Museu da Pessoa

Uma vida pela luta

autoria: Museu da Pessoa personagem: Janaina Macruz Inácio

Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Janaína Macruz
Entrevistada por Lucas Torigoe
BH, 20 de setembro de 2019
PCSH_HV825











_ rev.
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira

P/1 – Qual é o seu nome inteiro, local de nascimento e data?

R – Meu nome é Janaína Macruz Inácio, nasci no dia 12 de dezembro de 1982, em Porto Alegre do Norte, Mato Grosso.

P/1 – Você nasceu em que hospital? Você sabe?

R – Sei, eu nasci em casa, com parteira.

P/1 – Sua mãe e seu pai contaram para você como foi esse dia?

R – Então... Meus pais são paulistas, eles eram militantes estudantis na época da ditadura, atuavam em grupos lá em São Paulo e aí eles acabaram indo, por causa de um convite do bispo Dom Pedro Casaldáliga, para a região do Araguaia, para trabalhar na luta da terra com posseiros indígenas e, então, eles largaram tudo com 22, 24 anos de idade, foram morar lá. Inicialmente, eles não queriam ter filhos, ficaram uns sete anos juntos. Para a região, inclusive, era meio estranho um casal não ter filhos. Depois de sete anos, eles resolveram ter filho, engravidaram, então foi uma grande festa o meu nascimento. Lá, apesar de ter um hospital, eu acho que na minha época... Inclusive, na cidade, não tinha ainda, era normal nascer em casa, com parteira e tudo mais. Foi assim que eu nasci (risos).

P/1 – Eles falaram o dia como é que foi? Teve alguma dificuldade, estourou a bolsa?

R – Eu não sei desses detalhes de parto, assim. Minha mãe se foi, depois que eu tive filho eu tive mais curiosidade para entender essas histórias, eu já não sei muito. Eu só sei isso, que foi uma grande alegria para os dois e para a cidade, eles eram já lideranças locais. E foi isso, meu pai escreveu poema, teve festas e lá eles bebem o neném. Então, teve festa com cachaça a noite inteira e etc.

P/1 – Eles bebem o neném? Como é que é isso?

R – Então... É uma tradição que acaba... É muito louco isso. Na região, a mulher estava lá em trabalho de parto, com as parteiras, que não eram enfermeiras necessariamente, mas sim... Tinha algumas enfermeiras que participavam desse grupo do Dom Pedro Casaldáliga, então eram enfermeiras, inclusive, que vinham da França, da Espanha, elas acompanhavam o parto. E, por exemplo, o parto do meu irmão mais novo, a que eu assisti, ficava a mulher na cama, em trabalho de parto, e todo mundo em volta da cama trocando ideia e bebendo cachaça. Era muita loucura, era tipo uma coisa pública assim, sabe? Muito naturalizada essa história, coisa que, na cidade, é uma coisa íntima e tal, lá não tem disso, muito assim... Pelo menos na época, não é?

P/1 – Qual é o nome inteiro da sua mãe?

R – Minha mãe chamava-se Fernanda de Moraes Sarmento Macruz.

P/1 – Como é que é a família dela?

R – A família da minha mãe, a minha avó é portuguesa, nasceu lá, tem dois irmãos. Aí, depois, mudou para o Rio, então toda a vida carioca. E meu avô veio da Síria. Não, na verdade, ele é filho de sírios e se chama Radi Macruz. E minha avó também, super sem se autodeclarar, mas super feminista, independente, uma família mais rica, assim, e aí, na época da Guerra, da Segunda Guerra, eles a mandaram para fazer etiqueta em Quebec. E aí, em vez de fazer aula de etiqueta lá, ela resolveu fazer Ciências Sociais em uma Universidade na (Tora?) [05:28], escondido dos pais. Aí ela voltou e precisou, acho, fazer uma operação em São Paulo, conheceu o meu avô, que era médico, aí a clássica história da mulher abrindo mão da carreira profissional em nome do marido. Então, meu avô participou do primeiro transplante de coração do Brasil, é um cara pesquisador muito cabeçudo, assim, teve cinco filhos e a mulher dele que cuidava da vida dele, ele foi trabalhar, é meio que isso a história.

P/1 – E o seu pai, qual é o nome dele?

R – O meu pai chama-se Rodolfo Alexandre Cascão Inacio, mas ele se chama assim atualmente, tem uma história por trás disso. Meu pai veio de família húngara, então, tanto a mãe quanto o pai eram famílias húngaras, eles eram primos, os pais deles. E era isso, a galera veio pós-Guerra e tinha um gueto húngaro em São Paulo. E húngaro só podia casar com húngaro, então veio dessa linhagem, assim. Meu pai tem quatro irmãos também, dois já faleceram e tal, mas ele veio dessa família que passou muita dificuldade, proletariado, passou fome, etc. Aí, meu avô acabou virando um gerente da General Motors, mas ele tinha problema de alcoolismo - que é uma coisa genética da família do meu pai, vários casos de alcoolismo - ele acabou sendo aposentado por isso, ele teve um acidente por causa disso. Aí, a minha avó acabou comprando um boteco do lado da fábrica da Sadia, em um bairro bem de trabalhadores, para sustentar a família. Então, ela criou cinco filhos sozinha, meu avô lá encostado, aquela violência em casa também. Meu pai e os irmãos dele, desde sete anos de idade, atendiam no balcão. Tinha mesa de sinuca e minha avó super guerreira, separando bêbado brigando e etc, assim. Ela cozinha muito bem, então o bar dela ficou bem famoso pelos bolinhos, pela comida e tal. Foi assim que ela criou os filhos e é isso. Estudou, sei lá, até a quarta série para os filhos estudarem, então todos os filhos se formaram. E aquela coisa: mulher tinha que ser professora, homem tinha que ser engenheiro, médico ou advogado. Então os filhos todos são engenheiros, meu pai foi obrigado a fazer Engenharia e ele entrou na USP, estudou muito. Então esse choque - meu pai veio de uma família mais simples em São Paulo e minha mãe de uma família mais rica de São Paulo. E a galera conta que era assim: a família do meu pai não gostava muito da minha mãe quando eles namoravam, porque ela não sabia cozinhar e arrumar a casa e a família da minha mãe não gostava do meu pai porque ele era cabeludo, hippie, etc; tinha essa piada, assim.

P/1 – Eles se conheceram como?

R – Então... Meu pai apesar de ter entrado na USP para fazer Engenharia, de fato, assim, a Engenharia foi só um pano de fundo. Ele atuou muito na militância, junto com o pessoal de lá criou o GTP - Grupo de Teatro da Poli - que é um dos grupos de teatro mais importantes da época da ditadura, da militância estudantil. Aí, minha mãe também era da Filosofia, também mexia com teatro e tal e eles se conheceram em Joinville, em um festival de teatro. Aí se conheceram lá, ela e as amigas dela ficaram muito próximas dos amigos do meu pai, acabaram entrando nesse grupo de teatro, meus pais ainda não namoravam, aí depois eles começaram a namorar, assim.

P/1 – Isso foi em 70 e alguma coisa?

R – Tipo, tipo isso. Porque minha mãe mudou para o Mato Grosso quando ela tinha 22 e meu pai 24 anos, então eles já namoravam antes, era meio que isso, assim.

P/1 – Eles foram parar no Araguaia?

