Museu da Pessoa

Hugueta: regente da sua história

autoria: Museu da Pessoa personagem: Hugueta Sendacz

Entrevista de Hugueta Sendcz
Entrevistada por Karen Worcman
São Paulo, 07 de novembro de 2018
Entrevista número PCSH_HV707
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira

P/1 - A gente vai parar um pouquinho para começar esta entrevista. Pedir para a senhora fechar o olho um pouquinho, respirar um pouquinho e fazer uma longa viagem: ver qual seria a primeira imagem da sua vida que vem à sua memória.

R - A primeira imagem que vem à memória acho que, em grande parte, não sei se ela é bem uma imagem de verdade ou se olhar as fotos faz com que eu me lembre. Eu devia ter, no máximo, uns três anos de idade e eu me vejo chegando aqui.... Não, já estava aqui no Brasil, porque eu cheguei com menos de dois anos de idade. Eu me vejo correndo em um quintal muito grande, onde meus pais tinham alugado um quarto para morar quando eles chegaram ao Brasil. Porque, como todos os imigrantes daquela época, com certeza, meu pai contava que ele desceu do navio com mulher e um bebê praticamente - eu - e ele tinha oito dólares no bolso. Eles desceram do navio em Santos, e ali onde o navio ancorava, logo em frente, tinha uma estação de trem, que hoje em dia foi transformada em um centro cultural, mas ela existe ainda. Ali eram os cais em que paravam os navios de passageiros. Naturalmente, pegaram o trem para São Paulo e vieram parar na Estação da Luz. Tanto que acabaram morando no Bom Retiro, de onde eles nunca saíram. E eu até hoje continuo no Bom Retiro. E eu me lembro dessa casa. E eles contaram - porque isso eu não me lembro - que eles primeiro ficaram em uma pensão na rua Três Rios. Isso foi em março de 1929, eles chegaram ao Brasil em pleno carnaval. Uma coisa curiosa, eu não tenho muita lembrança disso, e sim do meu pai contar que foi o ano em que teve aquela tempestade de março. Naquele tempo, o Tietê extravasava e inundou a rua, a Três Rios ficou inundada, alagada e meu pai contava que o carnaval foi adiado, não teve carnaval por causa da enchente e, naturalmente, eles ficaram nessa pensão. E eu lembro, também, deles contarem que havia uns caixotes com as coisas, meu pai era boneteiro, trouxe máquinas e eles perderam tudo com as chuvas. Mas o que eu me lembro já é dessa casa, que depois eles foram procurar um lugar para morar, meu pai arrumou logo um emprego para trabalhar, e era uma casa na rua Inhana.

P/1 - Qual é a imagem? Você está aonde?

R - A imagem é que era um corredor comprido, na frente tinha uma sala grande, onde morava a dona da casa. Era uma senhora velhinha, italiana e ela alugava quartos, cada quarto para uma família. E não alugava com criança, eram só casais que moravam lá, porque o banheiro era no fundo do corredor para todo mundo. E quando minha mãe foi com uma senhora que já morava aqui há alguns meses, que ajudou a procurar, minha mãe não sabia falar Português e ela perguntou se tinha ‘bambini’. E minha mãe fez assim... Não sabia o que era. Meus pais mudaram para lá e claro que, logo de manhã, a dona Hugueta estava correndo pelo corredor, eu era sapeca. Então, eu tenho uma vaga lembrança disso. Eu tenho uma lembrança maior da avó Rosalina, porque ela acabou adotando a minha mãe e eu, era a dona, e tem a fotografia dela, com todo mundo, cabelinho branco, de umas pastinhas assim, ela morava há cinquenta anos no Brasil, não falava nem uma palavra em Português. Tanto que ela nos ensinou - à minha mãe e a mim - a primeira língua que eu aprendi aqui foi o Italiano.

P/1 - Então ela era Italiana?

R - Ela era Italiana, ela ficou minha ‘nona’ - ‘nona’ Rosalina.

P/1 - E ela te adotou?

R - É, porque ela ficou com pena. Minha mãe era muito nova, casou-se com dezessete anos, ela tinha dezenove, vinte anos e comigo já. E a minha mãe, na Polônia, morava em um apartamento, tinha gás encanado, tinha tudo, e aqui não tinha, era só o quarto. E a minha mãe contava que... Eu tenho uma vaga lembrança disso... Que havia latas de banha, grandes, com carvão, no quintal; e ali fazia fogo em cima do carvão. Minha mãe não sabia nada disso, e a avó Rosalina ensinou à minha mãe. Claro que ficaram lá não muito tempo. Agora, uma lembrança maior eu já tenho de uma outra casa, quando já puderam alugar uma casa, já estavam começando a se estabelecer, então essa lembrança me vem sempre à memória, dessa casa, era na rua Correia de Melo e não era propriamente uma vila, eram três casas. E o que eu lembro bem é que quando os meus pais saíam, eles não trancavam a porta, eles encostavam a porta, porque era uma ofensa para os vizinhos trancar a porta. Vocês podem imaginar uma coisa dessas? Era assim. E eu me lembro muito bem dessa casa por causa de um fato: quando eu fiz cinco anos de idade, iam comemorar meu aniversário, e meus pais convidaram uns amigos. E eu não pude participar da festa porque amanheci com sarampo. Então, vivia em baixo, puseram luz vermelha. Naquele tempo, para curar, tinha que ter luz vermelha, porque tinha que ser escuro, ajudava a puxar o sarampo para fora. Isso eu nunca me esqueci, de como eu chorava que eu queria ir à festa e não podia ir. São as primeiras lembranças que vêm à memória da gente. Claro que depois tenho lembranças quando eu era um pouco mais velha, tinha meus sete, oito anos. Nessa época, meus pais já tinham uma pequena oficina, sozinhos, minha mãe também ajudava a trabalhar e tenho muita lembrança de Santos, que minha mãe passava janeiro e fevereiro inteiros em uma pensão chamada ‘Pensão Britman’, no Gonzaga, em Santos - ainda tinha até grama na areia. Era muito bom, tenho fotos dessa época e também da rua em que a gente morava, chamava-se rua Itaboca, que agora se chama Professor Lombroso, que é paralela à José Paulino. Ali já era uma casa grande, que chamavam de porta e janela, porque o janelão de uma das salas dava direto para a rua, se quisesse podia entrar pela janela também, era baixinho e estava sempre aberto. E tinha um porão grande, onde ficavam meus brinquedos e toda a criançada da rua, a gente brincava ali embaixo, com o quintal grande embaixo. Eu me lembro da rua, a gente brincava muito. E outra lembrança também, da minha infância, que é muito gratificante, é que... Também eu já devia ter os meus seis, sete anos, porque eu já estava no primeiro, segundo ano primário. Eu estudei, primeiro, em uma escola que se chamava Instituto Manzoni, na José Paulino, porque meus pais já tinham uma loja na José Paulino e a gente morava nos fundos. Todas as lojas, nos fundos, havia um quintal e uma casa. E a gente morava ali. Então, eu fiz o primeiro e o segundo anos nesse Instituto Manzoni, que era duas lojas depois da loja dos meus pais. E depois eu já fui para o Colégio Stanford, que era ali onde é o Museu da Eletricidade, em frente ao SESC Bom Retiro; eu fiquei lá até terminar o ginásio. Mas, voltando um pouquinho à infância, as crianças iam meio período para a escola e o outro meio período a gente ia brincar no Jardim da Luz.

P/1 - Sozinhos?

R - Sozinhos. Passava bonde na José Paulino. Para ir para o Jardim da Luz tinha que atravessar a José Paulino, então meu pai ou um outro pai de mais crianças atravessava as ruas, era a única coisa que os pais tinham que fazer, e na volta alguém do outro lado atravessava as crianças, mas o resto, a gente ia sozinho para o Jardim da Luz, passear. A gente brincava de esconde e esconde, eu era a campeã de bolinha de gude, coisas assim. E eu me lembro de que tinha um bicho-preguiça naquela parte onde tem umas árvores enormes, logo na entrada de quem vai pela Ribeiro de Lima, e a gente ficava horas vendo qual era o movimento que ele ia fazer, se primeiro com a pata direita, ou com a esquerda, mas fora isso, o que foi maravilhoso para mim, e eu até lembro do dia - todas as quintas-feiras - de tarde vinha uma espécie de perua, não era Kombi porque naquele tempo não existia Kombi, mas não sei o que era, tinha um caramanchão grande, em uma das partes do jardim, e essa perua chegava lá com livros de histórias, todos livros de histórias, e a gente podia pegar esses livros e levar para casa, na semana seguinte a gente trocava - histórias de fadas, histórias de... Enfim, foi de lá que começou a minha paixão pela leitura, porque era uma coisa tão fantástica, a gente esperava ansiosamente poder trocar o livro na outra semana, a gente pedia: “Posso levar dois?” “Não, não pode, é um só cada um”.

P/1 - Mas o que era isso, era uma coisa da cidade, da Prefeitura?

R - Era da Prefeitura, deve ter sido da Secretaria de Educação, mas, naquele tempo, a gente não diferenciava muito as coisas, sabia que era do Governo.

P/1 - E eles emprestavam o livro?

R - Eles emprestavam o livro. No começo, a gente tinha que ler lá, mas depois eles deixavam a gente levar para casa. Então, todas essas crianças... Era um privilégio ter isso, porque não existiam muitas bibliotecas públicas naquele tempo. Hoje em dia tem biblioteca em quase todos os bairros - quase todos não, estou exagerando um pouco... Então, na verdade, essas são as minhas primeiras lembranças de infância.

