Museu da Pessoa

Vida nova para a Praça Roosevelt

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ivam Cabral

P/1 – Ivam, pra começar eu queria que você falasse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.

R – Eu sou Ivam Cabral, Ivam com ‘m’ de Maria, um erro de cartório que me perseguiu e me persegue, eu nasci no dia 25 de junho de 1963, em Ribeirão Claro, interior do Paraná.

P/1 – Você pode falar o nome dos seus pais?

R – Falo. Meu pai se chama José Francisco Cabral, minha mãe, Eunice Silva Cabral.

P/1 – E os seus avós?

R – Eu não conheci meus avós.

P/1 – Nem de pai, nem de mãe?

R – Eu conheci um avô só, o pai da minha mãe. Meu pai nasceu em 1921 e ele era o filho caçula de uma família imensa, de 12 filhos, então os meus primos tem idade pra ser todos os meus pais. Então é uma família muito antiga, imagine que o pai do meu pai, meu avô, ele nasceu em mil oitocentos e sei lá... 1880, 1870; Zeferino era o nome dele, a mulher dele era Efralzina. Não conheci. Por parte da minha mãe, Pedro e Ana, eu só conheci o Pedro.

P/1 – E qual que é a origem dessa família tão antiga?

R – Então, a família do meu pai portuguesa, eles vieram e ficaram em Resende, no Rio de Janeiro. E também a minha avó, a Efralzina, ela meio que saiu fugida com o meu avô e eles foram viver no interior do Paraná, ali no Norte velho do Paraná. A gente tá falando do final do século XIX, e eles são desbravadores daquela região e tal. Meu avô foi delegado de... eu não sei como chama, delegado de terra, delegado que distribuía terras pro governo naquele período. Eu não sei a pergunta que você fez, o que era?

P/1 – Qual a origem dessa família?

R – Ah, então, essa família portuguesa; a família da minha mãe já é mais misturada são assim mineiros também, mas também são desbravadores do Norte do Paraná, mas de um outro lugar, de Venceslau Braz.

P/1 – E o quê que seus pais fazem ou faziam?

R – Meu pai era pedreiro e analfabeto, a minha mãe costureira.

P/1 – E você sabe alguma história de como eles se conheceram?

R – Claro, sei tudo. A história dos dois é muito legal, muito bacana, aliás, super cinematográfica, aliás, virou um telefilme que eu escrevi o roteiro e foi produzido pela TV Cultura há dois anos talvez...

P/1 – Que chama como?

R – ‘A noiva’.

P/1 – ‘A noiva’?

R – É. A minha mãe era de uma família evangélica muito tradicional dessa cidade Venceslau Braz. A família dela, eles fundaram o Bamerindus pra se ter uma noção um pouco de quem eles eram. E ela conheceu o meu pai, que era um pedreiro que estava trabalhando ali na cidade. E ela meio que tinha sido... eu sou um bom contador de história me interrompe tá? Eu falo pra caramba...

P/1 – Não, a gente adora.

R – É? A minha mãe, ela meio que foi criada pra não casar, tipo, ela cuidaria dos irmãos dela, e os meus tios todos estudaram e tal, eles eram tradicionais. E a minha mãe não estudou porque ela tinha que cuidar dos filhos, ela não se casaria, portanto, ela não precisaria estudar nada. E ela se engraçou com o meu pai, que trabalhava na casa vizinha do lugar onde ela aprendia corte e costura na cidade, nos raros momentos que ela saía da fazenda de onde ela morava. E eles se conheceram, ela se apaixonou por ele, eles começaram a namorar, ela era tipo o patinho feio da família - falavam que ela era feia, que ela nunca se casaria, um monte de coisa assim. E daí quando a família dela soube que eles estavam namorando, que estavam ficando e tal, meio que jogaram uma maldição nela, tipo então “Você escolhe a gente ou ele”, ela escolheu ele, ele era católico. Daí ela estava fazendo corte e costura, fez um vestido lindo de noiva. E daí quando então se definiu que ela se casaria com ele, meu avô falou que só no civil, nunca na igreja, porque ele não se converteria a igreja deles, adventista do sétimo dia, então a minha mãe casou só no civil e foi embora de Venceslau Braz. E se casou de noiva, na igreja, que era o grande sonho dela muitos anos depois quando já tinha três dos meus cinco irmãos, que assistiram o casamento dela e do meu pai, ela entrando de noiva, eu ainda não tinha nascido. Então eles se conheceram assim.

P/1 – E quantos irmãos são?

R – Cinco.

P/1 – Fala aí a filinha.

R – A filinha: o Irineu, é o mais velho, depois Ivani, sonhei com ela essa noite, aliás, depois a Irani, depois, Edimir, olha os nomes! Depois o Cláudio e depois eu.

P/1 – Ah, você é o caçulinha?

R – Desculpa... eu, depois o Cláudio, eu minto a minha idade, por isso. Então eu tenho 46 anos, eu minto que eu tenho 39, 40 pra todo mundo, não tenho problema com idade, mas brinco com isso. Então eu fui inventando a idade e o meu irmão foi ficando mais velho do que eu, olha só, então agora eu virei o caçula, mas é mentira.

P/1 – E como que era essa casa assim de infância?

R - Ai, olha você ta me pegando num dia que eu tô super louco assim, talvez a gente tivesse que fazer isso num outro dia.

P/1 – É mesmo? Por quê?

R – É, a minha mãe tem Alzheimer e é uma coisa que explodiu nesse momento assim na minha vida, um processo que foi se segurando, mas a menos de um mês ela perdeu totalmente a memória e não tem reconhecido as pessoas e tal, então falar disso me emociona um pouco. Mas eu tenho muito orgulho dessa minha origem porque a gente era muito, muito pobre quando... eu não tenho problema em falar isso e não choro quando falo isso porque, como eu disse, eu tenho orgulho sim dessa minha origem, mas agora a figura da minha mãe tá muito forte na minha cabeça. Mas enfim, a gente nasceu em uma casa amarela de madeira, que quando chovia muito forte a gente tinha que entrar embaixo de uma mesa. Muitas vezes quando eu era pequeno acordava no meio da noite e a gente tinha que ir embaixo de uma grande mesa que tinha em casa, que era o único lugar seguro da minha casa. Se a casa caísse a gente seria protegido por aquela mesa de madeira. A gente comia o que plantava e o curioso dessa pobreza, é que a gente tinha essa coisa da minha mãe, talvez essa formação humanista que ela tinha tido lá com a família e tal, que ela dizia que eles eram pobres, que a gente era pobre, mas que todos os filhos estudariam, iriam pra universidade, seriam alguém. Ela conseguiu fazer isso. Se vocês conhecessem o meu irmão, meus irmãos vocês achariam que eu tê mentindo, que tudo isso é balela. Eles não gostam que eu fale essa história que é contada, eu vivo falando, enfim, prefácio de livro, telefilme da Cultura, enfim a minha vida sempre um livro aberto, eu adoro falar. Mas, enfim, é isso.

P/1 – E o que tinha de brincadeiras, o cotidiano?

R – Então, minha mãe costurava, então a casa era sempre muito cheia de gente. E viver no interior, ser pobre no interior, numa cidade como a minha, Ribeirão Claro, é muito diferente de ser pobre numa grande cidade como São Paulo. Então é importante isso, tentar também deslocar o que você conhece de pobreza. È muito diferente, porque a minha mãe costurava pra todo mundo na cidade, ela se especializou em costurar pra noivas, então haviam muitos vestidos de noiva naquela casa. E muita, muita gente. As clientes dela vinham sempre com os filhos, então havia sempre muita gente, e sem contar também que é uma cidade muito pequena. Ribeirão Claro hoje deve ter seis mil habitantes mais ou menos, então todo mundo se conhece, todo mundo...então a gente brincava muito, muito, muito. Brincadeiras assim, brincar de bets, será que é isso? É outro nome... adorava, a gente adorava brincar, tinha um banhado lá embaixo assim tabual, a gente brincava muito nele, nadava muito em riozinho, em cachoeira, dava muito trabalho pra minha mãe, pro meu pai porque a gente fugia de casa pra brincar e esquecia. Saía de manhã, principalmente, em férias, e quando via já era o final da noite a gente ia chegar em casa e ia levar uns sabões. Mas a gente brincava muito, muito, muito, tínhamos muitos amigos, muitos. Os meninos todos da minha idade. Tem meus irmãos, a diferença entre a gente é pouca. Eu sou um ano e oito meses mais velho que meu irmão caçula e dois anos e tal do meu irmão mais velho do que eu, então a gente meio que cresceu junto; daí os amigos do Edmir eram meus amigos, que eram amigos do Cláudio, enfim, essa casa era sempre muito cheia de gente.

P/1 – E você lembra assim de alguma história, de algum amigo que mais te marcou nessa patota?

R – Nossa, tem tantos amigos... Então, meus amigos muitos se ferraram, tenho muitos amigos que foram assassinados, que se perderam no mundo, porque éramos muito pobrezinhos ali naquele mundão e nem todo mundo estudou, nem todo mundo seguiu uma história. Então tem histórias bem tristes, mas eu lembro de amigos que eu adorava. Eduardo era o meu grande amigo de infância; Zé Carlos é esse que foi assassinado tento que buscar o tempo inteiro o ultimo momento que eu vi o Zé Carlos na minha vida. O que aconteceu de fato com a vida dele? Por que que teve esse final tão triste? Eu tinha, nossa, muitos amigos.

P/1 – E você disse que a sua mãe tinha essa preocupação muito com a educação dos filhos, quais são as suas primeiras lembranças da escola?

R – Minha mãe comprava muito livro e era uma época que tinha vendedores de livros que chegavam assim numas Kombis cheias de livro, vendiam Barça, vendiam enciclopédias, Trópico, sei lá. A Barça era muito cara, era o meu sonho de criança ter uma Barça, a gente nunca teve, mas a minha mãe comprava Trópico, que era um similar, uma enciclopédia bem mais pobrezinha... então a gente nunca teve a coleção da Trópico inteira, sabe? Eram alguns fascículos, era engraçado. Mas das memórias mais fortes é essa da minha mãe comprando livro, muito livro, comprava. Também da gente ler junto, a gente leu juntos “A escrava Isaura”, a gente leu juntos os contos de Machado de Assis, a gente leu junto a “Pata da Gazela” do José de Alencar ,que ela adorava. Então a minha mãe... nossa que história louca, me lembro que eu estudava com os livros do meu irmão mais velho que... era muito difícil, era... não tinha dinheiro mesmo. Mas eu lembro que eu tinha um livro de História e vinha um caderno de exercício complementar junto com o livro, então quem estudava de segunda mão não tinha esse caderno que era muito importante no processo, eu me lembro que a minha mãe copiava esse caderno inteirinho pra mim. Noites... Ela trabalhava um monte, costurava muito e ainda copiava... copiou um caderno, um livro inteiro pra mim de exercícios. E a letra dela era feia, muito feia e eu morria de vergonha, aquele caderno muito feio, hoje eu vejo a poesia disso.

Mas enfim ela era essa pessoa obstinada em tentar dar uma dignidade pra gente, dar um norte pra gente... essa pobreza, a gente nunca passou fome, mas muitas e muitas vontades que eram sempre maquiadas, que eram sempre disfarçadas, que eram sempre cuidadas por ela, que fazia com que isso não chegasse muito. Então, a música também era muito forte e a literatura, isso tudo. A televisão chegou na minha casa eu já tinha sei lá uns oito, nove anos, que um irmão meu que trouxe de presente. Foi trabalhar como pedreiro no inicio da vida dele no Mato Grosso e numa das vindas ele trouxe essa televisão no bagageiro de um ônibus.

P/1 – E vocês estudavam todos na mesma escola? Assim, a primeira escola?

R – Então, por isso que eu falei que era diferente pensar na pobreza do interior e de São Paulo porque havia uma única escola na cidade, então o filho do juiz estudava comigo, não tinha essa diferença também, o que também faz ser muito diferente essa idéia de pobreza que a gente que tem em São Paulo, por exemplo. Se eu tivesse nascido no Jardim Ângela eu não chegaria nunca ao Jardim do Higienópolis, por exemplo, mas numa cidade do interior isso não existe, essa distância ela é encurtada...

P/1 – E você gostava?

R - ...pela igreja, pela escola, a igreja também é muito importante na minha vida. Se eu gostava da escola?

P/1 – Aham.

R – Muito, sempre gostei muito de estudar, mas tive muito problema no meu aprendizado... engraçado isso. Ficava muito de segunda época, em matemática, que hoje eu tenho muita facilidade, é engraçado. Mas, enfim.

P/1 – E você lembra de alguma professora que te marcou?

