Museu da Pessoa

Ficava doidinha pra vir pra Lagoa

autoria: Museu da Pessoa personagem: Selene de Oliveira Rabelo

Entrevista de Selene de Oliveira Rabelo
Entrevistada por Nataniel Torres
Paracatu, 06 de setembro de 2022
Projeto Memórias das Comunidades de Paracatu
PCSH_HV1297
Revisado por Nataniel Torres

P/1 - Qual o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento?

R - Selene Oliveira Rabelo.

P/1 - E onde a senhora nasceu?

R -

Onde que eu nasci? Em Paracatu, Minas Gerais.

P/1 - E qual a sua data de nascimento?

R -

29/01/1939.

P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento? Falaram para você alguma história de como foi que a senhora nasceu?

R - Não!

P/1 - A senhora nasceu em casa, ou nasceu no hospital?

R - Em casa.

P/1 - E contaram como foi esse dia do seu nascimento?

R -

Foi em casa! Minha mãe, a mãe dela e mais umas duas pessoas, só.

P/1 - Mas era uma parteira que fez o parto?

R -

Foi!

P/1 - E era assim na comunidade, era parteira ou tinha gente que nascia no hospital?

R - Não! Era parteira. Parteira que ia nas casas.

P/1 - E a senhora tem irmãos?

R -

Irmãos? Tenho!

P/1 - Quantos irmãos a senhora tem?

R - Eu tinha 10.

Um bocado faleceu. Agora pouco mesmo faleceu um irmão meu, ele vinha aqui muito. Adoeceu e faleceu. Agora só tem Leni, João, mora na Amazonas, Eli, mora em Brasília, só tem 3 agora. Dos 10, só tem 3.

P/1 - E qual o nome dos seus pais?

R -

Meu pai era Miguel José de Oliveira. E a mãe Mila Gualberto de Oliveira.

P/1 - Eles já faleceram?

R -

Muitos anos.

P/1 - E eles faziam o quê?

R -

Mexia com roça, né.

P/1 - Os dois trabalhavam com roça?

R - Aham.

P/1 - E era roça de que?

R - Roça, assim, eles mesmo roçavam, derrubavam o mato e roçava, arrumava tudo e plantava.

P/1 - E você chegou a conhecer os seus avós, dona Selene?

R - Conheci!

P/1 - Avós tanto por parte de pai, quanto por parte de mãe?

R - Conheci!

P/1 - Por parte de mãe primeiro, por exemplo?

R - Da mãe é Maria Gualberto Falcão e o pai Pedro Alves Duarte.

P/1 - E o que eles faziam?

R -

Pedro Alves Duarte fazia mexer com fazenda, ele mexia com fazenda.

P/1 - Tudo aqui sempre em Paracatu?

R - É! Sempre aqui na Lagoa.

P/1 - A origem da sua família é aqui da Lagoa?

R - É!

P/1 - Toda sua família? Seus avós já estavam aqui… Você sabe a história da Lagoa? O que te contaram da história?

R - Pois é, a minha avó, quando ela estava de idade, ela veio morar comigo, e ela morreu junto comigo, ela morreu aqui em casa, eu ajudei. E a minha sogra, a mãe do meu marido, adoeceu e eu que cuidava dela. Nossa, mas já cuidei, já pelejei com ela, eu que levava no médico e tudo, quando melhorava buscava, até um dia que ela faleceu. Ela faleceu quando eu ganhei essa menina aqui, tanto os anos dela, tem os anos que ela faleceu. A irmã do meu marido também adoeceu, eu cuidei até morrer, 2 que tinha. E ela falava assim, para ela não tinha coisa melhor do que eu. Eu cuidava tudo, dava remédio, arrumava uma roupa, tudo era eu. Ficava tudo aqui em casa mais nós. E o meu marido é bom demais para mãe dele e para as duas irmãs que tinha. Então foi cuidando, cuidando. Quando elas adoeciam, ele falava comigo, “é você que cuida, porque eu sei que tem paciência, você que faz aquilo, aquilo outro…” Eu ia e fazia tudo! Foi desse jeito!

P/1 - E os seus avós por parte de pai, também são aqui da Lagoa? O que eles faziam?

R - Não!

Parte de pai não era da Lagoa não, era de Paracatu. Por parte de pai é Joaquim José de Oliveira e a mãe dele era Augusta, Augusta, o sobrenome eu não estou lembrada. Meu avô era professor, Joaquim José, ele era professor, ele ensinava um, outro, depois ficou velho, quieto.

P/1 - Mas isso lá em Paracatu, lá na cidade mesmo?

R -

É! Em Paracatu.

P/1 - E como é que o seu pai veio parar aqui na Lagoa?

R -

É por isso, porque o meu pai, trabalhou para o senhor Pisco, senhor Pisco Alves. E nos mudamos lá para o Ribeirão. Eu mesmo nasci lá no ribeirão, mas é a mesma coisa da cidade, porque no documento é Paracatu. E depois nós mudamos para cá, minha mãe falou assim, “olha, Miguel, você vende esse gado seu…” Ele tinha muito gado! “..compra uma casa na cidade para pôr os meninos na escola”. E ele não quis não, não quis vender não. Foi matando o gado, foi morrendo, até acabou. Acabou, ficou uma sementinha. Depois mamãe pelejou com ele para mudar, para pôr os meninos na escola, ele não quis, ela veio para cá, arrumou uma casa, alugou uma casa, e veio para cá mas nós, para por nós na escola. Eu mesmo fui para escola já estava grande, já estava bem grandinha, fui para a escola assim mesmo. Foi desse jeito! E depois ele adoeceu, lá onde ele morava, veio para cá também, ficou mais nós, morreu aqui mais nós.

P/1 - O que aconteceu nessa época da infância? A senhora chegou a estudar? Como é que foi?

R -

Não, eu estudei, assim, eu to falando, eu ia para a roça ajudar a mamãe, ajudava ela a covar, plantar mandioca, cana, esses trens. E quando era no outro dia cedinho, nós arrumava e vinha para a escola aqui. Vinha lá do Pinheiro para a escola aqui do Maria Trindade. Tem um grupo aí, escrito Maria da Trindade Rodrigues, ela é muito boa professora Aí que nós estudamos.

P/1 - Como era a dona Maria Trindade, o que ela fazia?

R - Toda vida que eu conheci ela, ela já era professora. Mas uma negrona, sabe? Feia, mas boa, que só você vendo, para ensinar. Quem não aprendia era porque era ruim, porque ela pelejava, tinha que aprender. Ela ensinava um, ensinava outro. Tinha menino grandão, ela pegava assim mesmo, tinha menino pequeno, ela pegava, não dispensava ninguém. Todo mundo precisava de estudar, né? Ela ensinava todo mundo, era muito boa!