P/1 - E quais são as histórias que lhe marcaram, desse momento, dessa história dos livros? Tem alguma que ficou na sua cabeça?

R - Todas eram do Patinho Feio, que virava cisne no final; de fadas, também; da Branca de Neve... Todas essas histórias que eu acho que até hoje as crianças se encantam. Hoje em dia, eu vejo que muita criança pequena se encanta mais com o computador, são outras coisas. Mas, naquele tempo, era tão bom, tão puro. E eu me lembro muito que a gente ouvia muito rádio, meus pais, eu me lembro de um rádio... Eu vou voltando um pouquinho, tenho muita lembrança da infância. A minha mãe tinha um irmão, meu tio

(Fichel) [00:14:31], ele tinha mania de inventar coisas, e ele inventou um rádio. O que era o rádio? Eu nunca me esqueço: era um suporte de madeira com uma porção de fios enrolados e dava estática, dizia que aquilo era rádio. Depois, os meus pais, quando já puderam, compraram um rádio Telefunken, que era assim daquele oval, não sei se vocês já viram um rádio daqueles, mas ele pegava ondas curtas, tanto que na época em que... Depois, quando começou a Segunda Guerra Mundial, foi uma época que marcou muito a gente, porque meus pais tinham a família toda na Europa, na Polônia, e, no começo, a gente se preocupava muito. Eu tinha treze anos quando a Segunda Guerra estourou, então eu já participava muito de casa, meus pais sempre foram muito politizados, meu pai aprendeu Português assinando o Estadão. Logo que ele chegou, o primeiro dinheiro que ele teve, ele fez assinatura de jornal, leu Estadão a vida inteira. E a gente começou a acompanhar as coisas e a nos preocupar muito com o que estava acontecendo, porque durante algum tempo ainda vinha carta, minha mãe era uma grande escritora de cartas, ela se correspondia com a família inteira, ela escrevia muitas cartas e recebia respostas e, de repente, começaram a faltar as cartas...

P/1 - Você lembra desse momento? Quais eram as discussões? O que eles achavam que tinha acontecido?
R - Eu lembro muita coisa. Por exemplo, dois irmãos mais velhos da minha mãe não passaram a guerra na Polônia, porque o mais velho de todos, meu tio Moeche, era secretário de um sindicato não sei de que trabalhadores e ele era acionista, esse meu tio. E em 1934 ele mandou o meu segundo tio, que era logo depois dele... Porque a minha mãe era a caçula de oito filhos. O segundo irmão, que se chamava Jonathan, migrou para a Palestina com mulher e cinco filhos. E, naquele tempo, na Palestina, o único trabalho que ele conseguiu foi o de drenar os pântanos onde hoje é Tel Aviv. Então, ele não durou mais do que dois anos, ele pegou uma febre de pântano e morreu. Mas ficaram a mulher e os filhos, o filho dele mais velho já tinha dezesseis, dezessete anos, o meu primo. E esse outro tio mais velho foi, em 1936, para a Palestina com três filhos.

P/1 - Então eles não viram a guerra?

R - Não pegaram a guerra lá, mas viram todas as coisas, eles ajudaram a construir a Palestina, que hoje é Israel. Mas os outros irmãos e irmãs da minha mãe, que ficou órfã quando tinha seis anos de idade - minha avó, a mãe dela, morreu com trinta e seis anos de idade, casou-se aos treze anos de idade, imagina, oito filhos - e quem acabou de criar minha mãe foram as irmãs mais velhas. Ninguém sobreviveu. E, da parte do meu pai, ele já tinha uma irmã que era mais velha do que ele, aqui no Brasil, e ele conseguiu trazer a irmã caçula para cá. E os outros todos morreram na guerra. E a gente não sabe direito em qual campo de concentração. Os meus primos de Israel foram muitas vezes para pesquisar na Polônia e não descobriram nada. E nós também estivemos no cemitério de (Lodes)

[00:19:18] e não quiseram nos atender, lembra? Bateu a porta na minha cara. Eu disse: “Eu quero saber se tem meu avô aqui, quero visitar o túmulo”. Então a gente não sabe, mas provavelmente foram levados para campo de concentração ou morreram de inanição, a gente não sabe.

P/1 - Mas quando seus pais estavam aqui, falavam que recebiam cartas?

R - Enquanto eles recebiam cartas, eles estavam vivos ainda, mas não tinham muita consciência do que estava acontecendo. Logo quando começou a ficar muito ruim, não vieram mais cartas, pararam.

P/1 - E qual era a conversa sobre isso na sua casa?

R - Era muito preocupante, meus pais preocupados. E da morte do meu avô - do pai da minha mãe - chegou a notícia. Eu lembro que minha mãe chorava muito, então ele morreu antes, o meu avô não morreu em campo de concentração. Esse - o pai do meu pai - faleceu quando o meu pai era menino, ele era arrimo de família, mas a minha avó, parte do meu pai, também não sabemos nada.

P/1 - O que você sabe dessa família? Por que os seus pais vieram para o Brasil? Vamos voltar um pouquinho para a Polônia?

R - Por que os meus pais vieram para o Brasil tem dois motivos: um era a crise de 1929, que foi mundial. E um dos grandes motivos, antissemitismo terrível na Polônia. Naquela época, tinha muito antissemitismo, não podia frequentar uma universidade, tinha ‘numerus clausus’, e quando entrava algum judeu na faculdade era maltratado e espancado pelos colegas poloneses. E, naquele tempo, todo mundo estava migrando para os Estados Unidos, China. Perguntei para o meu pai: “Por que vocês escolheram o Brasil?” Porque, naquele tempo, o governo brasileiro fazia muita propaganda pedindo imigrantes com profissão, porque eles queriam desenvolver a indústria e o comércio na região, que eram muito primitivos. E meus pais resolveram vir para cá porque se dizia que “você chega ao Brasil e o dinheiro cresce em árvores…”.

P/1 - Eles tinham essa imagem.

R - Tinham a imagem de que aqui eles iriam poder. E depois, eles queriam que a filha deles crescesse em um país onde não houvesse esse antissemitismo louco, tanto que eu fui muito privilegiada, sou filha única e tive as melhores escolas, pude fazer o conservatório, fui da primeira turma de balé do Municipal, enfim, eu não teria tido essa chance lá, provavelmente. Eles poderiam ter emigrado para a Palestina, já que os irmãos foram, mas eles não eram sionistas, eles eram muito de esquerda.

P/1 - Então, conte um pouco do que você sabe dessa origem deles, de esquerda…

R - Eu sei que eles frequentavam, na Polônia - porque eles contavam - onde eles se conheceram, que era uma entidade de jovens de esquerda.

P/1 - Como chamava?

R - Não sei, o que eu sei é que quando eles chegaram ao Brasil a primeira coisa que eles procuraram, depois que se estabeleceram e tudo, foi uma entidade que se enquadrasse nas ideias deles. Então, existia na rua Amazonas, aqui no Bom Retiro, uma entidade chamada (Inint) [00:23:45], que quer dizer futuro. Eles eram jovens ainda e tinha muitos jovens nessa entidade, que era cultural, fazia esporte, palestras e outras atividades, então, eles já entraram. E essa entidade transformou-se, mais tarde, no Juvent Club - Clube da Juventude, para quem não sabe. E dessa entidade eu me lembro. Da

(Inint) [00:24:22] eu não me lembro pessoalmente, eu era muito pequena, era bebê. Mas, no Juvent Club, meus pais me levavam; já era de esquerda.

P/1 - E o que se fazia lá?

R - Palestras, um Coral - em 1935 foi fundado o Coral Scheifer, durou até 1970, na época da ‘gloriosa’; um grupo de teatro amador, que fazia peças em Ides; principalmente a parte cultural e social; também faziam bailes, festas, piqueniques - desses eu participava porque eu era maiorzinha, tinha cinco, seis anos de idade, meus pais me levavam, nunca tinham com quem deixar. Minha mãe logo entrou no grupo de teatro e também no coro, minha mãe era uma soprano, foi solista do coro a vida inteira, era a primeira dama do teatro, fazia musical, comédia, drama, peças em um ato, era sempre a atriz principal.

P/1 - Como ela se chamava?

R - Pola (Reistein) [00:26:07]. E meu pai... Minha mãe ia muito aos ensaios, eles ensaiavam muito à noite, porque minha mãe trabalhava junto com meu pai na loja, na fábrica, então meu pai ficava comigo, e ele que me colocava para dormir, eu adormecia, ele lia para mim (Inint) [00:26:29]. Por que eu sei tão bem? Conheço um pouco do tempo da minha infância? Meu pai dava plantão na biblioteca - porque já existia biblioteca, ele cuidou muito dessa que a Marina cuida agora - biblioteca de 1935, tem fotos dessa época toda. Então, minhas lembranças dessa época são todas…

P/1 - Vamos voltar nessa história. Eles vieram para o Brasil já pelo antissemitismo?

R - Sim, foi por causa disso.

P/1 - E tinha alguém aqui que eles conheciam? A irmã dele era daqui? Já estava aqui no Brasil?

