua autonomia, né? Eu acho que aí a única coisa que a gente precisa como sociedade que está na rua, porque é uma nova sociedade, que cada dia é mais, é de ter esse empoderamento, sabe, de poder ser alguma coisa. Não ser destruída diariamente a não ser nada, né, a ficar à escravidão de tudo. Eu acho que a gente, quando puder saber... mesmo um usuário crítico, que quer acabar tendo sua overdose, ‘meu’, que ele vai ficar naquele lugar ali, usando, usando, usando, usando, usando. Quando ele se ligar, sabe, que você já fez tudo, tudo foi possível, ele mesmo já tentou várias vezes, mas é aquilo que ele quer, ‘meu’, é o destino dele usar aquela droga ali, até a hora que ele não aguentar mais, você tem que dar o direito dele se matar também, ‘meu’. Tentar tirá-lo. Se ele não quer, se ele quer ficar, se ele vai querer ficar, ‘meu’, é o direito que ele tem, de escolha. Você tem que dar oportunidades e portas de saída pra ele sair. Uma terapia alternativa que seja condizente, um acolhimento, uma escuta, um trabalho de saúde específico. Agora, se ele não quer, ‘meu’, uma hora ele vai dar um jeito na vida dele, querendo ou não, ele vai se jogar de um prédio, vai se jogar na frente de um metrô, vai se jogar, sabe, vai ficar na frente de uma bala. Quer dizer: ele vai querer esse fim. Por quê? Porque toda hora que ele quer ter uma escuta, que ele quer ter uma ajuda, ele é jogado nos piores lugares e não tem essa ajuda. Porque quando uma pessoa chega pra você e fala: “Eu quero sair, eu preciso de ajuda, eu quero ser internado, eu quero ser tratado”, na hora você tem que tratar. Você deixou cinco minutos, já era, ele vai pro fluxo de novo, ele é arrastado. Ou ele tem muita força de vontade de esperar até você fazer um acolhimento, até fazer um atendimento, até poder fazer uma ‘porta’ pra ele, ou ele pega e volta, porque quando uma pessoa, nesse caso de uso constante, contínuo, pede ajuda, é porque ele sabe que não está aguentando mais. Agora, se eu falar para ele: “Não, eu vou internar você, você vai ficar, você vai tomar remédio”, ‘mano’, ele vai sair pior, ele vai fugir. (risos) Uma vez, na Corrente Libertadora, que minha filha também fazia capoeira, onde a gente tinha uma vivência, eu falei pro Tigrão: “Ó, Tigrão, tudo bem, eu fico aqui na Corrente, cuido pra você, você não vai poder sair de casa, é de idade, vai ter que ficar escondido, vai ter que ficar em casa, vai ter que ficar dentro de casa e tal. E eu cuido daqui e trabalho o território”, como estava fazendo as ações. Ah, ‘de boa’, fiquei, fiquei mais de um ano nessa, lá na Corrente Libertadora. E uma vez eu me tranquei na Corrente Libertadora. Ainda bem que minha filha estava lá, que eu tinha tirado ela do CAE, e ela ficou lá na Corrente comigo, na associação. E o Tigrão, conversando com ele, ele foi embora, eu acabei me trancando dentro da Corrente lá, da associação e sem a chave. Eu falei: “E agora, como é que eu saio daqui?” Tentando ligar para Tigrão, ligando para um, para vir, para poder abrir o portão, para abrir a porta. E tinha uma porta do salão que era com o cadeado e a outra com chave, mas estava lá fora. Eu falei para a Hare: “Hare, pesquisa aí no Google como que a gente abre um cadeado, ‘meu’”, que eu já estava pensando em como eu ia sair pela claraboia. (risos) Eu ia sair de alguma forma de lá. Eu não posso me sentir presa, ‘meu’. Se eu me sentir presa, eu vou tentar fugir diariamente. Eu nunca fui presa, né? Eu até procurei aprender tatuagem, porque eu falei: “Se um dia eu for presa, pelo menos eu trabalho lá dentro e consigo...” (risos) porque tatuagem todo mundo quer, né? Eu falei: “Pelo menos eu trabalho