P/1 - Mas a escola nessa época já chamava Maria Trindade, ou tinha outro nome?

R - Não! Era a escola Graciano Calcado. E depois que ela faleceu é que pôs o nome de escola Maria Trindade Rodrigues.

P/1 - Por que era ela que dava aula nessa escola, e ela era a professora mais famosa?

R -

É! E ela morava aí, na escola.

P/1 - E como ela era?

R -

Vixe, era brava, enfiava o coro nos meninos dela e tudo. Mas tinha que aprender.

P/1 - A senhora lembra de alguma história que aconteceu nessa época? Aconteceu alguma coisa com a senhora, ou com alguém?

R - Não! Ela era assim, ela era exigente. Se o menino aprontasse, ela colocava de castigo. Eu nunca fiquei de castigo, não! Ela punha de castigo. Outra hora, tinha uma palmatória, parecendo uma colher de pau, sabe? Quando enfezava ela, ela batia mesmo, e punha de castigo, tinha que ficar lá caladinho, de castigo.

P/1 - Mas isso nunca aconteceu com a senhora?

R - Nunca, nunca, graças a Deus!

P/1 - E a senhora gostava de estudar?

R - Demais! Para o meu gosto, eu ia para cidade, para estudar, mas cadê? Não tinha casa, não tinha nada para gente ficar, a gente não podia ficar na casa dos outros. Quase ninguém gostava que ficasse na casa deles, era tudo difícil. Então eu saí da escola, fiquei com pesar, mas saí.

P/1 - Por que esse lugar que a senhora morava, que era o Pinheiro, era longe, é isso?

R -

Era longe, mas não era muito não! Daqui lá não é muito longe não.

P/1 - Mas como a senhora fazia para vir para a escola?

R -

Vinha de a pé.

P./1 - E vinha sozinha?

R -

Não! Vinha mais os colegas que moravam mais para cima também. Então eu tinha uma colega, nossa senhora! Quando uma passava primeiro, depois vamos para outra, para saber que já passou. E nós tinha uma amizade, só você vendo.

P/1 - Qual o nome dela?

R -

O nome dela é Dejanira, era, ela já faleceu. Ela deitou um dia, demorou a levantar, o povo foi olhar, já estava morta. Mas é minha colega de estimação, nossa senhora.

P/1 - E aí vocês se juntavam para ir para a escola? Tinha um grupo de crianças que ia para a escola?

R - Uns menores, outros grandões, era assim. Era gente de todo tipo. A professora pegava, sabe? Ela falava, "eu não vou deixar de aceitar eles, porque é grande. Outra hora, porque é pequeno". Ela juntava todo mundo, numa escola só, só tinha uma sala.

P/1 - E não dava confusão quando juntava um monte de crianças?

R - Não! Ela punha sentido em tudo, ela punha as crianças de um lado e os adultos no outro. Então aí ela ficava para lá e para cá, não tinha jeito deles brigarem, não brigava, não! Era a coisa mais boa que tinha, quando a gente tava na escola.

P/1 - E ela também era rígida?

R -

Vixe! Se brigasse, ela puxava a orelha, ou então dava a palmatória. Ela fazia assim

P/1 - O que a senhora gostava de estudar naquela época?

R - Eu gostava mais de história. Só o que eu não gostava muito era de matemática. Matemática é ruim, isso eu não gostava muito não. Mas outras coisas, história, esses outros trem, tudo eu gostava.

P/1 - E ela ensinava tudo, como é que era?

R -

Ensinava tudo! Ditado, ela dava ditado. Passava um tanto de coisa no caderno para a gente fazer, cada um fazia de um jeito. Os meninos eram separados, os pequenos. Eu quantas vezes já ensinei os outros, ela falava os que estão mais adiantados ensina os mais pequenos. Eu já ensinei muita lição aos meninos.

P/1 - A senhora gostava dessa coisa de ensinar também?

R - Achava bom! Só o que eu não gostava era de matemática, esse negócio de tabuada, pergunta uma coisa, pergunta outra. Uma a gente acerta, outra a gente não acerta, é ruim, só isso!

P/1 - Como é que era essa escola? Como ela era fisicamente? Tinha quadra?

R - Não! Não tinha não! Só tinha o quadro grande, que aí escrevia, a gente tirava do quadro, a gente escrevia do quadro também. Às vezes era uma coisa que a gente tinha que escrever no caderno, todo mundo copiava do quadro. Mas não tinha esportivo, não tinha esses trem não! Nem merenda não tinha! A gente fazia era assim, ela falava, “fulano de tal traz um pedaço de rapadura, outro traz outra coisa, se tiver queijo, traz um pedaço de queijo”. Era assim que fazia. Juntava aquele tanto de gente, cada um levava uma coisinha. E não tinha pasta de por os cadernos, esses trem, a gente fazia sacola de coisa de açúcar, sacola de pacote de açúcar, fazia assim. Outra hora, fazia embornal de pano, cada um levava um.

P/1 - E essa coisa da comida era assim?

R -

Tinha dia que dividia. Outra vez, cada um comia o que levava. Era assim.

P/1 - E a dona Maria Trindade, ela ensinava todas as matérias, é isso?

R - Ensinava!

P/1 - Era uma professora que ensinava tudo? Ele ensinava matemática, ensinava composição, tudo, tudo?

R -

Tudo!

P/1 - Ela sabia um pouco de cada coisa?

R -

Ela sabia muito! Oh, professora que era boa e sabida

P/1 - Como era essa coisa do trabalho na infância?

R -

A coisa do trabalho, era assim: tinha roça, meu irmão fazia roça, a roça era assim, do outro lado do Rio, a gente atravessava o rio e ia para a roça. E a minha mãe era dessas pessoas assim, que gostava de plantar os trem, podia estar o mato que fosse, aquilo que a gente fizesse, limpasse ali tudo, covasse e ajudasse a plantar. Nós ia mais cedo e ajudava ela, antes da escola não, cedo a gente ia para a escola, quando chegava da escola que nós ia para roça ajudar ela. Ela falava, “o, meus filhos, vocês não tem pai junto para ajudar, nem nada, vocês tem que me ajudar”. E nós ia para a roça e ajudava ela. E quando o sol esquentava muito, nós vinha embora para casa, e ia arrumar a cozinha… e ela ia cortar costura. Porque ela era costureira, costurava para os outros, para fora. De noite ela ia costurar, ela tinha uma máquina pequena, tinha rodinha pequena assim ó, ela costurava nessa máquina, fazia calça, camisa, vestido. Fazia cada vestido godê, ela fazia vestido mais lindo, godê. Fazia roupa para os outros e tudo. Depois que eu casei, que eu comprei uma máquina de pé, costurava nela, achava bom costurar. Mas tinha dia que ela tava costurando de noite eu deitava na mesa mais ela, fazia companhia.