R - Não, a irmã do meu pai tinha chegado uns meses antes, recente. E esse meu tio que eu falei que inventava coisas, ele tinha também recém chegado. Eles não conheciam ninguém, eles vieram assim com coragem para enfrentar uma vida nova, em um mundo novo. E eles, eu acho que muito corajosos, como quase todos os imigrantes daquela época, sem conhecer a língua, sem saber como eram os costumes. Porque foi um mundo totalmente diferente do que eles estavam acostumados, do que eles criaram, uma vida totalmente diferente, não tinha nada a ver com o lugar onde eles nasceram, dos pais deles, dos avós, bisavós, porque todos eles já eram de várias gerações da Polônia.

P/1 - Mas ele, por exemplo, qual era a profissão do seu pai?

R - Boneteiro, hoje ele ficaria milionário.

P/1 - O que é boneteiro?

R - Bonés.

P/1 - Bonés, chapeleiro de boné, eu não conhecia essa palavra, boneteiro.

R - É, boneteiro, fazia bonés. Então, hoje, ele teria... Nesses últimos anos, toda a meninada, todo mundo usa boné. Naquele tempo não, só no frio ele fazia boné de orelha para proteger do frio.

P/1 - Mas essa profissão veio do pai dele também? Por que ele era boneteiro? O pai dele era?

R - Não sei, ele ficou órfão... Ele tinha quatorze anos quando o pai dele morreu. Ele tinha que trabalhar porque ele tinha quatro irmãs mais velhas e quatro irmãs mais novas, ele era do meio. Ele tinha que trabalhar e aprendeu com alguém uma profissão, eu não sei por quê, eu nunca perguntei para ele.

P/1 - E ele chegou aqui e foi ser boneteiro?

R - Ele arrumou logo um emprego em uma fábrica de bonés que existia aqui, de um judeu. Juntaram um dinheirinho e começou a montar.

P/1 -

O que ele montou?

R - Uma fábrica de bonés. Pequena no começo, e depois mudou para roupa, porque realmente boné, naquela época, não estava na moda.

P/1 - E a sua mãe trabalhava com ele na fábrica?

R - Ajudava ele.

P/1 - E eles chegaram a ter loja, então?

R - Sim.

P/1 - De rua, mesmo?

R - Na José Paulino.

P/1 - Na José Paulino, e com isso eles chegaram…

R - Com essa loja depois eles conseguiram… Bom, a gente comprou a loja que a gente tem na galeria, no centro comercial. Quando eu já era casada, meu marido também era sócio do meu pai, eles incrementaram e a gente teve uma confecção e tinha loja. Foi por aí que começou. Praticamente do nada. Como uma grande parte que eu sei, que eu conheci, se tornaram amigos dele através da entidade, do clube, porque o Juvent Club, depois, quando eu já era jovem, tinha dezessete, dezoito anos, já se tornou Centro Cultura e Progresso. E os velhos, entre aspas - geração de quarenta e poucos anos - acharam que deveriam formar um Departamento da Juventude para ter uma continuidade. E vieram a organizar um Departamento da Juventude e foram convidar os filhos dos diretores, dos sócios. Foi quando eu comecei a minha atividade social, foi como eu conheci o meu futuro marido, ele já era do Centro Cultura e Progresso e foi um dos encarregados de fundar o Departamento da Juventude. Porque ele era mais jovem também e o Centro Cultura e Progresso primeiro foi na José Paulino, em um primeiro andar - como se fosse um apartamento - era muito acanhado, uma sala era a biblioteca, uma era das reuniões e não tinha espaço para crescer. Então eles alugaram um salão na José Paulino, número 52, eu acho, no começo da José Paulino, no segundo andar de um prédio, era um salão muito grande, já tinha até um pequeno palco no fundo. E nesses anos todos, o pessoal que era do grupo de teatro e do Coral antigo já tinha feito muitas realizações. A primeira peça que eles apresentaram - eu não me lembro disso, me lembro mais de ver as fotos e ouvir contar - foi no teatro Luso Brasileiro. Era um teatro, um clube, na rua da Graça, que tinha um salão grande, com palco. Isso foi em 1938, claro que não me levavam ainda para assistir, criança não podia, mas quando já mais tarde... Até as imagens, às vezes, se embaralham, do que é antes e depois, mas, no Centro Cultura e Progresso tinha muitas atividades. Porque, inclusive, além de ter esse grupo de teatro Ides, que fazia peças de alto nível cultural e artístico, já fundamos um Departamento da Juventude e um grupo de teatro que, depois, desse grupo de teatro, quando a gente já fez a Casa do Povo, que foi bem depois, o prédio foi inaugurado em 1953. E é bom eu voltar um pouquinho na história do porquê foi construído esse prédio, porque eu acho que isso é uma história importante. Quando a Segunda Guerra estava terminando, e a gente já sabia da tragédia, não com todos os detalhes, mas com muitos detalhes…

P/1 - Vamos parar aí, só um instantinho. Como foi durante a Segunda Guerra, quando… Você tinha treze, quatorze anos?

R - No começo?

P/1 - É. Terminou tinha uns dezessete, dezoito? Então, como vocês foram sabendo que estava acontecendo a guerra, o próprio antissemitismo, como ele cresceu, você lembra das coisas do cotidiano?

R - Do cotidiano. Em primeiro lugar, meus pais, como eu disse, já contei que tinha um rádio que pegava ondas curtas, então eles escutavam o que dava para pegar. Às vezes pegavam Londres, às vezes outro lugar, o que a imprensa publicava, porque na nossa casa sempre entrou jornal e quando a Guerra já estava bem adiantada, quase no final... Não lembram de Stalingrado, a batalha que eu acho que foi o corte para começarem os alemães a voltar para trás, a perder? O rádio tinha duas vezes por dia; era, acho que às 7h da manhã e às 6h da tarde, tinha o repórter Esso. E todo mundo largava tudo o que estava fazendo - meus pais também - corria no rádio para ouvir a primeira coisa que o Repórter Esso… O nome dele era Domingues, qualquer coisa Domingues, acho que era o nome do locutor. “Stalingrado continua firme”, a gente ouvia essa frase, a gente ficava mais tranquilo. Porque os alemães iam perder a guerra e, nessa altura do campeonato, se sabia pouca coisa dos horrores dos campos de concentração.

P/1 - Vocês não sabiam disso?

R - A gente sabia que tinha, mas não tanto quanto se soube depois. Porque os alemães esconderam muito. Tanto que eles fizeram (Inint) [00:36:52]. Vocês devem ter ouvido falar... Na Tchecoslováquia, eles pegaram uma cidade e um grupo de judeus que estavam confinados lá e pegaram alguns bairros com cafés, orquestras, concertos, restaurantes, tudo, e colocaram essas pessoas muito bem vestidas porque ia ter uma visita. A Cruz Vermelha começou a descobrir as coisas. Ia ter uma visita mundial da Cruz Vermelha central e eles mostraram: “Olha como nós tratamos bem os judeus, isso é amostra, nos outros países nós fazemos a mesma coisa”. Eles escondiam muito, eles sabiam que estavam errados.

P/1 - E o jornal? Nunca veio nenhuma notícia?

R - Só quando terminou a guerra que começaram os processos de Nuremberg, começaram a aparecer filmes e fotos, muitas fotos que os próprios soldados alemães tiravam. Aí é que se soube a enormidade da tragédia que aconteceu, do horror que foi.

P/1 - Você lembra, na sua casa, o que foi ver isso, sentir isso?

R - Foi horrível, um sofrimento atroz, para os meus pais mais do que para mim porque eu não conheci nenhum deles - eu saí de lá bebê. Mas eles eram irmãos, irmãs, sobrinhos, tios, minha mãe tinha uma família enorme, entre tios, primos, tinha quase duzentas pessoas, não sobrou ninguém. Sobraram os de Israel e uns primos que conseguiram fugir para a França. Dois depois foram para Montreal. Na Inglaterra tinha um primo também, e a tia Sônia - uma prima minha que está viva - está aqui, mas ela nasceu na Alemanha. Porque era uma irmã da minha mãe, que morava na Alemanha e que, no começo da Guerra - isso eu me lembro também - quando ia estourar a guerra, uma semana antes, foi em setembro de 1939, uma semana antes do Hitler invadir a Polônia, a Cruz Vermelha conseguiu uma permissão para tirar quinhentas crianças judias da Alemanha, que seriam aceitas por famílias na Irlanda. E a minha tia, mãe da minha prima, conseguiu colocar a Sandra nesse transporte.

P/1 - E ela foi para a Irlanda?

R - Foi para lá, ela tinha quinze anos, foram crianças pequenas também e ela ficou na Irlanda até completar dezessete anos, depois ela foi embora, foi para Londres. Ela trabalhava na Air Force, na escuta dos aviões, ela ouvia os aviões e dava as dicas para a Royal Air Force. E no começo da... Quando ainda era o começo da guerra, a minha tia e ela se correspondiam, porque ela era de Magdeburg, na Alemanha, depois ficou zona oriental. Mas depois, quando

a Alemanha declarou guerra à Inglaterra, acabou a correspondência. Mas ainda tinha correspondência com o Brasil, então minha tia mandava carta para nós, no Brasil, e a gente colocava no envelope, colocava para Londres, para a minha prima, e vice versa. Até que acabou. Essa minha tia morreu em um campo de concentração, porque…

P/1 - Na Alemanha?