R – Muitas. Acho que uma das professoras mais importantes foi a Dona Vera, que era a minha professora da 4ª série, uma professora que eu tenho muito, muito carinho, era Fabiana o nome dela...outra professora...

P/1 – O que ela dava?

R – Então era 4ª série, dava tudo. Mas eu me lembro de uma redação que eu fiz e logo no começo da 4ª série que foi... nem me lembro direito o que era o tema da redação, mas eu me lembro que quando ela foi corrigir ela mostrou a redação pra escola toda e tal e foi uma coisa muito louca que aconteceu, porque eu fiquei famoso. Ela foi muito importante. Outra foi a Maria Luisa, outra professora também que eu fui fazer teatro com ela e que foi fundamental na minha vida. As duas assim, a professora Vera por me revelar o mundo e dizer “Ó, você é alguém”, que bacana e tal, e essa professora, Maria Luisa que eu comecei a fazer teatro, que me mostrou esse universo.

P/1 – E nessa época de pequeno a gente sempre acha que vai ser alguma coisa quando crescer, o quê que você achava que ia ser?

R – Eu sabia que eu não ia ficar lá, eu não me imaginava ator, não me imaginava no teatro, eu imaginava que... sequer imaginava, por exemplo, que existiam as coisas que eu vim fazer depois. Enfim, eu não sei o que eu imaginava não, eu me imaginava fora dessa cidade e eu queria descobrir o mundo.

P/1 – E quando você foi ficando maiorzinho, na época de adolescência e tudo, como que era? Conta um pouquinho.

R – Então eu fui, eu fui meio precoce na minha formação, tinha muita pressa. Eu acreditei na minha mãe que eu ia sair daquilo, que eu ia estudar, que eu ia ser alguém, então eu tinha muita pressa mesmo, queria que fosse muito rápido. Então eu entrei na universidade com... quer dizer, nem tão novo, será que foi com 17 ou 16? Espera aí... eu acho que 17 no ano, que eu fiz 18 e fui fazer administração de empresas, porque era o curso mais, era um curso possível. Eu morava em Ribeirão Claro e é divisa com estado de São Paulo e uma cidade próxima ali era Ourinhos e eu então fiz vestibular, passei e fui fazer. E nesse ano que eu fiz administração eu também antecipei o exército na minha vida, então eu servi o exército nesse ano também como voluntário porque eu tinha muita pressa. Já que eu tinha que fazer exército, eu não seria dispensado, então eu fiz nesse ano que eu fiz meu primeiro ano na faculdade. Eu achava então, nesse momento, que eu ia trabalhar com administração de empresas que naquele momento - a gente tá em 1980 mais ou menos, 1981 talvez -, Administração de empresas era o curso. E eu não tive muita opção, eu me lembro que nesse ano que eu fiz Administração de empresas eu também prestei vestibular pra Direito e reprovei porque eu escrevi apreensão com cê-cedilha na redação. O tema era apreensões para o Ano Novo e eu escrevi as apreensões para o Ano Novo com cê-cedilha, daí eu me lembro que a minha classificação quase deu. Se não tivesse escrito apreensão com cê-cedilha eu teria passado e acho que teria sido mais bacana se tivesse feito Direito. Eu iria mais longe ainda porque perto dali ainda tinha Jacarezinho, que é uma cidade é onde eu fiz vestibular pra Direito, era uma universidade estadual. Havia um curso de Filosofia, a faculdade de Filosofia e Letras, então acho que se hoje eu pudesse me organizar tal, talvez eu tivesse feito, tivesse cursado essa faculdade de Filosofia e Letras que naquele momento era muito vagabunda.

Tipo, imagina alguém fazendo Filosofia e Letras... se pudesse voltar ainda ao tempo teria feito magistério, por exemplo. Durante muito tempo eu achei que era um caminho que eu poderia ter seguido, eu acho.

P/1 – E aí você passou em Administração e foi?

R – Então fui... fui mais ou menos. Passei, foi meio truncada essa minha formação, eu desisti da faculdade e não me formei...

P/1 – Mas você chegou a ir?

R- Sim, sim, estudei, fiz o primeiro ano em Ourinhos, morando em Ribeirão Claro, indo todo dia de ônibus, foi complicadíssimo porque imagina eu voltava muito tarde da faculdade, tinha exército de manhã, enfim. Mas eu terminei esse ano muito feliz, transferi minha faculdade pra Curitiba e daí sim eu fui pra lá.

P/1 – Conta um pouquinho do exército, o que foi essa experiência de servir?

R – Engraçado porque a gente ta em ditadura militar e tudo, mas isso não chega lá, em Ribeirão Claro. Imagina, a gente nem sabia o que era isso e naquele momento foi muito importante pra mim, eu acho até que a disciplina que eu fui depois entender no teatro tudo veio muito daí, tipo, a idéia do coletivo, embora nada... piração minha, fui eu quem descobri isso lá dentro. Talvez o meu lado humano, talvez a minha mãe, sei lá, me fizesse perceber, romantizar também aquele momento. Mas enfim, a gente não pode esquecer de não contextualizar que a gente tá numa pequenina cidade do interior do Paraná que naquele momento, imagina, é muito diferente. As coisas não chegam, é diferente. Mas enfim eu acho que é isso, tenho grandes amigos desse período também, grandes, grandes, grandes, foi um momento de descoberta de sexo, de poesia, de rebeldia.

P/1 – E você era namorador, Ivam?

R – Namorador não, não era... nesse período, mais ou menos, era, era um pouco.

P/1 – E o que tinha assim de noite, como é que é essa molecada se divertia?

R – Nossa, como era legal, tinha um alto falante na pracinha. Bom, tinha missa das sete que era todo dia na igreja, e depois da missa das sete tinha o coreto que ligavam a música, tocavam umas músicas. Engraçado que eu sou muito musical e tem perseguido assim essas músicas do coreto, e eu não consigo lembrar cara e ninguém consegue me dizer que músicas eram essas. Quando eu era muito pequeno, antes lá, assim quando eu tinha sete - a gente tá falando de namoro, a gente já volta -, mas quando eu era pequeno, sete, oito anos, duas músicas marcaram muito a minha vida do coreto, da igreja, uma era a Bidu Saião cantando a Melodia Sentimental do Villa Lobos: “Acorda, vem ver a lua...” e a Bidu Saião cantando isso, que é uma gravação dos anos 1950 talvez, vinda de um alto falante numa cidade do interior, vocês não têm noção do que é. Aquilo assim tipo anoitecendo...tinha dia que tinha anoitecido, sempre era depois da missa das sete, então era umas oito horas da noite que tocava a Bidu Saião e não esqueço disso nunca. E a outra era quando morria alguém na cidade, então entrava Ave Maria de Bach,, entrava lá aquele instrumental assim e daí todo mundo saía pra fora pra tentar ouvir, “Ih, morreu alguém”, “Quem morreu?” era incrível, e daí alguém tinha morrido. Isso foi até recentemente, esse costume da Ave Maria pra dizer que alguém tinha morrido. O que deixava a minha mãe perturbadíssima porque Ave Maria era música de casamento. Ela passou a vida inteira louca com essa coisa de noiva, com o vestido de noiva dela, porque esse vestido de noiva dela lá que o meu avô não deixou ela casar, durou um monte de coisa. Até ela se casar esse vestido foi montado e desmontado, por quê? Ela tinha um vestido lindo, ficou grávida, ganhou o meu irmão e daí esse vestido transformou em roupa de batismo do meu irmão e daí o vestido ficou sem um pedaço e daí ela roubou lá um pedaço de uma cliente dela que trouxe o tecido a mais, costurou e assim ela foi fazendo a vida toda durante. Sei lá, dez anos ela foi montando e desmontando o vestido dela. Chegou a casar noivas que não tinham dinheiro pra comprar um vestido de noiva, com o vestido dela, porque ela reformava todo. Enfim, virou uma doidera, então obcecada por isso. Ela ficava muito puta porque essa música Ave Maria ela é de noiva e não de gente morta, que absurdo. Quando iam pra um casamento em Curitiba, em Londrina, que tocavam Ave Maria, ficavam indignados porque em Ribeirão Claro Ave Maria Bach era pros mortos.

Mas, de namoro na pracinha... então a música tem muita força. Tinha o Cine Brasil, cinema da minha cidade, que era um cinema lindo, super bonito, do inicio do século, dos anos 1920 mais ou menos quando tinha sido construído. Era uma construção única. Antes ele era um teatro e depois virou cinema. Ribeirão Claro, essa minha cidade, era do café então antes de chegar em 2009 com seis mil habitantes ela foi promissora, então chegou a ter vários cinemas, lá, sei lá, em 1940, Anos 30 não sei. Quando chega até mim, tinha esse Cine Brasil, que era super bonito e que passavam todas as pornochanchadas brasileiras dos Anos 70 que eu assisti a todas elas, com dez, 11 anos eu vi a Vera Fisher fazendo tudo que ela fez. Então foi muito forte, o cinema brasileiro, as pornochanchadas também na minha formação. Hoje, por exemplo, eu vejo muito canal Brasil, adoro, adoro dormir vendo aqueles filmes e 80% eu já tinha visto na minha infância e adolescência, porque eu comecei a ver esses filmes muito cedo.

P/2- Sei que a pergunta é mais pra frente, mas tem o Sade.

R – Então, claro, começa vir aí. Tem um monte de coisas na minha formação, por exemplo, eu vi “Os sete gatinhos”. Os filmes do Nelson Rodrigues, por exemplo, eu vi todos eles assim nesse período nos Anos 70, então é obvio que pra uma cabeça, vai ficar gravado eu não vou falar essa palavra, mas tá se formando nesse momento... eu ia falar perversa, enfim, tem tudo isso.

P/1 – Então vamos voltar lá daí você desistiu de fazer Administração, falou não é essa a minha?

R – Então, mas antes de desistir ainda eu tive... eu trabalhei bastante. Antes de ir pra Curitiba e transferir meu curso de Administração, lá em Ribeirão Claro ainda, meu primeiro trabalho foi como foi engraxate. Meu pai fez uma caixa pra mim de engraxate, eu e meu irmão queríamos muito e a gente tinha seis anos, eu tinha seis e meu irmão tinha quatro. Meu pai fez uma caixa branca pra mim e uma pro meu irmão e a gente ia... daí ele só deixava a gente engraxar aos sábados perto de casa, ali em frente assim. Daí a gente, não ganhamos muito dinheiro. Depois vendedor de sonho, a minha mãe fazia sonho, bola de Berlim, não sei como chama aqui em São Paulo, ia vender e eu era péssimo, ia e não vendia nada. E, depois, eu fui trabalhar numa fábrica de móveis. Nossa, vocês não têm noção... lixar móvel e depois passar uma coisa assim que é pra envernizar, mas eu fiquei muito pouco tempo porque quando eu vi que aquilo ia me sufocar, me matar eu arrumei um outro.

P/1 – Você tinha quantos anos nessa época?

R – Ah, uns... foi quando eu fui estudar a noite. Eu estudei a noite... então mudou tudo agora eu não sei como é, mas a gente fazia Ginásio, depois ia fazer o colégio, então eu tinha uns 14 anos - 13 pra 14, 14, por aí. Fui trabalhar no mercadinho, da Dona Geni. Tinha máquina calculadora, a gente atendia o povo que vinha do sítio e tinha essas máquinas calculadoras que você põe o papelzinho. Sabe a primeira coisa que ela me ensinou? “Eu vou fazer uma compra e vou cobrar de você.”, então eu coloco 20 reais a mais, 20.00, e tira o papel e corta, então a tua conta vai começar com 20 a mais, e aquilo doía tanto na minha alma porque quem a gente atendia? Os amigos da minha família e ela era completamente ditadora, era assim que a gente tinha que fazer e ela definia quanto a mais e ela era muito inteligente,... nossa, Dona Geni, os parentes dela estão todos lá em Ribeirão Claro. Ela fez isso... e doía muito na alma porque era tudo esquematizado, ela tinha valores assim. Se vem uma pessoa pra comprar só dez itens então põe cinco reais a mais, se é uma compra de mês, aquelas imensas, cem reais a mais, sei lá, era cruel demais, cara, daí eu fiquei nesse mercadinho com o coração doendo. Será que é por isso que eu ia mal de matemática?

Enfim, fiquei nesse mercadinho, daí quando eu fui pra Curitiba tive trabalhos assim... esperaí, calma, fiquei no mercadinho e daí eu saí do mercadinho, claro, eu tinha que sair do mercadinho, imagina a Dona Geni...

P/1 – Não conseguia dormir a noite.

R – Sim, era cruel, eu fiquei no mercadinho, sei lá, um ano só. Então eu fui pra um escritório de contabilidade e aí sim eu virei contador, assinava... fechava até balanço, eu era ótimo!