P/1 - Quando a senhora era adulta começou a costurar também?

R - Fazia roupa para os meus meninos, fazia roupinha para os meus meninos.

P/1 - Como era esse trabalho da roça, o que a senhora tinha que fazer?

R - O que tinha que fazer era capinar. Capinar você sabe, né? Capinar o mato. E cova para poder plantar cana, mandioca, arroz. Os homens que plantava, mas eu ajudava tudo, eles semeavam e eu ia tapando, semeava e eu ia tapando.

P/1 - E nessa época de infância, a senhora contou que trabalhava, contou também que estudava, vinha para a escola…

R - Estudava mais era no caminho, na hora que vinha para escola, é que ficava lendo os trem, estudando pelo caminho, porque não tinha prazo. Que a gente pobre, a mãe pobre, tudo pobre, a gente tinha que ajudar. E quando ela ia trabalhar a gente tinha que ajudar também.

P/1 - E divertimento, tinha divertimento? Vocês brincavam, dava tempo?

R - Brincava o que? Quando brincava a gente fazia carrinho de marmelada, esses trem assim que os meninos, homem fazia. Agora a gente fazia, quebrava a boneca de milho, enrolava num pano, era uma boneca. Era só um tiquinho também que brincava, o mais era só serviço.

P/1 - Nem dava para brincar muito?

R -

Era um tiquinho só.

P/1 - E aqui na comunidade, como era o divertimento nessa época da infância?

R - Eu vou falar para você a verdade, se tivesse uma festa, alguma coisa aqui na Lagoa, às vezes eu ficava com vontade de vim, mas não podia vim. Minha mãe vinha, mais as companheiras dela, ela gostava de dançar, e tudo! Eu ficava olhando os meninos, os mais novo, ficava em casa, olhando os meninos mais novo. Minha infância foi isso.

P/1 - Mas nem na igreja podia ir?

R -

Na igreja nesse tempo eu não ia não, eu ficava só em casa. Eu peguei de ir na igreja foi depois que eu casei, que eu ia muito na igreja.

P/1 - Mas sua mãe, seus pais, iam muito na igreja, ou não também?

R - Não! Meu pai não ficava junto com nós não, ficava só com mamãe e os irmãos. Meu pai amuou lá na roça, e não quis vir para cá não.

P/1 - Por que o seu pai não estava lá para ajudar, conta pra mim?

R -

Por isso, porque o meu pai… nós morava na roça, e minha mãe queria que ele vendesse o gado para comprar uma casa na cidade, para por nós na escola, ele não quis! É desses homens assim, aperreado, sabe? Ele não quis, o gado foi morrendo, morrendo, morrendo. Nem ficou com gado e nem comprou a casa. E minha mãe foi e arrumou uma casa aí no Pinheiro para nós vir, para estudar um pouco. “Coitado dos meninos, ficar sem estudar nada!” É ruim, né? Aí nós estudou um pouco.

P/1 - E o seu pai não ficava lá com vocês, então?

R -

Não! Meu pai não morava aqui com nós não. Ele ficou lá, com a minha avó, junto com a minha avó e um irmão meu também ficou lá. Depois adoeceu e veio para cá. Morreu no nosso poder. Para você ver como é as coisas. Nós que olhamos ele até ele morrer.

P/1 - Mas faz tempo que ele faleceu?

R -

Tem anos demais!

P/1 - Seu pai faleceu antes da sua mãe?

R -

Foi! Minha mãe faleceu depois.

P/1 - Vocês ouviam música nessa época de infância? Você tinha acesso, ou não?

R - Que música, meu filho? Nós não tinha rádio, não tinha nada, não! Não ouvia música, não! A música era só trabalho.

P/1 - Mas como assim música do trabalho?

R -

Trabalhava em roça, nos trem. Lá perto de casa, tinha um negócio que dava semente, eu esqueço o nome da semente que dá…. provisório. Tinha um provisório assim, na porta de onde nós morava, nós cortava provisório, montuava ele, para bater, para tirar a semente, a semente de provisório é carinha. E nós vendia a semente. Mas é baratinho, aqui em roça eles pagam baratinho, dinheiro de esmola. É assim que nós vivia.

P/1 - E quando é que a senhora foi ouvir música?

R -

Muito tempo depois! Depois que eu mudei para cá, é que nós compramos um rádio, um radinho, até na mão de Antônio Castilho que tinha aqui, é um negociante, comprou um radinho, desses de parede. Mas é bom rádio! Agora nós acostumamos com as músicas.

P/1 - Ai agora tem TV, tem outras coisas também, mas isso tudo foi chegando depois?

R - Foi! Foi chegando depois.

P/1 - Nessa época da infância, que vocês viviam na roça e vinham para a comunidade só para estudar, como é que era as histórias entre vocês? Vocês contavam histórias? Os mais velhos contavam histórias para os mais novos? As crianças contavam histórias um para o outro? Como é que era isso?

R - Contava, mais umas historinhas boba. Os mais velhos não tinham união, não, de ficar tudo unido, conversando, contando história. Quase não contava história.

P/1 - E essas histórias bobas que a senhora está falando era história do que?

R - História de primeiro, quando tinha as pessoas tudo dentro de casa, mas dentro de casa, um falava um trem, outro falava outro. Assim, muita coisa boa, a gente não tinha não.

P/1 - Quando a senhora era criança, a senhora pensava o que a senhora queria ser quando crescesse?

R

- Eu pensava que eu queria estudar. Eu queria estudar bem, mas não deu certo, não comprou a casa na cidade para nós estudar. Aqui não tinha, só tinha até quarta série. A gente não tinha com quem a gente ficar na cidade, fazer o que, né? É isso aí! E logo eu peguei empregado com os outros. O povo chegava lá e falava com mamãe, “Nina, deixa essa menina ficar comigo, empregar comigo e tudo…" Ela deixava, a gente ia. Mas casa dos outros é de amargar. Tem umas pessoas que tratam a gente muito bem, outros já tratam com casca e tudo. A gente passa muita coisa.

P/1 - Nessa época que a senhora começou a trabalhar, que época era, que começou a chamar para trabalhar na casa dos outros? A senhora já era mocinha?