R - É a única que a gente sabe, porque essa minha prima foi criada por uma babá que sobreviveu à guerra, que era alemã, e que depois a minha prima foi lá para Magdeburg e ficou sabendo que a minha tia… Mas essa minha prima foi a primeira sobrevivente judia que teve permissão para entrar no Brasil. Porque assim que terminou a guerra... Depois ela parou de se corresponder também, acabou. Quando terminou... É uma história... Não sei se você vai aproveitar tudo isso, ou se você vai naturalmente ver o que se aproveita ou não, mas é uma história também. Porque ela se lembrava de que tinha tios na rua José Paulino - não lembrava o número - e assim que terminou a guerra, ela mandou uma carta, lembrava o nome do meu pai - Ablóm Heinstein - José Paulino, número setecentos e pouco, nós morávamos no 451. Quando a carta chegou, o dono daquela loja onde chegou a carta, lógico, ele rasgou o envelope, porque todo mundo tinha parentes, veio da Europa, quem sabe sobreviveu alguém da família. E quando abriu, ele viu que estava escrito em Inglês e disse: “Não é para mim”. Aí ele foi olhar no envelope, por sorte ele conhecia meu pai de nome e trouxe a carta para nós. E assim começamos a nos corresponder com ela.

P/1 - E ela veio para cá?

R - E ela não conseguia visto para o Brasil, com tudo que o meu pai mandava documentação, porque meu pai já era proprietário, ela não iria ser peso para o governo, estava com tudo em ordem, ela ia todo dia no consulado e ele não dava. Saía de um monte de polacos, lituanos, qualquer coisa, e dela não. E a gente não sabia... “Mas como que não dá visto de entrada para o Brasil?” E a gente conseguiu, através do irmão de uma amiga minha, no Rio de Janeiro. Essa amiga minha era como se fosse minha irmã. Ele trabalhava no Itamaraty, na época, e conseguiu mexer uns pauzinhos para nós, e ela conseguiu o visto. Quando ela chegou ao Brasil, ela contou o porquê: porque era época do Filinto Muller, do Getúlio, e no fim, depois de três meses tentando, o cônsul falou para ela:”Eu quero dar o visto para a senhora, mas eu tenho ordem para não dar para judeu”. Depois mudou um pouco. Na época, o Ministro da Justiça era o Filinto Muller, um alemão, nazista. São histórias da vida da gente.

P/1 - Agora vamos voltar para a sua vida então. Essa história, nós estamos ali na guerra, dezoito anos, você participando desse movimento juvenil, estudando, já fazendo bastante música.

R - Sim, eu fui estudando no Colégio Stafford.

P/1 - Que não tinha nada a ver com o… Não tinha o (Inint) [00:44:59] nesse período?

R - Não, tinha uma única escola, religiosa, que era o Talmo Torá, e meus pais jamais me colocariam porque eles não eram religiosos. E tinha a (Solectria) [00:45:15], que depois ficou Renascença, que também meus pais não me colocaram porque era uma escola sionista.

P/1 - Eles eram contra o sionismo?

R - Eles eram de esquerda.

P/1 - Eles eram do Partido Comunista?

R - Não, mas eram simpatizantes do partido, então não me puseram. E naquela época, um dos melhores colégios que existia era o Colégio Stafford, ali na Alameda Cleveland, que era pertinho da José Paulino. Eu ia a pé, todo dia, de manhã, então me puseram lá e lá me formei; de fato, era uma escola muito boa, me deu uma base ótima, em línguas principalmente. O Português que a gente tinha era um professor catedrático, e Inglês eu sei, falo Inglês até hoje, por causa de escola, era uma aula por semana, tinha a professora de Inglês, a Misses Thompson, era ótima. Enfim, foi muito bom e também, concomitantemente, comecei a fazer fisio-conservatório, dramática musical, que eu fiz piano, comecei com sete anos, fiquei nove anos no conservatório, até terminar o último ano. Eu sei que tive muita sorte, porque a minha formação musical foi muito grande. Porque é como eu disse para você, minha mãe cantava muito bem, em casa, e o meu pai adorava música. Então - eu era bem pequena - naquele tempo tinha, uma vez por ano, a temporada de ópera e vinham cantores, trupes inteiras da Europa, porque não tinha aqui, era no Municipal, uma vez por ano. E meu pai, naquele tempo, não podia pagar ingresso, mas eles organizavam e podia entrar no anfiteatro do Teatro Municipal, você ia de graça para fazer claque. O que era claque? Era aplaudir cada Ária, aí você podia entrar e assistir. Meu pai ia em todas e me levava, assisti os maiores cantores da época - Beniamino Gile, Tito Schipa e a (Antipura) [00:48:10]. E também grandes pianistas. Eu assisti o Arthur Rubinstein quando ele veio pela primeira vez ao Brasil, e eu não sei se interessa, mas é uma coisa que ficou até hoje na memória: ele era muito ruivo, mas tinha cabelo ‘pixaim’. Eu estava lá em cima, com meu pai - eu tinha cinco anos - mas eu me lembro como se fosse hoje, eu vejo na minha frente, ele tocava dança ritual do fogo, que começa com acordes “pam, pam, pam, pam”, ele tocava e o cabelo dele ia subindo. Olha o que fica na memória de uma criança. Bom, eu gostava muito de dançar, tinha professor de ginástica, particular, não tinha clube de ginástica, e quando eu já tinha meus treze anos, a Prefeitura do Estado de São Paulo... Nisso, já tinha começado a guerra ... Porque no Municipal do Rio de Janeiro tinha corpo de baile - quem dirigia era a professora Maria Oleneva. Mas em São Paulo não tinha. Mas, com essa história da guerra, veio para o Brasil o (Vaslá Vertchec) [00:49:38], era um mestre de ballet e a Prefeitura resolveu formar um corpo de baile. E meu pai, lendo no Estadão, viu, e ele sabia que eu gostava muito de dançar. Ele me levou para fazer um teste.

P/1 - Quantos anos você tinha?

R - Treze. Era o mínimo da idade permitida, tinha que ser para mais, eu era uma das caçulas, e eu fui aceita. Então, fiz muito ballet no Municipal - ainda não é na escola de baile, para formar na escola de baile - e a gente dançou em várias óperas. Na Ida... Onde tinha ballet, eles usavam a escola. E assim foi. E depois… Foi acontecendo que, no último ano de conservatório, eu também já estava há dois anos na escola e o professor me transferiu para o corpo de baile para profissionalizar. Meu pai falou: “‘Na na ni na não’, você vai terminar o conservatório”. Naquele tempo, profissionalizar bailarina você não imagina o que era. De jeito nenhum. Aí, acabou com a minha carreira. Eu podia ser uma bailarina hoje, sei lá. São coisas da época.

P/1 - Ele não queria isso?

R - Não, eu também me formei no ginásio e não quis fazer faculdade, eu fui trabalhar.

P/1 - Fazendo o quê?

R - Em escritório. Trabalhei em várias empresas: nas Lojas Americanas, Alpargatas...

P/1 - Entrou, se formou no…

R - Me formei, fiz um curso rápido de comercial, secretaria, taquigrafia, datilografia, não tinha nada a ver comigo. Isso não tinha nada a ver comigo, eu fui toda errada.

P/1 - E não tinha trabalho com música?

R - Não, eu só comecei a trabalhar com música muito depois.

P/1 - Não tinha o que fazer na época?

R - Não, não tinha. Mas foi indo…

P/1 - Aí, você foi trabalhar como secretária?

R - É. Trabalhei pouco tempo, porque eu já ajudava muito o meu pai, já fazia todo o trabalho de escritório para o meu pai, ele me comprou uma máquina de escrever ainda quando eu tinha uns treze, quatorze anos, uma Remington daquelas antigas e eu já fazia as coisas para ele, de escritório, tudo, mas foi pouco tempo, eu trabalhei acho que uns dois anos só, porque nesse intervalo conheci o José.

P/1 - Então me conta desse… Onde vocês se conheceram?

R - Nós nos conhecemos no Centro Cultura e Progresso, ele era uma das pessoas da diretoria, que estava encarregada de formar o Departamento da Juventude, e a gente tinha um grupo muito grande e muito legal. E essa parte de, antes de eu começar a namorar mesmo, a gente já saía em grupo, a gente era um grupo muito unido, porque alguns trabalhavam, alguns estudavam, alguns precisavam trabalhar, tinham que dar dinheiro em casa, não tinham dinheiro para pegar um cinema, a maior farra era comer um cachorro quente - na rua Dom José de Barros tinha um botequinho - com guaraná. Isso era uma farra danada naquele tempo. Então, a gente fazia um... Pegava um lenço grande, cada um jogava o dinheiro que tinha na bolsa - eu sempre tinha porque trabalhava e não precisava dar em casa - e quem não tinha não colocava nada, mas quando todo mundo tinha colocado, a gente contava o dinheiro. Se dava para todo mundo ir ao cinema, a gente ia. Se não dava, ninguém ia. A gente ia só comer uma pizza, era assim. Mas, fora isso, a gente fazia um trabalho cultural muito grande, a gente começou cursos de teatro e, como eu disse, a gente fez o grupo de teatro.

P/1 - Tinha um diretor? Alguém?