Por isso que eu achei que Administração ia ser legal pra minha vida. Enfim, é isso.

P/1 – Mas e aí, como é que foi ir pra Curitiba depois?

R – Pra Curitiba? Fui trabalhar nesses trabalhos todos de...

P/1 – Mas não tinha nada de faculdade? Você resolveu... como que é?

R – Sim, sim, fui, transferi a faculdade e fui, mas daí já estava sufocado e daí descobri coisas, cheguei em Curitiba em 1982. Administração já era um curso que não me preenchia, eu descobri o teatro.

P/1 – Mas como é que foi essa chegada na capital?

R – Meus irmãos moravam lá, eu cresci sabendo. A minha mãe já tinha arrumado tudo, que a gente ia embora, que a gente ia fazer faculdade, que a gente ia sair de lá, ela criou a gente pra ir embora. Então foi naturalíssimo terminar. Então esse ano aí do exército, tá ok, agora eu estava liberado pra poder fazer as minhas coisas. Foi tranqüilo, foi muito tranqüilo. E de certa forma até um pouco fácil. Eu me lembro que eu cheguei em Curitiba, numa segunda-feira, nesse dia eu descobri tudo que você possa imaginar, tudo. Nessa segunda-feira que eu cheguei em Curitiba, eu descobri droga, eu fumei maconha, eu transei e arrumei emprego...

P/1 – Tudo num dia só?

R – Num único dia.

P/1 – Jesus!

R – Incrível. Mas eu acho que era tanta sede, era tanta... eu me lembro, porque eu tinha trabalho arrumado já, eu tinha um cunhado que era diretor de uma empresa grande, mas ele tava em férias em Ribeirão Claro, por isso que eu tinha pressa, eu não podia esperar meu cunhado, ele ia chegar só dali a 15 dias e tal. Então eu peguei um jornal, recortei o anúncio e saí procurando emprego e arrumei um emprego no escritório de contabilidade que eu fiquei só 15 dias, porque daí meu cunhado chegou e eu fui trabalhar nessa empresa dele.

P/2 – Qual era o clima lá, cultural em Curitiba? Com quem que vocês andavam?

R – O teatro curitibano ele se estrutura melhor assim nos Anos 90, sabe? Nos Anos 80 Curitiba é muito chata culturalmente.

P/2 – Tanto que tem um monte de companhia que vai embora pro Rio e pra São Paulo.

R – Sim, sim, e nada acontece ali não. A gente tem muita, a gente se contagia muito com o que vem de fora, que também são as coisas que podem ser apresentadas no teatro Guaíra, então você imagina também que tipo de teatro que eu tô falando. Eu demoro muito pra assistir a grandes coisas, pra conhecer o teatro que depois me contaminaria. O Zé Celso, por exemplo, o Antunes, por exemplo, isso tudo foi depois que eu vim pra São Paulo, lá naquele momento eu não tive acesso. Mas a paixão era tão grande assim pelo teatro e por aqueles encontros que...

P/2 – Mas a coisa ali de Leminski?

R – Então Leminski, nesse momento aí ele estava em Curitiba, tinha um bar que era o Bife Sujo, que a gente se encontrava, que era bacana. Mas foi um período curto, porque ele sai de Curitiba nesse período, acho que 1985, talvez, que é quando eu começo a fazer teatro de verdade, que eu entro no curso de teatro, que daí já abandonei Administração. Ele não mora ali, ele não tá por ali nesse momento. E nesse momento a vida cultural em Curitiba era meio chata, não teria muita coisa pra falar assim do que me marca ali não, mesmo as coisas que eu acabo vendo que vem de São Paulo. Eu me lembro que um grande espetáculo assim que mudou a minha vida, eu acho, que nossa, eu não sei o nome dramaturgo... Flávio Marcio, eu não tenho certeza se é esse o nome dele, eu acho, que é um mineiro que morreu muito cedo. Escreveu poucos textos e Réveillon que a Regina Duarte chegou a fazer. E esse que eu vi que é à Moda da Casa, que era a Isabel Ribeiro que fez, dirigia inclusive, e ele é um autor muito interessante, muito interessante e foi um espetáculo estranhíssimo que eu vi e que mudou a minha vida. Foi quando eu falei “Eu quero fazer teatro, ou algo próximo disso aí que eu tô vendo e que é muito esquisito”, mas não tenho muita coisa assim. Era muito mais os amigos. Engraçado que a maioria deles nem fazem mais teatro hoje, esses meus amigos desse momento aí, mas foi importante esse contagio. Era teatro amador, muito, tinham os festivais do interior que eram muito, muito legais...

P/2 – Teatro universitário?

R – Isso, que já circulava por ali o Bortolotto, as primeiras peças, quer dizer, nem era Cemitério de automóveis ainda naquele momento, mas eu assistia a todos. Havia em Curitiba um... o teatro Guaíra é um complexo que tem três auditórios, o Guairão que tem dois mil e tais lugares, o Guairinha que tem 600 e o mini-Guaíra que tem 100 lugares; e o mini-Guaíra era até esse momento aí destinado aos amadores, então o teatro amador era muito forte e era onde a gente trabalhava.

P/1 – O Luís Mello...

R – Então, o Luís Mello tem uma história engraçada se ferrou um monte, porque antes dele chegar na Globo ele já tinha sido o ator mais importante do teatro em Curitiba, o ator mais importante do teatro de São Paulo e talvez do Brasil, porque quando ele fica com o Antunes Filho trabalhando e tudo ele é hiper premiado, hiper reconhecido. Então quando ele chega na Globo ele já é um ator muito sem dinheiro, duríssimo, mas um ator importante. Vai pra Globo, faz um monte de sucesso e o projeto do Luís Mello era voltar pra Curitiba, tanto que ele tá lá agora e tem um projeto super bacana de teatro em Curitiba. Então, mas lá ainda antes de chegar a ter esse projeto ele foi então comprar um apartamento em Curitiba e ele chegou, viu lá o apartamento que ele queria comprar, comprou e daí no primeiro dia que ele estava no apartamento ele pega o elevador, tá descendo, pára o elevador num andar intermediário, entra uma senhorinha de topete e olha pra ele “Luis Mello!”, fica completamente louca, porque imagina o ator da Globo tá ali “Então, o que tá fazendo aqui?” ele diz “Vou morar aqui agora”, ela olhou com uma cara de completamente decepcionada e falou “Você vai morar aqui?”...

P/1 – Em Curitiba?

R – Em Curitiba, quer dizer, “Você vai deixar de ser um ídolo pra mim, vai morar aqui?”, mas o que ela queria dizer não era que Curitiba era ruim não, é que eu não interpretei direito, o que ela queria dizer é que ele deixaria de ser aquela pessoa maravilhosa, porque ele seria mais... ele não poderia viver em Curitiba, porque Curitiba você não pode ter sucesso ali. Que era muito mais bacana ele morar lá no Rio de Janeiro, ela chegar e falar “Olha, eu vi o Luís Mello” do que dizer ele mora no mesmo prédio.

P/1 – O Luís Mello é meu vizinho, banaliza.

R – Que coisa desinteressante, mas eu vi o Luis Mello no meu prédio era muito mais glamoroso, sabe? Então, mas Curitiba meio que funciona assim, é uma cidade estranha.

P/1 – E aí como é que foi o processo do sair de Curitiba?

R – Pra vir pra cá? Aquele louco... eu sempre soube que eu sairia de Curitiba .

P/2 – Quando você vai embora de São Paulo?

R – De São Paulo?

P/2 – É que “eu sempre soube que sairia...”

R – Eu sempre soube que eu sairia de São Paulo. Eu saí de São Paulo, eu saí de São Paulo, eu sempre soube que sairia, eu saí e voltei. Não, mas enfim eu queria continuar... então daí eu fiz um curso de teatro em Curitiba e tal.

P/1 – Daí você sabia que era isso mesmo?

R – Sim, sim. Mas lá em Curitiba, então quando chego e abandono Administração e vou fazer teatro eu era o pior ator da minha turma, eu era um cara bem desinteressante assim, por várias razões. Não tinha muito referência que eles tinham, eu não conhecia muitas coisas que já eram, que já estavam tudo codificado ali e eu não estava sabendo dessas coisas, então eu tive alguma dificuldade nesse período, mas era uma turma muito grande e a gente estudava na PUC. De novo a questão do dinheiro, porque era um curso muito caro e que eu era bolsista, então de novo eu já era olhado de forma esquisita. Porque daí o bolsista tem que pagar uns micos por ser bolsista, além de ficar se humilhando, implorando todo ano pra que dêem a sua bolsa, tem umas coisas tipo na biblioteca, tem umas coisas que tem que fazer ali pra... não sei como funciona hoje na PUC, mas naquele momento era um pouco assim. Então eu achava que eu fosse trabalhar no teatro sim, achava que eu fosse talvez ser diretor, talvez dar aula de teatro, tanto que quando eu vim pra São Paulo, terminando o curso em Curitiba, eu queria continuar estudando. Eu fui pra ECA pra tentar um curso de pós-graduação e daí a minha vida se transformaria então nesse dia que eu fui na USP. Que eu encontro lá um anuncio precisando de atores e aí eu conheço o Rodolfo e a gente então funda os Satyros, a partir disso. E o meu projeto de continuar estudando eu vou retomar recentemente.

P/1 – Mas volta um pouquinho, conta como foi esse processo do ‘Vou sair de Curitiba”?

R – Foi ótimo, é uma história ótima. Havia duas pessoas assim na minha turma que eram muito fortes, uma era Érica Migon que hoje trabalha com Felipe Hirsch, do grupo dele, e que tinha nascido no Rio de Janeiro, que tinha família no Rio e que iria pro Rio depois da faculdade, desse curso. A gente tinha um outro amigo que era o Adônis. A Érica era de família tradicional do Rio, Rego Almeida, quatrocentona, muito bacana; e o Adonis do interior do Paraná, um outro ator, pai era dono de um hospital muito chique. O que significava em Curitiba muitas coisas. E o Adonis iria pra São Paulo, e eles durante, mas pro último ano do curso, começaram a se formar... eu vou pro Rio, quem vai comigo e tal? Eu meio que... eu era meio patinho feio dessa turma, eu não era bom ator, eu não era...

P/1 – Não tinha um sobrenome.

R – É, enfim, e eu comecei. Quando vi eles se articulando num primeiro momento eu queria me meter no meio e eu comecei meio que dizer que também ia embora, ia embora. Então isso é importante porque quando eu fui falando isso pra todo mundo que eu ia embora pra São Paulo, nesse momento o Adonis desistiu de vir pra São Paulo ele e o grupo dele e eu fiquei sozinho, porque daí eu ia pra São Paulo. Mas eu não tinha projeto, na verdade, eu era muito duro. Nesse momento eu já não tinha um trabalho porque, eu trabalhei em banco...

P/1 – De contador?

R – É, eu estava já sem trabalho, eu estava dando aula de teatro, já estava muito desestruturado, vivendo com o meu irmão Edmir, que segurava as minhas ondas. O fato é que quando chegou no final do ano e que eu dizia que ia embora, eu me formei e ia embora, eu fui meio expulso, meu irmão Dimi falou “Ué, quando você vai?” e chegou um dia e fui embora, mas eu não tinha muito bem pra... eu tinha um único amigo aqui em São Paulo, que era o Marcinho que morava numa favela, na Vila Nova Cachoeirinha. Eu sabia que ele morava numa favela porque eu tinha ido uma vez na casa dele e tinha levado um susto. E fui viver na casa dele por uma semana. E meio também sem saber o que fazer. Encontrei uma pensão na Liberdade e foi então que eu falei “Vou estudar, não sei o que fazer”, arrumei um emprego ainda numa distribuidora de livros, na Bela Vista, chamada ... não lembro, e fui pra USP pra tentar ver coisa. Conheci o Rodolfo e a gente fundou o Os Satyros.

P/2 – Como foi o encontro?

R – Então fui lá pra ver isso e tinha um anúncio procura-se atores e tal e tinha

ele tinha um grupo chamado Teatro de Ava Gardner e era o segundo espetáculo que eles iam produzir, esse grupo, em cima da vida do Corpo Santo, do dramaturgo gaúcho e eles procuravam por esse ator pra fazer o protagonista. E eu então tinha chegado em São Paulo, cheguei, as coisas sempre acontecem pra mim às segundas-feiras, então era uma segunda-feira que eu cheguei em São Paulo e na terça, sei lá, enfim, uma semana depois eu já estava trabalhando com eles. Eu fui aprovado nesse teste e conheci esse grupo. Abandonei a idéia de estudar na USP e esse encontro com o Rodolfo foi muito bacana porque eu não tinha muito a ver com esse grupo de pessoas do Ava Gardner, mas tinha muito a ver com o Rodolfo. A gente tinha muitas, muitas coisas em comum, pensava em um mundo mais ou menos sob a mesma ótica e esse grupo era um grupo que ele já estava em crise nesse momento que eu entrei e seria o segundo último espetáculo deles. Então enquanto a gente ensaiava o Corpo Santo a gente já foi planejando Os Satyros.