R – Foi. Então... A história que contam é que o bispo Dom Pedro Casaldáliga - eu não sei se você o conhece - ele é um espanhol que veio para o Brasil para ficar e cuidar dessa Pastoral, como eles chamam, que é como se fosse um Estado, assim, institucionalmente comparando, é como se fosse um Estado; então uma Pastoral cuida de várias cidades da Igreja. E quando ele chegou na região, ele ficou muito assustado com a pobreza e todos os conflitos mesmo que tinha na região. Aí ele resolveu ter isso para ele, ele resolveu então chamar agentes pastorais. Ele fez uma coisa única na época: ele convidou, foi indo, viajando pelo Brasil e chamando gente das grandes Capitais para trabalhar lá, independentemente de estar formado ou não, porque o conhecimento que se tinha em uma grande Capital era muito útil para a região. Então, com isso, ele formou grupos. Assim... Meu pai e minha mãe são ateus. Então, havia pessoas ateias junto com católicos, que aí vinham padres e freiras. Então era um grupo de militantes, a favor do povo, independente de religião, apesar de ser uma instituição católica.

P/1 – Como você acha que era isso para o seu pai e sua mãe? Saíram desses lugares tão diferentes e foram se jogar nessa missão, o que deve ter passado na cabeça deles?

R – Então, eu viajo que é muita juventude, não é? É muito desejo, assim. Um pouco antes da minha mãe morrer, ela também deu uma entrevista bem parecida com essa, foi lançado um livro, que era um livro de memórias de pessoas que não tinham sido necessariamente presos políticos, mas que tinham participado ativamente na época da ditadura, e os dois foram entrevistados. E minha mãe fala que ela estudou no colégio vocacional, que também, não sei se você já ouviu falar, é uma ilha educacional dentro da ditadura, que foi uma escola construtivista pública, que conseguiu atuar e realizar o projeto dela em São Paulo, mesmo com a ditadura, e ela estudou nessa escola. Quando ela ouviu falar na Ilha do Bananal, ela ficou encantada e queria morar na Ilha do Bananal, e queria muito sair de São Paulo, a loucura de São Paulo e tal. E aí o Bispo Pedro Casaldáliga fazia essas reuniões secretas, convidando o pessoal, e eles foram a uma dessas reuniões. E como era a região do Araguaia e tal, a minha mãe ficou pondo pilha no meu pai para ir e eles contam, inclusive, que para entrar nesse grupo da Pastoral, assim, não era simples, porque, em época de ditadura, você desconfia de todo mundo, então tinha um processo. Tinha um amigo deles da USP, que era o Moura, que era um agente pastoral muito ligado a Dom Pedro Casaldáliga, tinha indicado, feito uma carta, eles também escreveram qual era a intenção deles, aí eles foram visitar, então, a região. Aí eles chegaram lá, jovens, empolgados, sentaram em um boteco para beber, aí o cara que sentou na mesa com eles e se divertiu com eles era um cara da oposição, eles não sabiam na época, aí depois eles foram descobrir. A galera falou assim: “Ah, não, vamos roubar galinha”. Eles foram achando que era uma tradição do lugar, aí eles foram descobrindo a verdade: que era um cara da oposição ao Bispo Dom Pedro Casaldáliga. Aí eles falaram: “É, não vai dar certo”. Mas, depois de um ano dessa ida deles, o Dom Pedro os convidou para participar da equipe, aí eles foram lá atuar e é isso. Você querendo ou não, você chega lá, você pode fazer qualquer coisa. “Você já deu aula?”. Não importa se você já deu aula, você vai começar a dar aula, trabalhar com Educação, fazer reunião de mobilização e tal. E o grupo deles foi muito forte, assim, e teve muita gente de Belo Horizonte. Por isso é que hoje a gente está aqui. Porque rolou essa ponte mesmo de várias pessoas de Belo Horizonte, formadas na UFMG, ou não formadas, indo para lá também. E aí tinham, apesar da distância, assim, de 300, 400 km/h ou, às vezes, 200, mas as estradas eram de terra, todas esburacadas, você demorava dez horas de uma cidade para a outra. A galera se comunicava muito, então toda a região da prelazia se comunicava muito e chegou um momento em que eles resolveram ocupar a institucionalidade, assim. E aí eles ganharam três Prefeituras, simultaneamente. Uma Prefeitura totalmente horizontal, popular, foi uma experiência muito mágica também, uma vanguarda na época. E aí, a questão de meio por virar liderança política na institucionalidade, a perseguição começou a ser maior. E assim que meu pai estava entregando o mandato dele para um companheiro que havia ganho a segunda eleição - ele já tinha sido ameaçado de morte muitas vezes - aí ele foi mais uma vez sendo ameaçado e o pessoal falando que os capangas estavam na cidade. E aí ele, minha mãe e o segurança foram à delegacia mais uma vez avisar; quando eles saíram da delegacia, andaram dois quarteirões, fechou uma caminhonete na frente deles e metralharam o carro. Aí, meu pai levou três tiros, minha mãe falou que o que ela pensava era: “Eu não quero ficar cega”. Então ela fechou os olhos, deitou no banco de trás, assim, o segurança levou um tiro e meu pai conseguiu fugir, levou mais o último tiro nas costas, ele se escondeu em um chiqueiro e meu pai e minha mãe ficaram umas quatro horas sem saber um do outro, assim. Aí, bom, nessas quatro horas, aí já tinha sido acionada a polícia, o governador, todo mundo. Ele conseguiu ir para o hospital da cidade, porque já existia hospital na época. Aí a questão foi essa, porque aí, com esse atentado, a gente acabou sendo resgatado por um avião do governo do estado para Cuiabá e a gente ficou lá. Tipo assim, o hospital cheio de polícia e tal, nós ficamos de favor na casa de um deputado que a gente nem conhecia, a gente ficou morando escondido, meio fugido durante uns dois anos. Na verdade, um ano no Rio de Janeiro - em uma casa paroquial também - porque a gente não podia voltar para São Paulo, porque era óbvio, não podia voltar para a região. Então, nós ficamos morando escondidos esse tempo, eu tinha seis anos de idade. Aí depois desse um ano no Rio, a gente voltou para São Paulo e foi um choque. Depois de treze anos, você morando em casa de pau a pique, brincando na rua, nadando no Rio, vida bem de roça, assim, sem muito acesso, não é? Consumo era mínimo porque as coisas não chegavam muito e não importavam também. Foi um choque para eles, para a gente. E esse lance, não é? De voltar para a grande cidade, depois de 13 anos e depois de ter vivido esse trauma, porque já tinham rolado um atentado e mil ameaças; mas já tinha rolado um atentado quando eu tinha um ano de idade, minha mãe estava grávida do meu irmão, eles colocaram fogo na casa. Meu pai fala que foi salvo pela burrice dele, porque ele ficou tentando apagar o fogo do lado de dentro, então ele não saiu da casa, porque a ideia dos caras era que eles foram pôr fogo na casa... “na hora em que ele sair, a gente pega ele”. Ele ficou tentando apagar o fogo, porque tinha muita coisa importante na casa, e aí quem saiu foi a minha mãe, grávida, comigo, então eles não atiraram. A casa foi toda para o saco e tal. Tem até uma história engraçada, que aí, anos depois, quando ele chegou em BH, ele precisava do diploma dele da USP. Ele tinha certeza que tinha sido queimado nesse incêndio. Aí ele foi na USP, argumentou, arranjou testemunha e tal, e a galera falou assim: “Não, o seu diploma está aqui, você nunca pegou”. Então, é isso. A gente vem, eu e meus irmãos, a gente vem dessa história super bonita, eu tenho super orgulho disso, assim, eu acho que dá... Querendo ou não, você dá uma linha na vida, não é? Muito bonito que eles entregaram a vida para a luta mesmo, mas muito... Eu não lembro muito. Eu lembro quando teve atentado, a gente era pequeno, levaram todos nós para a casa de um amigo deles, que tinha filho também, não contavam para a gente. Mas lembro que eu entendi, lembro eu indo para o banheiro chorar, assim. Então, não sei, eu acho que eu nunca conversei isso na terapia, mas acho que muitos traumas devem vir dessa loucura, insegurança, assim. Era isso. Você chegava no Mato Grosso e a primeira coisa que eles lhe ensinavam era atirar e lhe davam uma arma porque você precisava dela; é muito coronelismo, até hoje. Então, imagina isso em plena ditadura.