R - Naquele tempo, a gente mesmo se dirigia; tinha um que era mais talentoso, e que então dirigia todo mundo. E quando no fim da guerra, quando a gente já sabia o que tinha acontecido com toda a cultura nossa, que foi enterrada, com seis milhões de judeus mortos, massacrados, uma das pessoas que era da diretoria - e ele era muito rico, na época ele tinha muito dinheiro - disse: “O dia que os russos entrarem em Berlim, eu dou quinhentos contos de réis para a gente construir um monumento em memória dos nossos perdidos queridos”. E, de fato, foi assim. E quando terminou a guerra e os russos e os americanos entraram, cada um fez as zonas todas, que acabaram com o nazismo e vieram os tais processos de Nuremberg, que mostraram para o mundo as atrocidades. Porque, de qualquer maneira, a guerra foi horrível não só para os judeus; agora, para os judeus foi pior porque acabou com várias gerações. E tentou acabar com a cultura. Então, resolveram construir um monumento. Só que formaram um comitê, que era do pessoal do Centro Cultura e Progresso, mas convidaram pessoas de outras entidades judaicas também, porque todo mundo perdeu gente lá. Formaram esse comitê e chegaram a uma brilhante conclusão: que não iam fazer um monumento. Resolveram construir um monumento vivo, um local... Não adianta pôr um obelisco só. Um local onde a gente pudesse continuar a parte cultural, social, de arte, coro, teatro, biblioteca, escola, enfim, então eles resolveram construir esse prédio, que é a Casa do Povo.

P/1 - Com esse dinheiro dessa pessoa?

R - Não, com esse dinheiro deu para comprar o terreno. Calma lá! Eles começaram a fazer uma campanha.

P/1 - Eles quem?

R - A diretoria, que era do Centro Cultura e Progresso, com mais algumas pessoas da sociedade judaica, que também ajudaram. Porque todo mundo quis fazer e fizeram uma campanha. E cada um foi dando o que podia. Aos poucos, foram juntando dinheiro e fazendo a construção. Quando fizeram, lançaram a pedra fundamental, está enterrado lá um documento - em uma caixa de aço - falando sobre a que se destina esse monumento: à memória dos seis milhões que morreram. E para divulgar e preservar a cultura, a literatura, a poesia, a música, tudo o que foi criado por essa gente toda, para que não se perca totalmente, que não vire fumaça, como as pessoas viraram. Então, eu me lembro do dia do lançamento da pedra, tem uma fotografia que tem umas três mil pessoas em volta. Já tinha o Coral, cantou... E tinha muita gente, porque existe um - hoje se diz fake news - de que todos os judeus são ricos, mas não é verdade. Tanto que tem muito judeu pobre, tinha os remediados e tinha muito pobre. Meu pai era uma pessoa que ia, com mais um amigo, de porta em porta, angariar fundos. E muitos judeus morando em porão naquela época. Muitos vieram e queriam colaborar, muitos deram um tijolo - era um mil réis - está tudo contabilizado. Teve muita gente que deu... Seria hoje, sei lá, um real ou um tostão, não sei. Teve muita gente que deu, e com esse dinheiro se fez.

P/1 - Essas pessoas todas que colaboraram nessa movimentação que foi feita por essa diretoria, conte só um pouquinho... Nesse momento, tinha comunidades mais de judeus de esquerda, tinha os religiosos, tinha...
R - Os que menos deram foram os religiosos, esses sempre foram um mundo à parte. Agora, os de centro-direita colaboraram. Não deram dinheiro, mas colaboraram. A maioria que deu dinheiro, 99% - fora esses que deram (um real) [01:00:17], que era o povo mesmo, não tinham... A maioria que deu era de esquerda.

P/1 - E aqui no Bom Retiro, na comunidade, como era a relação?

R - No Bom Retiro, muita gente... A maioria dos judeus morava no Bom Retiro. (inint) [01:00:35]

P/1 - Tinha os de esquerda, de direita...

R - Tinha de esquerda e tinha de direita também.

P/1 - Então como era a relação, você lembra?

R - Uma relação muito ruim, muito estressada. Havia pessoas de direita que não passavam na calçada da Casa do Povo. Atravessavam a rua. Ridículo, mas tinha. Ainda tem hoje. “Como? Vocês ainda estão vivos? Ainda funciona?” Tem atividades de manhã, de tarde, de noite, sábado, domingo e a semana inteira. Está vivo. O prédio está vivo. Mas ainda tem gente que não aceita.

P/1 - Mas na época então, como era a relação entre... Tinha o grupo de jovens, que era um grupo de jovens de esquerda, que era esse seu grupo...

R - É. Porque, por exemplo, tinha os de esquerda sionistas, que era o (inint) [01:01:37].

P/1 - (inint) [01:01:39] era aqui também?

R - Era no Bom Retiro, na rua Bandeirantes. Eles tinham uma sede aqui. Frequentavam, (tinha contato) [01:01:50].

P/1 - Até hoje frequentam.

R - Até hoje eles frequentam. Até tive dois coralistas que eram. Agora eles pararam de cantar porque... Por sorte, entraram na faculdade de noite e têm aula, então deixaram de vir ao Coral. Dois jovens do (inint) [01:02:06]. Mas eles participam quando nós fazemos comemoração do levante do gueto. Todo ano eles participam, são convidados.

P/1 - Então tinha (inint) [01:02:19], esse movimento seu era o Casa...

R - Instituto Cultural Israelita-Brasileiro, vulgo Casa do Povo. Mas o nome certo era esse. Porque inclusive tem o Taib - Teatro de Arte Israelita-Brasileiro. Que está agora desativado, mas que está nos planos para ser restaurado.

P/1 - Aí tinha esse movimento, o (inint) [01:02:43]. E o que mais tinha, de outras organizações judaicas…?

R - Tinha (Dror) [01:02:47]... tinha muitas atividades. O (Betar, meativa) [01:02:51], que eram religiosos... Os religiosos não vinham, mas os outros vinham.

P/1 - E vocês se encontravam...

R - Vinham em atividades, às vezes.

P/1 - Eles vinham nas atividades?

R - Vinham. E se eles convidavam para uma atividade deles, a gente também ia. Claro, como até hoje a gente vai, quando tem uma atividade diferente.

P/1 - Vocês iam, por exemplo, quando tinha uma festa. Vocês participavam de alguma coisa tipo Yom Kippur? Uma festa desse teor assim? Como era a vida de vocês, com festas religiosas judaicas?

R - Por exemplo, os meus pais, como já disse, não eram religiosos, eram de esquerda. Então, Yom Kippur, Rosh Hashanah para mim era a mesma coisa. Eu não sabia o que era Rosh Hashanah e Yom Kippur. Eles não iam para a sinagoga, só iam quando tinha um casamento na sinagoga. Mas se não, não iam. Então, para mim, nunca fez muita diferença. Até que quando, depois que eu casei... Porque o José, meu marido, era de uma família tradicional. Eles não eram muito religiosos, mas eles respeitavam todas as festas, e tal. Então, depois que... O meu marido era de esquerda. Há muito tempo ele foi até do Partido Comunista, depois não foi mais. Mas quando nós fomos nos casar... A gente não queria casar na sinagoga. Hipocrisia não leva a nada; só fingir que é. Mas aconteceu uma coisa muito interessante: nós resolvemos casar na casa do rabino para satisfazer a família dele, porque tinha dois irmãos mais velhos - ele era o caçula - e duas irmãs mais velhas. Para não desrespeitá-los. E casamos na casa do rabino, que era muito amigo do meu cunhado mais velho, que já era pai. Porque meu marido já nasceu tio, imagina. E a festa do casamento ia ser no Centro Cultura e Progresso, num salão grande lá. E meu pai resolveu fazer um jantar kosher por causa da família do José, para não desrespeitá-lo. E tinha um (Buffet max) [01:05:44], que ele chamava - ele era um judeu alemão - que era o máximo na época, quando casei. E ele subiu para medir, porque foi tudo servido à francesa, o meu casamento. Todo mundo sentado, não era para se servir. Ele foi medir o salão, chegou para o meu pai e disse assim: “Eu não faço lá”. “Por que o senhor não vai fazer lá?” “Porque eu medi o salão”. “Sim, o senhor mediu. Mas o que tem?” “Eu medi o salão, e para servir sentado tem que ter cinquenta centímetros por pessoa. Lá só tem quarenta e nove. Ou o senhor arruma outro buffet ou o senhor arruma outro salão”. Sabe onde foi o meu casamento? No salão da sinagoga, embaixo. Porque era um salão grande. Por causa de um centímetro por pessoa. Então eu casei na casa do rabino e a festa foi no salão da sinagoga. Tinha até um palco lá - agora eles reformaram, está toda diferente. São histórias, não é?

P/1 - Aí vocês casaram e...?

R - Daí casamos e fomos levando nossa vidinha.

P/1 - Foram morar aqui mesmo, neste apartamento?