R - Já!

P/1 - Como é que foi isso?

R -

Eu já era mocinha! Uma vez eu fui para Brasília, fiquei em Brasília 8 meses com uma mulher. Depois eu vim, fiquei em Paracatu também. Uma eu ficava 2 meses, outra eu ficava mais. Quando eu casei mesmo, eu sai de uma casa que tinha mais de ano que eu estava. A mulher era costureira, ela não fazia nada dentro de casa, e tinha um tanto de menino. Eu que olhava os meninos, dava banho nos meninos, não saía em lugar nenhum. Ela era crente, quando ela não tava costurando, ela ia para igreja. E eu ficava com os meninos, parecia que eu que era a mãe. Tinha o Evaldo, que eu não esqueço, ficava, “mamãe”. Me chamando de mãe, ao invés de chamar a mãe dele de mãe, me chamava de mãe.

P/1 - Os filhos dessa mulher que era costureira chamava a senhora de mãe?

R - Hunrum. Ela, “a não, é porque você é boa para eles, eles gostam muito de você e tudo". Um chamava Evaldo, o outro Carlos, uma chamada Tânia, tudo enrabichado comigo. Quando eu vim para cá, que eu fui casar, que eu vim para cá, eles chegaram chorando. “Ah mãe, a senhora não vai, ninguém mais…” Tudo gostava de mim! Mas eu não podia ficar toda a vida, né! Casa dos outros.

P/1 - Por que era difícil trabalhar em casa de família, o que acontecia?

R - Eu fui ficar com uma mulher que era irmã da minha mãe, por parte de mãe, só, por parte de pai. Minha mãe era filha natural do pai dela. Quando o povo falava, “mas essa menina parece com você”. Ela já faleceu! Ela falava, “a mãe dela é filha natural do meu pai.” Falava desse jeito! Então eu sabia que ela estava com orgulho. E eu fazia tudo, eu lavava roupa, eu cozinhava, eu fazia tudo quanto é trem. Quando foi um dia, ela foi no mercado e comprou uma abóbora, comprou abóbora, e sumiu para a rua, ficava só caminhando na rua. Eu não sabia que não era para fazer, peguei e fiz abóbora de tarde. Ela foi e falou comigo assim, “para que que você fez essa abóbora? Eu não mandei você fazer ela!” Eu falei, “eu pensei que era para fazer, porque não tinha outra coisa de mistura”. Ela foi e falou assim comigo, “vontade de sentar a mão na sua cara!” Falou desse jeito comigo! Mas eu fiquei num sentimento! Eu queria vir embora, depois eu não vim não! Falei, "eu não vou, porque o povo conversa muito, chegar lá fala, foi embora porque não deu certo, isso, aquilo outro”. Então, eu não vou! Fiquei mais ela até ela vir embora, eu vim mais ela.

P/1 - Mesmo com essas histórias a senhora chegou a trabalhar um tempo com ela?

R - 8 meses! Fiquei lá 8 meses com ela. E ela estava pobre nessa ocasião, ela fazia bolo de leite condensado, mandava eu vender na rua, eu ia na rua e vendia tudo para ela, dava a ela o dinheiro limpinho. Ela ficava alegre com o dinheiro, mas ela era bruta. E as filhas dela, ela tinha um tanto de filho, ela deitada na cama, punha os pés lá para cima, a perna lá para cima e ficava lá toda, toda, lendo revista e eu ficava com o serviço. Era desse jeito.

P/1 - A senhora lembra mais ou menos quantos anos tinha nessa época?

R - Que eu tinha? Parece ter uns 16 anos. Eu tinha uns 16 anos.

P/1 - E como aconteceu da senhora ir para Brasília?

R -

Isso já foi Brasília, já foi em Brasília! Agora depois nós mudou para Paracatu de novo, eu vim com eles. Eu empreguei de novo num tanto de casa, empreguei numa casa, ficava 4 meses, outra ficava 2, era assim. Foi indo, até que eu fui para uma casa que eu fiquei até que eu casei, empregada. Que os meninos me chamavam de mãe. Depois eu casei, veio meu patrão, a patroa, os meninos tudo veio para cá, me visitar.

P/1 - Como é que a senhora conheceu o esposo da senhora?

R - Eu conheci ele porque nós morava lá no Pinheiro e ele morava para cá, numa casa que tem aqui perto do rio, da praia. É rio ou praia? É praia! Ele morava lá! E o povo brincava com ele, para ele namorar comigo. E eu falei, “eu? Não quero ninguém da Lagoa! Eu não quero rapazinho da Lagoa, não! Não quero de jeito nenhum”. E ele ficava triste! E tinha um homem que morava mais lá para cima, falou assim, “eu vou casar você com essa menina da Lagoa, ela é boazinha.” Ele falou, “ela não gosta nem que fale meu nome, falou que não, que gente da Lagoa, não”.

P/1 - Mas por que falou que não queria da Lagoa?

R -

Porque não! A gente novo, é bobo! Depois nós ficamos gostando um do outro, não teve nada que tirasse isso. Pra mim a coisa mais linda que tinha no mundo era ele, nossa senhora! Depois nada, não cedia, não cedia nada no casamento, queria arrumar, mas não cedia, sabe? Nós namorava, eu tudo, mas não cedia. Quando foi um dia, ele foi na casa de um homem que morava lá no Santa Rita, o homem foi e falou assim, “ó, vocês não casa, isso não é de à toa, não é de à toa não, tem gente que fez com você, para você não casar”. E falou assim, “você vem aqui num domingo, que eu vou com você num lugar, que tem um curador, tem um curador bom para desmanchar esses trem.” Ele foi e ficou entusiasmado, e foi nesse homem! Chegou lá, ele arrumou um cavalo, arriou o cavalo e foi mais ele nesse curador. Chegou lá no curador, o homem falou assim, “eu falei com a mulher que tinha duas pessoas que estavam quase chegando aqui”. Falou com meu esposo, “estava quase chegando aqui, e era vocês, vocês dois”. Ele falou, “você sabe por que vocês não casa? Porque você tem uma namorada e você tinha outra namorada, e a mãe da namorada falou assim, "desaforo, você não casa com a minha filha, você não casa com mais ninguém, você não vai casar com essa moça, se você não tivesse vindo aqui, mas agora eu vou desmanchar para você”. Falou com ele assim, “você traz uma garrafa de pinga branca, não foi nada nela, não pra mim, você vem tal dia e traz, que eu vou te dar uma outra para você beber, mas você não dá para ninguém um gole dela, é só para você beber, você vai ver que tudo vai diferenciar para você.” Ele ficou todo entusiasmado! E foi no outro dia, no outro domingo, ele foi cedinho lá. Comprou a garrafa de pinga e levou para o homem, e o homem foi e deu a ele uma outra, para ele tomar sozinho. Ele foi e tomou! E falou assim, “quando você tomar essa pinga você vai receber uma surpresa, vai receber uma surpresa muito boa, e agora vai desenrolar tudo para você”. E ele foi e chegou depois, diz ele que conversou com a minha mãe, minha mãe falou, “esse casamento de vocês tá toda enrolada, vocês tem que desenrolar isso, decidir uma coisa ou outra, terminar ou então casar”. Daí decidiu tudo direitinho. Ele morava numa casa, ele foi, fez uma casinha pequena para mãe dele. Porque eu falava, pra mim casar e ficar junto eu não queria não, ficar junto briga, né? Ele foi e fez uma casinha para mãe dele, a mãe dele mudou para a casinha e nós arrumou e casou. Graças a Deus deu certo, nós não brigava, nem nada, fazia tudo junto. Agora que ficou ruim, porque Deus levou ele.