P/1 – E você se lembra de outras coisas de lá? Você falou que tomava banho no rio, essas coisas. Como é que era isso? Você lembra?

R – Lembro demais, brincadeira na rua. A gente acordava e ficava brincando de terra na rua, andando de bicicleta, indo de canoa para o outro lado do rio, fazer comidinha. Então assim... Era muito livre, sabe? Era muito livre. Essa é a minha memória de lá, assim, e super coletivo também. Eu acho que a necessidade faz com que a coletividade seja forte. Tinha muito mutirão para construir alguma coisa que alguém precisasse ou, sei lá, alguém vai casar, que seja uma festa, toda a cidade se junta para fazer a festa acontecer. Tem um registro que meu pai ganhou com 996 votos, então para você ter uma noção do tamanho da cidade. Tem esse detalhe, ela virou cidade com a gestão do meu pai, na verdade, que foi quando conseguiu independência. Eu, inclusive, tenho duas certidões de nascimento e, dependendo da que eu mostro, a minha identidade vem com nome diferente, que é São Félix do Araguaia, que era a cidade maior, então Porto Alegre do Norte fazia parte e depois virou Porto Alegre do Norte. E é isso, assim, a minha memória de lá era criança brincando na rua, só delicia assim. Lembro de uma época em que o banheiro era do lado de fora da casa e era só um buraco, uma casinha de madeira, um buraco. Aí, como a gente era criança, o buraco era grande, muitas vezes a gente perdia o chinelo porque caia lá dentro, lembro dessas coisas assim.

P/1 – Você tem irmãos?

R – Tenho dois irmãos.

P/1 – Mais novos?

R – Mais novos, eu sou a mais velha.

P/1 – Quem são eles?

R – Então... Um é o Gilberto, que é o irmão do meio, é artista plástico, trabalha com madeiras, geringonças, faz umas máquinas musicais muito loucas, ele é marceneiro também, serralheiro. E o mais novo, que é o Danilo, que trabalha com Educação, acabou de defender um mestrado, inclusive, sobre a história do Araguaia, foi um momento muito emocionante, faz duas semanas, assim, foi muita gente do Araguaia para ver. Contando essa experiência da Educação, da importância da experiência da Educação, porque havia vários projetos que eram justamente isso: chegava o pessoal de fora e tinha uma turma de 20 alunos; na hora em que esses 20 alunos chegavam na quarta série, eles acabavam virando professores dos alunos mais novos; então foi assim que a galera foi se formando, entendeu? Você tem um professor de fora e depois, quando esses alunos chegam até a quarta série, eles viram professores de primeira até terceira série, e assim vai indo. E hoje em dia, você tem amigos do meu pai que participaram desse projeto, que hoje em dia são doutores pela Universidade do Mato Grosso, então, foi uma experiência bem bonita, mesmo de tipo: “Vamos fazer”. Não tem nada, não é? Então é criar junto. É muito legal.

P/1 – Seu pai foi prefeito com que idade?

R – Trinta e três anos, tipo isso. Bem novo.

P/1 – Ele era do MDB?

R – Então... Tem essa história também. Foi. Exatamente, ele era do MDB, porque na região ainda não tinha chegado o PT, que era um partido novo e, apesar dele ser de São Paulo, então a articulação ficou nessa: “Vamos fazer o PT ou o MDB?” Só que o PT não era conhecido na região, então não significava nada. E o MDB sim, tinha grupos de esquerda, então eles, por ter essa especificidade local, preferiram estar no MDB mesmo. Aí, o lance do nome vem daí, igual ao Lula, não é? Porque na cédula você não podia pôr apelido e ninguém conhecia meu pai como Rodolfo, ele tem apelido de Cascão - desde o pré-vestibular - porque ele era cabeludo, andava com bolsa de couro, bem hippie e tal. Aí, tinha acabado de surgir o Cascão, da Turma da Mônica, e aí a galera começou a zoar, porque hippie não toma banho e o Cascão não tomava banho. Ele odiava o apelido, mas aí ele entrou na USP e alguém do cursinho também era da USP, começou a chamá-lo. E Faculdade não tem jeito, se você odeia apelido, aí que pega. Aí pegou, ele ia começar a trabalhar, ligava um amigo dele. Bom, virou o nome dele. Aí, nessa época em que ele foi candidato, se ele colocasse Rodolfo, ninguém ia saber quem era, então ele precisou entrar na justiça para incluir o nome Cascão no nome. Por isso, ele se chama Rodolfo Alexandre Cascão Inácio. E o Lula é a mesma história, ele incluiu o Lula no nome, exatamente por questões eleitorais.

P/1 – Então vocês foram para o Rio, ficaram um ano lá?

R – Isso. Ficamos um ano lá.

P/1 – Você se lembra disso?

R – Eu lembro pouco, mas eu não acho que foi um período legal e, depois, conversando com meus pais, eles falaram que foi um ano muito tenso, porque era um ano que eles estavam morando escondidos, com três filhos pequenos, sem suporte nenhum, porque os suportes todos estavam ou no Mato Grosso ou em São Paulo ou em BH. E a gente morando em uma casa, em um bairro, que era Sepetiba, que era exatamente onde a polícia desovava corpos e eles conseguiram trabalhar com uma professora lá da UFRJ, que estava fazendo uma pesquisa sobre os posseiros no Araguaia. Ela já tinha visitado e não podia ter o nome deles, então eles não podiam ser autores para não divulgar onde eles estavam. É isso, você morar longe é pegar três horas de ônibus, então era muito tenso, meus pais contam isso, de pegar ônibus à noite e achar que está sendo perseguido o tempo inteiro, e tal. Não sei, eu lembro... Eu não lembro muito de coisa boa lá no Rio não, a gente ficava muito lá. Eu lembro de ter estudado em uma escola pública que foi horrível. Eles me obrigavam a comer bucho de boi, que é aquela comida que fede muito e nenhum aluno queria comer e eles obrigavam a gente a comer. De tipo, sei lá, brigou com coleguinha, eles faziam um círculo no chão e falavam: “Não pode sair daqui e não conta para sua mãe porque ela não precisa saber”. Então, foi um período que, graças a Deus, eu não tenho muita memória, mas eu sei que não foi muito legal não. E São Paulo também não foi muito legal não.

P/1 – Então, e São Paulo, vocês se mudaram, e aí como é que foi? Você se lembra desse período também?

R – Então, eu não lembro da mudança, mas eu lembro que a gente ficou em um apartamento, em um bairro alemão, em um prédio cheio de descendente de alemão e foi muito ruim.

P/1 – Sério?

R – É, porque era muito São Paulo, muita rigidez e a gente não via os meus pais, praticamente, porque eles trabalhavam muito e eles tentando se reinserir no mercado, não é? Então, o meu pai trabalhava na Prefeitura de Santo André, com um governo de esquerda. Eu não lembro o que a minha mãe fazia. Eu lembro, por exemplo, de um dia brincando lá embaixo com os coleguinhas, e aí a pessoa que cuidava da gente me gritou: “Jana, vem cá”. Eu falei: “Agora não”. “Não, vem cá, é sério”. Na hora em que ela foi à janela, estava com a blusa cheia de sangue, a gente subindo a escada correndo, assim - eu e meus amiguinhos - chegamos lá, tinha muito sangue. Meu irmão mais novo, que era um bebê, tinha batido a cabeça. Aí esse coleguinha teve que chamar a mãe dele e levar meu irmão para o hospital, sendo que ele era um bebê, imagina? E minha mãe trabalhando longe, não conseguindo chegar. Eu lembro que meus pais estavam brigando muito, lembro muito de brigas, assim, brigas feias entre os dois. Então, foi um período bem tenso. Bem tenso.

