Projeto A Economia Solidária Na Vida Das Pessoas
Entrevista de Sebastiana Almire de Jesus
Entrevistada por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Campo Grande), 26/04/2023
Entrevista n.º: IPS_HV003
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
P/1 – Tiana, para começar eu gostaria que você se apresentasse dizendo o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Eu me chamo Sebastiana Almire de Jesus, popularmente conhecida como Tiana, e eu sou nascida na cidade de Bonito, aqui em Mato Grosso do Sul. Nasci no dia 07 de abril de 1959.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – A minha mãe se chama Evarista de Jesus e o meu pai se chama Ozório Trindade
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – Os meus pais, eles eram meeiros em fazenda. Trabalhavam lá, em uma fazenda que tinha um proprietário, que então ele cedia uma parte de terra para eles plantarem, dividir a produção, enfim, era isso. Trabalhadores rurais, meeiros.
P/1 – E como você descreveria eles?
R – Olha, o meu pai, é impressionante, mas eu não tenho memórias do meu pai. O meu pai faleceu quando eu tinha apenas seis anos e a memória desses seis anos foi apagada na minha cabeça, não sei porque, mas eu não tenho nenhuma imagem, não tenho memória dele. A minha mãe, ela viveu até 2010 e eu posso dizer para você que a minha mãe é uma das mulheres fortes, guerreiras, que criou cinco filhos basicamente sozinha. Teve a ousadia de sair dessa vida lá da fazenda, e vir para a cidade para poder colocar os filhos para estudarem. Aí ela passou a ser lavadeira, porque ela não sabia fazer outra coisa, não tinha estudo quase nenhum. Então eu considero a minha mãe uma pessoa muito forte, um exemplo de vida para ser seguido por mim e pelas netas.
P/1 – E você sabe como os seus pais se conheceram?
R – Ah,...
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Entrevista de Sebastiana Almire de Jesus
Entrevistada por Bruna Oliveira
Entrevista concedida via Zoom (São Paulo/Campo Grande), 26/04/2023
Entrevista n.º: IPS_HV003
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
P/1 – Tiana, para começar eu gostaria que você se apresentasse dizendo o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Eu me chamo Sebastiana Almire de Jesus, popularmente conhecida como Tiana, e eu sou nascida na cidade de Bonito, aqui em Mato Grosso do Sul. Nasci no dia 07 de abril de 1959.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – A minha mãe se chama Evarista de Jesus e o meu pai se chama Ozório Trindade
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – Os meus pais, eles eram meeiros em fazenda. Trabalhavam lá, em uma fazenda que tinha um proprietário, que então ele cedia uma parte de terra para eles plantarem, dividir a produção, enfim, era isso. Trabalhadores rurais, meeiros.
P/1 – E como você descreveria eles?
R – Olha, o meu pai, é impressionante, mas eu não tenho memórias do meu pai. O meu pai faleceu quando eu tinha apenas seis anos e a memória desses seis anos foi apagada na minha cabeça, não sei porque, mas eu não tenho nenhuma imagem, não tenho memória dele. A minha mãe, ela viveu até 2010 e eu posso dizer para você que a minha mãe é uma das mulheres fortes, guerreiras, que criou cinco filhos basicamente sozinha. Teve a ousadia de sair dessa vida lá da fazenda, e vir para a cidade para poder colocar os filhos para estudarem. Aí ela passou a ser lavadeira, porque ela não sabia fazer outra coisa, não tinha estudo quase nenhum. Então eu considero a minha mãe uma pessoa muito forte, um exemplo de vida para ser seguido por mim e pelas netas.
P/1 – E você sabe como os seus pais se conheceram?
R – Ah, pelo o que ela conta, eles viviam em fazendas próximas, ela morava em uma fazenda vizinha de onde a família do meu pai já morava. Se conheceram em uma das rezas que tinha por lá. Tinha muitas aquelas coisas das rezas de terço na época de Semana Santa, na época de Padroeiro, que aí eles visitavam de uma fazenda para outra. Se conheceram assim e depois passaram a namorar um tempo depois e logo se casaram.
P/1 – Você tem irmão, né? Quantos são? E como era a sua relação com eles na infância?
R – Olha, eu tive… eu sou de uma família de 10 filhos, só que a minha mãe, acredito, por conta da própria pobreza, hoje eu tenho consciência disso, acho que da própria pobreza, da forma de trabalho duro que ela trabalhava, ela teve quatro abortos, antes de conseguir que nascesse o primeiro filho vivo, né. Então teve assim, tem uma que ela diz que nasceu viva, mas que faleceu algumas horas depois. Então só lá no quinto filho que foi vingar, é essa a expressão que o meu povo usa aqui, vingar significa viver, né. Então éramos seis, com o passar dos anos teve um dos irmãos que faleceu e hoje somos cinco. Então somos cinco irmãos, onde somos duas mulheres e três homens, e esse que morreu também era um homem. Então éramos seis, duas mulheres e quatro homens. A minha relação com os meus irmãos, para falar da juventude e da infância, não é, o que você está perguntando? Na infância eu lembro muito mais desse meu mano que faleceu que era o mais velho. Ele era uma pessoa que eu tinha uma proximidade e um carinho muito grande, acho que é aquela coisa de encontro de almas mesmo, para vir na mesma família, porque até hoje eu tenho muita saudade e sinto a falta dele, imagina? Eu tinha seis anos quando ele faleceu. Ele era uma pessoa que brincava muito comigo, ele inventava coisas lá na fazenda para eu poder ter com o que brincar, de chegar a fazer casinha, de fazer fogãozinho de barro, de pegar coisas da cozinha da mãe e levar para eu fazer de conta que estava fazendo comida para ele, enquanto ele tomava banho quando chegava da roça. Então eu tenho assim, uma saudade muito grande desse irmão que eu sempre fui mais próxima na minha infância. Como ele faleceu, depois, o meu segundo irmão que é mais velho do que eu, abaixo desse que faleceu, é esse outro, a gente não era muito próximo, mas no fim ele acabou virando o meu pai. Ele tinha 16 anos quando o pai faleceu e ele com 16 anos assumiu junto com a minha mãe a criação dos outros quatro irmãos, que eram os menores, né. Então eu o considero como um pai, é um mano que é pai também, sabe? Faço questão de cumprimentá-lo todo ano pelo dia dos pais, faço questão que os filhos dele saibam disso, que eles tem que dividir esse paizão comigo também. Aí os outros irmãos a gente tem um carinho grande, somos uma família bastante próxima. A minha irmã eu considero a minha melhor amiga, é uma irmã comadre, que eu virei madrinha dos filhos dela e ela dos meus, então a gente é muito próxima, temos uma relação bacana, assim de estar junto e misturado sempre.
P/1 – E você chegou a conhecer os seus avós?
R – Conheci, conheci o avô paterno. A vozinha não, eu não lembro dela, mas o avô eu lembro. Era um gaúcho dos olhinhos clarinhos, que veio parar no Mato Grosso do Sul e acabou se casando por lá com uma… eles dizem que era uma descendente indígena, não consegui descobrir a etnia até hoje, mas tem um restinho de sangue indígena. Acredito eu… eu brinco com os Terenas e com os Quiniquinaus que vivem naquela região, eu falo: “Ou é um ou é outro que são os meus parentes”. Então assim, o avô, uma pessoa muito querida, aquele avô de pôr no colo, de contar histórias, de fazer questão de estar muito próximos dos netos, sempre que possível. E ele tinha um carinho grande por mim, que a minha mãe dizia que era uma coisa especial, porque eu fui a primeira filha mulher, a primeira neta dele mulher, da parte do meu pai. Os avós paternos eu conheci, convivi com eles, minha avozinha viveu muitos anos, ela faleceu já com cento e poucos anos, o avô foi um pouco antes, mas também sempre muito querido, contando as histórias lá do passado. A avó eu adorava ficar próxima dela, depois que eu já era jovem, ouvindo as histórias, porque ela conhecia de cor e salteado, assim, as histórias aqui do Mato Grosso do Sul, a guerra, da época da guerra com o Paraguai, então ela tinha muita história para contar. Era muito bacana ficar ouvindo essas histórias dela.
P/1 – Você lembra de alguma história que chamava sua atenção quando você era pequena, que ela contava?
R – Uma das coisas que ela sempre contava, que me impressionava muito, era desse período da guerra, teve assim, para eles que moravam na roça, morava na fazenda, quando chegava aqueles grupos de soldados, aí diziam que os pais mandavam as mocinhas irem todas para o mato se esconder, para não ficar ali na casa, tinha medo né, tinham receio do que podia acontecer. Aí a família, o pai, a mãe, enfim, eles iam atender, fazer comidas, servir, muitas vezes era preciso matar algum bezerro para poder fazer comida para aquele grupo, né. Seja dos soldados… e também ela tinha muitas histórias, ela contava assim, que eram umas coisas de, meio que guerrilha popular que teve por aqui também, meio parecida com a do Lampião e da Maria bonita, que também tinha umas histórias, sabe? Ela contava muito essas histórias do seu, ela chama de Servino Jacques. E depois a gente foi ver, tinha mesmo algumas coisas disso, né. Então tinha muito dessas histórias que a avó contava que eu gostava muito e me impressiona até hoje saber que ela viveu tudo isso né, e que pode manter na memória para socializar com a gente muitos anos depois.
P/1 – Tiana, e pensando na sua infância, tem algum cheiro, alguma comida, alguma data comemorativa que lembra essa época, assim, na sua memória?
R – Tem, tem sim. Toda época que chega a Semana Santa, não tem como não rememorar e sentir de novo o cheiro das comidas, das sopas paraguaias, das chipas, daquelas pauladas imensas de doces que eram feitas para poder serem consumidas durante a Semana Santa e lembrar que tinha que trabalhar só até a quarta à tarde, no máximo até quinta-feira até meio dia que fazia alguma coisa, depois já tinha que comer só o que deixavam pronto, sabe? Isso era uma tradição aqui dos antigos, de guardar muito isso. Então tem sim, eu acho que Semana Santa é uma coisa que para mim é muito viva ainda, essas memórias todas. E a brincadeira, que assim, tinha uma história, que eles brincavam, brincam até hoje, os mais velhos diziam que tudo que as crianças aprontasse e fizessem durante a Semana Santa, que não podia fazer arte, não podia teimar, não podia fazer nada que não devia né, aí se fizesse qualquer arte, aí tinha que participar de um processo que eles chamavam de rapadura no quarto, no sábado. Aí a rapadura no quarto era, chamava um por um no quarto e a história era para dar uma rapadura, mas você entrava lá era para apanhar, era para ser castigado porque fez arte. Então tem essas coisas assim, que fazem parte da história da infância.
P/1 – E você sabe por que você se chama Tiana?
R – Eu vou te contar a história do meu nome mesmo, Sebastiana, e aí te falo do Tiana. O meu nome, Sebastiana, ele foi uma promessa, porque a minha mãe já tinha perdido quatro filhos, os quatro primeiros filhos, aí quando foi da minha gravidez, ela disse que teve muito problema durante a gravidez, e como não tinha acompanhamento médico naquela época, era na fazenda, era só com as parteiras mesmo, ela tinha muito medo de que eu morresse ainda no útero, então ela fez uma promessa para São Sebastião, que se eu conseguisse nascer viva, se fosse mulher era Sebastiana, se fosse homem era Sebastião. E o segundo nome, o Almire, foi o meu pai que escolheu, porque o mano mais velho do que eu, esse que eu falei que é o meu pai, que assumiu o papel de pai, ele se chamava Almiro, e aí o meu pai queria um nome que fosse parecido com do Almiro, aí ele colocou Almira. Era para ser Almirie, mas aí ele na hora de registrar colocaram (e) no final, então ficou Almire, aí o meu nome é um nome composto, Sebastiana Almire. Então essa é a história do meu nome.
P/1 – Tiana, e por que do apelido?
R – Então, esse aí já foi quando eu tinha… na infância o povo me chamava de Almira, que era assim que a família me tratava, ninguém usava o nome Sebastian. Aí quando eu comecei a trabalhar, com 17 anos, em uma loja, era um grupo grande que tinha vários funcionários, e aí lá eu era chamada de Sebastiana, meu primeiro nome, né. Então teve uma amiga, que ela dizia que o nome era muito grande para uma pessoa pequenininha como eu, então cortou a metade e a partir daí eu virei Tiana. Desde os 17 anos é assim que as pessoas me chamam, sabe? Então é porque esse nome é muito grande para uma pessoa tão pequena, porque eu tenho 1,50, mais ou menos, só, de altura, então sou pequena mesmo. É por isso.
P/1 – E você lembra da casa e da fazenda onde você passou a sua infância? Como que era?
R – Lembro, lembro sim. É um lugar muito bonito! A gente morava próximo de um rio, tinha uma cachoeira linda, aí a nossa casa ficava de um lado desse… é um córrego, porque não é bem um rio, é um córrego, um rio pequeno, né. Aí a gente morava de um lado, do outro lado morava o avô, morava o tio, então a gente passava por uma… não sei se você vai entender a expressão, mas aqui a gente chama de pinguela, era uma árvore caída sobre o rio, para a gente poder passar por cima, passava por essa pinguela para poder da casa de um para o outro. E aí o meu tio tinha um engenho, e aí ele fazia rapadura, fazia o melado, fazia o açúcar, era tudo produzido ali, né. Então era um lugar gostoso, com muita… na época tinha uma preservação muito grande de tudo, uma casa de pedra linda! Gruta, sabe uma gruta assim, maravilhosa? Que na época ela tinha quase 100 metros de diâmetro, era areia purinha. Aí eles costumavam ir para lá nos finais de semana, juntavam os vizinhos e iam para lá, eles levavam carne para assar, levavam bebidas, levavam violão, sanfona e iam fazer baile dentro da casa de pedra, que era assim que eles chamavam. Depois com o passar dos anos, hoje ela não tem mais esse salão de areia, a água tomou conta de tudo, então é uma gruta que a água vem até a porta agora, sabe? Mas é um lugar bacana que eu tenho saudades.