P/1 - Mas aí ele tomou a pinga que o curador deu e resolveu?

R - Resolveu! Ele levou uma branca para ele, uma pinga branca, e o homem deu a outra preparada para ele, resolveu tudo! Mas ele ficou feliz! Porque a outra namorada ele disse que não gostava dela não. Mas ficava junto, né! E a mãe dela foi e falou, “não, que não casa com a minha filha, não casa com a filha de ninguém!” Tem trem feito mesmo, né!

P/1 - Como foi o seu casamento? Como foi esse dia do casamento, como aconteceu?

R - Ele falou assim, “eu já gastei muito, eu não posso pagar do civil. Civil é mais caro”. Eu falei, “não, civil eu pago!” Eu tinha um dinheirinho, comprei os trem, mais pouco e deixei um tiquinho de dinheiro. Eu falei, “do cívil eu pago, você paga do padre que é mais barato”. Ele foi, pagou do padre e eu paguei de civil. Nós casamos no padre e no civil, na igreja. Depois nós viemos, veio todo mundo, nesse tempo não sei se era de carro que vinha. É de carro! Nós viemos e deu janta, fez doce, nesse tempo fazia doce. Veio um tanto de gente.

P/1 - E quem fez as comidas, preparou o casamento?

R -

A comida, os trem, foi a minha mãe e as companheiras dela que fez.

P/1 - E o que teve de comer nesse casamento?

R - Teve arroz, feijão, carne

e doce, tinha doce de primeiro. Todo mundo comeu doce e foi dançar, o povo dançou um bocado.

P/1 - E o que o povo dançava nessa época?

R -

Forró, esses trem.

P/1 - E teve forró no casamento?

R - Teve!

P/1 - E aí era o que, era rádio ou teve uma banda?

R - Não! Parece que era um homem que foi de sanfona, foi com a sanfona e tocou sanfona. Um bocado da noite, depois parou.

P/1 - Quando a senhora casou veio para essa casa que a gente tá aqui agora?

R - Não!

Não essa casa, não! É uma outra que tinha ali que o meu velho comprou. Que ele não tinha casa e a mãe dele ainda morava na casa do povo dele. Mas uma mulher muito enjoada…. ele ficou com dó da mãe dele, trabalhou até comprar esse terreno aqui tudo, até ali em cima onde o menino tem boteco, foi ele que comprou. E essa casa aqui, fez ela pequenininha, eu não gostava dela não, porque ela era pequenininha. Eu fui em Tocantins um dia, quando eu cheguei aqui, falei, “Leon, tem que aumentar mais porque a minha irmã vai vim, e ela vem com um tanto de gente”. Ele falou, “eu não vou mexer com casa não, só se for você mesmo, eu não vou mexer, não!” Eu pelejava para ele me dar o lugar, ele falava, “não, o lugar eu posso até dar, mas ajudar eu não vou ajudar, não!” Mas eu já tinha aposentado, eu falei, “não, Deus vai me ajudar e eu vou arrumar!” Eu fui e arrumei, aumentei aqui assim um bocado, do fogão para cá, aumentei e ficou a varanda grande, a cozinha grande. Mas aqui tinha um negócio, um paredão que tinha assim em cima, gotejava demais, quando chovia, menino, ficava aquela chuvona, enchia um tambor de 1000 litros de água. Eu ficava doidinha! Ia lá, as camas, tava tudo cheio de água debaixo, eu puxava para cá, puxava para lá. Ele chamava Leon: "Vamos arrumar essa casa!” Ele: “não, não vou mexer com casa. Nós estamos acostumados em casa ruim, agora você fica com prosa, eu não vou mexer com casa, não!” Mas eu falei, “eu tenho fé em Deus que uma hora eu consigo”. Depois, menino, eu fui juntando um dinheirinho no banco, juntando um dinheirinho no banco. Depois que ele faleceu é que eu suspendi ela, suspendi ela, aumentei ela e tudo, aumentei lá na sala, no quarto e tudo e aumentei aqui assim tudo, e ficou melhor. Mas é pititiquinha. Agora ela ficou altona, tá faltando só eu pintar ela.

P/1 - Nessa época mais antiga, como é que era a comunidade?

R - De primeiro era diferente, assim, porque as festas que tinha, todo mês de junho tinha as festas. As festas juntava aquele tanto de gente, vinha nas novenas, vinha aquele tanto de gente a cavalo, a pé e tudo. Ir para a igreja para ajudar a rezar. E tinha um couro aqui em cima, subia um tanto de gente lá para rezar no couro. Rezava bonito, era lindo de primeiro. E a comunidade juntava tudo, um trazia leilão, trazia cacho de banana, laranja, trazia tanta coisa, até biscoito, tudo. E a igreja ficava cheinha de coisa, para gritar leilão. Era muito melhor nesse tempo, todo mundo ficava alegre. E a igreja ficava cheinha de gente. Acontecia assim, eles fazia, vendia o leilão, vendia os trem, pagava mesada também. E o dinheiro era para pagar as coisas que gastava na igreja, pagava as coisas que gastava na igreja e o resto deixava para igreja, para comprar sabão, esses trem da igreja.

P/1 - Festa do que eles faziam?
R - Festa de Santo Antônio, São João e São Benedito. É três festas que fazia. Todas essas 3 festas… não, Santo Antônio era 13 noites, São João também era 13 e São Benedito… Fazia dos três santos e fazia as fogueiras. Tinha as fogueiras, fazia as fogueironas, três fogueiras. Agora quase ninguém, nem fogueira está fazendo mais.