P/1 – Você tinha sete anos?

R – É. Eu tinha sete anos. Sete não, seis, que eu vim para cá na primeira série, acho que é tipo isso, sete, seis anos. Aí eles escreveram um projeto, junto com o pessoal do Araguaia, que se chamava Araguaia Pão e Circo, que é considerado pelos estudiosos de circo do Brasil o primeiro circo social do país. Eles conseguiram patrocínio da Instituição Cirque du Soleil para executar o projeto. Eram 13 pessoas do Araguaia e não necessariamente se conheciam, tinham convivido, mas trabalhavam com Arte e Cultura, minha mãe sempre... O mandato do meu pai todo foi muito ligado à cultura, por essa história, minha mãe sempre muito ligada à Arte e essa história do teatro. Então assim... Na gestão deles tinha a rádio berrante, que era um caminhão, na verdade, que a galera se comunicava, eles faziam muitos espetáculos para letrar a galera das questões institucionais da cidade. Tem uma história muito legal, assim, que apesar do meu pai ser a pessoa que estava lá com nome na cédula, era um grupo, era muito coletiva a história da Prefeitura. E como era uma Prefeitura menor - ainda tinha apoio das outras Prefeituras - eles pegaram, receberam uma verba para asfaltar a rua principal, assim, a avenida principal da cidade. Aí era muita grana, eles falaram “Não, vamos fazer muito mais coisa com isso”. Eles sentaram, inclusive, com os fazendeiros, que eram inimigos políticos e falaram assim: “Não, você vai se beneficiar com isso também, você empresta para a gente o trator?” Então eles iam conseguindo com os fazendeiros algumas máquinas, a mão de obra foi toda da população, eles faziam festas com muito churrasco e cachaça para dar conta da obra. E com o dinheiro que era para asfaltar uma rua, eles asfaltaram a rua, fizeram duas escolas e um hospital. Depois, a Prefeitura foi processada por desvio de objeto de licitação, não é? Porque quando você tem licitação, você tem que executar exatamente isso. Bom, isso acabou sendo resolvido na Justiça, mas foi isso, eles pegaram essa grana e multiplicaram-na. É isso, ele pegou uma Prefeitura que não tinha nada e, de repente, eles construíram hospital, eles construíram escola, eles construíram várias coisas que a cidade não tinha.

P/1 – E tiveram essa ideia...

R – É. E aí esse lance do Araguaia Pão e Circo, que aí a ideia era, exatamente, um circo social, que era trabalhar política através da Arte, a ideia não era ter animal, nem nada disso, mas eram teatros políticos. Assim... E a ideia era rodar a América Latina e eles vieram para BH, porque tinha muita gente que era do Araguaia e estava aqui, não é? Muita gente, então eles teriam esse suporte, assim, inclusive, convidaram umas pessoas para trabalhar no circo, na parte mais administrativa, jurídica e etc. Teve um padre, que é super amigo do meu pai até hoje, que é o Paulo Gabriel Agostiniano, ele fez uma articulação com Durval

ngelo, que foi deputado do PT e tal, e ele estava ligado à Prefeitura de Contagem, na época. Então ele articulou com a Prefeitura de Contagem de conseguir um lote. Aí, a gente veio para cá nessa história do circo, então eu vim para cá, tinha uma lona de circo e nós éramos filhos de circenses. E ficamos uns dois anos nessa história e a galera toda do Araguaia... A gente já tinha até – nós, crianças - essa experiência de ter morado em São Paulo e tal. Mas a galera não, veio toda do interior para cá, assim. Aí foi ‘massa’ demais, só que aí é isso, juntaram três pessoas, nem todas se conheciam e começaram a ter conflitos normais de grupos e também o patrocinador cobrando uma rigidez com a qual eles não sabiam lidar. De Nota Fiscal do biscoito que tinham comprado e tal, tal, tal. Aí eles acabaram por conflitos internos de grupo, normais mesmo. Primeiro uns foram embora, depois continuaram a seguir o projeto. Aí chegou em um momento em que não dava mais mesmo e meus pais resolveram ficar em Belo Horizonte, por causa desses laços afetivos que eles tinham com várias pessoas daqui. E já tinha também articulação de trabalho, minha mãe não tinha formado na USP, começou a fazer Faculdade de novo, ela se formou em Arte e Educação na UEMG [Universidade do Estado de Minas Gerais]. E a gente ficou aqui. Aí, duas pessoas do circo ainda seguiram com o projeto, voltaram com ele para o Araguaia. Hoje em dia, um deles... Duas pessoas têm projetos de circos sociais: um é em Goiânia, que é um circo maravilhoso, que tem patrocínio da Petrobrás, é um projeto reconhecido nacionalmente, chama o Laheto, ele trabalha com meninos de rua, meninos em situação de risco. Um projeto ‘super massa’. E outro, também, é no interior lá do Mato Grosso, que faz um projeto semelhante e outras pessoas ainda seguem sendo músicos ou palhaços e etc. E minha mãe sempre trabalhou com Arte e Educação, trabalhou muito com ONG aqui em BH e faz uns dez anos, fez dez anos, por aí, que eles montaram um grupo de teatro de Arte e mobilização, exatamente com essa pegada política, que se chama Parangolé Arte e Mobilização. O grupo existe até hoje e eles fazem muito isso, tipo, o Movimento Nacional de Catadores vai fazer um Encontro, contratam-nos para trabalhar com os... Fazer um espetáculo, esquetes, trabalhar o evento inteiro ou alguma coisa que eles queiram. Então, eles têm muito esse know how assim, meu pai é muito referência nessa história de mobilização social, sabe? Não escreveu o livro até hoje, mas ele é referência sim. E também, desde 2012, ele sempre escreveu poesia, tem vários livros de poesia do Araguaia com uma galera, eles tinham um nome persona, assim, de um coletivo de poetas e tal. E meu pai sempre declamou cordel, ele sempre foi muito alucinado com cordel. E muitos amigos e a gente mesmo ficava insistindo para ele fazer um espetáculo disso e tal. Aí, 2012, a gente montou um espetáculo só com amigos na equipe, e minha mãe, meu pai, meus irmãos - era bem circo mesmo, não é? Um projeto em que a família inteira trabalha. Aí está desde 2012, esse é o grande projeto forte, assim, do Parangolé, que é o Cordel dos Cafundós. Esse ano, a realização de mais um sonho que é o Cordel Móvel, que é um micro-ônibus que eles adaptaram, fizeram palco e não sei o quê, e tal, tipo um motorhome. E eles estão viajando a cidades do interior com o Cordel. É muito legal, assim, é trabalhar a cultura popular, a galera pira porque se identifica, é muito, muito, ‘massa’, assim.

P/1 – Ele está fazendo isso agora?

R – Está. Está fazendo isso agora e acabou de lançar mesmo o Cordel Móvel, aqui no Floresta, em BH, e já fez várias viagens, está sendo muito, muito legal, assim.

P/1 – Quando você veio para Belo Horizonte, você falou que foi muito ‘massa’, então foi uma espécie de alívio para você enquanto criança?