P/1 – E como era a vizinhança para além da casa dos seus avós e tios?
R – As fazendas eram pequenas, não é aquela imensidão que a gente tem no Pantanal, na região de Bonito eram fazendas pequenas. Então tinha uma vizinhança legal, eles eram todos amigos e a gente também, as crianças se tornavam amigos dos filhos dos vizinhos e daí por diante, né. Tinha uma escolinha que foi onde eu comecei a estudar, era em uma das fazendas. Então tinha uma professora que morava lá na fazenda, ela ficava lá, e todos nós, os filhos ali daquelas fazendas próximas, se reuniam ali naquela escolinha para aprender com ela o início da educação escrita, enfim, é isso.
P/1 – E quais eram suas brincadeiras favoritas nessa época?
R – Eu adorava brincar de casinha, de fazer comida, de poder cuidar da casa. Brincava também muito com os outros meninos todos, a gente brincava muito de pega-pega, brincava… tinha uma tal de peteca que a gente gostava de jogar também, sabe? Então tinha essas coisas, pega-pega, peteca, passa anel, que são brincadeiras que hoje os netos quase nem conhecem mais, mas era esse tipo de brincadeiras. Nos dias que tinha lua cheia, a gente gostava de se reunir para poder brincar a noite com a luz da lua. Era muito legal juntar toda a família em volta da casa, na luz da lua para poder brincar de passa anel, aí os pais também brincavam junto, né. Os adultos que estavam por ali, eles ficavam contando as histórias deles e a gente brincando por ali por perto. Então era essa a infância, um pouco, lá na roça.
P/1 – E nessa época quando você era pequena, assim, durante a sua infância, você tinha algum sonho de ter uma profissão no futuro? Como você se enxergava? Ou você também só estava preocupada em brincar? Como era, existia essa profissão que você queria seguir?
R – Com seis anos, com essa primeira professorinha que me alfabetizou, eu sonhava em ser professora, eu queria ser professora como ela, de poder dar aula para as crianças na roça, no meio do mato como ela fazia, sabe? Porque eu sabia que ela morava em uma cidade e ela ia para lá e ficava a semana inteira para poder trabalhar com a gente, e voltava para casa dela, na casa dos pais dela no final de semana. Então o meu sonho era ser como ela, ser professora.
P/1 – E como foi na escola? Você já me contou um pouco, mas eu queria saber se você lembra de alguma história da escola?
R – Lá… aí eu vou pular um pouco, eu vou te falar mais para frente, então, sabe? Porque depois, com sete anos, eu já vim para a cidade, que foi quando o pai faleceu, aí passaram seis meses, esse meu mano mais velho foi assassinado, aí a mãe ficou perdida né, porque perdeu os dois homens que ela tinha na cada, digamos assim, o outro irmão só tinha 16, e hoje a gente considera ainda um adolescente basicamente, entrando para a juventude, né. Naquela época, coitado, ele já teve que assumir a responsabilidade de ser o chefe da família com 16 anos. Aí a minha mãe saiu de lá, da fazenda e veio embora para Campo Grande, que não era capital na época, está? Era só uma cidade grande. Porque tinha uma irmã que morava aqui, e essa irmã dela que encorajou a minha mãe a pegar todos nós e vir embora para a cidade, porque ela dizia: “Você vai ficar fazendo o que com esses meninos aí no meio do mato? Então vem para cá!”. Aí a mãe vendeu as poucas coisas que tinha, eram algumas criações e algumas coisas de casa, nem vendia, dava para os vizinhos, trouxe o que foi possível e viemos todos embora para cá. Chegando em Campo grande, aí então, quando eu fui começar a estudar, a casa que a minha mãe foi morar era na frente de um colégio de umas religiosas, elas são da Congregação do Instituto de Jesus Adolescente, e era uma casa enorme que tinha muitas meninas que moravam internas e tinha aula ali. A gente ficava olhando aquela criançada brincar e loucos para estar lá no meio, só que demorou um pouquinho para a mãe conseguir essa coisa da matrícula, de poder colocar a gente para estudar. Então quando nós começamos a estudar, para mim foi muito bacana poder estar no meio daquele tanto de meninos que eu nunca tinha visto na minha vida, porque lá na roça a turma era pequenininha, agora aqui na cidade não, era aquele monte de crianças, quando dava a hora do recreio era aquela bagunça danada. E aí além de brincar, tinha uma gruta muito bonita com a imagem de Nossa Senhora das Graças nesse local, sabe? Então eu tenho memória disso né, dos momentos de recreio, dos momentos de oração em frente à gruta para poder pedir as bênçãos para família, para a gente e você acredita, menina? Até para o Brasil ganhar na copa de 70 a gente rezou em frente dessa gruta, para Nossa Senhora abençoar nossa seleção, sem nem entender muito bem o que era, mas as irmãs chamavam para rezar e a gente ia, né. Então eu tenho memória disso muito viva.
P/1 – E era um colégio misto? Como era?
R – Era, era um colégio misto. As crianças que ficavam internas eram só meninas, mas como elas tinham um convênio com a prefeitura, então aí atendiam misto, tinham meninos e meninas na aula.
P/1 – E tem alguma professora, algumas pessoas, assim, que foi marcante nessa época da escola para você?
R – Eu tive duas. Tive uma que era minha professora de matemática, ela é… ela se chama, vou falar chama, mas eu não tenho certeza se ela ainda está viva, chamava… chama, enfim, para onde ela foi, ela foi com o mesmo nome, irmã Lúcia, ela era baixinha, bem pequena igual a mim, só que era bem gordinha, e pensa em uma professora brava, menina! E era aquela época que usava à palmatória, colocava de castigo nos grãozinhos de milho, nas tampinhas de garrafa, nas pedrinhas. Então assim, ela me marcou muito com a história de aprender tabuada, porque meu Deus do céu! Teve uma vez que ela me colocou de castigo no meio da quadra, para todo mundo ver que eu estava de castigo nos grãozinhos de milho, tinha que largar o caderno no chão e ficar com os braços abertos, sem poder abaixar as mãos, sabe? E ela atrás com uma régua de madeira enorme, se a gente abaixasse a mão, ela descia a lapada nas costas, né. Então isso foi uma coisa que me marcou muito, marcou negativamente, digamos assim, né? Por conta desse lado ruim aí que existia nessa minha época da educação. E por outro lado, eu tive uma outra professora e essa era uma graça, ela foi a professora de ensino religioso que me fez descobrir coisas que eu nunca imaginava, assim, de poder me apaixonar pela bíblia, de me apaixonar pelos cantos, de ter devoção com Maria, cada vez… mesmo hoje quando você pergunta assim, (23:59), eu não posso dizer que eu sou espirita, eu frequento uma casa, mas eu ainda sou muito mais ligada à religião católica, a minha santinha está sempre por perto, a minha devoção com Nossa Senhora é uma coisa que eu aprendi com essa professora, que era um amor de pessoa, que tratava todo mundo com carinho imenso, assim que também… a gente vive uma vida inteira e não esquece.
P/1 – E você passou a juventude em Campo Grande também? Como foi mais adolescente?
R – Foi, foi em Campo Grande mesmo. Com 13 anos eu fui morar interna nesse mesmo colégio que eu estava falando, sabe? Porque a minha mãe mudou dali, foi morar em uma chácara. E aí eu estava indo para a quinta série, que não tinha mais naquele colégio, eu precisaria estudar em outro, para não parar os estudos, essa mesma professora de ensino religioso foi na minha casa e pediu para a minha mãe deixar eu morar lá com elas e que ela me acompanharia para eu estudar em um outro colégio, onde já tinham algumas internas que iriam. Aí eu fiquei três anos morando com elas como interna, ali foi um período de aprendizado imenso, porque as irmãs faziam de tudo e a gente que morava na casa fazia a parte de escala de trabalho, cada semana você estava em uma coisa, então desde a cozinha, até a parte elétrica, hidráulica, essas coisas todas eu fui aprendendo. Eu sou muito curiosa, então nas semanas que eu ficava com a irmãzinha que era eletricista, ou a outra que era encanadora, eu ficava maravilhada de poder aprender, né. Então eu consegui aprender todas essas coisas no colégio interno com elas e me serviu para a vida, até hoje eu consigo resolver pequenos problemas, eu não preciso chamar ninguém eu mesma resolvo.
P/1 – Voltando só um pouquinho na sua história, eu fiquei pensando, essa mudança de bonito para Campo Grande, que era uma cidade maior, você lembra dessa mudança?
R – Nossa, Bruna! Aí eu vou ter que te contar coisa de caipira que nunca tinha visto uma luz elétrica na vida, né. Assim, nós nunca tínhamos saído da fazenda, o máximo que a gente ia era uma vez a cada dois anos, quando tinha eleição, que era quando os pais iam votar e deixavam a gente ir até a cidade né, do contrário não, ficava só lá na fazenda mesmo. Aí então, tudo foi novidade né, ir para a cidade, conhecer o trem, nós viemos de trem. E aí assim, durante a viagem de trem, que era bem longa na época, de Miranda até chegar em Campo Grande, eram mais de 12 horas de viagem. E aí a noite, cada cidade que se aproximava, para nós era… não só para mim, mas para os meus irmãos também, a gente ficava boquiaberto com as luzes né, com a iluminação da cidade, com tudo aquilo que para nós era novidade, a gente não conhecia. Lá na roça a gente usava lamparina, e os mais ricos, que tinham condições, tinham um tal de lampião, que aí esse era um pouquinho mais sofisticado para a época né, mas a gente não, era a base da lamparina mesmo. Então isso foi uma coisa muito marcante na infância, né. Chegar em Campo Grande, tudo foi muito diferente, tudo foi um aprendizado muito grande. Como a gente vivia no meio do mato, encontrávamos poucas pessoas, por isso que eu falei que eu vou lembrar história de caipira mesmo né, a gente demorou um tempo para poder aprender a conviver com outras pessoas, porque a gente tinha medo, a gente tinha muito medo de sair de perto da mãe, de sair de perto do irmão mais velho, a gente tinha muito medo de sumir, de desaparecer, deles largarem a gente, e aí ficava esse medo doido de que não dava para se afastar deles, né. Então foi um tempo para a gente poder se adaptar com isso na cidade, não foi muito simples não, é bem complexo, porque a gente chega não conhecendo nada, não conhecíamos elétrica, não conhecíamos fogão a gás, lá a gente só usava fogão a lenha, então essa coisa do gás também era outra coisa que era muito novo para nós todos e aí tudo isso assustava, às vezes até, sabe?
P/1 – E durante a juventude, o que você fazia para se divertir?
R – Aí como eu falei que eu morei três anos lá com as irmãs né, enquanto a gente estava lá a diversão era jogar bola nos finais de semana, a gente jogava vôlei, jogava futebol, as irmãs jogavam conosco. Aí depois que eu saí de lá e comecei a conviver com outras pessoas, fazer amizade com outras pessoas no bairro onde a minha mãe já estava morando, porque aí ela já não morava mais na chácara, morava no bairro, aí a diversão era, jogar bets, no final de semana a gente fechava uma quadra, aí juntava aquele grupo grande de jovens para jogar bets durante a tarde de domingo. E comecei também a participar dos bailes, aí isso fez parte da minha juventude, participar de muitos bailes. Eu gostava muito de dançar, então eu tinha um grupo de amigos que eram bem unidos e a gente estava assim, todo final de semana tinha um baile, se não tinha, eles inventavam, faziam na casa de alguém, sabe? Aí juntava aquele grupo lá e passava boa parte da noite de sábado para domingo dançando, se divertindo. Então era um pouco essa a nossa diversão na época, quando não existia computador, não existia o tal do celular, que hoje muitos jovens ficam aí, só com os amigos virtuais, né. Os meus eram amigos reais e a gente se abraçava, brincava, dançava, jogava, quando precisava brigava, mas a gente estava ali, juntos né, se perdoava também. E nesse período da juventude, foi quando eu comecei a participar na paróquia do bairro onde eu moro, do movimento que é chamado de Pastoral da Juventude, né. Então assim, com 16 anos, 17, eu já estava na Pastoral da Juventude do bairro, 16, com 17 eu já fui meio que obrigada a virar catequista, sabe? Eu fui catequista na igreja durante muitos anos da minha vida. Eu digo obrigada, porque a irmãzinha que era nossa professora na Pastoral da Juventude, é uma pessoa maravilhosa! Uma negra que teve que brigar na sua época de juventude para se tornar religiosa, porque a congregação delas não aceitavam negros, as negras nunca se tornavam religiosas, elas ficavam sendo sempre aspirantes. E aí ela e uma outra colega dela, foram as duas primeiras que brigaram tanto dentro da congregação, que a congregação resolveu aceitá-las e fizeram os votos delas como irmãs, né. Então ela é uma pessoa que lutou muito durante toda a vida contra a discriminação, contra qualquer outro tipo de sofrimento e de exploração, digamos assim. E ela nos obrigava a estudar, menina, sabe assim? Eu trabalhava durante o dia no comércio, já estudava à noite, mas ela dizia assim: “O que vocês fazem depois da meia noite? Então não importa, vai ter que estudar!”. Então às vezes ela passava na minha casa e na casa de mais cinco ou seis colegas, avisava e combinava com os nossos pais, pegava roupa e levava para a casa dela, e aí ela entrava em contato com o serviço da gente para avisar que quando saísse da escola era para ir direto para a casa dela, porque tinha uma reunião muito importante, que não podia ficar para o dia seguinte. Aí a gente chegava lá, ela estava com aquele panelão de sopa preparado, esperando todo mundo e a capela pronta, para fazer a gente ir para lá estudar. Aí depois reunia todo mundo, ela fazia uma oração e dizia: “Bom, o assunto importante que não podia esperar para amanhã é o estudo, vocês precisam estudar”. Então ela fez a gente estudar, documento Pueblo, documento de Medellín, a gente estudou os documentos básicos da igreja católica, todos com ela, né. E aí então ela foi nos induzindo a assumir outros compromissos dentro da paróquia. Então eu me tornei catequista muito jovem, trabalhei muitos anos com a catequese infantil, dos pequenos, depois mais para frente trabalhei com jovens e adolescentes também e vivi metade da minha vida dentro da igreja católica, muito assim, com esse exemplo da irmã Ana Marcelina, essa negra guerreira, que lutou para poder não ser discriminada pela cor da sua pele. Ela foi uma das pioneiras dentro da congregação, como religiosa, é a minha grande mestra também, eu falo que eu tive bons mestres nessa minha vida.