em qualquer lugar do mundo”. Eu falei pro meu pai: “Vou aprender tatuagem, porque em qualquer situação e lugar do mundo eu trabalho com a tattoo”. Aí meu pai falou: “Não, tudo bem”. Mas eu pensei, sabe, pra tatuagem, por isso mesmo, pra eu ter um negócio de trabalho mesmo, rápido, do que uma tela que vai ficar pintando, você ter que carregar. Não, a pele você fez ali, a pessoa vai embora. Pegou o material dela, levou embora, já era, senta o próximo, bem por aí. Então, eu trabalhei muito tempo com isso, pra ter essa liberdade de trabalho, e dinheiro rápido. E pensando também nisso, porque eu sempre fui muito bocuda, sempre enfrentei muitas pessoas que eu não deveria ter enfrentado, entendeu? Então eu falei: “Bom, se um dia eu for presa, eu tenho uma profissão (risos) também, lá dentro”. Então, foi bem por aí. Então, eu acredito que a sustentabilidade do ser humano é fundamental. Ainda mais se você tiver um local de moradia onde sua energia é limpa, onde você não vai precisar se preocupar com luz, com energia, a alimentação vir do quintal, porque eu já morei em lugares que eu olhava pra Hare, e falava assim: “Hare, vamos lá no quintal ver o que a gente vai fazer hoje de comida”. Ter uma fartura de verduras, de legumes, entendeu? É muito genial isso, você poder fazer isso, entendeu? E educação, né? Formação. Eu acho que você tem que tratar a sua redução de danos, saber qual o seu limite, o que você tem que parar, o que você tem que largar, como tratar, como melhorar, porque é aquela coisa: eu quero ficar pouco tempo no planeta, eu me detono. Se eu quero ficar mais tempo, eu vou me cuidar, eu vou ter mais atenção. Hoje, para descer uma escada, eu já olho melhor do que olhava no celular e tudo mais, entendeu? Por quê? Porque eu sei que eu posso ter acidentes que podem me prejudicar. E se fosse só eu, eu estava ótima, eu não estava nem aí, ‘meu’. Mas não é só eu. É o que você deixa atrás. O que está atrás de você, o que está do seu lado, o que vai ficar, como vai ficar. Porque eu lembro quando minha mãe morreu, pra mim foi uma coisa assim, eu não estava esperando aquilo, ninguém estava esperando aquilo. Foi uma coisa, assim, que mudou, acho que esse momento mudou toda a minha vida, todas as decisões que eu tinha, entendeu? Porque eu descobri, meu pai... minha mãe tinha morrido três dias, meu pai pôs outra mulher dentro de casa, a mulher que ele casou, já estava grávida. Quer dizer: tanta coisa que soma, soma, soma, vai acumulando, vai acumulando, que ‘pira’ a sua cabeça. Então todo aquele país das maravilhas, ‘cor de rosa’, que você já sabia que não valia nada, entendeu? Mas podia, que sempre se dá um jeitinho, ou a realidade, a verdade, que você pode construir uma coisa diferente do que você ser jogado. Porque eu, quando fui jogada, na verdade, assim, de uma hora pra outra, de repente, eu ‘pirei’, ‘mano’. Eu já era kamikaze, (risos) me tornei mais, entendeu? Aí o mecanismo que me ajudou a parar, dar um tempo pra mim mesma, foi ser mãe. Mas se eu não tivesse sido mãe, tivesse sido só mãe dele e tal, quando eu fiquei sozinha, que eu tive até aquela mesma coisa que a Madonna teve, ‘ninho vazio’. Nossa, meu filho, quando foi morar com o meu pai, eu quase ‘pirei’, ‘meu’. Por quê? Eu senti a segunda grande perda, né? A primeira a minha mãe. Não a perda dele, mas sabe aquela coisa de não estar junto, não fazer as mesmas coisas sempre junto, mas vê-lo começar a ter as escolhas dele, o que ele estava... qual era o caminho dele, as escolhas que, de repente, aquilo que você acha que está sendo bom e tal, não é o suficiente, não é o que é certo pra eles. Então, quando você vê