P/2 – O que é que você tinham combinado, você e o Rodolfo Vázquez?

R – Então o Rodolfo era um marxista, o Rodolfo adorava Nietzsche, o Rodolfo era inquieto, o Rodolfo queria mudar o mundo; eu queria ficar pra história, eu tinha esse projeto, que ia criar um grupo, que entraria pra história do teatro brasileiro, que seria fundamental, nunca me iludi com, tipo, a televisão. Tanto que a maioria desses atores que saíram lá do meu curso que foram pro Rio já era em busca de Globo. Não era o meu objetivo, não era o que eu pensava. O Rodolfo pensava a mesma coisa, que o teatro poderia modificar coisas, não só entorno, tudo isso era muito claro desde o inicio nosso. Então conversando com o Rodolfo e percebendo isso a gente fundou Os Satyros.

P/2 – Vocês estavam aonde no começo?

R – Antes ainda eu quero só falar que tinha uma coisa que era bacana no Os Satyros’, nessas conversas com o Rodolfo, e tinha a ver com Nietzsche, não sei, mas que era comum a nós dois, que era a busca por um teatro que a gente não queria que esse espectador assistisse a uma peça, a mais uma peça. Não só nesse sentido, a gente nunca mexeu com espectador, por exemplo, como o Zé faz o nosso dionisíaco. É trágico. O do Zé é carnavalesco, A gente não acredita no carnaval, a gente acredita na tragédia, mas enfim, a gente buscava esse dionisíaco no teatro, tipo, eu queria que você enquanto espectadora não saísse passiva, que você sentisse alguma coisa...

P/1 – Que mudasse alguma coisa em você.

R – Que você dissesse odiei, mas que você sentisse algo, ou amei, que não ficasse no meio termo...

P/2 – Vocês tinham alguma referência, pra quem vocês olhavam no teatro nessa época?

R – Então, o Zé Celso dos anos 1960, que a gente não tinha conhecido, porque nesse momento o Zé não estava trabalhando, ele não estava na ativa. A gente tá falando de 1989, quando eu cheguei em São Paulo. O projeto, essa Oficina que nasce agora, a gente nem estava mais em São Paulo, quando o Zé retoma a Oficina, então Rodolfo pesquisa o Zé Celso na pós-graduação em Sociologia do teatro. Então o Zé era nosso grande cara, era o cara, era quem a gente queria ser.

P/1 – E daí como é que é essa coisa de fundar Os Satyros.

R – Então Os Satyros surgiu como uma empresa, porque daí nesse momento da Ava Gardner a gente

topou um nome e a gente procurou um contador e abriu uma empresa em junho. E a primeira peça dos Os Satyros isso foi em setembro...

P/1 – Nossa que rápido!

R – É, eu conheci o Rodolfo em fevereiro mais ou menos, fevereiro que eu cheguei em São Paulo, Corpo Santos estreou em junho no teatro do Bixiga que era do Marco Ricca naquele momento, hoje é onde é teatro Ágora. Então a gente chega em fevereiro, o Corpo Santo estreou em junho e Os Satyros foi fundado entre fevereiro e junho, estruturado

e a gente estreou nossa primeira peça em setembro e era uma pesquisa da Comédia dell´arte. E que a gente pensava naquele momento e tentava estruturar financeiramente era muito complicado. É complicado sempre, mas naquele momento mais ainda, como vocês imaginam. Pra produzir peça a gente vendia tudo, a gente vendia, vendia tudo que a gente tinha. E o que a gente tinha? Televisão, vídeo cassete...

P/1 – Não, e em 1989, o momento em que o Brasil estava vivendo também.

R – Nossa, nossa, era terrível.

P/2 – Foi o embrião estético de vocês?

R – Sim, sim. Inclusive quando a gente sai daqui, a gente chama de exílio voluntário, é Collor de Melo, ele ta ferrando com o país, a gente não tem nenhum projeto...

P/2 – É o “Terra Estrangeira” do...

R – Exatamente e tem muito a ver com a gente, porque em “Terra Estrangeira”, a gente tá em Portugal nesse momento e tem uma coisa bonita no “Terra Estrangeira” que ele mostra um cartaz de uma peça nossa, em algum momento do filme. Tem uma peça que a gente ta fazendo no Ritz Clube onde é uma das locações do filme, então ta Os Satyros’ lá atrás. O que simbolicamente acho que tem tudo a ver, porque são histórias parecidas, eu acho.

P/1 – Volta lá no fio da meada, Aventura do Arlequim foi a primeira?

R - Essa o Rodolfo vendeu o Chevette Hatch dele, ele tinha um Chevette vermelhinho, pra produzir a peça ele vendeu; eu não tinha nada porque eu tinha acabado de chegar em São Paulo. A gente estreou no Teatro Zero Hora, que não tem mais esse teatro, ultima coisa dele foi o Cemitério de Automóveis que é no Bixiga também, um teatro muito pequenino. Então o que a gente pensava era assim, então pra gente mudar o mundo a gente tinha que primeiro se estruturar, tem que ter fôlego pra poder então fazer alguma coisa, era muito claro isso. A gente tinha certeza que o teatro podia tudo, a gente tinha certeza absoluta. E foi um grande fracasso porque, imagina, ninguém conhecia a gente, porque a gente foi fazer uma peça infantil. Imagina, com todas essas idéias na cabeça lendo Nietzsche, não sei o que, sendo marxista e não sei o que, imagina que peça a gente fez. E não era pra criança, as escolas não gostavam... E daí, assim no final desse ano, que é 1989, Os Satyros já fundado, a gente tinha feito a primeira, do arlequim e tudo, não tinha rolado não tinha ganhado grana nenhuma, tinha vivido o pior ano da minha vida, tinha acontecido comigo, Ivam...

P/1 – O Rodolfo perdeu o Chevette, coitado.

R – O Rodolfo tinha perdido o Chevette, mas ele era um cara bacana o Rodolfo, por quê? Ele dava aula na Berlitz, de inglês, o Rodolfo fala um monte de língua, então ele tinha umas saídas bacanas. A Berlitz pagava muito bem pra ele. E daí lá na Berlitz ele dava aula pra Fafá de Belém, pra umas figuras assim que pagavam super bem pra ele, então o Rodolfo morava em Higienópolis. Ele se ferrava porque ele trabalhava pra caramba, mas, enfim ele comprou um outro carro em seguida. E eu não tinha saída assim porque eu tinha saído do Catavento, o nome da distribuidora de livros, que existe ainda, na Bela Vista - aliás eu fiquei muito pouco tempo nesse lugar, na distribuidora de livros, eu abandonei o emprego; abandonei, nunca voltei lá pra acertar nada; um belo dia não fui mais.

Então esse ano tinha sido horrível, foi horrível, e quando chegou lá em dezembro que eu fui pra passar o Natal, Ano Novo com a minha família eu fui pro interior, lá em Ribeirão Claro onde estava todo mundo. E daí de lá eu fui pra Curitiba certo de que eu não voltaria mais pra São Paulo, não tinha rolado. Eu não tinha falado nada pro Rodolfo, pra ninguém aqui, mas como eu não tinha mais nada - a gente tinha um monte de projetos e sonhos, mas a gente não vai mudar o mundo - vou ficar em Curitiba porque estava minha família. Pelo menos eu tinha onde morar. Nesse ano de 1989 eu morei cada hora num lugar, acabei no apartamento do Rodolfo, que dividia com mais um amigo, o Ataíde que era um cara que eu adorava, mas eu não era muito bem vindo ali, ele tinha as estruturas deles, imagina, ver o cara lá que não tem onde dormir, não tem onde morar e tal.

Enfim, então não ia mais voltar pra São Paulo. Estava lá em Curitiba esperando uma maneira de falar pras pessoas aqui. E o Rodolfo telefona em Curitiba “Ivam, tem um telegrama pra você aqui, posso abrir?” “Abra” eu tinha ganhado o prêmio da APCA, melhor ator. E a gente aí com o arlequim, essa peça que ninguém viu, e a engraçadíssima história porque pra ganhar esse prêmio sabe como foi? Eu meio que forjei a história, por quê? A gente estava num teatro Zero Hora, toca o telefone: Tatiana Belinky, que é uma crítica de teatro queridíssima, do outro lado da linha “Olha, eu estou indo ao teatro, mas eu vou chegar um pouco atrasada”, a gente já tinha dispensado, não ia ter peça, não tinha público! Daí eu falei: “Ela ta vindo, vocês não esperavam 15 minutos?” “Claro, claro!”, eu desliguei o telefone e falei “Gente, Tatiana Belinky vai vir” então a gente tem que arrumar gente e a gente saiu pra rua pegando todo mundo da rua e daí a gente dava... imagina, negociar espectador com chocolate e bala. Vocês imaginam quem estava no teatro. A gente lotou o teatro pagando bala. E a Tatiana Belinky assistiu peça e eu ganhei o prêmio de melhor ator, que ela me deu esse prêmio.

Então foi engraçadíssimo e daí a gente foi indicado na época pro Premio Mambembe, melhor texto, melhor não sei o que, enfim, foi um renascimento. Eu “É um caminho, deu tudo errado, mas agora tá dando tudo certo, então vamos ver qual é”. Voltei pra São Paulo e daí a gente montou “Sade”.

P/1 – E aí já era no teatro Bela Vista?

R – Não ainda, a gente teve um teatro imaginário antes do Bela Vista, que nesse meu período que eu estava em Curitiba e que o Rodolfo fala do telegrama. Eu converso com o Constantino Viário, que é o diretor do teatro Guaíra e eles têm um projeto que é o tetro Barracão, e estão montando no interior do Paraná um monte de teatros. O teatro Guaíra entra com arquitetura da história, eles arrumam um patrocinador, um banco e montam um teatro que é muito barato, um teatro PR- montado de madeira, super bonito e foram montados no interior do Paraná em vários lugares. E o Viário me propõe pra gente fazer em São Paulo “Arruma o lugar e vocês montam um teatro”. Eu venho pra São Paulo muito feliz, dou essa idéia pro Rodolfo e a gente começa a buscar lugar pra montar esse teatro e a gente vai procurar a Secretaria Municipal de Cultura. E foi a nossa grande desilusão com o mundo. Porque num determinado momento a Secretaria de Cultura nos tira da reta, da negociação. Imagina, quem são esses dois, esse grupinho.

P/2 – Que ano é isso?

R – Noventa. Foi nossa grande decepção com tudo porque em São Paulo nesse momento existia um sonho também, a gente acreditava naquelas pessoas que estavam ali, não era qualquer pessoa, entende? E daí esse projeto não aconteceu porque a Secretaria de Cultura um belo dia não nos atendeu mais, mas o Viário era um amigo nosso e daí ele contou que eles tentaram negociar diretamente, o problema é que tem a lei orgânica do município de São Paulo que não permitia a construção de edificações de alvenaria e daí então o projeto não saiu por isso, não podia construir um teatro de madeira em São Paulo, então morreu essa idéia. Mas a gente ficou muito revoltado. E daí que apareceu “Sade”, o “Sade” veio num momento de muita, muita revolta. A gente já tem o Collor, já tem essas coisas que estão acontecendo, foi em 1991, então vem com muita raiva, muito ódio.

P/2 – Fala do “Sade”. Conta o processo um pouquinho.

R – Então, foi uma iluminadora nossa, Paula Madureira, trabalhava com

Angeli, que era o grande cara pra gente no momento, Angeli é um cara muito, muito importante na história dos Satyros até hoje. Hoje a gente é amigo, mas ele é um cara que a trajetória dele, a história dele, a insatisfação dele meio que permeou todo esse trajeto. A Paula trabalhava com ele e um dia ela chegou, a Paula era muito louca, uma figura muito legal, iluminadora da gente, e joga Filosofia na Alcova na mão do Rodolfo e diz “Duvido que você faça isso um dia” e o Rodolfo lê. Bom, eu era católico, eu sou católico, aliás, eu sou muito católico, vou à missa, acredita? Eu sou muito louco, e daí quando eu pego o Marques de Sade... tradição, propriedade, acaba com tudo isso eu fico completamente alucinado porque Filosofia na Alcova’ é uma obra muito, muito, muito, muito difícil e eu confesso que pra terminar de ler esse livro naquele momento foi muito, muito complicado. Se não fosse a revolta, se não fosse tudo que a gente tinha como alicerce do nosso trabalho e tudo, obviamente sempre frágil, a gente não teria feito, claro.