P/1 – E pensando nessa época, eu queria saber se você já tinha se formado na escola no ensino médio?
R – Não, eu estava cursando o ensino médio. Eu concluí o meu ensino médio em 84 e por incrível que pareça eu fui fazer magistério né, porque… lembra do sonho lá, com seis anos, que eu queria ser igual a minha professorinha Maria? Aí eu fiz o magistério sonhando que eu ia ser professora e eu fazia questão de dizer que eu queria trabalhar com os pequenininhos né, os menorzinhos que fosse possível. Cursei o magistério inteiro, foi bacana, aprendi muita coisa, mas eu me decepcionei profundamente no meu estágio. Quando foi no meu estágio final, eu fui fazer estágio em uma sala de aula com uma professora que já estava em vias de aposentadoria e ela estava muito decepcionada com a profissão, então ela acabou me fazendo desistir, porque ao ver aquela pessoa tão sofrida e tão amarga, que não encontrava mais prazer no que ela fazia e que tudo que ela fazia era de má vontade, com muito, digamos assim, não era só má vontade, parece que ela já fazia com sofrimento, que fazia ela não ser feliz mais ali naquela sala de aula e ela não conseguia também transformar os seus alunos em alunos felizes, porque ela era muito amarga. Então ao ver aquilo e vendo ela praticar no dia a dia dentro da sala tudo aquilo, ao contrário do que eu tinha aprendido lá no meu curso, me fez mudar de ideia, que eu não queria mais ser professora, porque eu não queria ser uma pessoa amarga como ela, eu não queria levar amargura e tristeza para as crianças. Então aí eu não me tornei professora, eu virei catequista, que foi quase a mesma coisa, mas era só final de semana e na igreja.
P/1 – E quando você estava trabalhando como catequista, já tinha se formado? Como foi? Você começou a trabalhar em outros lugares também? Já tinha passado dessa época do estágio?
R – Olha, Bruna. Trabalhar eu sempre trabalhei, porque eu sou de uma família muito pobre, como eu te falei, os meus pais, eles não eram proprietários de terra, eles eram proprietários da força de trabalho e quando a mãe veio embora para a cidade com todos os filhos pequenos, não trouxe quase nada, porque não tinha muito o que trazer, o pouco de recursos financeiros que ela conseguiu levantar com a venda de algumas coisas foi o suficiente para pagar as passagens e garantir a alimentação por uns 15 dias até ela arrumar o primeiro trabalho dela aqui né, e ela foi trabalhar de lavadeira, que era o que ela sabia fazer. Quando eu saí, antes de eu ir para o colégio interno, eu já tinha trabalhado ajudando a cuidar de umas crianças, isso com menos de 13, 12 para 13 e já tinha trabalhado cuidando de criança pequena, para uma família que precisava, era uma criança cuidando de outra né, que a gente hoje em dia tem consciência disso, mas naquela época não, para mim era o meu trabalho e eu já ganhava um dinheirinho para ajudar na despesa de casa com a mãe. Ao sair do colégio interno, com 14 anos eu fui trabalhar de doméstica, foi o meu primeiro emprego, trabalhei de doméstica durante alguns meses para uma família, depois saí daquela e fui para outra e com um ano depois, eu consegui o meu primeiro emprego que não era de doméstica, aí eu era atendente de uma lanchonete. Então eu trabalhei em uma lanchonete onde eu atendia o balcão, servia as pessoas e posteriormente que foi o meu primeiro emprego registrado, que foi nessa época que eu falei lá da amiga que mudou o meu nome para Tiana, que aí já era uma loja. Aí eu fui trabalhar nessa loja, tinha... aí é engraçado, eu fiz magistério e sempre lidei com dinheiro dos outros e com cálculos, olha que coisa doida né, eu tinha feito magistério, fazendo magistério ainda, eu comecei esse trabalho nessa loja e eu trabalhava na… a minha primeira função era chamada de trocadora, era a pessoa que carregava o troco para as pessoas do caixa, depois de seis meses de trabalho, eu fui promovida a conferente de caixa. Então eu trabalhei de conferente de caixa muito tempo, depois eu fui para dentro da tesouraria central desse espaço e quando eu saí eu estava na tesouraria central, então assim, mexendo com dinheiro e com cálculos né, cálculos e dinheiro sempre. Aí de lá eu fui para uma outra loja trabalhar de caixa, trabalhei de caixa durante quatro anos, os meus empregos eram mais ou menos nessa faixa, quatro anos e oito meses no primeiro registrado, quatro anos no segundo. Aí saindo desse segundo, foi a época que a gente estava assim, aqui no Estado e eu acho que no país todo, vinha acontecendo uma evolução muito grande da teologia da libertação. E aí então a gente tinha a teologia da libertação que estava crescendo, aqui a gente estudava muito, participamos de todo o processo de construção do documento chamado Catequese Renovada, que era um vai e vem de documentos, que ia e vinha para a gente estudar na base e devolver com as nossas contribuições, e pensar que tudo isso era mimeografado, não existia muita tecnologia como a gente tem hoje, a gente fazia aqueles rascunhos enormes e mandava, demorava um tempo chegava de volta. Aí eu sei que esse período foi muito forte, em 84 Mato Grosso do Sul teve a primeira ocupação de terra já organizada com o que posteriormente veio a ser o MST né, na época ainda não era propriamente MST, ele nasceu um tempinho depois, mas a primeira ocupação de terra foi muito sofrida no Estado do Mato Grosso do Sul e as famílias, eram mais de 1.000 famílias que ocuparam uma área no município do interior. Eles foram despejados de uma forma muito violenta, teve muito sofrimento e aí teve o bispo da cidade de Dourados que acolheu essas famílias em uma das paróquias lá em Dourados, acampou todos eles, lá em uma área que ele tinha em uma das paróquias. E aí, lá eles organizaram uma comissão para vir para Campo Grande, que aí já era capital, já tinha virado capital. Então eles vieram para cá para poder… um grupo de 40 famílias que vieram para negociar, e eles acamparam na praça principal aqui da nossa cidade, que ficava em frente da, então na época, Assembleia Legislativa. E nós enquanto grupo jovens, catequistas da paróquia, junto com essa mestra, Ana Marcelina, ela nos levou, ela fez uma reunião na casa dela, dizendo para a gente: “Hoje eu vou levar vocês em um lugar onde todo o cristão deve estar”. E a gente ficou assim: “Onde, meu deus?”. Ninguém sabia direito o que estava acontecendo, então: “Onde que nós vamos irmã?”. E ela dizia assim: “Onde é que os cristãos têm que estar? Ao lado do povo mais sofrido, é lá que Jesus mandou todos nós estarmos! Então eu vou levar vocês para junto das pessoas mais sofridas hoje”. E nos levou para a praça, para a gente conhecer as famílias que lá estavam, para a gente entender a realidade deles. E ali foi assim, um choque de realidade né, da gente ver o sofrimento das pessoas, de ouvir de cada um deles a narrativa de como tinha sido todo esse processo do despejo, de tudo e passamos a acompanhá-los. A gente fazia parte do grupo de apoiadores né, das famílias, então a gente se revezava entre as paróquias, tinha um grupo lá presente para poder estar com eles e não os deixar sozinhos, porque a violência não era fácil naquela época, né. Teve de tudo, né. Teve um Prefeito que mandou jogar caminhão de terra em um dia de chuva, bem no meio de onde eles estavam acampados, aí mandou carro pipa para jogar água, e os próprios trabalhadores diziam: “Olha, vocês não querem terra? O nosso Prefeito mandou terra para vocês”. Aí os outros que vinham jogar água, diziam: “Olha aqui, a terra tem que ser molhada”. Então fazia lama, que era para não os deixar ficarem ali. Foi um período que eu aprendi muito e que eu dali, então, quando eu saí do meu trabalho, que eu ainda estava trabalhando na loja como caixa, na sequência eu saí e virei agente de pastoral dentro da diocese, que aí fui convidada para fazer parte de um grupo que estava sendo organizado dentro da diocese de Campo Grande, que foi denominada de Pastoral Social. Então eu fiz parte desse grupo da Pastoral Social, inicial em Campo Grande, quatro anos e pouco e o meu engajamento sempre veio por aí, eu acho que pela linha da teologia da libertação. Esse período que eu fiquei na diocese como agente pastoral, eu acompanhei muitas comunidades eclesiais de base, que estavam muito efervescentes, também. Cheguei a participar do sexto intereclesial, que foi ali em Trindade, Goiás. Tive o privilégio de conhecer os grandes mestres que a gente só estudava e lia os documentos deles né, tipo, Leonardo Boff, Clodovir Boston, Carlos Mesters, enfim, ali eu conheci vários e vários desses que a gente só lia os documentos e nem sonhava que ia conhecê-los, e eu tive esse privilégio de conhecê-los no sexto intereclesial de CEBS.
P/1 – E quando e como surge essa sua ligação a partir da pastoral com a economia solidária? Tem uma ligação?