que, sabe, você teve um filho, não um objeto que você vai manipular, fazer o... não, é uma vida independente, que nem a sua. Então isso tem que ser respeitado, isso eu comecei a respeitar com meu filho. E a entender, porque uma vez, na praia, eu falei pra ele que ele não ia numa festinha de uns amigos deles, que eles estavam fazendo um luau na praia, ele virou e falou assim: “Mãe, se você não for acreditar, confiar em mim, você vai confiar em quem?” Realmente. Vou confiar em quem? Ninguém. Era eu e ele. Eu estava querendo emancipá-lo para ele dirigir já cedo, para ele ter, sabe, porque ele que... eu ganhava ‘grana’, tudo, com a henna, com tatuagem, tudo e ele praticava esporte, mas isso eu pedi para ele, mesmo. Quando eu não pude mais dar isso para ele, a vida dele de esporte, que ele jogava para caramba futevôlei, ele era um Romarinho nas quadras, todo mundo, sabe, incentivando-o no esporte, nessa vida, porque eu tive isso, então eu podia dar isso para ele, nesse momento, mas ele cuidava de toda a parte financeira minha, de compra, de responsabilidade, porque eu nunca tive isso de muito responsável, de muito pensar, de fazer poupança, guardar, de construir alguma coisa, entendeu? Pra mim sempre foi uma coisa assim mais o momento, né? É hoje, amanhã e depois a gente se resolve, se vê, entendeu? Não ficar presa a esse materialismo, essa compulsão de ter as coisas, de consumir, sabe? Porque eu percebi uma coisa nisso tudo: (risos) que quando a mochila da gente é leve, então você não precisa carregar muita coisa, porque o que faz a gente acumular as coisas, a gente acumula muito as coisas, quando a gente começa a ter pontos fixos. A gente acumula, a gente aumenta, e aí fica tudo difícil. Fica difícil quando você muda, fica difícil quando você viaja, fica difícil se você... sabe, porque aí você vê o quanto você acumulou, desnecessariamente. Inclusive eu fiz um acordo com a minha filha, que esse ano tem umas coisas que, se eu não me livrar, ela vai poder jogar fora, porque eu falo: “Não, depois eu vou usar, porque depois eu vou fazer isso, porque depois não sei o quê” e acaba não usando. E essas coisas você vai acumulando, você vai ocupando espaço. Então, você vai acumulando muita coisa durante sua vida, guardando muita coisa, que não vai te dar resultado nenhum, mas você só acumula. E quando você tem uma mudança na sua vida, qualquer que for, você se atola, totalmente. Porque eu lembro na época que eu precisava só de uma mochila, de uma ‘asinha’, pra eu dar um ‘rolê’ no mundo, no planeta, que estava muito bom, eram aquelas roupas básicas, que secavam rápido, que não davam muito trabalho, o seu material de ‘trampo’. Era isso. Mas aí depois vem os filhos, aí vem isso, aí depois você vai parando em algum lugar, vai acumulando essas coisas, vai criando essas coisas, então assim a bagagem vai crescendo e vai se tornando meio pesada também, por causa das decisões e dos caminhos que você toma. Porque também tem aquela coisa: decisões que você toma, tem muitas coisas que não dá pra voltar atrás. Ou é orgulho, ou são caminhos mesmo que se rompem, entendeu? Tem certas coisas que você não volta atrás. O momento passou. Então, é um momento também que eu acho muito pela filosofia estoica, né? Aquilo que você não pode modificar, dá um passinho atrás, abstrai. (risos) Eu estou muito por aí, ‘meu’. Não acumula muita coisa, não, ‘meu’. O bom é só aquilo que você pode construir e modificar, né? O resto é acumulação.
P/1 – Estamos caminhando pro fim, queria finalizar, perguntar como que foi esse momento de você contar um pouquinho da sua história aqui, pra gente, relembrar algumas coisas.