P/1 - Mas por que não está acontecendo mais?

R -

Sei lá! Os mais velhos vão acabando e os mais novos parece que não acredita, vai acabando!

P/1 - A senhora tinha contado do batismo de São João. Como que acontecia esse batismo?

R -

Fazia o batizado, fazia fogueira, o povo rodeava os afilhados, os padrinhos, tudo na igreja e falando as palavras e ia batizando. E ficava como se fosse batizado mesmo.

P/1 - E por que não acontecia aquele outro batismo? Aquele comum na água?

R - Pois é! De primeiro era da água, mas na água…São João é Jesus, agora não é os dois e as pessoas que fazem, então faz na fogueira, com fogo.

P/1 - E hoje ainda existe isso?

R - Existe! Tem a casa de um velho ali que morreu mesmo, agora passou para filha dele, a filha que faz o batizado. Mas eu agora nem vou em nada, em fogueira, nem nada não, eu fico em casa mesmo. Elas não gostam que eu saia de noite, elas falam que eu não posso sair que pega friagem, que é ruim e tudo, então eu não vou.

P/1 - E quando tinha as festas, como eram as comidas?

R -

Não dava, não era comida na festa, não. Dava biscoito, biscoitada, biscoito escaldado, bolo, esses trem tudo. E refrigerante, coca, esses trem, que dava.

P/1 - E quem cozinhava isso na época?

R - Juntava tanta gente da comunidade. Aqui em casa mesmo, na minha casa, já deu café de Nossa Senhora da Abadia. A mulher era festeira, era comadre minha, todo ano ela dava o café aqui em casa, ela deu 18 anos, aqui em casa. Ficava moadinho de gente, tomando café. Ela fazia café, fazia tudo quanto era trem bom. O marido dela gritava nos leilões, era bom demais. E quando era o dia da festa, juntava aquele povão. E vinha tudo para cá, ficou 18 anos aqui em casa. Depois deu na cabeça de mudar para casa deles, eles moram lá longe, lá longe, daqui lá é bem longinho. Fez um ano só, no outro ano, os 2 adoeceu, morreu. Que coisa esquisita, parece que não queria que trocasse, né?

P/1 - E esse leilão como é que acontecia? O que que era esse leilão?

R - Leiloava biscoito, fazia tudo quanto era biscoito, biscoito escaldado, bolo, toda essas coisas ela fazia, um mundo velho de biscoito. E o povo gostava, juntava aquele povão, juntava gente de Santa Rita, do Pinheiro, do Barreiro, tudo quanto é lugar. Vinha tudo para cá, para o café da festa.

P/1 - A comunidade fisicamente, como que ela era? O que ela está de diferente daquela época para agora?

R - Não. Tem muita casa, renovou muita casa e tudo, mas o povo é diferente, o povo parece que não é muito religioso igual era.

P/1 - Porque antigamente tinha umas famílias aqui, as famílias que eram conhecidas, não é isso?

R - É!

P/1 - O que aconteceu com essas famílias?

R - Um bocado morreu! Já morreu muita gente. Essa que era festeira mesmo, não tinha uma festa boa igual a dela. O marido dela gritava leilão e tudo, só você vendo como é que era, uma satisfação mesmo. Tinha um tanto de filhos, os filhos foram morrendo tudo. Na casa dela tinha um monte de percevejo, sabe? Chupou os meninos e os meninos ficaram com sangue ruim e morreram. Quase todos já morreram.

P/1 - E o que foi acontecendo depois que os filhos nasceram?

R - Os meus?

P/1 - Isso!

R -

Eles foram crescendo, logo eles ajudaram eu trabalhar na roça. Tem um filho que ajudava a pescar. Ficava assim em casa, trabalhava muito em casa. Depois que eles foram crescendo, que eles foram pegando serviço dos outros, fazendo. Tem um que trabalhou lá na ponte de Santa Rita, lá em Santinha, Santinha falava até que era mãe dele. Trabalhou lá foi muitos anos, no balcão. Às vezes o povo ia comprar os trem lá, só queria comprar na mão dele, ele era o caixeiro e Antônio, o dono. Deixava de comprar na mão do dono e comprava na mão do caixeiro, gostava dele. Até ele falava, “Selene, Adélio é meu filho”. Ele morou comigo muitos anos lá, ajudou ela demais, ela fala, ela gostava muito dele. “É bom no balcão”. Todo mundo queria ele. Depois ele saiu, foi para a cidade, agora ele está ruim da vista. Ele vai para Uberlândia, para os lugares, para fazer cirurgia na vista, aplicação. Ele disse que dói para danar, mas não tá mais enxergando, faz aplicação, mas não tá enxergando quase. Porque ele tem diabetes, e ele, como é gordo, não tem reserva de nada. Agora pouco mesmo, ele foi em Uberlândia para fazer cirurgia, não pode fazer por que a glicose estava alta e a pressão também voltou sem fazer. Agora está marcando de novo.

P/1 - E os seus filhos estão todos por aqui, pela Lagoa, onde eles estão? Como é que eles estão espalhados agora?

R - Um mora ali, assim, tem a casa dele ali, assim. Casou, depois separou, ele tá aí, ele trabalha todo dia. E o outro tá na cidade, esse Adélio que eu falo, trabalhava no posto de gasolina, agora que ele não está enxergando muito bem, parou, não está trabalhando não. E um foi para Mato Grosso, o mais novo. E o outro tem o boteco aí.

P/1 - Esse que foi para Mato Grosso, ele trabalha com o que lá?

R -

Ele é pedreiro.

P/1 - Mas os seus filhos todos já tem família?

R - Não! Ele não é casado, não. Ele tem 10 anos que trabalha com homem lá, ele não larga ele de jeito nenhum, nem ele larga o homem e nem o homem deixa ele.

P/1 - Qual é a diferença da comunidade antes, essa do passado para agora? O que a senhora vê de diferente?

R - De primeiro era tudo unido, tudo unido, trabalhava, mas tudo perto um do outro, agora um vai para o lado, outro vai para o outro longe, ficou mais ruim.

P/1 - A senhora vê muita diferença na comunidade hoje?

R - Ah tem! Tem muita diferença. Que só dos filhos da gente esparramar para um lado, para o outro, é ruim. Igual mesmo, tem um que trabalha na fazenda, outro trabalha no Mato Grosso, outro por aqui mesmo.

P/1 - Como foi a época do garimpo?