Mas antes de ter essa revolta com o mundo e tudo a gente tinha uma coisa também com Curitiba, a gente queria mijar no palco do teatro Guaíra, a gente queria ferrar tudo. E daí o Sade parecia que era a obra ideal e a gente estreou no teatro Guaíra, a gente mijou no palco do teatro Guaíra, eu perdi amigos nessa época, desse curso que eu tinha feito. Vários amigos meus depois dessa noite nunca mais falaram comigo, disseram que eu tinha enlouquecido, que eu ficava de pau duro em cena. A gente tá em 1990, isso não tem Zé Celso trabalhando e não tem Teatro de Vertigem, então eu acho que é importante também contextualizar isso, imaginar o quê que tá acontecendo no mundo, no Brasil pra tentar entender o que acontecia ali. A gente chegou em requintes de elaboração, tinha uma cena que eu gozava em cena e eu não gozava de verdade, embora mijasse de verdade, gozar não, a gente fazia um preparado com leite de aveia Davene, e só a clara do ovo, e punha assim com leite Davene pra ficar meio, parecia muito porra, mas muito! Eu tinha uma cena que eu ficava agachado, um outro ator tava me comendo e quando acendia a luz a gente estava lá, gozava, e no blackout, claro, ia lá, enchia a minha mão com esse preparado maravilhoso, punha assim no meu peito e ficava ah, ah, ah e daí a gente gozava e daí eu me levantava assim com isso cheio de porra e o povo ficava louco, ficava completamente louco! Eu ficava com aquela porra na mão assim, limpava no cabelo, eu tinha um aplique assim.

Então meus amigos ficaram enojados. Enlouqueceu! Enlouqueceu! E eu tinha uma prótese imensa, esses pintos que a gente compra em sex shop e tal que eu também punha. A gente falava que era o ator ilusionista, então não vamos contar pra ninguém que tudo isso é simulação, vamos deixar que eles acreditem na verdade. E amigos muito íntimos, muito não sabiam que aquilo era um truque. Eram muito elaborados, eu ficava de pau duro em cena. Muito duro mesmo com essa prótese que eu pegava. Fizemos um bolsinho no vestido da atriz, daí eu pegava essa atriz, jogava, ela ficava de frente pra platéia, eu levantava o vestido dela e tirava essa prótese que estava nas costas, no bolsinho e punha no meu pinto e ficava comendo ela. Mas isso tudo era muito rápido, o público, obviamente, não percebia e daí comia, comia, comia e quando gozava eu jogava ela pro público. O povo ficava louco. Assim de amigos meus dizerem “Eu vi o pinto entrando”, porque eles sentavam na primeira fila e viam o pinto entrando, eles viam isso e era ótimo, a gente se divertiu um monte, foi muito bom.

E daí foi, e daí tava lançado assim nossa... Os Satyros então surgem e daí. A gente vem pra São Paulo muito feliz com a experiência curitibana porque a gente tinha conseguido o que a gente queria, porque Curitiba nunca mais foi a mesma depois dessa noite, falaram pra caramba e a gente chegou em São Paulo com um monte de fotos. Imagina, a gente tinha passado por uma experiência incrível e onde a gente vai? Procurar os teatros. Ruth Escobar, a gente achou que Ruth Escobar foi uma revolução. Todos os teatros que tinham em São Paulo na época, imagina, essas fotos, imagina esse material. Claro que ninguém quis. Esse teatro aí dizia que a gente era muito pornográfico, daí tinham teatros pornográficos que estavam surgindo, Márcia Ferro, lá na rua Aurora, a gente ia no teatro pornográfico e lá “Vocês são muito intelectuais”, então a gente era intelectual pros pornográficos, pornográficos pros intelectuais, a gente ficou numa míngua.

E o teatro Bela Vista então aí, entra era um teatro que esse grupo Ava Gardner tinha trabalhado, Rodolfo tinha montado lá uma peça e daí o administrador desse teatro estava com muito problema financeiro, não conseguia e ofereceu pra gente. Ele fazia teatro pra escola, era engraçadíssimo, ele fazia O Mulato às segundas-feiras e vinham escolas de São Paulo inteiro pra assistir O Mulato, e final de semana a gente fazia o Marquês de Sade. E foi um puta de um sucesso nesse momento. Quer dizer, no inicio não, mas a Folha de São Paulo descobriu a peça, talvez tenha sido o Tavinho Frias Filho que tenha ido primeiro lá, não sei direito, acho que foi e daí pediu pra um repórter, o Nelson de Sá ir assistir a peça. E eles fizeram uma matéria imensa sobre o fenômeno Marquês de Sade no Bela Vista e a peça então fez bastante sucesso. A gente ficou um ano em cartaz, era um teatro de 200 lugares, o Bela Vista, a gente lotava bastante, a gente começou a ganhar dinheiro com teatro, foi um momento bacaninha assim que a gente conseguiu se estruturar, mais ou menos.

P/1 – E aí depois do Sade.

R – Depois do Sade, o próximo trabalho bem importante foi Saló Salomé, que a gente fez e foi o espetáculo que daí nos tirou de São Paulo, do Brasil, a gente foi convidado pro festival do Porto, nos festivais da Espanha e daí a gente então resolveu “Vamos fazer um exílio voluntário; tá muito difícil viver aqui assim”, porque a gente não tinha incentivo, longe de ter, a gente continua não tendo. Então quando eu penso no coletivo, quando eu penso no movimento, ele existe, esse incentivo ta aí sabe? Há um fomento, há alguma coisa acontecendo. Mas naquele momento não existia pra mim, pra ninguém então...

P/1 – Mas vocês foram pro festival levando que peça?

R – Saló Salomé, a gente foi pro Porto e daí então a gente ficou sete anos em Portugal, de 1992 a 1999, e foi muito louco.

P/1 – Conta um pouco assim dessa chegada em Portugal.

R – Então, a gente, na verdade eu fui meio traído aí pelo grupo porque eu não queria ir embora, eu não queria, não era meu plano, não era objetivo meu ficar fora, ficar vivendo fora do Brasil, mas pro Rodolfo e pro resto dos autores eles queriam viver essa experiência. E eles não contaram pra mim isso que eles ficariam. Então eu tive que decidir quando eles já tinham decidido ficar. E eu fiquei muito mais por carência, porque eu queria estar perto deles, do que verdadeiramente por ser um projeto meu.

P/2 – Em quantos vocês foram?

R – A gente foi mais de 20... 27 eu acho. É, 27 pessoas. E, engraçado, que também era característica do grupo, a gente era de classe média, média baixa, E sempre foi um pouco característica do grupo, a gente se envolver com pessoas de formação esquisita, de tribo estranha, então era muita gente pobre. Pra conseguir 27 passagens, vocês imaginam... Valeu tudo a gente montou um QG na Paulista pra fazer pedágio, porque entre o convite e a nossa ida tinha, sei lá, menos de três meses...

P/1 – O convite era só o convite? Vocês tinham que se virar?

R – Os convites são só os convites, toda vez que você ouve falar que um grupo brasileiro foi pra Nova Iorque de teatro, obviamente, é só o convite e tem sempre um dinheirinho na parada, mas esse dinheirinho é dinheirinho mesmo. Nunca vai dar pra fazer nada. Então a gente conseguiu, foi muito louco. O Paulo Autran entra na história nesse momento da nossa vida. Então essa minha formação em Curitiba foi bacana porque eu tive contato com muita gente legal. O Paulo foi um. Os grandes atores iam trabalhar em Curitiba, a coordenação entrava em contato com eles e vem dar uma palestra, uma aula, um encontro, vinha trabalhar com o pessoal, e o Paulo Autran conheci quando eu fazia o meu curso lá em Curitiba, e ele teve uma participação bem importante na nossa vida. E ele sugere nesse momento, fala “Ivam, porque que vocês não fazem espetáculos cobrando ingressos bem caro, tipo muito caro”, hoje seria mais ou menos, sei lá, 500 reais, mil reais e vende pra quem tem esse dinheiro. Vende pra quem tem esse dinheiro, pra empresários, artistas, quem pode pagar isso.

E foi uma grande saída, a gente fez algumas sessões do espetáculo, então a gente ia procurar os empresários e tudo que nos ajudavam, mas foi bem difícil. A gente chega em Portugal no Festival do Porto, a gente tem apresentações bem caóticas porque a nossa peça era num espaço, não era um palco italiano, e a gente foi trabalhar num teatro que era o Carlos Alberto, que era um teatro do século XIX, sei lá, italiano. A gente teve que tirar as poltronas da platéia, algumas, o que o pessoal da organização do festival não curtiu muito, então não foi uma experiência muito bacana. E, principalmente, porque eles descobriram que a gente ia ficar também lá, nesse momento a gente revelou. Então a gente não foi muito bem-vindo assim no Festival do Porto, eles meio que se arrependeram da gente, e foi engraçado.

P/1 – E qual que foi a repercussão da peça?

R – Então os críticos não curtiram nada, a gente sempre atraiu uns loucos, tem sempre uns formadores de opinião importantes, uns jornalistas importantes, uns caras mais, que sempre acabam pinçando a nossa história. Então não foi legal com essa crítica, com esse balanço no festival, mas eu me lembro que no jornal público um cara lá, numa revista de domingo do jornal deu assim, sei lá, cinco páginas pro espetáculo, saudando o nosso atrevimento, dizendo que aquilo era muito novo. Tem uma pesquisa inovadora, há uma coisa que inquieta, então isso acabava nos sustentando. Os críticos de teatro mesmo não engoliam muito a gente não, era o editor do caderno, era o repórter, era uma outra tribo que acabava elegendo a gente. E daí os primeiros tempos em Portugal foram muito, muito bons, muito bons. A gente viajou muito, a gente participou de grandes festivais Edimburgo, Avignon, com a Filosofia na Alcova. Essa peça está em cartaz até hoje; ela surge como Sade em 1990; e em 1993 em Portugal ela passa a se chamar Filosofia na Alcova e ela tá em cena, então, até hoje.

Bom, e também bem rápido, porque a gente chegou em Portugal em junho, mais ou menos, a gente trabalhou até com Saló Salomé mais ou menos até setembro, e em janeiro de 1993 a gente estréia Filosofia na alcova. Num teatro periférico de Lisboa, mas eu acho que aí a gente já tinha entendido, talvez, a coisa mais importante do nosso trabalho, duas coisas importantes: a primeira, que nós precisávamos de um espaço, porque quando a gente vem não tinha lugar, e cai no teatro Bela Vista e trabalha ali por alguns anos e tem a liberdade de produzir

e de pensar o que a gente quer, porque a gente também entende que não é que você, enquanto artista, não vai dizer sempre na vida o que você tem vontade de dizer. A gente tinha acabado de sofrer uma “censura”, sei lá, com o “Sade” querendo trazer pra São Paulo e não encontra espaço. Então quando a gente encontra o Bela Vista, a gente encontra a liberdade de trabalho, então a gente sabia disso.

E a segunda coisa é: nós modificamos o entorno, aconteceu isso no Bela Vista, a rua Major Diogo já estava super decadente nesse momento, e quando

a gente começa a trabalhar ali a gente recupera uma história ali, a gente atrai muita gente pra aquele lugar, a gente tem uma coisa de agregar outras pessoas. Os Satyros acredita nisso, a gente acredita que o nosso trabalho só pode ter um sentido se ele se aproximar do teu, e se a gente contagiar. A contaminação pra gente ela é muito importante, e a gente tinha entendido isso lá na Major Diogo. Quando a gente chega em Lisboa a gente revê, especula essa nossa experiência na Major Diogo e tenta aplicar então em Lisboa nesse teatro que é o Teatro Ibérico. Que hoje ele fica numa região bacana em Lisboa porque teve a Expo 1999, sei lá, que reformou, reestruturou essa região, mas naquele momento era a região de Xabregas, que era um teatro barroco, era uma igreja, muito bonito, muito bonito, mas que tava com um grupo que é um diretor espanhol Blanco Xil, porque ele é galego, que comanda esse teatro, e então a gente estréia Filosofia na alcova lá e esse teatro é imediatamente colocado em circuito também. A gente faz temporada de terça à domingo e a gente lota todas as sessões. E de novo a crítica não entende, mete a boca, mas o povo em Lisboa fica louco, a gente lota esse teatro por vários anos porque depois a gente vai ficar trabalhando ali com Blanco e a gente vai se associar ao Teatro Ibérico até 1994.

P/2 – Como o teatro engajado vê vocês?