R - É, eu tive uma infância muito boa, fui muito safada, fiz tudo o que eu quis fazer. Minha mãe falava assim: “Não entendo você, você vai ser uma pessoa que vai acabar sozinha mesmo, porque é um de manhã, é outro à tarde”, mas eu vivia. O meu irmão, eu acho que o meu irmão mais velho, por ele ter abusado de mim, por tudo aquela coisa, esses traumas que foram, que mexem comigo, eu acho que vai mexer pela sua eternidade, porque é uma coisa que você confia, que você confiava, que você gostava, que você cresceu e que você acaba entendendo, né? Porque geralmente eu acho que é aquela coisa mesmo de a pessoa nunca ter te aceitado, porque ele sabia que eu não era irmã, ele já tinha uma consciência quando eu entrei para dentro de casa, então dá até para compreender essas coisas e tudo, mas foi uma coisa que mudou muito a minha vida, entendeu? E com a morte da minha mãe eu ainda descobri que eu era adotada, que eu não sabia quem eram meus pais, por ter acreditado que meu pai poderia ser meu pai, mas com outra mulher, entendeu? Então, muita coisa aí que nunca foi resolvido, nunca foi discutido, nunca foi procurado, entendeu? A verdade é que nunca ninguém quis revelar a verdade. Então, eu só acho uma coisa, uma falta humana do ser humano, entendeu? Sou agradecida por eles, porque eu tive uma mãe fantástica, um pai também bom, entendeu? Me deu tudo que eu quis, tudo que eu pensei, entendeu? Coisas que me tornou tipo assim: ter uma consciência, um preparo, né? Mas a verdade mesmo, a vida mesmo, o ser humano que eu me tornei, foi aprendendo na vida mesmo, no dia a dia, né? De ter perdido, de ter escolhido não querer mais aquela vida, entendeu? E de ter conseguido no que eu me comprometi a ele, de falar assim: “Eu não vou mais te procurar, não quero mais seu dinheiro, vou viver por mim mesma”, que eu já tinha sido hippie, quando eu falei para o meu pai, ele mesmo assim me aceitou, me acolheu, ainda me protegeu, me deu apartamento, me deu toda estrutura para o meu filho, para mim, tudo mais, durante anos e tudo, até eu fazer esse negócio com meu irmão, até o meu irmão me roubar e tal, foi aí que eu decidi mesmo virar hippie e cuidar de mim e tentar e vi que dava certo e podia fazer isso, entendeu, e não voltar atrás, falar: “Aí, pai, você estava certo”, entendeu? Porque foi difícil. Muito difícil, entendeu? Tanto... eu nunca dormi na rua. Quer dizer, nunca dormi na rua não, porque a gente não dorme na rua. Mas quando minha filha nasceu, que eu vim pra São Paulo e fui morar com meu irmão... com meu irmão, não, com meu filho, ele estava juntado com outra menina e acabamos se desentendendo e eu fui morar sozinha mesmo, lá em Santo Amaro. Já estava trabalhando e tudo, minha filha já estava com três meses e tal. Eu passei duas noites na Santa Casa de lá, porque eu não tinha dinheiro para o hotel, entendeu? Então foi aí que eu percebi, foi a primeira situação de rua, que eu diria assim que eu passei, em Santo Amaro, mas ainda bem que era um território que eu conhecia, então foi muito bom. Eu passei a noite na Santa Casa. Me perguntavam o que eu estava fazendo lá, eu falei: “Não, eu estou esperando uma amiga que está aí e tal”, e acabei ficando, porque ela era bebê, estava no carrinho, eu não ia ficar na rua com ela. E lá tinha, pelo menos, uma televisão, não tinha vento, era inverno nessa época. Lembro até que eu não tinha feito dinheiro por causa que justamente era frio, estava chovendo e tal e eu dependia do tempo bom para tatuar, para fazer henna, essas coisas todas, vender o artesanato e dormi lá. E depois passaram uns dias também, dormi lá de novo. Aí no hotel onde eu estava dormindo todos os dias, a mulher falou: “Não, quando é assim, tudo bem, depois você acerta”. Então, mesmo quando não pagava uma noite, no dia seguinte eu pagava. Então, nessas eu morei sete anos nesse hotel, com ela e era um hotel de prostituição, pleno Santo Amaro, ali bem no fluxo mesmo e tinha muito camelô, então começou toda aquela vivência, entendeu? E com tatuagem henna eu sempre consegui me manter bem legal. Aí antes da pandemia já estava mais ou menos, o governo estava bem crítico financeiramente. Tatuagem e artesanato era uma coisa bem supérflua, financeiro o pessoal estava desempregado, estava muito ruim. Aí eu caí no acolhimento, no hotel, porque ou eu comia, ou eu pagava onde estava dormindo. E eu tinha um bebê, uma criança que tinha que comer e tinha que dormir. Nunca tinha participado de nada, de nenhum tipo de acolhimento da assistente social, de Bolsa Família, porque eu sempre tive o meu dinheiro, o meu trabalho. Então, foi a primeira vez que eu tive impacto com esse tipo de situação e logo depois, entrando no