R – Então, foi, não é? Eu acho que aqui a gente voltou a ter uma vida coletiva, assim, sabe? Porque eram 13 pessoas, nem todas tinham filho, mas tinha... Então a gente saía da escola, todo mundo meio que estudava junto, sempre alguém ia buscar a gente, aí voltava todo mundo junto. A gente passava a tarde no circo, então foi gostoso, não é? Em São Paulo, estava muito ruim; apesar de ter primos e tal, era meio choque mesmo. De convívio social. Foi muito bom. É isso. A gente ficava à tarde e também tem essa história do circo. A gente tinha que aprender coisas, inclusive eu lembro de ser obrigada a participar de espetáculo e eu nunca fui de palco, nunca gostei disso e ser obrigada a estar lá fazendo figuração, colocava todas as crianças no palco e tal, tal, tal. Então tinha muito isso, esse convívio mesmo, mais coletivo. Isso foi bem legal.

P/1 – Você se lembra de alguma coisa que aconteceu nesse período, que lhe marcou? Alguma pessoa, dessas treze? Alguma situação dessa produção de palco que você fazia?

R – Ai! Hum... Nossa, especificamente, agora não está me vindo nada, assim, especial.


P/1 – Não lembra agora? Qualquer coisa se voltar, você fala. E você começou a estudar em uma escola aqui?

R – Então... Eu cheguei, estudava em uma escola pública aqui, aí meu pai sempre divertido, não é? Era uma escola que se chamava Escola Municipal Vasco Pinto da Fonseca, aí tinha só as iniciais. Meu pai falava assim: “É muito vergonhoso peidar fedido”. Então, a gente adorava isso, espalhava para os coleguinhas, porque nossa blusa tinha exatamente as letras (risos). Era isso, depois eu estudei em uma escola chamada Poliana, que era uma escola particular, acho que foi a segunda série. Ah, é uma escola que me marcou por eu não ter gostado. Primeiro, eu cheguei e não entendi o que era “arreda”, não sei se vocês sabem o que é “arreda”, eu lembro das crianças me zoando. Era isso, você chegava na escola tinha que fazer fila em ordem de tamanho, rezar Ave Maria e cantar o hino nacional. Então, muito louco isso, a dificuldade, eu sinto isso agora sendo mãe mesmo, você quer pôr seu filho em um ambiente bacana, só que não necessariamente você consegue porque são poucas as escolas que têm essa pegada na qual você acredita e essas escolas, normalmente, são longe da sua casa porque elas são mais em zonas de gente mais rica, bairros mais ricos, são caras e tudo mais. E aí, quando a gente ficou aqui, meus pais pesquisaram uma escola ‘massa’. Existia uma escola em frente à UFMG, na Pampulha, que se chamava Oficina e depois mudou o nome para Coleguium, era um lote gigante, muita árvore, a escola era em formato de caracol, tinha teatro e tal, bem alternativa. Os uniformes, na verdade você escolhia a cor e eram cores muito fortes. E ele negociou com a escola e aí eles trocaram teatro pelas mensalidades, então meus pais faziam teatro nessa escola em troca de mensalidade. Aí, com isso, meu avô vendeu um apartamento e deu o dinheiro para a minha mãe e minha mãe comprou uma casa e eles escolheram a casa por ser perto da escola onde a gente... Que eles tinham alinhado, que era essa Oficana/Coleguium, então a gente foi morar na Pampulha, perto da UFMG, na época, era uma rua que tinha asfalto e depois não tinha mais, era terra e as duas casas do lado eram famílias que ocuparam aquele terreno, então aquela coisa de cortiço mesmo, de morar várias famílias no mesmo lote, assim, não é? Todos os tios, todos os primos e tal. Era uma rua que tinha muita atividade na rua, aquela coisa de chegou à noite está todo mundo, dos mais velhos aos mais novos, sentados na calçada. Então tinha essa vivência da rua, assim, e essa mistura de classes sociais. Porque tinha a casa do lado, que também tinha crianças da nossa idade, já era uma família mais rica; tinha a gente, que era classe média passando aperto ali; e tinha essas duas casas do lado, que eram cortiços, assim.

P/1 – Como é o nome da rua?