R – Então a gente provoca muito porque... é engraçado você ver, por exemplo, esse teatro marxista que se faz em São Paulo, que é marxista de carteirinha. Eles são super burgueses, tem uma visão de teatro super aburguesada, super mentirosa eles ganham patrocínios e prêmios e tal, mas é dividido em três ou quatro pessoas. Eles têm medo de outras pessoas, então você não consegue chegar perto desses trabalhos. Se você for fazer um levantamento, por exemplo, onde tá o dinheiro aplicado pelos projetos de patrocínios e de fomentos e tal, você vai encontrar sempre nos mesmos grupos e os grupos que não amedrontam, que não incomodam. Por exemplo, Os Satyros incomoda e não ganha, a gente tá bem out. O teatro Oficina incomoda e não ganha. Atualmente o Zé consegue entrar em alguma coisa de Petrobras e tal, mas a gente tem um grande problema sim, porque a gente não tem classificação. Então, por exemplo, quem olha pro nosso trabalho pensa uma coisa, quando se aproxima do nosso trabalho vê outra. Quem olha só pra um lado fala que é um bando de louco, quando chega muito perto vai ver que tem pesquisa, que tem um fundo, que tem uma estrutura e daí se assustam. E, por exemplo, a gente não ganha mais o fomento, que é um programa de incentivo ao teatro de São Paulo. Já é a 4ª edição, vários anos e se a gente não ganha o fomento a gente não ganha nada, porque não existe um outro, a gente não consegue buscar esse apoio em nenhum outro lugar. Porque a gente é amigo do Serra, então a gente é ligado ao PSDB, sabe assim? Enfim, a gente mexe com umas estruturas assim, mas a gente faz um projeto exemplo da escola agora e chama gente do PC do B, do PT, enfim, e daí eu não sei como eles pensam, como eles vêem isso, mas eu vejo com profunda indignação algumas coisas.

P/1 – Ivam, eu queria te fazer uma pergunta com duas saídas: uma é, você parou lá na crítica que mais uma vez caiu matando e o público mais uma vez lotando a casa e adorando. Então eu queria uma reflexão sua entre essa relação da crítica e do público, e como isso depois levou pra maneira como Os Satyros lida com o público.

R – Então, eu acho que a crítica ela vem. A gente não está criando um movimento artístico em São Paulo. E desculpa a minha falta de modéstia, mas esse movimento tá estruturado, a critica vai vir depois, ela não consegue acompanhar, ela é lenta, a crítica normalmente ela é muito mais lenta do que o artista e do projeto do artista, então agora a gente começa a ver, começam a analisar esse movimento e quando se analisa essa análise, essa reflexão já vem diferente. Porque daí você consegue olhar o tempo e falar, olha realmente que aconteceu isso, isso e isso, porque no trabalho há uma lógica aí de planejamento. Então tem um monte de grupos que ficam na moda, que depois vão desaparecer.

P/1 – Mas como era lá naquele momento?

R – Então, isso que eu acho que é o mais legal e que é igual agora que é uma coisa que provoca, que não tem muito parâmetro, você não tem como muito analisar ou definir o nosso trabalho, eu acho. Por exemplo, eu acho que se a gente olhar hoje pra o que as pessoas entendem talvez seja mais fácil de análise, mas a nossa principal atriz é uma travesti de 70 anos cubana, despatriada, que a gente brinca que o meu manifesto político, nosso manifesto político é ela. Você olha pra ela, pro corpo, pra trajetória, você vai encontrar o manifesto dos Satyros. Ali. é o que eu acredito da vida, é o que eu acredito em política, o que eu acredito, ela me mostra tudo isso. Então eu acho que eu quero continuar provocando. Os Satyrosnão fazem um teatro que é o grande calcanhar de Aquiles desses grupos todos, que fazem teatro experimental até conseguir um trabalho na Globo e até conseguir chegar ao Bibi Ferreira. O trabalho que eu faço não é pra chegar ao Bibi Ferreira, não quero sair... eu acredito no teatro de 70 lugares, eu acredito no espaço democrático, eu acredito no teatro de grupo, eu acredito no grupo que recebe. Os Satyros não tem uma relação de dinheiro, todo mundo que trabalha ali a gente não aluga o nosso espaço, não tem valor, você vai trabalhar lá e você vai ajudar a gente a pagar o iluminador e vai custar 300 reais, 400 reais, sei lá, ou custa parceria, não importa isso, não é um espaço que tá ali pra ser alugado, que tá pra ser vendido.

P/2 – Ta chegando na Praça Roosevelt todo o dinheiro, todo investimento do Estado, mais de 15 anos e vocês recuperaram a Praça Roosevelt, do lado do Centro. O que deu errado? O

que deu certo?

R – Bom, é tão lógico tudo. Como que é o nome daquele filme do Almodóvar que o menino nasce num ônibus mesmo? Esse filme do Almodovar que eu acho que é muito legal, que eu acho que ensina a gente muita coisa. 1970 uma mulher grávida, primeira cena do filme tá num ônibus e ela tá tendo um filho e só tá ela e uma amiga, ela e alguém, uma amiga e o motorista do ônibus, mais ninguém e ela acaba tendo esse filho no dia 31 de dezembro, meia noite na Praça de Maio, em Madrid. E a câmera sai, aquele lugar é vazio, tá muito frio, só estão os três no ônibus. O filme termina no mesmo lugar, 1995 sei lá, 25 anos depois, é, a mesma cena, 31 de dezembro, tá chegando meia noite e há uma grande diferença, o ônibus ta cheio e quando a câmera sai aquela praça tá lotada de gente, muita gente, muita gente. Na primeira cena lá do filme é ditadura Franco que detona a Espanha, que diz “Não sai na rua, você não pode sair”. E por último é a Espanha democrática, que nós podemos falar, nós podemos sair. E no Brasil a gente ainda não chegou nesse ponto, a ditadura ensinou a gente que no Centro de São Paulo você não pode sair, você não pode tomar essas calçadas, você vai morrer, você vai ser assassinado, você vai... alguma coisa muito cruel vai acontecer com você. O Centro de São Paulo é um lugar que não existe, não pode morar, não tem lugar pra morar, os apartamentos são horrorosos, tudo é feio, e daí? A gente toma as calçadas, a gente acende as luzes e tudo se modifica, e você atrai a pessoa e o humano acontece. Quando a gente chegou na Praça Roosevelt tudo era escuro e eu aprendi, e ali era dominado pelo tráfico, pela prostituição...

P/1 – Em que ano?

R – 2000 e era um lugar absurdamente complicado, mas eu aprendi uma coisa: tinha uma coisa só que me separava desse traficante, dessa pessoa que estava ali, que era uma pergunta: qual o seu nome? Você veio de onde? E daí começou uma conversa, então e, principalmente, eles que eram pessoas que não tinham nome; esses meninos que vivem, quantas pessoas vivem na Cracolândia hoje? Que ameaça São Paulo? Todo mundo quando fala de Cracolândia todo mundo fica assustado, qual é a população da Cracolândia que vocês acham? Não chega a cem! Então o grande problema da cidade são cem pessoas, que são desajustados sociais a gente sabe, mas que tem problema mental, que tem uma série de problemas? Que são problemas só! Você entende? Mas eu acho que é um problema do cidadão, não acho que é um problema do Estado.

P/1 – Descreve um pouquinho como era a Roosevelt assim quando vocês chegaram.

R – A Roosevelt tinha um dos lugares mais incríveis que eu conheço, porque ela tem uma fotografia linda, de dia a luz da praça é incrível, tem os prédios, tem aquelas árvores, então é uma fotografia linda ali, filmar na Roosevelt, fotografar na Roosevelt, principalmente de manhã. É algo incrível, incrível. E a Roosevelt de dia é uma coisa e a noite ela é outra coisa. Então quando tem luz e quando as pessoas caminham por aquelas calçadas ela tem um significado, quando é a noite, quando essas luzes estão apagadas ela tem um outro. Mas quando a gente chegou ali um morador da Roosevelt que morasse em frente aos Satyros, que fica no extremo de uma rua e que desce no metrô República e que vem pela Ipiranga e, portanto, quando chega ali na Ipiranga da Roosevelt ele só vai andar mais cem metros pra chegar à casa dele, ele desviava, ele ia pela Martins Fontes, subia, andava uns 400 metros pra chegar a sua casa, porque a calçada do Satyros era intransitável, por várias razões. Dois lugares ali tinham sido fechados porque um era o Corsário, um bar gay, que hoje é o supermercado Extra, era um lugar que iam travestis, gays, e um dia lá mataram uma travesti ou duas, eu não sei, que chamaram a atenção que houve uma chacina. Não foi chacina, então não sei, houve um assassinato lá qualquer, isso nos anos 1990. Esse lugar foi fechado, interditado e havia onde é o Parlapatões, hoje uma padaria 24 horas que também foi fechada por causa de um assassinato. O filho do dono matou alguém de madrugada. E ali naquelas nossas calçadas haviam muitos assassinatos, histórias muitos cruéis, que aliás continuam acontecendo. Esta semana passada foi assassinado uma pessoa na praça e que a imprensa não fala até porque gosta um pouquinho... é bom, porque vocês vão ver isso daqui há muito tempo, passou e não assusta tanto, mas enfim. Muitas pessoas da imprensa até acobertam isso porque gostam da gente. E muita gente acoberta porque não pode falar porque é terrível.

Mas, enfim, esse terreno a gente encontrou ali, muito escuro, não tinha luz ali nenhuma, porque os meninos, os traficantes eles quebravam então não tinha luz. A gente ligava pra Eletropaulo que vinha e colocava luz, quando anoitecia os meninos quebravam. Daí a gente ligava de novo, enfim a gente foi tentando negociar durante muito tempo. Muitas travestis circulavam, travesti é feminino, nunca é masculino tá, elas odeiam que você fale muitos travestis e a imprensa adora escrever. Haviam muitas travestis ali. A primeira vez que eu saí de noite dos Satyros e andei pela praça a noite, isso deve ter sido em 2003, pra vocês entenderem o medo e o pavor que era aquele lugar era muito, eu me lembro que nesse dia eu deixei a minha carteira, as minhas coisas todas, chave e sai sem nada.

Então a gente acabou vendo muita coisa ali assim. Em cima dos Satyros era um hotel de travestis, de viração, esses lugares que você vai lá e paga pra transar, só de travestis, e mais lá pra frente lá perto do Satyros 2 era um outro de prostitutas; e onde é o La Barca, que é ao lado do Satyros 1 era um lugar de self-service de michês. Então tinha, sei lá cinco, michês por noite, ou três e você pagava um único valor, tipo em dinheiro, e podia transar com os cinco.

P/2 – Começam a mexer com os horários convencionais?

R – Começamos, começamos. Então, a gente também, a primeira coisa que a gente faz ali, por isso aquela mesa na calçada. É uma coisa terrível, semana passada a gente levou um multa de 27 mil reais lá e a gente vive brigando com o poder público. Como que a gente pode analisar, porque foi a primeira coisa que a gente fez, a gente acreditava nessa mesa na calçada por causa da história do Almodóvar. Vamos deixar uma luz, vamos trazer gente, vamos circular, vamos tomar essas calçadas...

P/1 – Deixa só fazer um break porque a gente pulou uma parte aí, vocês ficaram quanto tempo na Europa?

R – Sete anos em Portugal.

P/1 – Sete anos influenciam muito nessa coisa do espaço público...

R – Claro, claro, claro. Espera aí, a gente não tem só Portugal, depois a gente vai pra Alemanha. Então a partir de 1997 a gente começa a trabalhar na Alemanha, a gente viaja muito e o que acontece na Europa, quando chega verão todo mundo põe a sua cadeirinha pra fora, todo mundo. A gente não vai por uma cadeirinha virados um pro outro conversando, é ao contrário, a rua é ali então não é aqui, pondo de frente pra rua...E aqui a gente evita isso o tempo inteiro, então essa experiência é muito presente na nossa vida. Porque quando a gente vive lá faz muito frio, o inverno é rigoroso, você quase não tem sol. Quando você tá na Inglaterra ou quando você tá na Alemanha. Então quando vem o verão você quer luz, você quer a rua. E a gente não tem isso aqui, parece que a gente quer se isolar o tempo inteiro. A gente chegou a ouvir lá na praça muitos moradores dizer assim “Não tinha nada disso não, essas coisas que vocês falam. Eu chegava do meu trabalho as seis horas, sete horas, me trancava, não me interessa o que acontece lá fora” quer dizer, ela não convive com a praça. E continua não convivendo, a gente não anda nas nossas praças, principalmente no Centro da cidade, e mesmo quando vem aqui e estava passando, tem uma praça aqui perto, linda, nunca tinha visto, que praça é aquela?

P/1 – Pôr-do-sol?