R - Não. Primeiro nós morávamos... Moramos junto com meus pais. A gente morava na Ribeiro de Lima, no segundo andar. Era um andar inteiro, onde morávamos. Aí, Marina nasceu - a primeira filha - lá ainda. Depois de lá, nós mudamos para a rua (Prates) [01:07:42], onde agora tem aquele hotel Plaza Lux, em frente ao jardim. Ali na frente eram três bangalôs e do lado tinha uma vila grande de bangalôs. Uma cunhada minha morava lá dentro e disse: “Olha, está desocupando uma das casas do bangalô”. Sempre fui ativa na entidade, sempre tive atividade. E fiz teatro, com o grupo de teatro. Esse grupo teve várias apresentações, mas uma delas foi quando o nosso teatro, Taib - Teatro de Arte Israelita-Brasileiro - que é no subsolo do prédio - quando ele estava quase pronto, mas não estava terminado ainda. Ainda estava no cimento assim, não tinha cadeiras, não tinha nada. Nós já tínhamos um grupo de teatro dos jovens, que já tinha participado de festivais. E, na época, veio um diretor da Argentina - Alberto D’Aversa - e um dos rapazes do meu grupo trouxe uma peça do Osvaldo Dragun - um escritor jovem; até hoje ele atua na televisão de Buenos Aires. E a peça chamava-se: “Histórias para serem contadas, os da mesa 10”. E eu fiz a tradução. Porque eu também faço traduções, viu? Eu fiz a tradução da peça e todo o grupo - umas seis ou sete jovens - todos faziam todos os papéis. Porque são dez histórias entrelaçadas. E a gente resolveu fazer uma pré-estréia do teatro, sem o teatro estar pronto. Então, conseguimos pendurar uns focos de luz assim e o público todo de pé ali aglomerado. E tinha morcegos que passavam e tudo, mas não espantaram [01:09:44] ninguém. Então, foi aí... Mas bem depois disso, a gente fez mais vezes e já tinha aquele Coral, que era o coro (Sheifer) [01:10:04], que começou em 1935 - tem fotografia. Era um Coral de alto nível. Cantava em todas as línguas: Yiddish, Hebraico, Ladino, Português, Latim, Francês... Tinha um repertório muito variado. E era um Coral muito bom. Eu também acabei participando depois, desse Coral. Mas como eu tinha falado antes, em 1970 o Coral acabou, por vários motivos. Um deles foi pela situação política...

P/1 - Pela ditadura?

R - Era época da ditadura.

P/1 - E porque o Coral...

R - Porque muita gente era de esquerda - a maioria... Não eram todos. E teve gente que foi presa, ficou muito ruim. Ficou uma situação muito triste e o Coral acabou. Depois de muito tempo, depois de vários anos, em 1988... 1988 ou 1998? 1988. Um pequenino grupo de pessoas que tinham sido do Coral anterior: “Vamos fazer novamente um Coral. Nós precisamos ter um Coral no (inint) [01:11:41]”. E resolvemos fundar um outro Coral. E aí também estávamos eu, minha mãe... Foi aqui que começamos. Aqui em casa. O piano ainda ficava lá na sala. Moisés, Esterlane... A dona Elina era a pianista. Uma neta minha... “E que tipo de Coral vamos fazer? Não vamos fazer mais um Coral. Vamos fazer um Coral diferenciado”. Aí decidimos fazer um Coral que só cantasse na língua Yiddish para poder divulgar, preservar e transmitir aquilo que foi criado durante tantas gerações e tantos anos, porque a música yiddish existe há séculos. A música yiddish não, a música judaica. A yiddish não é há tanto tempo.

P/1 - Então o Coral não é de música yiddish.

R - O Coral é só de música yiddish, exclusivo. Desde que existe a língua Yiddish, que tem mais de mil anos de idade. Então o Coral se propôs a fazer isso. Como foi tudo destruído, toda aquela... A gente tem que preservar, porque foi criada uma riqueza imensurável nessa língua. Grandes escritores, poetas... Então a gente começou assim. A gente começou depois a procurar algumas pessoas que tinham sido do outro Coral. No fim, eu tinha quarenta pessoas aqui nesta sala, não dava mais. E aí conseguimos um piano emprestado para o (ISIB) [01:13:31], para o Instituto, e fomos para lá. E o Coral este ano completa trinta anos de atividades ininterruptas. O Coral se apresentou sempre em muitas entidades aqui; cantou no (Rio, na Asa) [01:13:56] várias vezes. Duas vezes já fomos para Buenos Aires, convidados em coisas do (ICOF) [01:14:11]. E a gente preserva aquilo com muito amor e muito carinho. Então, eu acho que...

P/1 - Mas na sua vida... Quer dizer, você já começou como a regente do Coral? Como foi isso?

R - Não, eu não comecei como regente. Primeiro eu comecei a marcar o tempo do Coral, porque não tinha dinheiro para pagar um regente. Eu tinha pianista que tinha sido minha professora de piano e me acompanhou a vida inteira. Ela, infelizmente, não vive mais. E ela tocava e eu marcava o tempo, porque isso eu sabia fazer.

P/1 - Esse era o seu papel, aí você a chamou e...

R - Não, ela ajudou a fundar o Coral. E aí eu marcava o tempo, mas achava que não estava certo. Aí, depois da primeira apresentação que tivemos, que foi com poucas pessoas ainda - depois o Coral cresceu - a gente conseguiu uma verba para contratar um maestro.

P/1 - De onde veio essa verba?

R - De sócios. É uma entidade que tem associados, é um clube o (ISIB) [01:15:26]. Aí nós contatamos o que tinha sido o último maestro do outro Coral, que era o Jonas Cristensen. Nossa, ele ficou feliz e veio. E o Coral ensaiava duas vezes por semana, mas ele não podia duas vezes por semana, só podia uma. Ele dizia: “No outro ensaio você marca o tempo, está vendo como eu faço?” “Está bom”. E assim foi. Fizemos uma apresentação, outra... Nisso, passou-se menos de um ano. Marcamos uma apresentação do Coral nas Oficinas Culturais Mazzaropi. Ia ter uma retrospectiva da minha filha, dos quadros dela, e um dos meus coralistas cantava também no Coral da SABESP. Então, o Coral da SABESP ia se apresentar e o nosso Coral também. Eu com o uniforme do Coral - não estava com uniforme de regente - ia cantar. E chegando a hora, ele não chega, não chega... Comecei a ficar agoniada. Faltavam uns dez minutos para começar a apresentação, me chamam ao telefone. Lá vou eu atender: “Eu estou com pneumonia, quarenta de febre, falando assim, não posso (chegar) [01:16:58]. Você vai ter que dirigir”. “Você está louco. Imagina que eu vou dirigir. Nunca!”. “Vai. Você quer que eu fique pior? Que eu morra? Eu vou pegar chuva...”. Estava chovendo também. Encurtando a história, vou fazer o quê? Fui falar com o Coral e disse: “Olha, vocês vão ter que me acompanhar de algum jeito. Não tem outro jeito”. Tudo bem. Saiu bem, lógico, estava muito bem ensaiado. No próximo ensaio, vem ele lépido e fagueiro: “Que bom, você deu conta. Eu fiz de propósito”. Ele me jogou no fogo. E fez a mesma coisa num encontro de Corais do estado. Ele que estava organizando um Festival do Estado de São Paulo, de Corais. Ele também me empurrou na hora para eu dirigir. Bom, resultado: depois de um pouco de tempo eu regendo assim, digo: “Não. Eu não acho que seja correto. Eu não tenho formação de regente, eu tenho formação de piano. Vou entrar na faculdade”. Prestei, entrei e fiz quatro anos de regência. Digo: “Não”. Não uso quase nada do curso. Mais do que eu já sabia de observação, não é? Mas a gente usa. Eu achei que não era honesto da minha parte. Então, foi assim que virei regente de coral.

P/1 - E isso se tornou para você uma atividade...

R - Para mim é uma atividade muito gratificante, porque eu amo o que faço. Eu amo aqueles meus meninos e meninas; chamo de “minhas crianças”. Mas eu sei que faço com amor e recebo muito amor deles. E eles... Muita gente que trabalha o dia inteiro vem ao ensaio à noite. Sabe, é uma coisa muito bonita. E a gente tem tido muito sucesso com as nossas apresentações do Coral. Muito sucesso. Porque a gente conta só um repertório yiddish. E são oito anos que cantamos uma vez por ano no encontro de Corais, em uma igreja católica - a Igreja Nossa Senhora das Mercês. Nos convidam, eu digo: “Mas nós só cantamos yiddish”. “Só cantam yiddish, é por isso que queremos que venham cantar”. Somos muito aplaudidos. Então, eu acho que é muito gratificante você ter um retorno daquele trabalho que você faz. É muito retorno que eu tenho. E eu tenho, também, retorno de outra maneira: não faz muito tempo eu recebi um livro - doação de uma pessoa que eu mal conheço, mas que me conhece pelo trabalho que faço - com partituras de músicas yiddish. Um livro antiquíssimo, publicado há mais de cem anos. Muitas dessas músicas eu tenho porque... Porque muitas coisas, as partituras das músicas populares do folclore foram transmitidas oralmente e só depois é que foram escritas. Eu tenho, às vezes, a mesma música em várias tonalidades diferentes nas partituras. Então, isso é um fato de reconhecimento de um trabalho que é necessário ser feito. Porque tem uma repercussão muito grande. Em toda parte onde a gente vai: no Arquivo Histórico, no Jardim da Luz a gente já cantou muitas vezes... Então, eu acho que para mim é uma realização muito grande. É uma coisa que começou praticamente sem querer. É como fala o Chaves, da televisão antiga: “sem querer, querendo”. Eu sempre quis mexer com isso, mas nunca tinha mexido.

P/1 - Então, só para a gente completar um pouquinho, antes, Hugueta, quando você casou, você largou tudo e foi trabalhar na loja, isso?

R - Trabalhei na loja.

P/1 - Do seu marido ou dos seus pais?

R - Ficaram sócios, era dos dois. E aí a gente fez uma confecção, (Agar Modas) [01:21:30] - porque meu nome em hebraico é Agar.

P/1 - Com seu nome.