R – Frei Leopoldo, lá no bairro Ouro Preto. Hoje em dia já virou, tipo centro daquela região ali do Ouro Preto, antes era o limite. E foi uma fase muito louca, disso de ter a vida no colégio e a vida na rua, assim, ter duas turmas e tal. É isso, a gente ficava brincando até meia-noite, mãe e pai enchendo o saco para a gente entrar e não passava muito carro porque tinha o lance da rua de terra no final, então era tudo... Bente-altas, queimadas, vôlei, tudo, assim, era bem divertida a rua, a gente viveu muito isso. Não sei se meu filho vai conseguir viver isso, é uma pena, mas a vida na rua é muito legal, muito legal. Aí, depois dessa escola... Eu fiquei lá até a oitava série, aí é isso: por causa do mercado, aquela escola, que era mega-alternativa, começou a trocar aula de teatro por aula de informática. Aí, o Carrefour fez uma proposta milionária para a família, para vender o lote para eles, e eles venderam o lote. Então, uma escola que eu demorava cerca de cinco minutos para chegar na sala de aula, que era um morro, passando pela Floresta e tal. E uma coisa que eu me lembro muito dessa escola é que tinha escola lá em cima, aí você descia, tinha as quadras, tinha um círculo de toco de madeira, que era para sentar - a escola ia só até a oitava série - que era o fumódromo dos estudantes. Era surreal, tipo assim, até a oitava série é na faixa dos 15 anos de idade, sabe? E essa escola tinha o fumódromo, entendendo que os alunos fumam mesmo e é melhor que eles fumem ali do que fumem na frente dos mais novos e incentivem esses mais novos a fumar. Então, era uma escola ‘massa’. Aí, ela começou essa transformação quando vendeu esse lote, que foi na frente da UFMG, para o Carrefour. Ela ficou provisoriamente... Alugou uma mansão, das várias que tem na Pampulha, e adaptou para continuar a escola, enquanto estava fazendo um novo prédio, em um novo lote, mas aí uma escola cara de escola mesmo, padrãozona e tal. E com isso, eles tiveram que reduzir muito as turmas, então eles passaram a não aceitar rematrícula de alunos que eles entendiam que não eram bons alunos, que tinham repetido muito e tal, e não aceitar novas matrículas. Então, eu além de ter ficado de quinta à oitava série, na oitava série minha turma tinha oito pessoas. Eu, com 14 anos, já queria conhecer pessoas, queria conhecer o mundo e tal, e não aguentava mais estudar em uma escola pequena. Eu queria estudar em uma escola grande e meu pai e minha mãe marxistas e tal, falaram: “Tudo bem, mas você...”, eu queria ir para o Pitágoras ou para Promove, que era onde estavam meus amigos, e eles falaram: “Não, nessas duas escolas você não vai estudar não, elas são mega-capitalistas e pode até estudar em escola católica, mas essas daí não, o que mercantiliza o máximo do máximo da Educação não rola”. Aí eu acabei indo para o Santo Agostinho, com essa ligação também dos agostinianos, que era uma escola católica, mas com princípios, ali, humanistas. E eu estudei lá o segundo grau inteiro, o que foi outro choque porque eu entrei no primeiro dia de aula adorando ter muita gente - tinha cinco turmas na mesma série, cada sala com 40 alunos e tals, mas no primeiro dia de aula já falaram: “E o vestibular?” E eu ainda sem entender o que era vestibular, ainda não tinha aprendido isso ainda, não fazia parte da minha vida o que era vestibular. Eles, desde o primeiro dia de aula, com 15 anos, já colocando isso na nossa cabeça, todas as provas, desde o primeiro ano tinha os parênteses dizendo de qual vestibular, de qual Universidade tinha sido, então, é uma escola assim muito, muito conteúdo, muito... Apostilas enormes, minha mochila muito pesada, essas histórias dessas escolas loucas, tradicionais. Até que a questão religiosa, eu acho que por também necessitar ter alunos, assim... Eles não ficavam muito em cima. Inclusive, eu tinha uma aula de religião que era com um padre que tinha morado anos com os índios, então era super legal; na verdade, ele não pregava o catolicismo, ele ficava discutindo coisas da Sociologia, Filosofia. Eu lembro que ele tinha o nariz furado, então ele sempre brincava de colocar uma caneta e ficar brincando. Foi uma experiência... Era o que eu queria mesmo, ir para uma escola maior. Então eu estava na escola, tinha 13 anos de idade, lembro de que estava, à tarde, brincando com... Brincando não, não é? Sei lá, com as amigas, já não é mais brincar, com 13 anos. Aí, minha mãe me liga e fala assim: “Olha, então você vai para Cuba”. E eu, na época, apesar da história dos meus pais e tals, eu não estava tão ligada, não é? Aí eu falei assim: “Cuba? Quem disse que eu quero ir para Cuba?” “Não, você vai para Cuba em julho, e tal”. E essa viagem foi assim... Uma articulação que eu ainda desejo fazer esse tipo, ah, propor mesmo esse tipo de experiência para grupos, assim, do meu filho, dos amigos e tals, porque foi uma viagem muito marcante para todo mundo que foi. A história foi que uma mãe da Escola da Serra tinha ido para Cuba com um casal de amigos, com Patrus Ananias, inclusive. E aí eles ficaram apaixonados com Cuba, não é? Lógico. Aí voltaram e falaram assim: “Meu filho e os amigos dele têm que conhecer Cuba, antes que não exista mais nenhum país socialista no mundo”. Aí eles começaram a organizar uma excursão para Cuba, só de jovens de 14 a 18 anos. E começaram, fizeram uma parceria com a Cubana Tour, que era uma agência, aí foi toda uma viagem construída coletivamente, com filho e os amigos dos filhos. Então eles chegaram para os meninos e falaram: “Quem vocês querem que seja a pessoa que acompanhe vocês?” Eles escolheram um professor de História, que é super legal, da Escola da Serra. Hoje você encontra com ele, ele fala assim: “É loucura eu ter aceitado, eu nunca mais vou fazer isso na vida”. Porque ele foi com 24 jovens, ficar um mês e meio em Cuba, no auge da puberdade, então assim... A responsa era muito gigante. E eu lá, menininha e tal, apesar de ter os pais que tinha, eu não era tão ligada à política, nem nada disso, e eu tinha 13 anos na época. Aí, essa amiga da minha mãe, que a gente conhecia e tals, ela falou assim: “Não, Fernanda, manda a Jana”. Ela falou assim: “Não, mas a minha filha tem 13 anos”. “Não, não tem problema, eu conheço a Jana, vai dar certo”. Então eu fui a caçulinha dessa excursão, eu cheguei lá e me senti assim... Primeiro que a maioria das pessoas se conheciam, aí juntou tanto alunos da Escola da Serra, quanto filhos de petistas. Tem gente que até hoje conta essa história como se fosse a viagem do PT e tem gente que fala que é a viagem da Escola da Serra. A gente ficou um mês em Cuba conhecendo, praticamente, todas as cidades que tiveram lutas e tal, da independência, e foi incrível, assim... A gente voltou querendo pegar em armas (risos), com 13, 14 anos de idade, então eu achava que... Várias pessoas já tinham lido vários livros - eu nunca tinha lido - A Ilha, por exemplo, de Cuba e tal; várias músicas ligadas à ditadura, que eu não conhecia. Então nós voltamos de lá muito militantes. No meio da viagem, a gente estava em um... Tinha um guia de Cuba inteiro e tinha um guia de cada cidade e, em uma das cidades, ia ter um discurso do Fidel, próximo, em uma cidade a três horas, e esse guia avisou para a gente. A gente falou: “Não, nós vamos”. Aí o professor Carlos falou: “Não, vocês não vão, não está no roteiro, não está autorizado”. E a gente fez um motim e falou assim: “Nós vamos”. Conversamos com o guia, ele alugou a van, o Carlos ficou desesperado, mas viu que não tinha nada que ele pudesse fazer, a gente alugou essa van, foram só 12 pessoas, nós viajamos três horas. Ficamos esperando quatro horas, porque o Fidel aparece a hora que quer, por questões de segurança na época, aí fez mais quatro horas de discurso, aí nós voltamos para casa, assim, e foi isso. Nós seguimos o roteiro da Revolução mesmo, conhecendo toda a história, a fundo, de Cuba; e fazer isso na adolescência foi tipo muito legal. E em uma fase em que estava todo mundo se descobrindo, sei lá, várias pessoas nunca tinham transado, várias pessoas não sei o quê, e isso junto com a luta, vivendo, assim, Fidel era o grande ídolo, Che Guevara. Então, foi muito forte, marcou muito, assim, eu acho que essas 24 pessoas voltaram bem mexidas. Aí a gente chegou, logo depois ia ter eleição para a Prefeitura de Belo Horizonte, todo mundo entrou de cabeça na militância. Então, a gente, com 15, 16 anos, tinha o Comitê da Juventude, ali na rua Leopoldina, em frente à Vaca, que o Arnaldo Godoy articulou, e a gente, tipo assim, ia para a aula, voltava e ficava lá o dia inteiro discutindo política e tentando ganhar essa eleição, apesar da gente, na época, não gostar muito do candidato, que era o Virgílio Guimarães, mas era PT, não é? E foi isso, assim. A gente participou, ativamente, das eleições, tipo lembro da gente levando colchão velho, cortando estrela no colchão, dava um jeito de colocar cano, saía, tocava violão de bar em bar para mobilizar a galera. Então, foi assim muito forte, sabe? Eu acho que abriu a cabeça de todo mundo e, principalmente, a minha, que estava lá no meu canto e eu me sentia burra, assim, sabe? Porque eu tinha 13, a galera tinha 15, 16, então tem uma diferençazinha de acúmulo de saber mais de música, saber mais de livros, Literatura e tudo mais. Então eu voltei meio querendo aprofundar nas coisas, assim.

P/1 – Você começou a namorar nessa época?

R – Namorar não, mas sim, fiquei com pessoas e é isso. Foi exatamente essa fase, voltando de Cuba, antes era menininha, bobinha. Fumei maconha a primeira vez em Cuba, vendo a Jamaica, eu lembro disso, “Está vendo aquelas luzes lá do outro lado? É a Jamaica” (risos). Nunca tinha visto maconha na vida, nunca mais me separei da maconha, sou militante e ativista ativa da causa, me faz muito bem. É isso. Eu acho que foi muito transformador e apesar da responsabilidade que é, que hoje eu enxergo, de um adulto acompanhar isso, é muito libertador, não é? Você entregar a responsabilidade, assim: “Você é o responsável por si durante um mês”. Eu acho que traz uma maturidade, assim, sabe?

P/1 – Seus pais começaram a contar melhor para você a história deles com que idade? Era essa época mesmo?