R -

Essa época do garimpo foi boa demais, porque era assim, nós mexia com roça, e quando não tava mexendo com roça, nós ia para praia garimpar, dava pouquinho, mas já aumentava um pouco. Nós ia, meu marido ia, eu ia também para lavar para ele, ele punha, eu lavava, depois apurava e nós vinha embora. Cada um tirava um pouquinho, mas tirava. Agora depois que a RPM tomou conta, proibiu o garimpo, proibiu pescaria, não pode pescar mais, que pescava muito também, proibiu tudo. Agora a gente ficou só com a roça e outros servicinhos assim, que a gente fala.

P/1 - E como é que foi essa época que garimpava, ganhava um dinheirinho com garimpo e depois já não ganhava mais, o que aconteceu com a vida de vocês?

R -

Ficou muito mais ruim! Ficou mais ruim, porque ficou só pela roça. Mas a roça, a gente trabalha no terreno dos outros. Colhe aquele mantimento, tem que partir na meia, nós vivia assim.

P/1 - E mudou muito a vida de vocês?

R -

Mudou! O garimpo era uma beleza! Garimpava, quando dava assim no final de semana, ia para cidade, comprava sela, o que precisasse que comprava. Agora depois que acabou o garimpo, ficou mais difícil.

P/1 - Ai depois veio a RPM e depois veio a Kinross. E aí como ficou a cidade nessa época?

R -

Ficou tudo ruim! Para nós da roça, ficou ruim. É bom para quem trabalha, trabalha lá, que ganha o dinheiro e tudo. Mas para quem mora na roça, ficou foi pior. Assim, tinha muita gente, que tinha lugar de plantar, tinha muito quintal plantado laranja, tudo quanto é… mandioca. Acabou tudo, eles compraram tudo. Agora não tem mais! Tinha cada chácara linda, tudo plantadinho.

P/1 - Mas aí eles compraram por que?

R -

O genro de Santinha mesmo, tinha uma casa da mãe dele, plantadinha de tudo, só você vendo o quintal, que maravilha que era, acabou tudo, eles compraram, agora só o buraco, arrancou a casa, uma casa linda que tinha. A gente ia lá passear de vez em quando, visitar eles. Que casa mais bonita! E o quintal fazia gosto, tudo quanto é qualidade de fruta tinha, arrancou tudo, agora é só o buraco. Tinha um outro mais para lá também, que plantava tudo no quintal, mandioca, esse trem tudo, comprou tudo, virou buraqueira só. Só buraco. Porque você é gente, cidadão, não conhece roça, mas se vocês fosse, você ficava horrorizados, acabou com tudo, fez o povo mudar e tudo. Um bocado mudou para a cidade, outros ficaram por aí mesmo, num lugar mais ruim.

P/1 - A senhora já foi na barragem? Como é que é lá?

R - Já! Nossa, mas nós já fomos na barragem. Teve uma vez que eu tava com medo dela estar arrebentando, levou o povo de ônibus, aquele tanto de gente, para ver como que tava aquele mundo de água. Depois a água foi secando mais, e tinha peixe demais, aquelas trairona preta, sabe? Aqueles peixão preto, eu não tenho coragem de comer. O povo, muita gente pescava lá, escondido, mas eu nunca comi um peixe de lá. Foi secando, secando, depois eles ficaram com medo de arrebentar. Agora fez mais para cima, tem mais barragem.

P/1 - Mas pescar também não pode mais?

R - Não pode mais, não! Se alguém pescar algum peixinho, é escondido, é para lá, para outros lugares, sem ser para lá, perto da barragem, lá não pode, não.

P/1 - E hoje não tem nenhum outro lugar para pescar em Paracatu?

R -

Não! Às vezes os donos dessas outras fazendinhas, às vezes tem alguns peixinhos, mas eles não gostam que pesque, para pescar é escondido, assim de noite, para pescar um tiquinho, um peixinho só, não é igual era mais não.

P/1 - Porque a senhora tinha contado que na roça vocês comiam o que vocês produziam. E quando um não tinha vocês trocavam entre as famílias. E depois, o que aconteceu?

R - Agora não tem mais jeito não, agora tem que comprar carne. Lá na fazenda onde minha filha trabalha, os patrões dela, tem três patrões, eles moram lá perto, eles são muito bom para gente. Então, meu menino de vez em quando pesca lá, mas o peixe que eles pesca, não pode trazer para cá não, só comer lá. E o meu genro compra peixe, surubim, esses peixes, num outro rio que tem lá perto, ele vai lá e compra na mão de um homem que mora perto do rio, surubinzão grandão, aqueles peixão grande. Porque a minha filha cozinha, eles gostam de pôr os peixes, os trem tudo misturado, compra surubim. Mas para trazer para cá não pode, porque a polícia não deixa, polícia pega lá na barreira. Ele não traz um peixe para mim.

P/1 - A senhora tinha me contado sobre a Lagoa. Me explica, por favor, por que ela chama Lagoa Santo Antônio?

R -

Lagoa de Santo Antônio, porque ela tinha Santo Antônio. Santo Antônio é uma imagem, a imagem morava lá na Lapa, tem uma Lapinha de Santo Antônio, então a imagem vinha para cá e ficava aí na igreja, vinha de a pé, caminhando, igual a gente. Vinha de precatinha, tinha a precatinha dele. O povo via a precatinha assim ó…. Eu vejo contar, que eu não lembro desse tempo não, os outros que conta, Santinha, esse povo tudo me conta. E vinha e ficava aí na igreja, com pouco o povo pegava e ficava adorando ele, ele chispava de novo, para a Lapa. Essa Lapa lá o povo faz promessa, reza e tudo lá. Lá na Lapa…. Depois o povo ficou amolando ele muito, ele foi, desceu a pedrona, e tampou a boca, tampou a boca do poção, agora ele não vem mais. Ele tá lá.

P/1 - E aí ficou o nome de Lagoa de Santo Antônio?

R - É! Lagoa de Santo Antônio. E aqui é mais velho que Paracatu, muito mais velho que Paracatu aqui, essa Lagoa.

P/1 - A Lagoa já existia antes da cidade de Paracatu?

R -

Antes da cidade, ela é mais velha do que Paracatu.

P/1 - Mas o que tinha aqui na Lagoa nessa época, antes de começar Paracatu? O que te contaram?

R - Isso daí já não é do meu tempo. Uns falam uma coisa, outros falam outra, falava de Santo Antônio, que eu sei que eles falavam,

que ele vinha e voltava. Agora o resto eu não sei muito. Quando eu vim para cá, já tinha passado um bocado.

P/1 - Quando você veio para cá já era Lagoa de Santo Antônio mesmo, já tinha o nome e a comunidade já estava formada?