R – Ah, eu acho que tudo tem ligação. Eu acho que a vida, ela não está desconectada do… nada é desconectado, né Bruna? Mas antes da pastoral, eu ainda tive mais umas andanças, depois eu… eu sou meio doida e assim, durante esse período que eu estava trabalhando como agente de pastoral, eu acabei me apaixonando e tive o privilégio de fazer com que o meu companheiro se apaixonasse por mim. Ele era um frei capuchinho, ele era um padre e a gente, primeiro resistimos um pouco a esse sentimento, achando que não dava, eu da minha parte sobretudo, para mim era um pecado enorme, né? Como é que eu estava apaixonada pelo padre? E não era o meu padre, eu o conheci por acaso, me encantei com o trabalho que ele fazia e começamos a ficar mais próximos pelo trabalho e depois quando a gente se envolveu mesmo, foi quando eu tive que pedir demissão, não menti, fui honesta, coloquei para o bispo o que era que estava acontecendo e pedi a minha demissão e aí eu fui embora para Goiânia. E lá em Goiânia eu trabalhei durante um período, fui para lá por que? Porque ele foi transferido para lá, sabe? A congregação o transferiu para afastá-lo de mim, né. Inicialmente eu ia uma vez por mês para encontrá-lo, depois estava ficando muito caro e eu falei: “Vamos embora fazer uma coisa melhor, eu vou embora morar logo lá e fica mais próximo”. E aí quando ele decidiu pedir o afastamento da congregação, então aí tomamos a decisão de que eu iria para Goiânia mesmo. Aí eu fui para Goiânia, lá em Goiânia eu comecei no comércio, trabalhei um tempinho, mas muito curto, um tempinho muito curto no comércio e depois através de alguns amigos eu fui convidada para trabalhar no Instituto Brasileiro, o Ibrace, e também era a sede do movimento de Direitos Humanos da região centro oeste. Aí ali então, trabalhei com Pedro Wilson Guimarães, com Valéria, com algumas figuras assim, muito interessantes nessa linha de Direitos Humanos. Continuei aprendendo muito, não desvinculei do aprendizado da Teologia da Libertação, porque uma coisa leva a outra, mas aí eu precisei ficar um período afastada da igreja, porque claro, eu virei a mulher do padre, né. Porque aí ele se afastou mesmo e a gente foi morar junto. Então aí, agora você vai entender porque eu disse que eu sou solteira no papel e viúva de fato. Nós não nos casamos, porque ele não podia casar na igreja, porque já tinha o sacramento do sacerdócio né, teria que esperar uma dispensa de Roma que é muito complexa e eu não fazia questão do casamento no civil, eu dizia para ele, que para mim o importante seria o religioso, já que não podia, então nenhum e nem o outro. E nós ficamos morando em Goiânia por cinco anos, lá, no começo, ficamos bem afastados da igreja para não ter problema, para não causar problemas, porque é bastante complicado essa situação do padre casado ou de uma mulher do padre, né? Primeiro que na cabeça da população mais antiga, a mulher do padre é a mula sem cabeça, então tem essas coisas todas. Para ele, como religioso, ele causava problemas com os outros padres, os outros se sentiam inseguros com a presença dele, enfim. Nós ficamos alguns anos afastados da igreja, depois tivemos o privilégio de receber um convite do Bispo para tomar conta de uma paróquia que estava sem padre, fazer uma celebração da palavra. E aí começou de novo o nosso envolvimento de novo com a igreja lá, viramos catequistas, trabalhamos com jovens de novo, que era uma coisa que tanto ele, como eu gostávamos de fazer, ele fazia a celebração da palavra, uma vez por semana ia lá buscar as hóstias consagradas lá na catedral, isso foi quase um ano, até que veio um novo padre. Ao chegar esse padre, nós precisamos nos afastar, porque aí não deu para manter a convivência, a comunidade nos aceitou muito bem, sabe, foi uma coisa assim muito bacana, porque a comunidade nos aceitou, não teve problema, desde os mais jovens até os mais velhos né, mas com a chegada do novo padre foi que começou a ter alguns probleminhas e a gente fez a opção de se afastar. Nos afastamos, passou um tempo, então veio a gravidez, eu acho que eu vou misturar um pouco as histórias por aqui, mas não tem jeito. Eu já estava com 31 anos, veio uma gravidez de risco, eu tive que morar dentro de um hospital por seis meses para que a minha filha nascesse. Eu morei mesmo, literalmente, eu fiquei lá, uma vez por mês o médico dava alta para passar um final de semana em casa, eu saía no sábado de manhã e tinha que voltar à noite, já passando mal. Tinha risco de aborto muito constante, então eu precisei ficar de repouso absoluto. Foi uma gravidez bem sofrida, a gente tinha muito medo dela nascer com problema, porque tomava muito remédio para poder segurar, aquelas coisas todas, e não descobria qual era a causa desse problema. Aí a minha filha nasceu, graças a Deus ela veio saudável, perfeita! Ela quando tinha um ano, é que nós voltamos para Mato Grosso do Sul, então nesse período que eu fiquei lá, eu trabalhei em direitos humanos. Quando voltamos para Mato Grosso do Sul, aqui eu fui convidada pela Comissão da Pastoral da Terra. Quando souberam que eu estava voltando e ia morar em Campo Grande me convidaram para trabalhar na Comissão da Pastoral da Terra, aí ali eu fiquei por sete anos trabalhando na Comissão Pastoral da Terra. Inicialmente eu assumi a função de secretária, em menos de um ano depois eu já fui para a administração dos projetos, então continuei cuidando de contas e de dinheiro alheio por um bom tempo, né. Enfim, aqui eu tive uma nova gravidez, contrariando a vontade do médico que me acompanhou na primeira, ele achava que eu não deveria engravidar de novo, porque eu poderia ter problemas. Meu marido também não queria, porque ele tinha medo, mas eu dei um jeitinho de provocar a gravidez e ela veio, porque eu não queria filho único, como eu tenho irmãos, eu acho que é muito triste não ter irmãos, você acaba tendo os irmãos da vida, mas não é a mesma coisa, a relação familiar dentro de casa com outro irmão, para mim ela era fundamental e eu queria isso para a minha filha. Então a filha nasceu em 91, a primeira, a segunda foi em 94, já em Mato Grosso do Sul, contrariando a vontade do médico, foi uma gravidez tranquila, não tive nenhum problema, trabalhei até na véspera do parto, trabalhei até… só para você ter uma ideia, eu trabalhei até o dia 20 de abril, ela nasceu no dia 25 de abril. Nasceu perfeita, nenhum problema, não tive problema de pressão subir na hora do parto, como tinha acontecido na primeira, mas infelizmente a vida reserva os desígnios que é só Deus que conhece, 15 dias depois ela faleceu de uma meningite viral, que a gente só foi… bacteriana na verdade, foi a bactéria dos estreptococos, que para nós ela causa infecção de garganta, para minha filhinha recém nascida, ela virou meningite. E aí então, foi bem sofrido, a gente ainda não estava participando da igreja aqui, só na Pastoral da Terra mesmo, continuei na Pastoral da terra. Três anos depois da morte da minha filha, a gente estava esperando o terceiro, estava chegando, 16 dias antes dele nascer o meu marido infartou e aí então ficou a morte da filha e do marido no mesmo mês, então eu comemoro a morte de um no dia 10 de maio e do outro no dia 15. E aí eu fui um tempo a mais na Pastoral da Terra quando ficou difícil, porque com as duas crianças pequenas, sozinha… a pastoral da Terra exigia que eu viajasse, eu tinha que acompanhar os acampamentos, visitar os assentamentos, enfim, o meu trabalho levava isso, e estava difícil, porque não tinha mais o companheiro para dividir o cuidado com as crianças. Então eu pedi demissão e virei ambulante, fui vender roupas, revendedora de roupas, sacoleira, eu comprava em Goiânia, eu já conhecia a confecção de lá, por ter morado lá, então eu buscava em Goiânia uma vez por mês, a cada dois meses e revendia por aqui. E também comecei… isso para mim foi uma coisa muito interessante, porque na minha vida eu achava que eu nunca ia ser vendedora, eu até falava que se eu dependesse de vender alguma coisa, eu ia morrer de fome, e quando a necessidade veio, a vida ensinou que a gente dá conta de fazer sim, basta querer, né. E eu acabei virando vendedora de roupas. E depois virei artesã, aprendi a fazer alguns artesanatos, comecei a participar das feiras de artesanatos e aí foram as feiras de artesanatos que me levaram a descobrir a economia solidária. Então eu já estou indo lá para os anos de 2002, 2003 na verdade, em 2003 eu estava participando de uma associação dos artesãos, fazia parte da direção, porque eu sou uma pessoa que me envolvo demais em todo canto que eu vou, a minha mãe dizia que “quem fala muito dá bom dia a cavalo” e eu acho que é bem isso. Então em todo canto que eu chego eu me envolvo demais e aí acabam me colocando em lugares de responsabilidade né, assim, às vezes até muito rápido, porque eu me envolvo e estou sempre ali.
P/1 – Tiana, eu queria saber como foi esse período de afastamento da igreja nesses momentos que você passou?
R – Então, os momentos de afastamento da igreja sempre foram momentos de muito sofrimento para mim, porque aí acabava sendo momentos de vazio, porque eu sou uma pessoa que eu sou muito de sentir Deus na comunidade, nos outros. O meu Deus é um Deus que está no outro, que está em mim, é um Deus que mora dentro de nós, né. Então quando a gente está isolado, parece que está meio que, fica faltando, sabe? Essa coisa de estar junto, de celebrar, de estar junto, de ter energia. Então foram momentos bem sofridos, sobretudo quando a morte da minha filha, que eu estava afastada da igreja. Então aí eu só tinha que celebrar com os sem-terra, com o povo do campo, né. Então foi bem ruim, mas eu entendo que fazia parte do processo que eu estava vivendo também né, porque eu desafiei uma das coisas que não poderia, segundo alguns mandamentos, acontecer, então…, mas nunca me senti culpada, sabe assim? Acho que isso é importante frisar. Já teve outras pessoas que me perguntaram isso, se eu trago alguma culpa por ter me casado como padre. Não, não me sinto culpada em nada, porque nós nos encontramos, nós nos aproximamos e vivemos os 10 anos que Deus nos permitiu viver juntos, com muito amor, com muito carinho e com muito respeito. Então isso para mim, eu acho que onde existe amor, tem a benção de Deus e Deus está. Então em momento nenhum eu me senti culpada, em momento nenhum eu me sinto pecadora de ter vivido sem estar casada. Cheguei a ser questionada em alguns espaços, dentro da própria igreja, “de por que que eu estava comungando”, por exemplo, né. Teve um abusado que chegou a me questionar isso! E eu nunca me senti culpada não! Só me sentia mal quando eu não podia estar com a comunidade, porque eu gosto muito de estar com as pessoas, de celebrar. Eu sou um ser que acredito demais na energia, sabe? A energia que vai e vem, a energia que traz o bem, a energia que leva o mal, enfim essa energia que vem do outro, que vem das coisas, que vem do encontro, que vem, que vem da vida, é essa a energia que me move, então é isso. É por isso que eu não consigo viver isolado né, quando eu deixei de trabalhar na Pastoral da Terra, por exemplo, deixei de conviver com o pessoal do campo, com os sem-terra, com os assentados, eu fui para o artesanato para conviver com outras pessoas, né. Então aí eu fui para feiras de artesanato, eu fui participar e ajudei no processo de direção de uma associação, filiando inclusive artesãos de rua que estavam por ali, passando e que nos procuravam só para garantir que eles pudessem estar nos espaços de feira, foi um espaço bacana. E foi esse espaço que depois, posteriormente, me levou a conhecer o que eu acabei me apaixonando, que assumi como proposta de vida, que é economia solidária. Então eu passei a conhecer a economia solidária em 2003, eu falo nas minhas conversas com o povo aqui, que Mato Grosso do Sul já pegou o bonde andando, porque a articulação para criar a economia solidária, ela começou lá em 2001, no Fórum Social Mundial. Não estávamos lá nem eu e nem os meus colegas, pois posteriormente fomos descobrir isso só em 2003, em 2003 que a gente ficou sabendo que estava sendo organizado esse movimento. Tive o privilégio de ter sido indicada aqui pelo meu estado, para ir numa reunião a nível nacional, onde conheci algumas pessoas fundadoras dessa ideia, lá do grupo brasileiro de trabalho, lá atrás, né, assim, o privilégio de conhecer esses que começaram em 2001, aprender com eles. E desde 2003 que então eu venho envolvida no movimento de economia solidária. Quando eu descobri… aí eu vou dizer porque que eu falo que foi a minha razão, encontrei a minha razão para continuar o processo de luta e de construção, né. Foi porque a proposta da economia solidária, quando eu comecei a entender o que era essa proposta que estava vindo aí, que estava sendo criada, ela vinha de encontro com tudo aquilo que eu acreditava, lá no trabalho da teologia da libertação, na luta pela terra, na Luta pelos Direitos Humanos, enfim, na luta das mulheres que de uma forma ou de outra eu também sempre tive meio que envolvida, por aqui, no movimento popular de mulheres, uma coisa leva a outra né, gente não vai ficando desconectado com o que vai acontecendo. Então eu acabei descobrindo que a economia solidária juntava tudo isso, era uma luta maior, que dentro dela tem a luta de todos, tem a luta da mulher, tem a luta do negro, dos indígenas, dos sem-terra, dos assentados, dos artesãos, das costureiras, do povo da alimentação, enfim, daqueles que querem viver melhor, daquele que querem comer melhor, os consumidores, né. Então para mim foi uma descoberta, assim, de um caminho novo que eu me encantei, me apaixonei. E a partir daí, então eu me envolvi, ajudei no processo de divulgação e criação do Fórum Estadual de Economia Solidária no meu estado. E estou por aqui ainda envolvida até a raiz do cabelo, enquanto Deus me permitir, né. Eu falo que encontrar economia solidária foi encontrar a razão para tudo aquilo que eu acreditava e que a gente estava vendo que era muito complicado com essas lutas isoladas. Então assim, quando a gente avança de um lado com uma luta, a outra às vezes está perdendo. A proposta da economia solidária, ela é uma proposta completa, é uma proposta que traz a luta pelo bem viver como um todo.
P/1 – Você estava contando também para mim, sobre você sempre participar com alguma função de responsabilidade. Aí eu queria saber como foi isso dentro da economia solidária?
R – Aí não foi diferente. A tonta aqui fala muito, então pronto, já entrei participando com base na experiência que eu tinha do meu trabalho na Pastoral da Juventude, na catequese, enfim, por onde eu já tinha andado, a luta pela terra. A questão dos Direitos Humanos me levou a ter uma postura de falar mais nas reuniões junto com os artesãos e de tomar iniciativa, de levar propostas, né. E aí então, eu já fui… aqui quando foi para ir para esse encontro nacional da economia solidária, não foi à toa que eu já fui indicada pelos colegas artesãos, para ir representando esse segmento do artesanato, para uma reunião de coordenação nacional, que foi em dezembro de 2003, lá em BH. Então eu já fui com uma responsabilidade né, já fui representando o meu Estado e falando por um segmento, que era um segmento dos artesãos. E quando eu voltei de lá, eu já voltei com uma responsabilidade também um pouquinho maior, porque aí lá, foram escolhidas duas pessoas por região, para a gente dar continuidade a um processo de discussão e de continuidade do processo organizativo dos fóruns, aqui na região Centro-Oeste. Então eu já saí de lá também com essa responsabilidade de contribuir junto de uma outra colega do DF, fomos as duas indicadas para acompanhar um pouco o processo de organização na região Centro-Oeste. E de lá para cá, mulher, aí só foi compromisso né, cada vez mais “responsa”. Eu falo assim, teve época que foi muito louco, nem sei como é que eu dei conta de fazer todas as coisas que eu fui me… que foram me metendo e que eu fui aceitando, né. Porque claro, ninguém faz se não quer, mas eu fui fazendo coisas que depois, hoje, às vezes eu paro e penso: “Eu fui muito louca! Com as crianças pequenas!”. Eu passei a fazer parte… em 2004 nós já tivemos uma responsabilidade grande, que era organizar nesse país o Primeiro Encontro Nacional dos Empreendimentos Econômicos Solidários e foi um grande encontro, 2500 pessoas em Brasília, teve uma mobilização enorme nos Estados, organizar delegações de cada Estado para poder estar lá e eu já estava à frente disso aqui, né. Então assim, nós conseguimos criar o nosso, 2004 a gente não tinha o Fórum ainda consolidado, ele ainda era só um grupo de trabalho, uma equipe pró fórum aqui no Estado. Mas preparamos um encontro Estadual, tiramos os delegados para esse encontro nacional, acompanhei todo o processo de encontro lá. E em 2004, então voltando de lá, já com toda a energia desse encontro maravilhoso, que foi um momento onde no meio do encontro teve um momento assim, muito marcante, que os empreendimentos que estavam todos no ginásio, de repente resolvem sair de cima das arquibancadas, assim, foi descendo todo mundo para o centro e trazendo produtos para colocar no centro desse ginásio e com uma frase enorme já em uma faixa dizendo que: “Essa outra economia, ela não é só possível, ela já acontece”. Então a partir dali nós mudamos o slogan do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, que era uma outra economia possível, acompanhada a linha lá do Fórum Social Mundial né, que “Outro mundo é Possível”, então a gente estava com essa mesma lógica de Slogan, uma outra economia possível. Mas ali em 2004 os empreendimentos mostraram que ela não é só possível, ela já acontece na vida de cada um. E cada um aqui trabalha de forma associada, cooperada e que está ali com uma imensidade de produtos para poder mostrar que ela já acontece, né. Então voltando de lá com essa energia toda, nós continuamos o processo organizativo aqui no Estado, fazendo reuniões em mais alguns Municípios. E em 2005 a gente conseguiu consolidar a criação do nosso Fórum Estadual de Economia Solidária, no dia 22 de maio de 2005, ainda com um grupo relativamente pequeno, mas melhor do que nada, a gente já tinha representantes de 13 Municípios. Hoje a gente tem a metade, mais ou menos, dos Municípios do Estado, uns 38, por aí né, mais ou menos. Passei a fazer parte desse Fórum Estadual, na sequência eu fui indicada para fazer parte da Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro. Aí quando a gente vem para 2005, então 2005, 2006 para ser mais exata, foi criado o Conselho Nacional de Economia Solidária, estando na Coordenação Nacional eu fui indicada para ser Conselheira Nacional, representando a região Centro-Oeste. Aí fiz parte do Conselho durante todo esse período aí, de 2006 até 2018, acabei ficando nas comissões organizativas das três Conferências Nacionais de Economia Solidária, fiz parte de comissão de metodologia, comissão de sistematização em uma, em outra, enfim, mas estava sempre metida lá contribuindo com esse processo a nível nacional. Também, não só da organização do Fórum Brasileiro, mas da tentativa da criação e da incidência para dentro do Governo, com a criação de políticas públicas para a economia solidária também, né. Esse era o papel enquanto conselheira. Cheguei a ser conselheira por um mandato no CONCEA, representando o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Fiquei um período também como conselheira lá no CONCEA. E falo que foi assim, se você me perguntar como eu dei conta, eu nem sei, era uma loucura! Porque tudo isso é trabalho voluntário né, é trabalho voluntário, então assim, eu tinha que fazer muita economia, muita loucura para dar conta de acompanhar todas as viagens e todas as reuniões e mais reuniões que aconteciam, sem deixar faltar nada para os filhos que ainda eram pequenos na época, assim, eles foram crescendo junto comigo nesse movimento. Então é um pouco a história dessa maluca com a economia solidária.