R – Ali é praça do pôr–do-sol? Nossa, claro que eu conheço, mas enfim, eu vim por uma rua que me pareceu ser um outro lugar. Mas ela não é utilizada como deveria, esses moradores...Então, o que aconteceu era isso, a gente durante muitos anos deixou essas mesinhas sem ninguém, ninguém sentava nelas e a gente ficava lá meio... a gente cansou de fechar Os Satyros três da manhã de segunda, de terça, de quarta sem ninguém lá dentro. Era político o que a gente estava fazendo, e como a gente tinha colocado isso como plano, era o nosso projeto de vida que a gente mudaria aquilo, a gente não podia fracassar. Então toda essa questão do horário a gente reinventou.

Nesse momento, em dezembro de 2000, o centro de São Paulo tá totalmente desacreditado. Quando a gente retoma ali na Praça Roosevelt o teatro tá de sexta passando pra sábado e domingo só, então teatro em São Paulo procura uns guias pelo amor de Deus, levantem isso que vocês vão perceber que naquele momento, janeiro de 2001, fevereiro, março de 2001 a temporada teatral em São Paulo acontecia de sábado e domingo, raramente um espetáculo ficava sexta, sábado e domingo. Então ir ao teatro às quartas, às terças, às segundas, mas nem pensar! E a gente começa a trabalhar imediatamente, já em 2001, a gente já tem programação de segunda a segunda ali, o que também causa uma estranheza imensa. Quando a gente começa a trabalhar meia noite então todo mundo fala “Eles enlouqueceram”. Isso tudo não é a gente que tá inventando, esse ovo, tudo isso é experiência que em São Paulo já tinha tido isso em outros momentos; na Europa tem isso toda hora e o que a gente tá fazendo é tomando a cidade. A gente trabalha num espaço que não tem pé direito, não tem nada, é uma sala multiuso, então, ou eu trabalho acreditando que eu tenho que fazer espetáculos pra esse lugar e que vai ser muito diferente do que fazer um espetáculo no Cultura Artística, em qualquer outro espaço convencional, então eu posso dividir esse espaço, vou fazer uma peça que não vai ter cenário, eu divido ele o máximo que eu posso. Então a gente começou a fazer isso também.

Então ter peça de final de semana uma às sete, umas às nove e uma meia noite no mesmo espaço, vamos compartilhar? A gente não falou tanto, a gente não foi tão marxista nas nossas formações, a gente não falou tanto em dividir, dividir, dividir, porque que as pessoas tem o espaço e é meu, e é meu e é meu e ninguém entra? É teu também, vem aqui, vamos conversar. E daí o que as pessoas, aquela relação com os outros grupos, o que eles falam? “Eles estão fazendo isso porque eles querem ganhar dinheiro, eles estão alugando”, claro, eles tem que encontrar uma maneira também pra crítica funcionar. Mas é importante dizer que o Satyros é um espaço que não se aluga, a gente não tá lá pra vender um horário e que todo mundo que tá lá é porque a gente quer que esteja e a gente adora, adora dar espaço pra quem não tem onde trabalhar, porque quem tá começando carreira hoje não vai conseguir um edital do Centro Cultural São Paulo, que é de graça, nem do teatro João Caetano, que é de graça, nem do Sérgio Cardoso, que é de graça, porque eles precisam ter curriculum pra pegar esses espaços. Eles vão trabalhar aonde? Então vem lá, nos Satyros; no inicio da carreira, cheio de idéias, felizes e perdidos num mundo.

Daí a gente pega os preços da Avanhandava, que é muito bacana,

mas eu não queria me tornar uma Avanhandava, sabe? Eu não queria não, inclusive quando fala em reforma de praça, desculpa dizer, mas tá legal que quando acontecer que aconteça naturalmente, que seja o teu projeto, que seja você passar ali. É Patriarca aquela região, que tem a igreja de Santo Antonio ali no Viaduto do Chá? Que tem aquela obra, uma obra esquisita... eu não quero nem falar o nome do arquiteto porque, coitadinho... não, não quero falar o nome dele, eu gosto dele, eu acho ele um máximo! Mas que triste aquilo, que feio, não lembro o nome daquele Largo, mas enfim, é do Paulo Mendes aquela obra esquisita que tem a Igrejinha de Santo Antonio, que é super bonita e que tapa tudo e que ninguém vê nada. Então, é isso que vão fazer na Praça Roosevelt? Tipo, vão colocar ali um projeto que não tem nada a ver com aquilo? Entende?

Então eu até gosto de pensar que eles vão deixando essa reforma e que a gente possa ir tomando essa praça de verdade. De verdade mesmo, porque eu tenho medo, tenho medo que se arrume tudo, que o tempo inteiro ali a gente é provocado, Os Satyros, o próprio Parlapatões, eu acho que são os nossos grandes parceiros nessa história. A gente é provocado o tempo inteiro por essa questão de grana, de, por exemplo, no espaço do Satyros’ a gente colocou o ar condicionado ali faz uns três, quatro anos porque chegou um momento que a gente falou “Ah, tem que por mesmo”, mas não fazia parte do nosso projeto de vida, aquelas cadeiras são desconfortáveis porque tem que ser desconfortável, eu não posso maquiar isso. Porque daí toda idéia de espaço é assim: vamos criar um espaço? Vamos. Então a gente enche de veludo, a gente maquia tudo e mente pra todo mundo, entende? Quando na verdade a gente tá discutindo ainda sobrevivência, o teatro brasileiro ainda tá discutindo sobrevivência A gente se contenta com uma migalhinha do fomento que dá agora pra você quando na verdade o buraco é outro.

P/1 – Me conta o que é a maratona?

R – Então, eu vou contar como começou a maratona. A gente trabalhava no teatro Bela Vista, isso lá atrás, e um funcionário da APETESP que a Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo era muito forte, muito forte, não tem paralelo hoje na classe artística. Naquele momento, eles tinham acesso a Roberto Marinho, ao Silvio Santo. E esse menino foi mandado embora e puto com a APETESP, o que ele fez? Roubou uma agenda da APETESP com todos esses contatos e chegou lá no teatro Bela Vista e falou “Ivam fui mandado embora da APETESP, mas toma pra você de presente, roubei lá, eles vão se ferrar!” e eu peguei essa agenda e tinha o telefone de todo mundo que você imagina! Não era época de celular, então tinha o telefone direto do Roberto Marinho. Pra ver se era o Roberto Marinho eu telefonei, e atendeu a Dona Lili Marinho e eu passei um trote na Dona Lili Marinho e desliguei. Falei “Gente, que delícia! Vamos passar trote nesse povo!” Passamos na Dercy Gonçalves, imagina passar um trote da Dercy Gonçalves. Passei um trote nela, e fomos passando trote num monte de gente até chegar na Vanusa e daí a Vanusa tem uma música que é ‘Manhãs de Setembro’, que era uma música da minha infância e era inicio de setembro, dia primeiro de setembro isso, ou era dia 30 de agosto, não sei. A Vanusa atende e eu “Vanusa, aqui é o Marcelo queria te chamar pra cantar ‘Manhãs de Setembro’ aqui na rua, vai chegar setembro e você vai saudar ele aqui e daí a gente vai fazer um coro de bacantes.” Aí eu comecei a enlouquecer e a Vanusa, acho que ela estava meio louca, ela foi topando tudo que eu falava, mas daí era trote, eu não podia esquecer. “Mas é às seis da manhã, Vanusa você vai descer a Major Diogo cantando” e ela “Que lindo, às seis da manhã!” No meio do trote foi ficando tão legal, a primavera tem tanto a ver com teatro. Um coro de bacantes e dionisios, Os Satyros abrem um cortejo de Dionísio. Falei “Gente, claro, a gente pode pegar essa agenda aqui, ligar pra todo mundo e a gente faz uma grande história, uma puta de uma maratona 24 horas”.

Falei “Tá bom Vanusa, o Ivam Cabral vai ligar pra você”, desliguei o telefone e falei pro meu amigo “Fausi, eu acabei de ter uma idéia genial! A gente pode fazer isso, usa a agenda” e a gente fez a primeira ‘satyranas’ assim e a gente trouxe todo mundo que vocês imaginam assim... Fagundes. O Fagundes era tão quente naquele momento, mas tão quente que a gente teve o Kubrusly ao vivo no SPTV, como chama quando põe uma câmera e... link ao vivo pro jornal e a Cultura negociou assim, falou “Olha se você conseguir uma matéria com o Fagundes...” eu nem lembro que jornal da TV Cultura “.. a gente manda todo mundo” eu falei “Mas eu consigo tudo e consegui que o Fagundes falasse com a Cultura”. Imagina, hoje acho que não tem nem um ator mais que tem esse peso e que negocie isso, o mundo tá mudando. Mas enfim, foi muito legal o que aconteceu e daí a ‘satyranas’ surgiu lá, era ‘folias teatrais’. E daí quando a gente veio pra Roosevelt. A gente tem que retomar esse projeto porque daí tem um...

P/1 – Satyranas é primeiro onde?

R – Bela Vista, isso foi em 1991, lá atrás, é. E daí na primeira na Roosevelt foi em 2002 e daí já tentando chamar atenção ao nosso projeto ali é quando as coisas também começam. 2002 tá? Primeira. Quando as coisas também começam a acontecer na praça. E hoje nas duas ultimas satyranas a gente atraiu 30 mil pessoas lá, é muita gente, muita, muita gente. Acho que têm vários sinais, o teatro ele é forte hoje em São Paulo. Eu acho que esse movimento se consolida a partir disso. Acho que quando você olha pra praça Roosevelt, hoje quando tem mesinha na calçada, quando tem é uma coisa, quando a luz ta acesa é uma coisa; quando não tem mesa na calçada, quando a luz ta apagada é outra coisa; quando a gente sai de férias no final do ano - a gente só fecha entre o Natal, Ano Novo e um pedacinho de janeiro - a gente chega lá e tá tudo escuro, roubaram os fios. Tem acontecido isso sempre. Então é todo um trabalho de novo. A praça, essa luta não tá ganha, essa luta não vai ser reformar a praça e se ganhou essa batalha, se você não colocar gente nesse lugar, se não acender essas luzes... e por isso o teatro pode sim ser fundamental. É fundamental.

P/2 – E a coisa dos fantasmas lá?

R – Então é, a gente também não foi imbecil. A gente não chegou em um lugar qualquer. Esse trabalho também contou com isso, há uma memória de espaço, a praça Roosevelt ela foi o berço da Bossa Nova em São Paulo nos anos 1960. No comecinho de 1960 ali haviam uns lugares, umas casas noturnas. O primeiro lugar que Elis Regina cantou em São Paulo foi na praça Roosevelt. Tinha o Redondo, tinha o Teatro de Arena, enfim, era um lugar muito elegante. Esse prédio que chegou agora como apart hotel de travestis, que é o em cima do Satyros, foi o primeiro flat do Brasil, Aparador, era o nome, então o primeiro flat do Brasil foi ali na praça Roosevelt. A Maysa Monjardim que morava ali na Rego Freitas, então a praça Roosevelt concentrava os intelectuais. Isso a gente tá falando dos anos 1950 e 1960. Mas depois, nos anos 1970 e 1980 toda uma geração de não só de cinéfilos, mas foram formadas 1970, 1980 pelo Cine Clube ali da praça. Tinha o colégio Etapa ali perto também, que até um determinado momento que formou toda uma geração de cabeças, de intelectuais e tal. Então a gente sabia disso tudo e que isso seria fundamental. A Praça Roosevelt sempre vai ser reduto, queiram ou não, boêmio, sempre, como a Lapa no Rio de Janeiro. Você reconhece essa vocação ou não, aí é possibilidade sua. Sua de cidadão, que não quero falar de poder público, porque não adianta. Não acho que é um problema do poder público não, eu acho que é um problema nosso, que nós estamos bundões e que não tomamos esse espaço como nosso, que continuamos acreditando na Adelaide Carraro, que era uma autora de livros do anos1970 e que lá em Ribeirão Claro eu lia e que retratou os anos 1970, a ditadura toda, 1960, 1970. Ela tem livros ótimos, fala sobre travestis... Ela foi muito importante e ela formou toda uma geração e o que ela fazia? Ela trabalhava, ela era a favor da ditadura, então ela pintava São Paulo de um jeito eu até reli ultimamente uns livros dela pra tentar entender o que se passava. Mas que São Paulo é um lugar intransitável, que no Centro de São Paulo você vai ser engolido, e isso tá impregnado nas nossas cabeças até hoje, então a gente precisa tomar essa cidade, de verdade.

P/1 – E você vê quando, por exemplo, quantas dessas pessoas vieram aqui por causa do teatro?