R -

Já tava formada, a igreja ficava cheia de gente, não tinha negócio de igreja vazia nem nada, cheinha de gente, era bom nesse tempo. Eu ficava doidinha para vim, mas quase não vinha, ficava vigiando menino.

P/1 - Quando a senhora veio para cá, a igreja já existia?

R - Já! Tava do mesmo jeito, só que era diferente, porque era muita gente de primeiro e agora vai pouca

P/1 - E cabia muita gente na igreja naquela época?

R - Cabia!

Ficava cheinha, rolhadinha de gente.

P/1 - O que aconteceu no final com o seu esposo?

R - Ele trabalhava com roça, na roça, derrubava mato, derrubava mato de machado, mato grosso, e depois roçava e picava tudo, montuava as lenhas tudo e preparar a terra para plantar. Plantava mandioca, milho, tudo que tinha que plantar, ele plantava.

P/1 - E aí ele ficou muito anos trabalhando com isso?

R -

Muitos anos trabalhando.

P/1 - Ele aposentou nessa profissão?

R -

Aposentou quando já estava bem de idade, que aposentou, né? Antes de ele aposentar, ele mexia com a roça e com o garimpo. Depois que ele aposentou é que não teve o garimpo mais. Ele deixou o garimpo, porque não podia garimpar.

P/1 - Como que foi esse período?

R -

Ele faleceu, mas levou muito tempo ainda para ele falecer.

P/1 - Mas o que aconteceu com ele?

R - Aconteceu que ele quase não gostava de alimentar, alimentava

pouquinha comida. Ele foi ficando fraquinho, ele já era miudinho, ele foi ficando fraquinho e tudo. Nós levava ele para consultar, mas ele odiava remédio. “Não vou tomar remédio!” Ele gostava de tomar era Catuaba, esses trem. Ele gostou de tomar catuaba! E falava, “não vou tomar remédio, porque é só o dinheiro da gente, remédio não vale nada!” “Vale sim, se não tomar é pior!” Adulava ele para levar na consulta, ele não queria. Aí ele foi ficando fraquinho, fraquinho e ele ficava só em casa. Eu ia na cidade mais ele. De primeiro, a gente recebia o dinheiro dele. Outra hora, eu recebia para ele, comprava as coisas de precisão e nós vinha embora. Depois ele ficou sem aguentar nem andar quase, andava pouquinho. Ele ficava em casa, falava, “não, você vai e arruma para mim”. Eu ia arrumar o trem dele que precisava, deixava comida pronta, falava, “a hora que você quiser comer, você esquenta e come”. Ele não esquentava, ficava esperando eu chegar, enquanto eu não chegasse, ele não comia. E se eu demorasse da hora que marcou, ele ficava com ódio. “Ah não, você marcou de vim meio-dia e não veio”. Ficava com a cara ruim, tristinho… Eu ia, arrumava o de comer, punha para ele, ele ia almoçava e ficava sentado na cadeira. Aquela cadeirinha ali ó! Essa cadeira era dele ficar sentado. Sentava na cadeira e ficava quietinho. Quando era de tarde, chamava ele para tomar o banho. “Agora não tô com vontade de tomar o banho. Agora não”. Depois resolvia, tomava. E foi indo, ele foi ficando fraquinho, fraquinho. Levou ele para o hospital para poder consultar, ele tava tão fraco esse dia, falou para Antônio, “ah Antônio, eu não tô aguentando caminhar, me carrega”. Foi o Antônio que carregou ele e pôs no carro, levou para o hospital, chegou lá ele sentiu ruim, ele sentiu ruim, depois a doutora reanimou ele. Logo ele morreu! A gente lembra das pessoas, as pessoas que a gente é acostumada e tudo, é ruim, é triste.

P/1 - Vocês foram casados por quanto tempo?

R - 53 anos! Eu casei novinha, nós ficamos casados 53 anos. E para ele, era a coisa melhor do mundo.

P/1 - E agora que ele foi embora?

R -

Agora ficou ruim. Até hoje eu sinto falta dele.

P/1 - Faz quanto tempo mesmo que ele faleceu?

R -

Vai fazer seis anos. Tem 5 anos completo, vai fazer 6.

P/1 - O que a senhora gostaria de deixar como seu legado?

R - Deixar para eles a lembrança, um bom nome, porque outra coisa não tem. Eles são um tanto, eu não dou conta de deixar para um, para outro, então não deixo para nenhum, não é?

P/1 - Me explica o que é um bom nome para a senhora, por favor?

R -

Pra mim um bom nome, é seguir Jesus, seguir a palavra de Deus, ouvir os evangelhos, por tudo em prática. Porque como diz, “Jesus é o Senhor, Salvador e Libertador da vida da gente”. A gente sem Jesus não é nada, sem Deus não é nada! O que eu quero deixar para eles é isso, seguir os mandamentos de Deus. A coisa que eu sigo é isso, o mandamento da lei de Deus, palavra de Deus, o evangelho do dia, tudo eu gosto, a missa. A coisa que eu mais gosto é de assistir uma missa, eu ligo a televisão na Canção Nova, é tanta missa bonita, tanto testemunho bonito que os padres dá, nossa, mas é bom demais! Então, o que a gente quer mais do mundo? A gente quer as boas obras, as boas obras que tem, que a gente faz, que a gente vê nos livros, na Bíblia, na igreja.

P/1 - A senhora teve algum sonho, ou tem ainda algum sonho?

R -

De vez em quando a gente sonha. Mas sonho é bobagem, né?

P/1 - Por que?

R - Eu acho que é, eu acho que é, sonhar é bobagem. Sonhar com quem já morreu não é bom, o povo fala que não é bom a gente sonhar com quem já morreu.

P/1 - E a senhora ainda sonha com as pessoas que já faleceram?

R - Sonho! Eu sonho, vejo eles conversarem, tem dia. Eu vejo eles conversando, mas eu faço é rezar. Eu rezo, entrego eles na mão de Deus, e peço a Deus para cuidar deles. O que eu vou fazer mais?

P/1 - O que a senhora achou de contar sua história para o Museu?

R - Pra mim, eu não achei ruim, não! Eu acho ruim só os outros ficar me cutucando, me ralando, só isso! Mas pra mim foi bom, pra mim não tenho nada a queixar. Você não fez nada de mais, né?

P/1 - A gente que é do Museu, o pessoal da Click, a gente agradece a senhora ter contado a sua história. Muito obrigada, dona Selene.

R - De nada! Mas a gente não conta direito não, esquece muito trem.