P/1 – Eu queria saber se lá no início você teve algum tipo de formação sobre a economia solidária? Ou foi tudo instintivo, orgânico?
R – Menina, bem no início foi meio orgânico. A gente foi participando das reuniões e aprendendo, né. Mas depois, posteriormente, vieram as possibilidades de fazer alguns cursos, algumas oficinas, seminários para poder ir aprendendo. E eu sou muito curiosa, gosto muito de leitura, então assim, eu bebia nos textos, nos livros que já existiam né, aquelas propostas que já estavam consolidadas em papel, enfim, eu lia muito, li muito para poder ir aprendendo lá no começo. Depois eu tive sim o privilégio de fazer cursos, de fazer parte do Centro de Formação de Economia Solidária, quando isso veio a acontecer mais na frente, né. É por isso que eu digo hoje, que eu sou, eu me denomino uma educadora em economia solidária, educadora popular em economia solidária. Eu fiz parte do processo do Centro de Formação de Economia Solidária aqui na minha região, inicialmente eu fiz o curso aqui no Estado, participei ajudando na mobilização, por ser da coordenação do Fórum Estadual. Posteriormente eu fui indicada para assumir a coordenação do Centro de Formação da região do Centro-Oeste, assumi por um período a coordenação do Centro. Aí passei a ter responsabilidade de trabalhar com a formação de educadores nos quatro Estados da região. Eu fiquei muito em viagem, aí eu ia e vinha para Goiânia e Campo Grande, assim, quase que semanalmente, foi uma loucura, um período de muitas viagens, mas também de muito aprendizado, porque a gente aprende junto, né. A educação popular é isso, ninguém ensina ninguém, a gente não descobre sozinhos, vai aprendendo juntos. E aí conviver com essa companheirada da região Centro-Oeste foi fabuloso, porque aí você vai ali para o Mato Grosso, que é o meu Estado vizinho, a realidade ali, mesmo já tendo sido um único Estado, é tão diverso, que você volta de lá enriquecido com o saber dos companheiros e companheiras de lá, vai ali para Goiás, não é diferente, vai para o DF também, então assim, cada lugar tem uma coisa diferente que te ensina o novo a cada minuto, a cada momento. Então eu tive sim esse privilégio de participar de muitos momentos de formação, tanto com o Cfess, como com atividades de feiras que também tinham formação. Teve um período que o Instituto Marista de Solidariedade, executou os projetos das feiras a nível nacional e que nessas feiras tinham muitos momentos de formação ali né, oficinas, seminários, palestras, que então não era só ir lá para vender, mas estar ali para aprender né, aprender junto, e cada feira fazia a gente sair dali mais enriquecido com a sabedoria que vem da vida, do cotidiano, do dia a dia, das pessoas que fazem parte dos empreendimentos que trabalham às vezes no campo, na aldeia, na cidade e também dos outros trabalhadores da economia solidária, que vem da área mais intelectual, digamos assim, né. Os companheiros que vem das universidades, que estão aí nas redes de incubadoras, enfim, que trazem o saber mais científico para somar com o saber popular nosso, para a gente poder ir transformando isso em um saber coletivo, né. Então acho que dá para dizer que eu participei sim de muito processo formativo de economia solidária. Eu tive o privilégio que eu acho que foram poucas pessoas que tiveram, por estar em vários espaços, sabe? Por estar no espaço do Conselho, por estar no espaço da Coordenação Nacional, por estar depois dentro da coordenação de um Centro de Formação de Economia Solidária, junto com o pessoal da CULT, daqui né, da escola do Centro-Oeste da CULT. Então foi muito bacana e eu tive esse privilégio sim, de aprender sempre.
P/1 – E nesses caminhos, nessas andanças pelo Estado e pela região, queria saber se tem alguma história que seja marcante para você? Algum encontro especial?
R – Nossa foram tantos! Tem tantos encontros especiais, que fica até difícil a gente dizer um, mas para mim… eu vou te citar um, que foi o primeiro que veio na cabeça aqui, que para mim… na verdade foram dois momentos, um quando eu fui fazer uma oficina de... a gente chama de oficina de iniciação na economia solidária, que é o ir na comunidade para levar essa notícia, “Existe esse movimento, tem esses princípios, tal e tal”. Então a gente fez muito isso em vários lugares e teve uma aldeia, dos povos Terenas, aqui no Município de Nioaque, no Mato Grosso do Sul, que eu levei um ano pra conseguir entrar na aldeia para poder fazer essa atividade, porque as lideranças que vieram de lá e participaram do processo de formação conosco, eles ficaram juntos, acompanhando todo o processo de formação, participavam do Fórum, mas toda vez que você falava que ir lá na comunidade, fazer uma atividade presencial com o povo lá dentro da aldeia, eles protelaram, enrolavam, ia deixando para depois, e assim passou um ano. Aí até que um belo dia, o rapaz que era um dos educadores internos, disse: “Bom, Tianinha. Agora eu acho que já está na hora de você ir lá conhecer meu povo”. E aí marcamos. Cheguei lá na comunidade, a gente faz atividade em dois dias normalmente. Então eu fui para dormir, levei as coisas para ficar lá na comunidade, aí cheguei, o salão deles lá, lotado, muita gente, aí na hora que vai apresentar, você descobre que está o cacique, está o conselho do cacique, está a Presidente da Associação das Mulheres, da Associação de Moradores, enfim, a representante da igreja católica, da Igreja evangélica, estavam todos lá, todo mundo. E beleza participamos ali, fizemos a primeira prosa no período da manhã, aí parou para o almoço, continuamos depois do almoço. Quando chega no intervalo da tarde, aí esse menino que era o nosso educador, que já estava conosco né, era liderança que já acompanhava, e ele me chamou perto do cacique e perto do pai dele que é a liderança de uma das igrejas evangélicas, e o tio que é a liderança da igreja católica, ele me chamou na presença dos três, e perguntou, pois a mão no meu ombro e perguntou: “Tiana, você faz reserva em hotel lá na cidade para dormir? Você vai dormir aqui, ou você vai voltar para Campo Grande? "Aqui ele estava dizendo sobre o Município que fica a 15 quilômetros da aldeia. Aí eu olhei para ele e disse assim: “Olha, Alex. Porque eu vou ter que ir para a cidade para dormir? Não tem nenhuma casinha de cachorro aqui para eu poder ficar?”. Aí ele deu risada, me abraçou e falou assim: “Acho que dá para arrumar”. Eu falei: “Não, se não tiver também não tem problema, a gente dorme dentro do carro ali debaixo daquela mangueira. Aí eu só vou querer um favor, vou querer um banheiro amanhã, pela manhã para poder tomar um banho, ou hoje à noite né, para também poder ficar bem para o dia seguinte”. Aí ele me abraçou, virou para os três e disse assim: “Eu não falei para vocês que ela era uma das nossas”. Então pronto, naquele momento, foi o momento que eles me aceitaram na comunidade. E hoje eu sou uma pessoa, que eu tenho certeza, que eu tenho grandes amigos, um carinho enorme com as lideranças dessa aldeia, porque a gente respeitou o processo deles, e eu não tive o que eles chamam de frescura, de não querer ficar na casa deles na comunidade. E eu não tenho mesmo, eu vou para ficar na comunidade, é lá que eu vou ficar! Já dormi muito em acampamento sem-terra, por que que eu não vou dormir em uma aldeia com os indígenas, né? Então tem esse momento, que é um momento bacana, que eu me senti acolhida, senti que eu não errei na minha dinâmica metodológica de lidar com ele, ali com a pergunta né, porque era meio que um batismo de fogo, como eles mesmo brincam. E um outro momento, foi um momento que eu precisei fazer uma capacitação com um grupo de deficientes visuais, aqui em Campo Grande, no espaço de comercialização que nós temos. Eles nos procuraram, para poder ver se tinha possibilidade de eles virem compor o espaço como massoterapeutas. E aí vieram junto com o professor, que estava terminando de capacitá-los no Instituto (01:18:49). Fizemos uma primeira conversa e marcamos uma tarde de Formação inicial, para eu poder explicar melhor a eles todos, como era o processo nosso interno ali, o que era a proposta da economia solidária e ver se eles queriam de fato participar disso, né. Porque eu costumo dizer para todos, a economia solidária, ela é um jeito de viver, então a pessoa tem que aceitar, tem que querer, senão, não adianta, não vai ficar bem se não quiser, né. E aí para mim, a dificuldade foi assim, na hora de começar a atividade com eles, eu não sabia que recurso eu usaria, que recurso? Eu estava tão acostumada a usar recursos visuais, usava vídeos, usava quadros, folhas de papel para fazer rabiscos e anotações, enfim, né, mas todos visuais. E aí eu falei: “Meu Deus, e agora como é que eu trabalho com eles?”. Aí fiquei meio desorientada, sem saber direito a metodologia que eu usaria, chamei o professor deles, ele não é deficiente visual, aí chamei ele e perguntei: “Olha, que queria te pedir um favor. Como é que eu trabalho com eles?”. Aí ele deu risada e disse: “Como é que você trabalha com os outros?”. Eu falei: “Com os outros eu trabalho assim”. E aí falei né, como é que eu trabalhava, como eram os recursos que eu usava, enfim. Aí ele disse: “Ué, e porque você tem dúvida? Só porque eles não enxergam?”. Então para mim foi meio que assim, um tapa na cara, para aprender que eu tenho que respeitar o outro, com aquela limitação, ele é incapaz de ver, mas ele é capaz de muitas outras coisas, né. Então aí eu usei a mesma metodologia de falar, de usar vídeo, porque hoje eles brincam comigo, esses mesmo que começaram lá atrás, há 12 anos atrás, eles brincam e dizem assim: “A Tiana aprendeu com a gente, que a gente é cego, mas não é surdo!”. Então, é isso mesmo, eu aprendi, aprendi com eles. Então são momentos marcantes que a gente vai aprendendo de acordo com a realidade de cada comunidade ou de cada grupo.
P/1 – Tiana, você chegou a conhecer o professor Paul Singer?