R – As nossas sessões estão lotadas, então, mas isso também não importa, porque eu acho que são duas coisas que a gente trabalha. Primeira coisa é importante ver que peças estão sendo apresentadas e as nossas peças são lotadas, mesmo. Chega lá você corre o risco de não entrar. Se você não chegar com um tempo de antecedência você não entra. Há um público interessado sim em teatro, isso é o primeiro ponto. Segundo, esse cara que não foi ver o teatro ou que chegou lá e estava lotado ou que não gosta de teatro ele circula sobre uma possibilidade de vida muito diferente do cara que vai beber na Vila Madalena. Se bem que eu acho que aqui na Vila Madalena também foi importante isso, eu acho que esse ponto também foi importante na revitalização da Vila Madalena você não pode desprezar que esses botecos não são só botecos, existem umas outras coisas por trás que tem que ser analisadas, mas aí Sociologia, ou sei lá quem vai poder dizer pra gente.

P/1 – Conta um pouquinho do teatro Veloz que vem lá de trás?

R – É, vem. Então a base nossa ainda é Nietzsche, ainda é Marx, a gente ainda busca esse dionisíaco aí, a gente não acredita no apolínio e tão tudo isso você vai ver no nosso trabalho, como a gente aplica isso.

O que é o apolínea? É a luz, é o formal, é o branco. O que é o dionisíaco? É a embriaguez, é o vinho, é o sexo. E esse elemento é pouco, ele é identificado, você identifica nas culturas, em várias culturas, mas ele faz mal em algumas, então se você for olhar pro nosso teatro, por exemplo, ele é todo apolínea, desde da estrutura física e os espaços mais bacanas são os mais limpos, os mais agradáveis, há uma cultura do apolínea hoje. Você vê hoje, por exemplo, os shoppings. Eu fui agora no Bourboun e é um absurdo, o corredor do Bourbon é o meu apartamento inteiro, e daí tem aquelas sofás incríveis nos corredores, de couro.

P/1 – Essa coisa de trazer o público pra um lugar onde todo mundo te diz que não é pra você ir, como que é isso? Isso faz parte também do que a pessoa vai ver lá? Como é que isso influencia no que vai ser visto no palco? Como é que isso mexe com o público?

R – Claro, claro, a gente não tinha muito essa consciência não, dizer que a gente queria trabalhar, que o teatro pode modificar o entorno, e isso tudo eu vou continuar acreditando sempre, que eu tenho certeza disso. Mas que seria um lugar que você não iria nem morta, isso eu não imaginava. Eu imaginei porque eu liguei pra uma crítica de teatro bem importante de São Paulo, lá no comecinho, telefonei pra ela, que hoje freqüenta lá, ela atendeu e disse - a gente não se conhecia -, e ela disse que ela não iria e porque a gente tinha ido montar um teatro na praça Roosevelt? Que era um absurdo, que o Centro de São Paulo ela não ia. Foi aí que eu percebi. No decorrer desse tempo eu fui descobrindo pessoas, amigos ainda que nunca foram no Centro de São Paulo. Já foram aos Satyros, mas nunca foram na praça da República, nunca vão a Sala São Paulo. Com carros blindados, e que entram naqueles estacionamentos e saem e nem vêem nada da cidade e que se recusam a transitar naqueles espaços. Então isso me assustou muito.

Agora, eu te surpreendo e é bacana, se você for, você volta, eu gosto de pensar nessa coisa de ser um encantador de pessoas. Então a gente tem um monte de trunfos, monte de pessoas. Essa crítica, por exemplo, agora vai, ela gosta de lá, ela disse que até quando ela se aposentar ela vai sentar nas mesinhas lá, entende? Então isso é genial. Mas eu acho que isso é por conta disso que eu falei também, eu acho que existe um movimento artístico que daí a gente desenhou, a gente, mas foram os artistas que fizeram. Foram os grupos que vieram dividir essa esperança com a gente. Então existem pessoas, por exemplo, Cemitério de Automóveis, do Mario Bertolotto, que é um grupo fundamental na nossa trajetória. Importantíssimo, porque eles - e que às vezes eu penso que talvez a história encubra isso - que eles foram fundamentais porque eu vivo falando disso em entrevistas e tal e daí nunca sai, nunca publicam. Eles são fundamentais, como monte de outros grupos. Parlapatões sim. Enfim, são dezenas e dezenas e dezenas de grupos e de artistas. Isso é maravilhoso. Mas não é uma batalha ganha, acreditem. E, pelo amor de Deus, a gente não quer polícia ali, não precisa disso, aliás tudo que a gente tá fazendo é pra não ter nada disso; é bacana que os mendigos estejam ali, é triste que as travestis não morem mais lá, é tristissimo, porque era muito legal a fauna da praça... O capital espanta. O meu medo sempre é esse. O mais interessante são as putas, são os travestis, são os moradores de rua, isso é o mais legal, então não é essa higienização que fazem, que pensam, isso destrói. A gente entendeu que precisava ter o ar condicionado, agora eu tô me convencendo de que a gente precisa mudar aquelas poltronas, aquelas cadeiras, que é dura, ruim. É bacana a pessoa ter o mínimo de conforto, mas eu não posso dar um lugar pra você dormir. Não posso dar uma poltrona pra você ir lá... não é momento pra isso, então você vai lá comigo e é uma hora e meia, uma hora e quarenta só da tua vida que você vai viver uma experiência, eu tenho que te tirar do teu estado normal, eu tenho que te mexer um pouquinho, você precisa sentir alguma coisa, é só uma hora e meia e talvez aquilo seja definitivo na tua formação, na tua vida. Quando eu falo da peça lá à Moda da Casa, que eu assisti quando eu tinha 18 anos e que modificou a minha vida, naquele momento eu não entendia o que eu estava vendo, mas de certa forma mexeu com a minha... penso isso...

P/1 – E como que é o movimento de sair da Roosevelt e ir pra outro, a história dos Jardins?

R – Ah, então, legal essa história porque a gente estava com a Filosofia na Alcova

em cartaz nos Satyros. Tá ainda. Mas em determinado momento, 2003, 2004, sei lá, teve um expectador que brigou na bilheteria, porque ele ia assistir a peça, tinha reservado a peça, a gente reserva até meia hora antes e ele chegou 25 minutos antes e o ingresso dele tinha sido liberado pra outro expectador que estava lá. E ele brigou e ele era negro e disse “Vocês fizeram isso porque vocês estão discriminando, porque eu sou negro, se eu fosse um branco eu teria”, enfim ele ficou muito revoltado e a gente não entendeu muito bem. Não dava mais mesmo pra ele assistir e daí eu peguei e dei ingresso pra ele vir noutro dia, era uma sexta-feira, meia noite. Então tá, não deu pra ver hoje dá pra vir amanhã, ele e mais uma pessoa. Daí ele “Mas tá me dando de graça?” “Sim, pra você vir amanhã”, ele duvidou que seria de graça, ficou me olhando meio estranho e contou que ele era do Pantanal. Eu pensava que era Pantanal do Mato Grosso, nunca tinha ouvido falar do Jardim Pantanal em São Paulo.

No dia seguinte ele veio assistir a peça meio receoso assim, chegou bem antes, assistiu e ficou muito agradecido porque ele estava assistindo a peça de graça e ficou nosso amigo. Ele é um cabeleireiro do Jardim Pantanal. Na semana seguinte ele ligou “Ah, vou ver de novo, faz desconto pra gente? Poderia ter um preço de amigo aí?”, Sei lá, a gente fez pra ele, enfim, no final das contas... daí ele ligava e “Olha, a gente tá indo, vocês não conseguiam cinco convites?” “Claro”, “Olha, a gente tá indo em dez, você não pagava ônibus de quatro?”, e a gente já estava pagando pra eles virem pro teatro. E num determinado momento a gente foi conhecer então eles lá no Jardim Pantanal e a gente chegou lá, o salão dele era cheio de cartazes dos Satyros, e a gente era muito famoso lá. Quando eu cheguei assim todo mundo “Ah!” A gente levou um susto. Mas é muito longe da praça Roosevelt o Jardim Pantanal. E a gente era pop star no Jardim Pantanal, que estranho, que fenômeno é esse?

Daí a gente ficou sabendo que a gente tem uma conta lá, 1120 pessoas do Pantanal foram aos Satyros nesse período todo. E daí ele é um cara muito preocupado com todo mundo ali do salão dele, os meninos discutem filosofia, então ele levava pra ver o Marques de Sade, conversava sobre o Sade, assistia os gregos e conversava sobre os gregos, enfim, na periferia. A gente começou “Então vamos dar um curso de teatro pra eles”. A gente deu um curso e abriu uma sede lá, Os Satyros Pantanal, que funciona até hoje. Já não mais como Satyros Pantanal porque durante alguns anos a gente pagava o aluguel desse espaço e fomentou - eu e o Rodolfo, com o nosso dinheiro - pra que eles pudessem descobrir uma forma lá. Ganharam alguns projetos, não sei o nome, mas de prefeitura, tipo...

P/1 – Editais?

R – Editaisinhos e tal e hoje eles conseguem, eles estão levando essa história bacana e daí a gente começou daí trazer eles pra trabalhar com a gente, como técnicos do teatro. Então muitos meninos hoje no Satyros e também pelos teatros de São Paulo são de lá e formados por nós. E daí a gente viaja sempre, então levava esse menino pra Alemanha, levava esses meninos e todos os meninos queriam ser eles, os nossos técnicos. Então isso contaminou de um jeito, que o sonho desses meninos todos era trabalhar no Satyros um dia, porque eles iam pra Alemanha, porque eles ia pra França, sabe assim? E daí foi um projeto que a gente tem muito orgulho, é muito, muito legal, porque daí então a praça Roosevelt é muito longe da praça. Extremo Zona Leste que tem esses meninos e que tem essa história.

Mas de novo aquela velha história então, eles são, eles têm nome, eles têm histórico, eles têm histórias, é incrível você perceber isso. E esse projeto inspirou então a escola que a gente tá criando agora na praça Roosevelt, que é uma parceria com o governo do Estado. A gente então vai fazer uma escola, um centro de formação de técnicos de palco. Então a gente vai formar, essa escola, iluminador, sonoplasta, camareira, maquinista, essas coisas.

P/1 – Legal, você acha que tem alguma coisa que você gostaria de ter dito e que a gente não perguntou?

R – É isso aí.

P/1 – Então eu queria, só pra fechar, como esse projeto é um projeto que fala de mudança, fala de transformação, fala de diferentes olhares no mundo. O que é mudança e transformação pra você, nesse contexto de tudo que você contou da praça?

R – Então, talvez por esse olhar muito pessoal então de quem eu sou, esse menino que veio dessa família, que morava nas casas de madeira e que pra gente comer a gente plantava. Então essa imagem de tirar a cenoura, comer a cenoura da terra e muitas vezes sem lavar, é muito presente e é muito forte pra mim. Então eu não fui um cara que aprendi essas coisas, eu não recebi essas coisas, então por isso que eu penso muito diferente. Quando eu vejo a transformação da praça Roosevelt eu acho que eu quero ser cidadão primeiro. Então eu acho que isso me interessa muito mais do que o poder público. Por exemplo, de ficar criticando ou ficar pensando, ou ficar pichando. As coisas que eu tive e que eu precisei, elas foram difíceis, elas foram complicadas, porque também às vezes a gente não comia a cenoura porque geava e a gente perdia. Conheci Cabo Verde há uns anos, e tinha um lugar lá lindo e que também eu acho que exemplifica isso que eu penso do homem. Um terreno que é na encosta de uma montanha e todos os anos eles vão lá e trabalham meses pra plantar aquilo. E quando eu tive lá há 12 anos, não dava nada. Você falava ‘Cara, que coisa impressionante!” Ele falou “É, mas a gente faz de novo porque pode ser que esse dê”. E naquele ano deu, no décimo terceiro ano eles colheram.

Então, a praça Roosevelt, a gente pode perder toda essa beleza, todo esse encanto, porque se vier uma reforma lá que edifique coisas que não tenham a ver com esse pensamento, com a tradição daquele lugar, que não pense...e daí o bacharelado me interessa, de você pensar há uma memória de espaço, você não pode esquecer que a Elis Regina cantou ali pela primeira vez, que a Maysa morava ali, que teve o teatro de arena e que a praça Roosevelt era um lugar de manifestações políticas e por isso o prefeito Faria Lima pensou naquele monte de concreto, que não é o Maluf; o Maluf inaugurou, mas quem pensou parece que foi Faria Lima. Enfim, nós somos maiores que isso tudo, então vamos tomar essas calçadas, vamos tomar essas praças, vamos andar pelo centro de São Paulo, eu tenho certeza que tudo muda.

P/1 – Bacana. O que você achou de ter dado essa entrevista?

R – Adorei, ótimo! Obrigado.

P/1 - Foi ótima.