R – É, então. Eu não sei direito, assim, quando foi, mas eu lembro já com tipo 11 anos de idade, a gente procurando coisas no armário dele, não lembro o que era - eu e meu irmão em um maleiro em cima. Aí, na hora em que a gente abre uma mochila, tem três revóveres lá dentro, ainda em BH, aqueles revólveres maiores, antigos, não é? Nada automático. E a gente não sabia disso, a gente ficou meio, fala ou não fala, uma hora a gente falou. Então assim... Eu acho que a gente já sabia da história, não é? Desde sempre, porque a gente, inclusive, viveu a história deles e os detalhes... Tem isso também, não é? O que você conta para o seu filho quando ele tem sete anos, ele não vai assimilar; quando você reconta, quando ele tem 13, ele já vai assimilando outras coisas. Por exemplo, recentemente... Recentemente, assim, minha mãe faleceu em 2015, mas, recente, eu já adulta, ela contando a dificuldade que foi enquanto mulher viver aquilo, assim... Porque ela estava com três filhos pequenos, morando em uma casa que ela não conhecia o pessoal, o pessoal dá super apoio, meu pai internado no hospital, não só cercado de policiais, como de lideranças políticas e tendo que tomar decisão e tal, tal, tal. E ela não conseguia conversar com meu pai, da vida dos dois, dos filhos e tal. Então assim... Eu lembro ela contando isso, do peso que foi ser mulher ali porque era como se não existisse a vida pessoal. Tinha tido um atentado político, matéria na folha de São Paulo e tal e o que importava era isso, era a questão política, a família não dava tempo, assim, não dava tempo.

P/1 – Como é que era a casa, em Belo Horizonte, com seus pais? Eles ouviam música? Ouviam rádio? Assistiam TV? Como é que era isso para você?

R – Uai! Ouvia. TV também a gente assistia muito, hoje em dia pensando, acho que até demais, por uma ausência deles, não é? Porque é isso também, você fica a tarde inteira em casa... E eu lembro disso também, meus pais proibiam a gente de ver novela, a gente era proibido de ver novela. Eu lembro quando passou Vamp, que todos os coleguinhas falavam, aí era aquela TV que você apertava o botão, não tinha controle remoto. A gente ficava lá vendo Vamp, na hora em que meu pai estava chegando - a gente ouvia o barulho do carro - a gente trocava o canal da TV, desligava a TV, subia correndo para os nossos quartos e fingia que estava estudando. Até que uma amiga da minha mãe, de São Paulo, a gente foi fazer uma viagenzinha para a Serra do Cipó com ela, aí, sei lá por que, veio esse lance de TV, novela, aí a amiga da minha mãe: “Deixa de ser hipócrita, Fernanda, pelo amor de Deus, os meninos vêem Vamp mesmo e tal, que isso você está sendo ridícula, você não está lembrando da sua juventude, tal, tal, tal”. Aí depois disso, a gente foi liberado para ver novela, mas tinha essa restrição rígida de novela jamais Rede Globo. Então TV, apesar de a gente ver muito - eu lembro muito de ver TV, assim, a tarde inteira vendo TV, às vezes - mas de ter essa rigidez de não poder ver. Era uma coisa que era proibida assim.

P/1 – Vocês assistiam desenho animado, essas coisas?

R – Muito. Eu lembro, por exemplo, de ver com meus irmãos o... Como é que chama? Um de luta. Cavaleiros do Zodíaco. Eu lembro que, nas férias, eles ficavam fazendo sessão de quatro horas seguidas, vários episódios, a gente ficava babando, quatro horas vendo Cavaleiros do Zodíaco, assim, horrível. Eu lembro de jogar videogame, Mario Bros, então, sei lá, sinuca, não sei. Tem uma coisa muito legal, assim, que eu vejo da criação dos meus pais: eu acho que esse lance político deles, eles ficaram tentando trazer muito para dentro de casa esse lance da horizontalidade, da coletividade, então a gente tinha algumas coisas em casa. Um que era uma tabelinha que ficava pregada na parede. Tinha ali algumas atividades que nós três tínhamos que fazer: aguar o jardim, pôr a mesa do café da manhã, comprar pão, preparar o jantar - não é cozinhar - esquentar o jantar ou preparar o lanche, pôr água no filtro. E era uma briga porque não fazia ou fazia: “Ai, ele está fazendo, ele não está”, e tal. E outra coisa que a gente odiava, odiava muito e hoje, entendendo a importância disso, era a reunião, que hoje em dia eu chamo de Assembleia Popular Horizontal da Família, era meio que isso. Meus pais faziam, obrigavam a gente a participar de reuniões da família que a gente reacordava e tinha consensos em relação às coisas. Por exemplo, essa tabelinha, “Ah, não está funcionando”. Não está funcionando, por quê? Será que é porque no mesmo dia a pessoa tem que fazer: comprar pão em um dia; no outro dia tem que aguar o jardim ,ela esquece; então será que não é uma semana inteira? E a gente ficava debatendo isso e várias outras coisas. Eu, no meu privilégio de classe média, tinha o lance da mesada, eu lembro, quando reivindiquei da minha mesada ser mais alta porque eu já tinha 12 anos, eu era mais velha e tal, eles aceitaram. Lembro que quando chegou nessa casa, era uma casa que, na verdade, tinha dois quartos e duas varandas grandes, aí fecharam, antes da gente mudar, não é? Fechou, então a casa ficou com três quartos. E minha mãe falou assim: “Não, rodizio de quarto, de seis em seis meses um tem quarto sozinho”. Só que assim... Eu tinha... A gente mudou para lá eu tinha 11 anos de idade, o Giba 9, o Danilo 7, não fazia sentido nenhum eu dividir quarto com meus irmãos, e foi uma reivindicação na reunião. Eu falei: “Eu sou a única mulher, eu sou mais velha, não faz sentido esse rodízio e tal”. Aí também tinha as estratégias nossas, porque essa reunião era obrigatória e eles podiam até falar: “Vamos no sábado?” E a galera: “Não, não, não, no outro”. Mas se adiasse demais, é obrigado: “A reunião vai ser sábado,

a tal hora e tal”. Tinha vezes que a gente tinha festas de aniversário, aí não podia ir porque tinha reunião, então, a gente ficava com muito ódio da reunião e a gente tinha essa estratégia: para acabar logo, nós três vamos ficar calados. Aí a gente ficava calado a reunião inteira, só meus pais falando, para a reunião acabar logo e a gente poder fazer o que a gente quisesse. Lembro também do lance do nudismo lá em casa, assim, eu, Nossa, sou super a favor do nudismo, da naturalização do corpo mesmo, disso... Assim... Meus pais sempre ficaram muito pelados em casa, da gente ficar mais adolescente e estar chegando em casa e gritar: “Pai, mãe, estamos chegando”. Para não ter o constrangimento de um coleguinha entrar e os dois estarem pelados. E uma cena que eu lembro muito é que tinha um banheiro lá em cima e nós cinco pelados, no banheiro, cada um fazendo uma coisa, se preparando para ir para a escola. Então, sei lá, um estava tomando banho, outro fazendo xixi, dois escovando o dente. Era essa cena, conversando e se preparando para a aula, assim, e os cinco pelados no banheiro. É isso. Eu lembro uma vez que eu estava na praia, essa eu tinha acho que nove anos - lá em Natal com eles - a gente andou para caramba, eles até exageraram em relação à gente, que a gente era até pequeno. Aí chegou na praia, eles, lógico, tiraram a roupa para entrar no mar, aí eu comecei a ficar muito constrangida de chegar alguém, comecei a chorar, dar um ‘piti’, para eles colocarem roupas, sabe? Esse constrangimento, que eles eram muito naturalizados, assim, o corpo. É isso, eu acho que eu trago muito disso, assim, apesar de, na época, relutar, hoje em dia… Ai quem dera estar todo mundo aqui pelado e não ter problema (risos).

P/1 – Está calor, não é?

R – Está muito calor (risos). Qual problema, não é?

P/1 – Agora, você é parecida com seus irmãos, eles são parecidos com você? Vocês brigavam muito?

R – Fisicamente ou...?

P/1 – Fisicamente, de jeito, psicologicamente, humor?