R – Nossa! Por isso que eu estou aqui. Me disseram que era para falar dele, e no fim eu tive que falar tanto de mim aqui, mas vamos lá. Nossa gente, que privilégio, eu falei para o Marcelo ali no começo, que foi inspirador ver a foto do professor, né. Eu tive o privilégio de conhecer o professor em 2004, assim, e passei a conviver com ele desde lá né, até próximo da sua passagem, que foi até 2018, 2019 por aí, ainda continuei encontrando. Como eu fiz parte desse processo organizativo do Conselho Nacional de coordenação e preparação das conferências, enfim, eu… esqueci de dizer, que dentro do Conselho eu ainda fui indicada para uma comissão pequenininha, que era chamada de Coordenação Executiva do Conselho, né. Então essa se reunia todo mês, o conselho maior não, era de dois em dois, ou de três em três meses, mas a coordenaçãozinha menor, ali, era mensalmente. E aí, privilégio enorme né, enorme, enorme de conhecer o Singer, na sua simplicidade, naquele jeito de acolher com carinho cada um, e cada uma, uma paciência histórica para ouvir a história de cada um. E ele dizia depois que cada um terminava de falar, por mais longa que fosse a fala, e às vezes a gente ficava achando que tinha até sido uma fala meio besta, e o Singer agradecia e dizia: “Eu aprendi muito com você meu irmão, eu aprendi muito com você minha irmã!”. Então Singer era uma figura muito difícil, assim, falar nele sem sentir um aperto no peito assim, de saudade, mas também de gratidão, de poder ter convivido, de poder ter sentido a presença dele, seja nos momentos difíceis de briga. A gente teve muitos momentos de discussão na construção das políticas públicas, nesse processo todo que a gente sonhou tanto em construir e que a gente, mesmo sabendo que as Senais eram limitadas, e que ele como secretário ali, não tinha o poder como a gente queria, mas a gente pressionava para ver se saia, né. Mesmo nesses momentos, eu falo que assim, o Singer sempre foi de uma tranquilidade e de uma calma que é muito raro da gente encontrar, um ser com tanta sabedoria como ele, com a capacidade imensa, de um professor Singer, ele ter paciência para ouvir eu ouvir cada trabalhador e cada Trabalhadora que se dirigia a ele né, sempre com carinho, com calma, com aquele abraço gostoso que a energia dele, parece que eu tô falando aqui e tô sentindo assim, esse abraço ainda assim, aquela coisa da energia positiva que vem para te dar força de continuar lutando por aquilo que você acredita, né. Porque ele costumava sempre dizer, “A economia solidária só aprende a fazer, fazendo”. Então a gente só aprende o que é a economia solidária fazendo. E aí eu fui aprendendo a fazer economia solidária, tendo o privilégio de ter um mestre tão querido ali né, tendo a possibilidade de conviver com ele em vários momentos, vários momentos, seja nos momentos bons, seja nos momentos de tensão, mas ele estava sempre nos ensinando e nos encorajando na luta diária pela construção do bem viver. E essa construção do em viver tem que ser para todos, isso sim a gente sempre foi muito enfático, né. A luta pela vida, ela é uma luta dura, mas ela tem que ser uma luta para o bem viver coletivo, o bem viver de todos. Então não adianta a gente pensar que vai construir o bem viver para mim, e deixar o outro de lado, porque aí não vai ser bem viver nenhum né, para ninguém, nem para um, nem para o outro. Enfim, eu acho que falar do Singer, eu ficaria horas aqui falando, mas sei que não temos horas, então vou parar por aqui, se você tiver alguma pergunta mais específica em relação a ele pode fazer então.
P/1 – Não, está ótimo! Era para saber mesmo se você chegou a conhecê-lo e se tinha alguma memória. Eu queria saber também, Tiana, se atualmente, quais organizações, ou movimentos junto à economia solidária você participa agora?
R – Olha, aqui em Mato Grosso do Sul, nós criamos em 2006 o nosso espaço de comercialização. Então a gente tem um espaço, que é uma parceria do Fórum Estadual de Economia Solidária com o Governo do Estado, o Governo faz a ascendência do prédio e nós administramos de forma autogestionária, coletiva, trazendo produtos tanto do campo, da cidade, das aldeias, enfim, né. E quem cuida desse espaço, somos nós que moramos em Campo Grande, então eu faço parte desse espaço, que nós chamamos de Central de Comercialização de Economia Solidária de Mato Grosso do Sul. É um espaço coletivo, ali a gente tem não só a loja, mas a gente tem as prestações de serviços, que antes da pandemia a gente estava com prestação de serviços na área da saúde, com esse grupo de massoterapeutas deficientes visuais, tínhamos salão de beleza, então a gente tinha lá, tanto na linha de cabelo, como unha, depilação, costura, uma lanchonete funcionando dentro do espaço e a loja em si, vendendo um pouco de tudo, desde a agricultura familiar, até os artesanatos mesmo. E também fazemos as capacitações, as formações iniciais de economia solidária é a sede do nosso Fórum, é ali que a gente se encontra, é ali que a gente discute, dialoga, propõe, enfim, fazendo a nossa vida acontecer, né. Então eu faço parte desse espaço. Em 2008, nós, por entendermos que a gente precisava ter uma personalidade jurídica que nos representasse aqui no Mato Grosso do Sul, nós temos uma carência muito grande, não só no Mato Grosso do Sul, mas na região Centro-Oeste, nós temos uma carência grande de entidades de apoio e fomento, enquanto a gente vê nos outros estados que tem um monte de identidades de apoio e fomento, a região Centro-Oeste, carece de entidades de apoio e fomento. Então, em Mato Grosso do Sul a gente não tinha, nenhuma né, a gente… fora a Central Única dos Trabalhadores, que sempre esteve meio próximo e depois passou a ser uma entidade de apoio para nós, até por falta de outra, porque eles mesmo dizem isso, né. Então nós, em 2008, enquanto trabalhadores da economia solidária, nós decidimos criar uma associação, e aí para não desvincular do nome que a gente já tinha lá, da Central Comercialização de Economia Solidária, que já é um espaço a nível de Estado né, nós criamos uma Associação dos Trabalhadores da Economia Solidária, que nós chamamos de Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Economia Solidária, abreviatura é CEPES, né, Central dos Trabalhadores da Economia Solidária. Essa associação, ela foi criada em 2008, e eu sou sócia fundadora, atualmente eu estou fazendo parte da diretoria, recém eleita, porque fizemos uma assembleia agora, há uns 10 dias atrás, então eu estou ocupando a função de tesoureira na nossa associação e continuo fazendo parte do Fórum, né. Porque para mim, o Fórum é o nosso espaço maior de articulação, de proposição, de discussão da política. É assim que nós nascemos e é assim que eu entendo que a gente deve continuar o processo de discussão da economia solidária, sempre um espaço aberto para acolher todos que queiram e que estejam dispostos a chegar, a vir para roda com a gente, para construir isso que nós acreditamos e lutamos diariamente para fazer, né. Então eu estou aí, circulando nesses três espaços né, tanto o espaço do Fórum, o espaço da associação e da própria Central de Comercialização. Estou por aqui, ainda mexendo o doce como formiguinha.
P/1 – Essa pergunta é um pouco reflexiva, pensando nas suas experiências de trabalho anteriores a economia solidária e a todo esse trabalho que você fez depois com artesã e participando do fórum do Conselho da Central de Comercialização, eu queria saber qual é a diferença entre os seus trabalhos antigos e o atual?
R – Nossa, menina. Tem diferença demais! Porque lá eu era só uma empregada. Eu tinha um patrão que mandava, e eu recebia um salário pela venda da minha mão de obra, né, do meu trabalho. O empregado é isso, eu vendo a minha força de trabalho e o empregador me paga por aquilo que ele acha que é o valor da minha força de trabalho, sou obrigada a cumprir ordem, a obedecer a todas as normas, sem discutir, porque eu sou empregada, tem um patrão que manda, um gerente que manda, né. Essa é para mim a principal diferença. Porque quando eu venho para o processo do trabalho autogestionário, o trabalho associado, cooperado, você não tem patrão, né, não tem patrão, nós não temos nenhum patrão e nenhum empregado, nós somos companheiros e companheiras que trabalhamos juntos, e se trabalhamos juntos, portanto, todos somos responsáveis por aquilo que fazemos, decidimos democraticamente, coletivamente. Então tem uma diferença imensa entre o trabalho, né, o trabalho assalariado e o trabalho associado. Para mim, acho que o fato de você ter Democracia para poder discutir as coisas de uma forma autogestionária, respeitando a opinião do outro, às vezes está até divergindo, mas construindo juntos, quer dizer, às vezes não, muitas vezes divergindo, mas construindo junto a partir da decisão da maioria. Isso para mim não tem preço, não tem dinheiro que pague. Essa é a forma que eu acredito que vai trazer o bem viver para… não só para mim, mas para o futuro, para outras gerações. Acho que essa é fundamentalmente assim, a resposta mais breve que eu poderia te dar.
P/1 – E quais são os desafios do trabalho coletivo, do autogestionado?
R – Esse desafio é danado e diário. Eu vou te explicar um pouquinho porque eu digo isso, né. Porque ele é diário, ele é difícil, é um desafio imenso, que a gente tem que vencer ele todos os dias. E por que a gente tem que vencer todos os dias? Porque nós nascemos dentro de uma sociedade capitalista, nós nascemos dentro e fomos educados dentro de um sistema capitalista, competitivo, individualista, machista e todos os “istas” da vida, que eu não vou ficar tecendo muita coisa aqui, mas enfim, misóginos e tantas outras coisas, né. Nós fomos educados dentro desse sistema, então no fundo cada um de nós, tem dentro de nós mesmos impregnados os princípios do capitalismo, esse capitalismo que explora, esse capitalismo que exclui, desse capitalismo que joga aí na vala do desemprego, e que depois não está nem aí se a pessoa tem condição de viver ou não, né, da competição, aí eu tenho que vencer todos os dias isso. E eu costumo refletir com as minhas companheiras e companheiros aqui, a gente precisa acordar de manhã, olhar no espelho e dizer: “Olha, eu hoje quero ser melhor! Eu hoje quero ser mais solidária! Eu hoje quero respeitar mais a opinião do outro! Eu hoje quero ser menos arrogante!”. Porque a arrogância também faz parte desse processo aí, de achar que você é melhor que o outro, né, de separar às vezes o saber de um e o saber do outro. Então para mim esse desafio, ele é permanente por isso. E daí a importância de a gente ter dentro do processo da economia solidária, a formação permanente, a formação, ela tem que ser permanente, porque nós só vamos mudar cada dia um pouquinho, ninguém se transforma de um dia para o outro, ninguém consegue jogar fora tudo aquilo que foi colocado dentro de nós mesmo, pela educação e pela vivência que nós já tivemos ao longo da vida. Então a gente só vai conseguir mudar dando um passo de cada vez, aprendendo a cada dia ser diferente e a respeitar os princípios da economia solidária. Eu acredito tanto que são aqueles que vão moldar um caráter e um novo jeito de ser, para poder chegar no novo jeito de viver, esse viver diferente, o bem viver, que não é só para mim, mas é um bem viver coletivo, para mim, para os outros, para os outros seres, para o planeta e para todo o nosso universo, né. Eu acho que as coisas não estão desconectadas e se a gente não respeita a terra, a gente tem a resposta dela, né. Ela está vindo aí de várias formas. A resposta é que ela também não aguenta mais ser agredida, não aguenta mais ser judiada. Os outros seres, quem disse que cada um não tem sua função, né? Então isso tudo a gente tem que desconstruir, que foi construído pela educação familiar, pela educação escolar, pela educação social do dia a dia com o convívio com as outras pessoas. Nós fomos educados e moldados para poder ser competitivos, para achar que nós somos diferentes dos outros seres, né, que nós somos os maiorais, que nós somos racionais. Então eu sou maior que uma formiga, sou mais importante que a formiga, porque eu raciocino e ela não, e aí quem disse que eu sou melhor que a formiga? A formiga às vezes constrói muito mais do que eu, ela tem condições de ser muito mais companheira, solidária com as outras formigas, são capazes de se entrelaçarem de tal forma e vencer cada obstáculo, que eu jamais daria conta, né. Então quem é que me dá o direito de achar que eu sou melhor que um outro ser? Agora que isso é formação diária, é formação permanente, por isso que o desafio, ele é constante, ele faz parte do processo da vida e vai continuar fazendo.
P/1 – Você estava contando um pouquinho sobre a construção da política pública, né? Na época dos Senais e eu queria saber, na sua trajetória dentro da economia solidária, quais são quais foram as principais políticas em nível Federal, Estadual, Municipal, o que você acessou?