R - Com meu nome. Mas não existe mais essa confecção. Mas muitos anos... A gente fez também lá no centro comercial. A gente tinha a loja... Tem a loja, a propriedade a gente tem, mas não é mais...

P/1 - Você teve ela e mais filhos?

R - Mais dois. Tenho o Horácio, que é logo depois dela, um ano e meio de diferença. Ele mora em Curitiba; e tem um (temporãozinho) [01:22:05], que acabou de fazer cinquenta anos em julho. Já nasceu aqui nesse prédio... Quer dizer, na Maternidade, mas veio para cá. E tenho mais uma filha postiça: uma menina que veio trabalhar na fábrica, tinha treze anos e acabamos adotando-a. Essa filha postiça já me deu três bisnetas. A minha vida de casada, eu posso dizer que tirei a sorte grande.

P/1 - Foi boa.

R - Porque quem conheceu o José - Isso é um capítulo à parte. Teria que... Ele era uma pessoa muito especial. Ele era muito inteligente, muito culto; pessoa muito tolerante; na educação dos filhos ele tinha um sistema que eu acho muito bom: quando um filho fazia uma coisa muito errada, ele não falava nada na hora. No dia seguinte, ele chamava para uma conversa. Porque ele dizia que na hora em que está fazendo a coisa errada você está nervoso e vai brigar, vai entrar por aqui e vai sair por aqui. No dia seguinte, ele chamava para uma conversa, explicava com toda a calma por que era errada, por que não devia fazer daquele jeito... Nunca mais a criança fazia aquilo. Entendia. Ele foi orientador das professoras da escola (Scholem Aleichem) [01:24:01], da parte judaica. Ele foi um autodidata, porque ele chegou ao Brasil com treze anos de idade. E ele foi para um grupo escolar, não sabia a língua e tal, mas você podia falar sobre qualquer assunto... Ele chegou em 1930, um ano depois que eu.

P/1 - E ele veio da Polônia também?

R - Da Polônia. Eles eram de Varsóvia. Eu também achei o prédio onde a família dele morou, quando fui em Varsóvia.

P/1 - E ele trabalhava nisso, na loja...

R - Antes ele tinha uma fábrica de couros com os irmãos mais velhos, porque ele era o caçula. Ele nasceu tio já. Quando eu casei com ele, ganhei logo de cara dezoito sobrinhos. Digo: “Só vou casar com você porque você vai me dar sobrinhos”. Eu queria ter sobrinhos - filha única, não é? Mas ele trabalhava, depois saiu da fábrica... Desentendimento com os irmãos mais velhos, sabe como é. Sei lá. Eu sei que ele se tornou sócio do meu pai e ficaram sócios a vida inteira. Então, foi uma convivência muito especial. Muito especial. Ele gostava de... Ele era um orador assim... Vou dar um exemplo: quando comemorou-se os cinquenta anos da morte do (inint) [01:25:51], resolveu-se fazer uma palestra no Teatro Municipal. Lotaram o Teatro Municipal, porque o José ia ser o orador. Quando anunciava que ele ia fazer uma palestra, vinha gente de outros estados para ouvi-lo. Ele era convidado também para o Rio, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre... Muitas vezes ele foi dar palestra.

P/1 - Ele faleceu há muito tempo? Faleceu de quê?

R - Câncer do estômago. Trinta e oito anos. Muito tempo. E ele era poeta. E aí então a gente colocou... Ele escrevia em Yiddish. Ele sabia muito bem Português, mas escrevia em Yiddish. Então a gente escolheu vinte poemas - porque tem muito mais - e publicamos em Yiddish. Eu transliterei, porque tem gente que entende Yiddish, mas não sabe ler o alfabeto Yiddish. E fiz a tradução também. Agora, na parte técnica, a Marina colaborou muito.

P/1 - (Kinderland. Que lindo...) [01:27:21]

R - Ele foi orientador de monitores na (Kinderland) [01:27:28]... Enfim, era uma pessoa muito especial.

P/1 - Falando disso, dessa época, teve a questão da Segunda Guerra e também teve depois toda a relação com a Rússia, que eu sei que teve uma forte...

R - Aquilo foi uma tragédia. Foi muito chocante quando o Khrushchev bateu...

P/1 - Em 1956, não foi isso?

R - Foi. Muito, muito, muito... Muita gente que era de esquerda se afastou de vez.

P/1 - E, por exemplo, para ele, como foi na sua família, na sua vida?

R - Foi muito triste, muito dramático. Mas tem um artigo aqui que ele escreveu quando da comemoração de vinte e cinco anos do assassinato dos escritores e poetas judeus na União Soviética. Tinha um Departamento de Yiddish, na Hebraica, quem dirigia era a professora (Rosenkranz) [01:28:30]. Ela convidou o José para fazer uma palestra. Com isso, encerrou o Departamento... Agora que estão revivendo outra vez. Eles acabaram de recomeçar um Departamento de Yiddish faz um mês.

P/1 - Com a palestra dele que encerrou?

R - Foi com a palestra sobre os escritores. E ele, no fim... A palestra está aqui, toda traduzida; toda aí. Ele fala de cada poeta, porque ele conhecia a obra de todos os poetas e escritores que foram assassinados mesmo na União Soviética. E eram todos idealistas, lutaram na guerra pela União Soviética e tudo. Stalin acabou com eles todos. Mas ele fala assim... Não sei se é nessa palestra ou numa outra, em que ele fala: “A minha fé no Socialismo não acabou. Quem acabou...”. “E eu não pequei”, ele disse. “Pecaram contra mim. Foram as pessoas que acabaram. Foram as pessoas erradas que fizeram isso. Mas a ideia continua sendo boa”, segundo ele. E, de fato, é verdade.

P/1 - Dentro do grupo de vocês, vocês discutiram...

R - Teve pessoas que deixaram até de falar uns com os outros, de se cumprimentar na rua - o que é uma besteira, porque não tem nada a ver uma coisa... Amigos pessoais. Ficaram tão chocados que acharam que os que continuavam de esquerda estavam traindo o povo judeu. Não é verdade. É a tal história: pecaram contra nós. Os soviéticos, Stalins da vida, os (bérias) [01:30:31] e os outros pecaram contra nós; não fomos nós que pecamos. Não é a ideia que pecou contra nós, foram os que tomaram o poder. O poder corrompe, não é? Eu acho. Não sei.

P/1 - Dizem por aí. Hugueta, agora, pelo menos esse primeiro ciclo das suas histórias... Voltando e vendo toda essa trajetória, quais você acha que foram as coisas que mais fizeram sentido na sua vida?

R - Não entendi.

P/1 - Fizeram sentido, continuam importando muito.

R - O que faz sentido até hoje é o trabalho que estou fazendo com o Coral. Porque é uma forma de não deixar desaparecer, continuar o futuro. E eu tentar transmitir... O que estou fazendo agora com você, já fiz isso não sei quantas vezes com as entidades. Das mais variadas, ‘N’ vezes. Inclusive para Boston, Massachusetts, nos Estados Unidos. Dei entrevista em Buenos Aires... Porque eu acho que o que foi feito de trabalho social, político, artístico, cultural, é uma coisa que não se pode perder. Que sempre vai servir para ajudar alguém no futuro. Então, isso tudo tem que ficar registrado. Por isso que eu também logo aceitei dar entrevista para vocês, porque eu acho que é importante. Porque se alguém vai pesquisar, vai saber que aconteceram algumas coisas que eu me lembrei de contar. Claro, eu não contei nem um décimo; nem um milionésimo do que eu já vivenciei em noventa e dois anos de idade. Eu fiz muita coisa que eu não... Traduzi um livro, que foi muito importante também. E outras coisas mais que eu já fiz e que é impossível pôr numa entrevista só. Mas eu acho que o pouco que a gente consegue transmitir da experiência que a gente teve, talvez algum dia ajude alguém a fazer mais do que isso, partindo daí. Por isso que eu acho que esse trabalho que vocês fazem é de uma importância ímpar. E eu me sinto muito honrada de participar e de dar uma pequena colaboração. Não sei se é válido o que eu falei, mas tudo o que falei é verdade. Não é nada de ‘fake news’.

P/1 - Finalizando, conte para a gente sobre... Você nasceu, cresceu, viveu, trabalhou e continuou morando no Bom Retiro. O que é o Bom Retiro na sua vida? A sua relação com esse bairro, o que ele...

R - No começo, não fui eu que escolhi o Bom Retiro, não é? E eu acho que nem meus pais escolheram: foi automático, porque o trem de Santos, que veio do navio, parou na Estação da Luz, eles ficaram no Bom Retiro. E durante muito tempo o Bom Retiro tinha uma comunidade judaica muito grande, então eles fizeram logo muitos conhecidos, muitos amigos, e as entidades de que a gente participa. Então, acho que as minhas raízes estão aqui no Bom Retiro. E hoje em dia eu sei... Muitos amigos meus foram para o Jardins, depois para Higienópolis - para o Jardins foram até antes do que para Higienópolis, que é mais perto. Alguns foram para os Campos Elíseos, antes de terem esses problemas todos de drogas e coisas. Mas foram para lá, que era mais perto. Eu não, fiquei sempre aqui no Bom Retiro. E o José também: meu marido também gostava muito, que ele também sempre morou no Bom Retiro. Meus filhos já tomaram outro rumo, claro. A Marina, quando se independizou financeiramente, que pôde se manter sozinha, foi para Pinheiros, porque os amigos dela moravam ali em Pinheiros. Mas quantos anos faz que você voltou, Marina? Uns dez, doze... Por aí. Teve um problema de saúde sério e voltou para cá. E está aqui comigo, o que para mim é uma benção. A gente se dá bem, então está ótimo. E meu filho Horácio casou com uma moça de Curitiba. Eles iam morar aqui, mas acho que a força dela foi maior e ele acabou indo para lá. O nível de vida lá é muito bom, muito melhor do que aqui em São Paulo. Muito legal. Então isso já faz muitos anos, vinte e cinco anos já. E o caçula mora aqui em São Paulo, mas em Higienópolis. Está querendo mudar para Santos agora. Provavelmente assim que se aposentar vai para Santos.