comitê, na luta e a pandemia, tudo se ‘casou’, eu acho que tudo se completou e foi uma grande luta, e é até hoje, a gente está constantemente brigando, lutando pelo mínimo, o mínimo, o mínimo, o mínimo, porque ninguém quer nada de ninguém, ninguém quer a vida de ninguém. Já é tão difícil a gente viver com a nossa própria vida, né? Imagina você querendo ocupar o espaço do outro, né? Não dá. Então, eu acredito que o que me motivou bastante a essa luta é estar nela também, né? Mas não vivendo na rua, né? Porque você não precisa estar na rua para saber o que uma pessoa na rua sente, né? Tanto no frio, como no sol, o que é estar atrás de um alimento, de um banheiro, de uma água, né? Porque você, quando está na rua mesmo, ‘correndo’, de repente você não encontra um banheiro, ou o Uber não chega, você fica numa situação difícil, complicada, na rua. Quer dizer: existem diversas situações, né? E quando você tem uma escuta, o importante na rua é a escuta, que você escuta uma pessoa, ela pode estar ali pedindo simplesmente uma ajuda mesmo, entendeu? Porque aquela que está na rua e quer falar alguma coisa, ela não vai te roubar, ela vai te dar um mangueio, vai te pedir um dinheiro, vai pedir alguma coisa para você, entendeu? Ela vai pedir um socorro, né? Geralmente é um mangueio. (risos) Eu mesma peço de vez em quando uns mangueios aí, viu, para os amigos, eu falo assim: “Ajuda aí, que a luta está terrível, ‘meu’”, porque é difícil, porque eu vejo assim: metrô, eu tenho 61 anos de idade, posso entrar de metrô em São Paulo, normal. Metrô, ônibus e tudo. Agora, e a pessoa que está na rua, que não tem documento e não tem um cartão? Porque eu já me senti, na Praça da Sé, já arrumei dois ‘barracos’ lá na Praça da Sé, no metrô da Praça da Sé, de não deixar eu entrar, de passar na catraca, porque eu não estava com o meu bilhete e estava só com o meu RG. Imagina uma pessoa que está na rua, em situação vulnerável, que não está com seu documento na hora e não poder andar no transporte público, por causa de lei. Bom, eu posso andar, adoro. 61 anos de idade. Agora eu vejo, que nem minha Bolsa Família, tiveram que recadastrar. Eu recadastrei antes de ir pra Argentina. Eu falei: “Quando eu voltar, vou estar ‘dura’, um dinheirinho eu já vou ter”. Bloqueado. Vai desbloquear só em dezembro. Dois meses, tudo bem, vou receber os atrasados. Mas esses dois meses que você está contando com aquele dinheiro e você não tem, de onde você tira? E isso acontece geralmente, geral, porque no Cadastro Único existem várias pessoas que não conseguem se recadastrar. As pessoas que se recadastraram não conseguem receber, ficam meses, dois meses, três meses sem receber. Pessoas que separam as famílias, que estão com a mãe e o filho, o filho cresce, aí ele vai ter que ter a dele, que nem eu tenho a minha filha comigo. Me falaram: “Primeiro você se recadastra, tal, direitinho, e depois ela faz o dela, porque se tirar o dela agora, pode até bloquear definitivo”. Quer dizer, então, existe tudo uma burocracia, não tem acesso, porque eu acho que todos os equipamentos deviam fazer esse cadastramento, geral, todos os tipos de acolhimento, de atendimento à pop rua, têm que ter um canal ali, onde faça o cadastramento do CadÚnico, porque existe uma vazão muito grande, muito gigantesca ainda, de pessoas que não recebem nenhum tipo de benefício, por causa do CadÚnico. E aí é o mínimo, né? Aí você vê que o CadÚnico já é uma miséria, mas é uma coisa que ajuda.
P/1 – Muita luta pela frente.
R - É, tem muita coisa. Agora eu acredito que, trocando esse governo que nós estamos vivendo hoje, em São Paulo, que é direita e é extremista e é capitalista e é outro tipo de governo, que é para massas A e B só, o resto é resto, que eu não vou falar nem de proletariados, escravos deles, não, mas que eles sabem que eles têm bastante gente, que a fila é grande para trabalho e tudo, as pessoas estão disponíveis a ter aquele tipo de trabalho em qualquer situação, né? As pessoas conseguem viver mal, muito mal, só para ter um teto. Ela consegue se alimentar mal e bem mal, para poder ter alguma coisa para comer. Ela consegue se submeter a um crime de humilhação, de horas e horas em filas de atendimento, porque ela precisa do atendimento. Quer dizer, então, que a gente está muito condicionado a receber qualquer coisa e falar, quando recebe alguma coisinha a mais: “Nossa, maravilha, parabéns. Vai mudar, esse governo está fazendo alguma coisa”, que é por um fetiche, né? Que a realidade, (risos) a real é outra história, ‘meu’. O que sai na câmera, na frente, na imagem, na divulgação, do planeta perfeito é uma coisa e a realidade mesmo, o ‘calo’ mesmo, já é outra visão.Recolher