R – As principais políticas? Bom, o nosso sonho é nossa principal política pública. E que a gente lutou e que continua lutando, é a lei nacional da economia solidária, essa aí foi um sonho e continua sendo, porque ela ainda não saiu, ela continua ainda por ser criada. É o vai e vem aí de discussões, que aprova em um lugar e não aprova no outro, e tira coisa e põe coisa, que hoje o que está no Congresso, já não tem mais a metade do que tinha sido construído lá atrás, como proposta originária para essa lei. Essa para mim, ela é a luta maior, pública política, porque é ela que vai garantir que a gente tenha um Sistema Nacional de economia solidária, que possa realmente fazer com que as outras coisas e as outras políticas menores aconteçam, né. Porque enquanto a gente não tiver isso consolidado, a gente ainda fica na política de Governo, e que o Governo passa, né. O Governo passa, um vai, outro vem, um faz, o outro destrói. Como a gente viu recentemente, né, muita coisa sendo destruída, muita coisa acabando e agora a gente precisa retomar, às vezes, lutas de anos, voltar para isso e começar tudo de novo. Então essa para mim é a maior briga, né. A construção de uma lei, de um sistema nacional de economia solidária. Mas não dá para dizer que não teve nada, a gente teve aí algumas coisas que ajudaram um pouquinho, a gente já tem um mínimo de reconhecimento nesse país, por exemplo, a questão do decreto do Sistema Nacional do Comércio Justo, que isso já dá uma certa legalidade para os empreendimentos que trabalham nessa área. Aí não dá nem para dizer que é política pública, mas a gente teve as políticas de Governo, do Centro de Formação, que aí não era também uma política, mas era uma forma das Senais trabalharem, não deixa de ser também uma política daquele Governo e daquele momento. Os Centro de Formação em Economia Solidária, que são tão importantes, até por isso que eu acabei de dizer, da questão de a gente desconstruir e construir de novo, é o processo de formação que vai poder fazer isso. Então eu acho que aquele momento que estava sendo executada aquela política de Governo, que foi chamado de Centro de Formação em Economia Solidária, foi um momento importante, a gente conseguiu dar um salto de qualidade nos Fóruns Estaduais em diversos lugares desse país, por conta desse trabalho de educação popular em economia solidária, o sistema de finanças, né, o Sistema de Finanças Solidária também, eu acho que foi uma outra coisa que é importante, que a gente não pode deixar de falar, o exemplo está aí, o exemplo dos bancos comunitários, das moedas sociais, isso tudo também foi um processo que foi sendo construído, o que não está totalmente consolidado, mas o que tem já é importante, já é bacana, bom a nível de Estado. A nível de Estado nós temos uma lei Estadual, mas que infelizmente ela nasceu na hora errada e da cabeça errada. Foi quando ainda não tinha o movimento de economia solidária organizado aqui, ela veio da cabeça de um único gestor, que fez passar na Assembleia Legislativa essa lei, muito com o intuito de ter a lei para poder captar recursos Federais, e ela só serve para isso, porque ela é uma lei que prevê a criação de um fundo, mas não diz de onde vai ser criado esse fundo, prevê a criação de um conselho para ser gestor desse fundo e então como não tem o fundo, não tem conselho, não tem nada. Então aí a gente fala que é uma lei morta, é uma lei que já nasceu morta. A nível de Estado, a gente tem dois Municípios do nosso Estado que tem lei Municipal, tem um deles que é muito bacana, a lei tem conseguido dar uma certa garantia para os trabalhadores da economia solidária, na participação de vários momentos da vida do Município, garantindo espaço, comercialização, garantindo a existência do conselho Municipal, que vai deliberando um pouco a política Municipal ali dentro, né. Então eu acho que essas são um pouco as minhas relações com a política pública, é um pouco por aí, né. Nossa, no conselho a gente discutia tanta coisa, tanta coisa, mas muitas ficaram só nas discussões e no papel, por exemplo, quando a gente teve a nossa terceira CONAIS, e também as conferências Nacionais de Economia Solidária, elas foram crescendo. A primeira a gente a fez lá nos idos de 2006, onde a gente discutia um pouquinho a… ainda muito, discutimos ainda muito de forma incipiente, digamos assim, mas a gente já teve a ousadia de trazer para a discussão da primeira Conferência, a discussão da economia solidária como estratégia e política de desenvolvimento. Daí foi crescendo, veio a segunda, onde a gente já foi discutir um pouco mais pelo nosso direito de produzir, de viver em cooperação, de maneira sustentável e tal. O que é isso? Isso é um amadurecimento dentro do próprio processo de construção. Mas quando nós chegamos na nossa terceira CONAIS, a gente foi bem ousado, e aí nós resolvemos então colocar lá a construção de um plano Nacional de Economia Solidária e nesse plano a gente colocou tudo que a gente sonhava. Então nós temos um plano para promover o direito de produzir e viver de forma, associada, sustentável. O plano a nível Nacional está construído, ele está muito bem sintetizado em um caderno, que infelizmente só ficou no papel e que a gente não conseguiu criar de fato uma política pública que levasse em conta esse plano, ou pelo menos parte dele, para poder fazer a economia solidária de fato, ter voz e vez nesse país e mostrar que nós não somos apenas economia de periferia, nós somos uma economia que traz a proposta de desenvolvimento, que traz a proposta de bem viver e traz a proposta que a gente podia estar aí, fazendo as discussões muito maiores do que a gente conseguiu fazer até agora e que vamos ter que retomar tudo de novo. Mas como a gente tem também o exemplo das formigas, que não desanimam por conta do desafio, então nós vamos continuar esse processo de discussão e vamos construir tudo de novo, até a gente poder chegar naquilo que sonhamos.
P/1 – E como você vê, enxerga o futuro da economia solidária no Brasil?
R – Eu acredito que a gente vai ter um pouco mais de dificuldade do que nós tínhamos a quatro, cinco anos atrás, porque a gente já estava com algumas coisas consolidadas, que foram destruídas, que foram desmobilizadas, e que a gente está tendo que fazer de novo o trabalho de reconstrução, de voltar a fazer o trabalho miúdo de novo, para poder ir consolidando novamente algumas coisas, mas eu acredito na economia solidária como uma proposta de vida, e como eu acredito nela como uma proposta de vida, Bruna, eu acredito que a gente pode construir o bem viver das pessoas a partir da própria comunidade, a partir do lugar onde elas estão, a partir do grupo que decide fazer parte desse processo de construção coletiva, sabe? Então eu acredito que a economia solidária é capaz de trazer o bem viver para as comunidades, seja do campo seja da periferia, da cidade, seja aldeia, seja quilombolas, seja onde for, é possível trazer o bem viver, é possível melhorar a qualidade de vida das pessoas, através do trabalho associado, cooperado, através do processo de construção conjunta, ali, valorizando a cultura local, valorizando tudo que aquela comunidade tem, e a partir daí a gente ir construindo laços maiores, para quem sabe um dia a gente chegar nesse país, não sei se a gente vai dar conta, né, mas é dizer assim, que o Brasil vai ser, vai ter uma economia solidária, né. Então nada, como um todo no país, eu não sei se vai ser como um todo, acho que vai ser muito difícil e também acho que não é todo mundo que quer, sabe? Mudar de vida é difícil, mudar de vida, fazer as coisas diferentes de tudo aquilo que a gente já fez por muitos anos da vida, não é simples, mas as pessoas que querem, dão conta. Então eu acredito que a gente vai espalhar a economia solidária nesse país, de uma forma que a gente consiga garantir, e as pessoas mais empobrecidas, mais vulneráveis, consigam encontrar saída para sua vida a partir do local onde elas estão, com o trabalho associado, com o trabalho cooperado, valorizando o que tem dentro de cada comunidade, e com isso trazendo bem viver, melhorando um pouquinho a qualidade de vida para si e para os filhos. Então para mim a economia solidária é isso! Alguns dizem que eu sou muito utópica, né, que eu sou sonhadora, gente, utopia é sonho que pode ser realizado, né. Então eu sonho assim, não tenho preguiça de sonhar não! Mas eu sonho que um dia, quem sabe, em um futuro bem distante, a gente consiga ter também um Ministério discutindo a economia solidária como um todo, né. Estou falando bem distante, mas não é tão distante assim, é só um pouquinho mais, porque atrapalharam o processo. Então eu acho que a gente tem que reconstruir alguns caminhos aí para chegar nisso, mas para poder ter um papel importante dentro do espaço do Governo e poder dizer também, “Isso aqui também tá trazendo renda para o país, esse trabalho aqui também faz parte do PIB!”. Né? Não é só as grandes empresas, as grandes indústrias, os grandes agropecuários que trazem recursos para o PIB Nacional, o trabalho associado também gera. É isso, um pouquinho.
P/1 – Tiana, você comentou um pouco dessa trajetória, né, um pouco não, muitas coisas da sua trajetória e eu fiquei curiosa com o sentimento que você sentiu e o que te motivou desde aquela primeira manifestação com os Sem Terra, quando você trabalhava e participava da pastoral. O que motivou você a entrar, a se engajar na luta?
R – Primeiro pela minha origem, né. Eu venho da origem de sem terras também, meus pais nunca tiveram terras, eles são pessoas que estavam lá, trabalhando na terra dos outros. E isso foi uma coisa que eu fui aprendendo, né, com os estudos, de que as pessoas não tem terra, não é porque elas não querem, é porque elas são impedidas de ter, acho que isso é um fato! Enquanto alguns tem milhões de hectares, o outro não tem nada, não tem nada! E o processo da luta pela terra, para mim, ele vem dentro do bojo da luta pela justiça, e que o povo de Deus, lá no passado também, no antigo testamento, também lutou por um espaço de terra, lutou por terra também, para ter um canto, para poder ter aonde estar, né. E esse é um processo que eu considero o processo de luta pela justiça, pela garantia de um espaço onde, a pessoa morar, seja luta pela moradia, ou seja de morar e produzir, na questão da Luta pelo campo, né. Então para mim a motivação principal, é a própria fé e a ação do Próprio Jesus, acho que do povo de Deus lá no antigo testamento, depois de Jesus no novo testamento, também lutando contra todas as injustiças e estando ao lado daqueles mais injustiçados e empobrecidos, né. Então para mim, esse privilégio de poder estar alguns anos aí atuando na luta pela terra, através da Pastoral da Terra, foi assim, nossa, gratificante poder ter contribuído para que algumas famílias, hoje, estejam assentadas, então lá com seus filhos criados, com o seu espaço bacana. E tem muita gente nesse Estado, que está hoje tendo condição de plantar, colher e viver com dignidade num pedaço de terra, graças a todo esse processo de luta pela terra, que iniciou lá em 2004.
P/1 – E como é seu dia a dia hoje?
R – Menina, meu dia a dia está bem corridinho ultimamente, sabe assim, sobretudo no pós pandemia, né. Antes da pandemia, eu tinha um tipo de vida, hoje no pós pandemia, eu estou com outro tipo de vida. Antes da pandemia eu saía todos os dias, eu ia lá para o espaço da Central de Comercialização todos os dias, eu estava sempre por lá, com uma coisa ou outra, uma atividade ou outra, enfim, eu estava ali no dia a dia do funcionamento do espaço. Durante a pandemia nós fomos obrigados a mudar todo um sistema de vida, né. Passei a ficar dentro de casa, e nós tivemos uma escala com as pessoas mais jovens para manter o funcionamento do espaço, os mais idosos, nos recolhemos, né, para poder ficar inicialmente protegido, até que pudéssemos ter a vacina, Graças a Deus! Eu trouxe muita coisa do escritório, lá do fórum para minha casa, e aprendi que dá para trabalhar de casa, que acho que essa pandemia nos ensinou, né. Antes eu achava que eu tinha que sair daqui da minha casa, e ir lá para o escritório para poder fazer as coisas pelos movimentos, né, pelo Fórum, ou seja, pela associação. A pandemia me ensinou que eu não preciso me deslocar até lá, no escritório, eu posso fazer a partir daqui, né. Eu transformei, só para você ter uma ideia, eu transformei o meu quarto em um espaço de trabalho também, então eu tenho o quarto, que eu tenho as mesas de escritório, tenho as coisas para trabalhar, e a hora que eu canso, a cama está ali do outro lado, né. Então eu acabei ficando muito em casa durante o processo da pandemia, ajudei a executar alguns projetos pela minha associação, na linha de compra, com os produtores rurais, para entregar para as famílias necessitadas, durante o processo, onde muita gente estava passando necessidade, né, e os produtores sem conseguir vender. Então aí, contribui nesse processo, coordenando um processo de entrega, por exemplo, de quatro… com o apoio da fundação Banco do Brasil, nós conseguimos fazer um processo de entrega de 4 mil cestas aqui, e eu coordenei esse processo todo daqui, de dentro da minha casa. Então por isso que eu falo que a pandemia me ensinou que eu posso trabalhar daqui, né. Cadastrar as famílias, acompanhar a entrega, enfim, fazer tudo, tudo daqui. Fui obrigada a aprender a usar muito mais a internet, as coisas de rede social que eu não sabia, isso foi a pandemia que me obrigou a fazer. A minha filha é formada na área de Tecnologia da Informação, e eu tinha uma resistência de aprender algumas coisas com elas, porque eu dizia: “Ah, eu não vou precisar disso, você faz para mim!”. Então no fim chegou um momento que não deu mais, “Eu tenho que aprender”. Ela tem a vida dela, e eu tenho a minha, se eu quiser dar continuidade nas coisas. Então hoje a minha vida está bem diferente, eu tenho ficado muito mais da minha casa, eu trabalho muito mais a partir daqui, da minha casa mesmo, eu vou no espaço de comercialização uma vez por semana, duas vezes por mês para as reuniões de formação, acompanho o dia a dia da loja através das redes sociais, que a gente tem um grupo de lá, tem grupo de WhatsApp, tem grupo disso, grupo daquilo, enfim, vou acompanhando, quando precisa as pessoas entram em contato e a gente saí então, para resolver alguma coisa ou outra. E eu acabei fazendo uma coisa, que eu achava que eu não iria fazer, que era virar avó cuidadora de netos, sabe assim? Eu nunca me imaginava sendo a vozinha cuidando dos netos dentro de casa, porque eu sou uma pessoa que eu saio muito, eu sou muito de estar com as pessoas, né, eu sou muito elétrica, muito de estar na atividade diária, aquela coisa. A monotonia da casa, o cuidado da casa, do cuidado com as crianças, é uma coisa que para mim foi novidade, e que a própria pandemia também me levou a isso, porque aí ficou um período sem ter creche, sem ter escola, aquela coisa toda, mas aí a filha não tinha com quem deixar as meninas, “O que vai fazer?”. “Então tá bom, vem para a avó, né!”. E aí assim foi, com as netas, primeiro. Depois o filho que estava morando em Goiás acabou vindo para cá com mais dois e aí também… agora não estão na idade de creche, da escola, aí tem período que é complicado, que não tem onde deixar, “Ai, tá bom, como a avó está trabalhando em casa”. E na cabeça de alguns deles, tem hora que até passa assim, “Não, a avó não tá tão ocupada, então dá para deixar com a avó”. E aí foi vindo. Então eu estou agora, avó cuidadora de três netos pequenos, um de cinco, um de seis e um de sete, que ficam comigo no período da manhã e que aí eu me divido entre o cuidado da casa e das crianças, preparo o almoço, deixo na escola. E o período da tarde eu deixo para as minhas correrias com as coisas do movimento, que é onde eu consigo, então, me concentrar para sentar em um computador, trabalhar, para ligar para as pessoas e conversar com mais calma, né. Porque quando as crianças estão por perto, nessa idade, quem tem filhos sabe bem que é uma correria, eles gritam, brincam, e vai e volta, né. Então isso é a minha vida atual. E teve uma outra coisa, que eu falo que estou bem corrida, porque no primeiro ano da pandemia… é, eu falei da minha formação escolar até o nível médio, né? E eu não tive condição de estudar na minha juventude, porque a gente não tinha dinheiro, o que eu trabalhava era para ajudar na casa, na criação dos outros irmãos menores, que os outros três são menores que eu, depois fui crescendo, veio o casamento, veio filho e eu não nunca parei para fazer uma faculdade, né, até achava que eu não ia fazer mais. Como a vida me levou sempre a trabalhar com números e com o dinheiro dos outros, que eu já citei isso umas três vezes, eu acabei achando que eu precisava aprender mais na linha de Ciências Contábeis, porque eu já tive que fazer muito serviço para contador só assinar e eles ganharem, porque eu não sou formada. Então eu acabei aprendendo na prática a fazer uma parte do serviço que os contadores fazem, e eu não posso assinar nada, porque eu não sou formada. Então no primeiro ano de pandemia, eu conversando aqui com a minha filha, e ela falou de faculdade, que o marido dela estava fazendo, e que não sabia se ia continuar ou ia parar, aí eu falei: “Não, não tem que parar nada não, né, continua. Até eu estou pensando aqui, se esse tal desse coronavírus não me levar, eu vou fazer a faculdade de ciências contábeis, nem que seja para eu nunca exercer a profissão, mas só para eu poder ter o conhecimento necessário para discutir de igual para igual com o contador quando eu precisar, porque eu já passei muita raiva com contador também, sabe? A minha filha por ser muito ágil né, estava com o computador ligado, então na hora ela disse: “Ué, mas porque a senhora vai esperar para ver se o vírus não vai levar? Vamos embora começar esse trem, que aí ele vai ficar com preguiça de lavar a senhora, né?”. Aí na brincadeira aqui, ela acabou descobrindo uma possibilidade de uma bolsa de estudo, já descobriu o jeito de eu fazer o processo seletivo lá, online, que estava tudo acontecendo online na época, descobriu que a faculdade tinha um polo aqui, a dois quarteirões da minha casa. E assim eu ousei começar, aos meus 62 anos, na época né, agora já são 64, 64 anos de idade e eu ousei fazer a faculdade de Licenciatura em Ciências Contábeis. Estou fazendo, era para ser semipresencial, mas depois não deu certo, a minha turma, desistiram a metade e acabou virando 100% online, apesar do polo ser a duas quadras de casa, eu não tive privilégio de encontrar os colegas para poder estudar junto. Então eu estou estudando na plataforma, de forma online, estou cursando o quinto semestre, já aprendi bastante, tenho muito o que aprender ainda, não sei se eu vou usar, se a vida vai me dar o privilégio de fazer alguns serviços como contadora, mas só o aprendizado está valendo a pena. Porque aí eu não fiquei com medo do Coronavírus, não fiquei pensando em doença, não fico pensando em dor e vou tocando a vida, né. Então acho que ocupar a mente é a melhor coisa para gente poder dar continuidade na energia positiva, que traz a saúde inclusive. Então a minha vida está corrida por isso menina, tem faculdade, tem neto para cuidar, tem um movimento para eu poder articular, tem a loja, tem o Fórum, tá bem corridinho, mas a gente vai dando conta, porque Deus não dá a carga maior do que a gente pode carregar, e também eu acredito muito que ninguém faz nada sozinho, então cada espaço desse que eu estou, a gente sempre tem um grupo de companheiros que atua juntos, e a hora que um não pode, o outro está lá e segura as pontas. Essa é a vantagem também do trabalho coletivo, como você já perguntou mais cedo, né, se fosse só um trabalho remunerado, se eu não puder ir, eu estou faltando, o patrão me desconta o dia. No trabalho associado não, se eu não posso, tem um colega para estar lá, sabendo fazer tão bem quanto eu, ou até melhor. Tá bom?!