P/1 - (inint) [01:36:33]

R - A minha filha, que eu chamo de postiça mas é filha também, do mesmo jeito, mora em Joanópolis, num sítio. Ela tem um acampamento, explora acampamentos. Tem um sítio muito bonito e mora lá. Meus três netos por parte da Laíde moram aqui em São Paulo; e do meu filho de Curitiba eu tenho duas netas gêmeas, que estão fazendo faculdade agora; do meu caçula eu tenho um neto, aqui também em São Paulo - também está fazendo faculdade. E da Laíde, como eu já tenho aqueles três netos, tenho três bisnetas também. Uma de doze, treze, outra de oito e uma de um ano. E tenho uma outra neta, que é do meu filho de Curitiba, que mora em Rezende mas está sempre vindo para cá.

P/1 - (A gente passeia) [01:37:48]

R - A gente vai, eles vêm... Está muito movimentada a minha vida. E o Bom Retiro, como está hoje, claro, está muito diferente do que era. Quando nós chegamos, que meus pais chegaram comigo, era época dos italianos. Tanto que no Bom Retiro tem uma rua chamada rua dos Italianos, onde tem um grupo escolar e tudo. É aqui pertinho. Aí depois foram os judeus; aí vieram os gregos; depois os coreanos. Os coreanos mudaram o Bom Retiro totalmente, na parte de comércio, indústria. Eles vieram numa imigração que eram os generais que trouxeram, que tinham ganho... Da Coréia do Sul, que tinham ganho muitos dólares dos Estados Unidos. Isso foi nos anos 1980 - eu sei porque eu já tinha a fábrica. Eles foram concorrentes danados. Eles não entendiam nada de costura, mas se meteram na confecção. Hoje em dia eles mandam na moda, já estão na terceira geração. Em seguida os coreanos trouxeram os imigrantes bolivianos, que trabalham nas confecções como escravos, não é? Porque muitos estão sem documento e sem nada. Mas o Bom Retiro ainda é o Bom Retiro. Você ainda... Você sai à rua, todo mundo me conhece: “Oi, como vai, como não vai...”. “Quanto tempo que não encontro”. Vai ao banco e encontra conhecidos dentro do banco. Não falo do gerente do banco, porque também todos vão ao mesmo banco. Você vai numa mercearia, vai ali, encontra sempre alguém. E o Bom Retiro tem uma coisa que muitos bairros não têm e que hoje em dia é uma necessidade muito grande: o Bom Retiro tem o Metrô aqui na esquina. Porque trânsito em São Paulo... Eu não preciso dizer para vocês como é. Impossível começar a ir de um lado para o outro. Mas temos o Metrô, que facilita muito a vida da gente. E o Bom Retiro tem tudo de que você precisa. Se você não quiser sair do bairro, você pode viver só neste bairro, que tem de tudo, em todos os sentidos. E tem a Casa do Povo também.

P/1 - Ia perguntar agora sobre a Casa do Povo.

R - Tem a Casa do Povo, que preenche muita coisa. Muita coisa. E vem gente de muitos outros bairros para o Bom Retiro. Mesmo para o Coral, vem gente de Higienópolis... Vem gente de outros bairros cantar no Coral. Então é um bairro que, daqui não vou sair. Enquanto der, estou aqui. E muito feliz.

P/1 - Hugueta, quais são seus sonhos ou projetos para o futuro?

R - Eu não tenho mais muitos sonhos agora. Agora tudo o que vem é lucro, nessa altura do campeonato. Mas gostaria de ver mais alguém de uma outra geração minha, futura... Vamos ver se vou conseguir ver meus netos formados na faculdade, mais bisnetos... Sei lá. Não, eu tenho um sonho que não tem nada a ver comigo pessoalmente, mas tem comigo, com meus filhos, meus netos, bisnetos, com vocês... Eu sonho muito com um mundo de paz. Com um mundo de direitos iguais para todo mundo. Nós não somos iguais, e nem vamos ser nunca iguais. E viva a diversidade! E viva que um é branco, outro é preto, outro é amarelo; outro é esperto, outro não é; outro é gordo, outro é magro... Não é nesse sentido. Mas eu gostaria de alcançar, se eu conseguir - quem sabe, eu nunca perco essa esperança. Porque eu sou muito esperançosa. Que haja uma paz local e mundial. E que nunca mais... Porque eu me lembro do dia em que terminou a Segunda Guerra Mundial. Nós, jovens, estávamos todos no Centro Cultura e Progresso quando veio a notícia pelo rádio. Saímos em passeata (na avenida) [01:42:32] São João, parece que São Paulo inteiro, de jovens, saiu. Andamos a noite inteira, para lá e para cá, na avenida São João, dizendo: “Nunca mais vai ter guerra. Nunca mais vai ter guerra. Que bom, que felicidade!” Logo começou Coréia, Vietnã, negros nos Estados Unidos, racismo... Então, eu já tive muitas decepções desses sonhos que eu tive. Mas eu espero que algum dia dê à luz em todo mundo, na cabeça dos dirigentes... Porque os povos, em geral, todo mundo é bom. O povo. O povo quer ter paz, ter sua casa, seu trabalho... Mas não dá para entender como acontece tanta coisa ruim. Então, o meu maior sonho da minha vida é esse: que haja paz, respeito, convivência pacífica e oportunidades iguais para todo mundo. É isso. A primeira eleição que teve aqui, eu era muito ativa no Centro Cultura e Progresso. E tinha os candidatos que se candidataram. A gente lutou muito para que tivesse eleições (vivas) [01:44:08]. E quando teve a primeira eleição...

P/1 - Depois da eleição, você está dizendo? Você pegou duas ditaduras: a do Getúlio, e depois os militares.

R - Não, depois da ditadura do Getúlio que teve a primeira eleição.

P/1 - Estamos falando de 1946?

R - 1946, 1947... E eu sei que a votação naquele tempo, claro que não tinha urna eletrônica e nem nada disso. Mas existia uns folhetinhos pequenos, com fotografia do candidato, o nome do candidato e o Partido. Então, tinha uma pilha assim, você entrava numa cabaninha e ali tinha uma prateleira onde estavam as pilhas de cada candidato. Você pegava o seu candidato, saía, assinava o papel e jogava dentro de uma urna. Acontece que tinha fiscais de cada Partido, de cada candidato. E um dia eu fui fiscal de um dos meus candidatos, porque depois que saía um eleitor, um dos fiscais podia entrar para re-arrumar. O do outro candidato escondia as do seu candidato... Então você tinha que entrar. Era assim a primeira eleição. Quando completei setenta anos eu não precisava mais votar, mas acho que eleição, acho que o voto é duas coisas: um direito, mas um dever também. Eu não vou me furtar a votar. Se a gente lutou tanto para que haja eleição... Por que existe uma eleição? Para você votar. Então eu acho que - isso em off - essa foi a eleição mais difícil da minha vida.

P/1 - Por quê?

R - Escolher entre o ruim, o pior e o menos ruim? Foi muito difícil para mim, não sei para vocês. Cada um tem a sua opinião. Por isso que eu acho que isso não deve constar.

P/1 - Mas a última pergunta, ainda falando de eleição: como foi para a sua vida... Porque depois que terminou a ditadura do Getúlio, teve vinte anos de ditadura militar.

R - Para mim, pessoalmente, não afetou muito. Mas a ditadura militar afetou muito alguns amigos meus, que foram presos por hospedar por uma noite um amigo de um sobrinho que não sei o quê, que estava se escondendo. Foram torturados - eram pessoas comuns, não tinham nada. E a gente sofreu muito com isso. Agora, pessoalmente, não posso dizer nada, a não ser que eu estava contra. Sempre fui contra uma ditadura, ainda mais uma militar. Porque foi muito ruim para o país. Porque durante essa ditadura... Foi nessa ditadura que se acabou com muitas cabeças pensantes, ótimas, que seriam agora os dirigentes do país. Lavagem cerebral de jovens estudantes, tortura, assassinato da juventude... Então, isso me afetou profundamente. Eu digo que não afetou pessoalmente, não na minha vida pessoal. Mas me afetou e me afeta até hoje. Eu não consigo esquecer isso. A Marina era estudante na época, estava lá na Maria Antônia e ela não voltava para casa... Desespero meu e do meu marido, a gente foi atrás. Não me deixaram entrar, mas deixaram o José entrar. Ele a achou lá e ela estava bem; não tinha nada. Mas essas coisas todas mexeram muito comigo. Comigo não, com todo mundo. Porque é uma coisa que foi muito ruim. E o meu medo agora é nova ditadura militar. Você... Um ministério quase só de generais e militares... Vamos ver o que vai dar.

[01:48:42]