P/1 – E o que a maternidade representou na sua vida?
R – Cara, agora você foi fundo e lá atrás, meu Deus! A maternidade ela foi… para mim ela foi um dos grandes desafios que eu tive que enfrentar na minha vida, porque até eu conhecer o meu esposo, eu achava que eu não seria mãe, que eu não queria ter filhos. Porque eu via o exemplo de várias amigas que tinham filhos e que tinham uma série de problemas e que não sei o quê, a educação toma um tempo danado, nem sempre é fácil de lidar, então eu me sentia incapaz de saber educar uma criança. E aí eu tinha tomado uma decisão na minha vida, de que eu não queria ter filhos, até conhecer o meu esposo. Quando casamos o sonho dele passou a ser ter um filho, e aí foi o primeiro desafio que eu tive que vencer foi esse, foi de aceitar ser mãe. Em num primeiro momento muito mais por ele do que por mim, porque eu o peguei com os olhos cheios de lágrimas em um dia dos pais, e perguntei por que ele estava assim, ligasse para o pai dele falasse com ele, e aí ele disse: “Não, não é por isso. Com o meu pai eu vou falar mais tarde, porque agora eu sei que ele está em outro lugar. Eu estou pensando se um dia eu vou ter o privilégio de ter um filho me dando parabéns pelo dia dos pais”. Aí eu vi que ele falava sério mesmo, sabe? Então eu fui obrigada a parar, entender e voltar atrás na minha decisão, de uma forma conjunta, ali, levando em conta também a vontade dele. Aí foi dois anos ainda para vir essa gravidez, depois veio a gravidez de risco, essas coisas todas. Mas no fim, foi a melhor coisa que a vida podia ter me dado. Acho que o fato de ter sido mãe, de hoje ter o privilégio de ter os netos, é uma experiência única, que se eu não tivesse tido coragem lá atrás em ser mãe, eu teria perdido tanta coisa boa, tanta coisa gostosa! Quando hoje as crianças chegam correndo e vem me abraçar e, “Vovó, eu estou com saudades! Vovó eu te amo!”. E ficam fazendo coraçãozinho de longe quando estão saindo. Eu falo assim, acho que essa força da continuidade da vida, que vem através de um filho e que aí você ganha energia e força para poder lutar muito mais do que você já lutava quando era sozinha, porque agora não é por você, agora é pelo filho, pela filha. E aí vai passando o tempo, vem os netos, você fala: Puxa, agora eu tenho que continuar, porque ainda tem os netos, né”. Então a gente vai continuando a ter energia, e ter cada vez mais garra para poder lutar por um bem viver, por uma vida melhor, por conta desses pequerruchos que chegam na vida da gente. Então para mim a maternidade foi um presente de Deus que eu agradeço demais!
P/1 – E quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R – Se você me perguntar nessa sequência de falas, eu vou te falar que as coisas mais importantes para mim hoje, são meus filhos e os meus netos. Eu acho que não tem nada mais importante do que eles, eu seria capaz de parar qualquer outra coisa para poder estar e atendê-los, ou seja os filhos, ou seja os netos. Agora se eu me distancio um pouquinho dessa fala da importância da maternidade e paro para pensar na vida como um todo, dizer o que hoje para mim, é mais importante tanto quanto os filhos, os netos, ou até mais do que isso, até mais do que eles, é a vida, é a possibilidade de estar viva, de ter saúde, de ver os meus filhos, os meus netos, os meus amigos, vivos, né, de termos sido capazes de ter sobrevivido a essa pandemia e a esse pandemônio que nós vivemos nos últimos anos nesse país. Então estar viva e com saúde, eu acho que não tem nada que seja mais importante do que isso, porque aí depois, abaixo disso vem os filhos né, enfim. Mas a vida, a vida que é o dom maior que Deus nos dá, e que nos propicia a possibilidade de acordar todos os dias e começar de novo.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos hoje?
R – Meus maiores sonhos são ver os filhos bem, bem sucedidos na vida. Tem uma que já está um pouco mais encaminhada, o outro precisa um pouco. Sonho de vê-los estabilizados, fazendo a vida deles. Ver os netos também, crescendo tendo os estudos necessários para poder ter uma vida bacana e de preferência que eles possam estar construindo a geração do trabalho e renda a partir do movimento da economia solidária. Isso para mim é um sonho também, de ver todos os netos, os filhos e os netos, todos envolvidos dentro do movimento, construindo a partir do trabalho associado e cooperado.
P/1 – Tiana, a gente já está chegando ao fim, eu tenho mais três perguntas. A primeira delas é, qual legado você deixa para o futuro?
R – Nossa, eu acho que se eu parar para pensar na minha vida como um todo, eu vou dizer que eu deixo a persistência, essa é uma das coisas que eu deixo, como exemplo aí para quem convive comigo, e quem virá posteriormente, né, eu acho que a persistência, a coragem de recomeçar sempre, o fato de não ter medo do desconhecido, de estar aberta ao aprendizado. Isso para mim são coisas que eu acho que eu tenho conseguido deixar para as pessoas com quem eu convivo, com quem eu… quem me conhece melhor, eu acho que é capaz de confirmar isso que eu estou dizendo. Acho que mais do que isso, eu deixo o exemplo de poder acreditar que a gente pode fazer o amanhã melhor, desde que não seja sozinho, mas que eu esteja construindo junto com os outros e as outras pessoas como todo. A construção conjunta é que vai nos ajudar a fazer o diferente.
P/1 – Tem algo que você não contou, ou que eu não perguntei? Ou alguma história que você queira falar mais, alguma mensagem que você queira deixar?
R – Eu diria que só assim, de uma maneira mais geral, né, as pessoas que tiverem oportunidade de me ouvir posteriormente, que a gente não nunca perca a fé, que a gente não perca a esperança e que a gente não tenha medo de enfrentar os desafios, porque eles existem para nos ajudar a sermos mais fortes! É só enfrentando os desafios com fé com esperança, é que a gente vai conseguir, dando passos de qualidade, construindo o diferente. Se eu tivesse parado para chorar a morte da filha, não teria vindo o terceiro, se eu tivesse parado para chorar a morte do marido, eu não estaria fazendo um terço do que eu faço hoje, né. Eu chorei sim, e chorei muito! Ainda dói quando lembro, mas eu costumo dizer que o que ficou, tanto dele, quanto da minha filha, é uma saudade imensa! É uma saudade imensa, que essa não vai passar nunca, porque a saudade é o amor que fica, e esse amor, ele é eterno. Então, que nas horas difíceis, nas horas de perda, que a gente perde entes queridos, que a gente não desanime, sobretudo nesse momento pós pandemia, quanta gente, né, teve infelizmente a vida ceifada por esse vírus, pela falta política, pela falta de cuidado, quantas famílias estão aí, né, sem os seus entes querido, quantos filhos sem pais, quantos pais sem filhos, quanta gente chorando a morte dos seus entes queridos. Então eu queria só deixar isso, né, de dizer assim: “Não tenham vergonha de sentir saudade, não tenham medo de chorar quando dá vontade, porque isso também ajuda a gente se fortalecer para dar continuidade. E assim, a saudade é isso, é o amor que fica! Quando a gente ama de verdade, o amor é eterno. Então ele não vai acabar nunca, a saudade não vai acabar nunca!”. Não adianta eu dizer para uma mãe, ou para um filho que acabou de perder alguém, agora, durante esse processo do coronavírus, dizer: “Não, calma, vai passar!”. Não vai passar, é mentira, não vai passar, a saudade vai ficar o vazio, o espaço que essa pessoa ocupava na vida de cada um dos seus entes queridos, não vai passar, ele vai continuar ali, a gente aprende a lidar, e aprende a lidar com a saudade com essa certeza, de que o amor é eterno, então a saudade vai ser eterna, até o dia que a gente se reencontrar e poder matar essa saudade imensa que vai tá dentro de cada um e cada uma, seja de cá ou de lá, do outro lado da vida.
P/1 – Como foi contar a sua história hoje no Museu da Pessoa?
R – Menina, eu sei que é complicado a gente falar da gente mesmo, né. Faz a gente refletir, rememorar momentos bons, momentos tristes, tem que segurar um pouco a emoção, tem hora, né. Às vezes quando o choro vem até na garganta, porque a gente a gente lembra alguns momentos tristes, e essa saudade ainda dói, mas eu acho que o pouco que a gente consegue lembrar e trazer presente, foi bacana! Para mim foi surpresa, eu sabia quando eu fui convidada que eu iria falar do meu relacionamento com o professor Paul Singer, para poder manter a memória dele viva, é. E quando eu recebi esse convite, então eu falei: “Puxa, eu não posso deixar de deixar a minha contribuição”. O Singer tem que ficar na memória do povo brasileiro para sempre, né, tem que ser uma memória viva e tem que estar aí no dia a dia, para a gente poder continuar se espelhando no saber e no todo que o Singer representou e representa para todos nós do movimento de economia solidária nesse país, enfim, nesse planeta, né, porque ele perpassa o país, Ao saber que era para falar um pouco de mim, eu me senti assim, preocupada, porque eu não sabia muito bem o que vale a pena deixar registrado da minha história para os outros. No primeiro momento foi de preocupação, de tensão, depois eu parei e fiquei pensando, “Bom, eu já fiz tanta besteira, mas também já fiz tanta coisa boa! Eu acho que talvez alguma coisa que eu possa dizer, ali no dia, contando da minha história, porque é mais fácil a gente contar a história dos outros, a história da gente não é fácil. Por isso que a maioria das histórias são depois que a pessoa morre, que alguém levanta a história dela. Mas eu vim fazer isso hoje com tranquilidade, Bruna, depois que eu conversei com você e falei com o Marcelo. Tranquilidade por que? Porque eu acho que assim, a minha vida não tem muita coisa de diferente da maioria do povo desse país não, eu não sou diferente de ninguém, né, eu só sou uma pessoa que acredito naquilo que eu tento construir e que luto todos os dias para poder ser melhor. Então se isso servir de exemplo para alguém e também acreditar que pode ser para melhorar a cada dia, já valeu a pena.
[Fim da Entrevista]
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