R – Então, fisicamente é isso, não é? A gente nunca se acha parecido, a não ser que seja muito parecido, mas todo mundo fala que a gente é muito parecido. Eu sou baixinha, eu zuo a minha mãe que eu sou baixinha porque ela fumou na minha gravidez, porque meus irmãos são altos, meu avô é muito alto - ele está vivo - o pai da minha mãe. De temperamento é completamente diferente. O meu irmão do meio super na dele, mais caladão, sabe? Meio, não é? Antissocial, é ruim essa palavra, mas mais na dele mesmo. Eu sou para fora, não é? Essa coisa meio... Ah, sei lá, alegre, feliz, não que eu não fique triste, não que eu... Bom, e meu irmão é mais retraído e tal. E o meu irmão mais novo, ariano, não é? Ele fala muito, é super sociável também e tal, mas mais sistemático do que eu, assim.

P/1 – Vocês brigavam ou não? Vocês se davam bem?

R – Brigava muito, Nossa, muito. E até recentemente, assim, eu escutei desses... É isso, assim, quem a gente considera tio, tia e primos é o pessoal daqui. Que foi com quem a gente conviveu, que viu a gente nascer no Araguaia, então é o pessoal que está em BH. Aí, recentemente, um desses meu primos, que mora lá na Austrália, ele veio, a gente trocando ideia e ele falando: “Não, vocês brigavam muito”. Eu não tinha noção de que a gente brigava mais do que eles, por exemplo, e sim, existe uma memória coletiva que a gente brigava muito e eu associo à violência toda e à ausência dos meus pais nessa época, quando a gente era criança, que eu acho que eles eram muito militantes, e talvez estivessem presentes mas nem tanto, e esse lance do medo, da violência e tal, eu acho que a gente brigava muito. Assim... Era muito mesmo. Eu lembro da gente brigando muito, mas eu achava que era normal. Hoje em dia eu estou entendendo que, sim, é normal, mas também tem outras vivências diferentes; não é toda criança que briga tanto assim. Lembro de jogar uma barra de ferro, desse tamanho, no meu irmão e ter cicatriz até hoje; lembro de o estar mordendo, tem cicatriz. Lembro dos meus dois irmãos... Aí, parei de brigar. Lógico, fiquei adolescente, parei de brigar, os dois caíam na pancadaria, muito feio, assim. Eu lembro uma vez que um empurrou o outro em uma porta de vidro, a porta quebrou e cortou. Então era muita briga mesmo.

P/1 – E hoje não?

R – Hoje, não. Hoje... (risos). Imagina a gente cair na pancadaria hoje em dia? Não, de bater não, mas assim... Eu acho que nós somos irmãos, a gente se gosta, se ama, convive, mas a gente não é daqueles irmãos que são, realmente, brother. De sair junto, de não sei o quê. Não que a gente não saia, sabe? Mas assim... Tem irmãos que eu vejo, assim: “Vamos, vamos e tal”. O tempo inteiro convivendo, faz parte, e a gente não. A gente, lógico que tem interseções de círculo de amizades, muitos amigos em comum, mas a gente se dá super bem, mas sinto que não é aquela coisa como vários irmãos são, mas talvez mais que outros, não sei.

P/1 – Vamos voltar lá para o Santo Agostinho. Você estava então com esse dilema do que fazer de vestibular, não é? Você chegou lá e...?

R – Não era nem dilema, era não entendimento do que era um vestibular. Eu estava em uma bolha que eu não sabia que existia o vestibular, aí eu caí no mundão mesmo e sofri; sofri porque era muita cobrança, muita cobrança. Aí eu lembro, no segundo ano, matando muita aula, bebendo no barzinho do lado, muito louco... Como que vendia? Acho que hoje em dia, não sei se os bares vendem cerveja para um grupo de adolescentes de 15 anos. A gente sentava na rua e ficava bebendo a tarde inteira. Aí eu lembro de ser chamada pela coordenadora do segundo ano e ela falando: “Você não vai passar no vestibular, você está achando o quê?” Tudo era vestibular e eu lembro no terceiro ano, quando eu passei no vestibular, na UFMG, a primeira pessoa que eu encontrei foi ela e foi tipo assim: “Toma!” Eu acho que eu passei porque eu sempre fui aluna 60 no Santo Agostinho; nunca fui a aluna nota 10 e nem a aluna com nota muito ruim. Então eu tinha muito isso, sei lá; às vezes, eu fazia uma prova boa, meio que calculava: “Eu não preciso estudar tanto, faltam poucos pontos para eu passar e tal, um desinteresse mesmo, assim, pela escola, mas um convívio social ‘massa’, não é? E tinha as duas turmas. Foi uma crise na adolescência, porque tinha a turma de Cuba, da Escola da Serra, que era alternativa, uhul; e a turma do Santo Agostinho, que era mais careta, mais playboy e tal, tal, tal. Então eu comecei a ouvir axé e a galera da Escola da Serra me chamava de patricinha porque eu escutava axé. E a galera daqui achando que a galera de lá era muito doidona. Então, eu ficava em dois mundos, assim, não misturava as turmas, não comemorava aniversário para a galera não se encontrar, essas ondas de adolescente, de ficar muito dividida e ser doidona nesse grupo aqui e ser patricinha nesse grupo aqui, entendeu?

P/1 – E você saía para onde nesse período?

R – Então, era muito louco, não é? Era isso. Eu saía nas festinhas, FIT, nos festivais que tinha, nos movimentos de rua, que foi uma época muito boa, a gente teve a prefeitura do Patrus, que foi uma Prefeitura muito boa, principalmente na Cultura, ele criou o FIT, que é um grande festival de teatro, aí tinha muita coisa na rua, assim, a gente era piolho disso, de ir em show, andar muito na cidade, eu lembro de sair andando da Praça do Papa e ir até o centro andando, e ser ‘de boa’, sabe? Mas, ao mesmo tempo, ia lá no churrasco escutando axé com os meus amigos do Santo Agostinho, lembro muito que no Santo Agostinho era muito ir para casa dos amigos beber. E essa galera que era mais rua e consumir coisas de graça na cidade. Eram duas ondas diferentes, assim.

P/1 – Isso com 17 anos?

R – É, dos 15 aos 17, que foi essa crise adolescente de não se encontrar e ter vergonha dos dois grupos, essa onda, assim, ser zoada porque era do PT, ser zoada porque eu fui no Axé Brasil ver o show da Ivete Sangalo, essas ondas; era muito louco, hoje em dia eu estou pagando (risos). Escuto sertanejo mesmo, não escuto não, mas se eu escutasse, sabe? Não é uma questão mais, mas na adolescência isso pesa muito, isso pesa muito, assim. . Bom, aí, depois, eu saí da... Eu me formei no Santo Agostinho e minha missão da classe média, dos privilegiados, qual é a missão quando você forma no terceiro ano? Passar em uma universidade pública; eu tinha passado. Então, minha grande missão tinha sido cumprida, só que eu entrei para o segundo semestre, então eu começava as aulas só no segundo semestre. Aí, meu pai e minha mãe articularam com a galera do Canadá, que era ligado ao Cirque du Soleil e tinha vindo aqui para trabalhar na favela da Serra, com circo e tal, tal, tal, de eu morar lá um tempo e fazer curso de Francês lá em Quebec. Aí eu fui, foi a época mais livre da minha vida, foi maravilhoso, porque eu já tinha passado no vestibular, eu estava lá, não tinha a galera me zoando porque eu escutava Ivete e nem porque eu era petista. Tudo novo, tudo lindo, maravilhoso, eu com 18 anos - tinha acabado de fazer 18 anos - aí foi uma curtição, assim, estudei Francês, fiquei quatro meses lá, fiquei adiando para voltar, não queria voltar, essas passagens que você pode mudar três vezes porque era passagem de estudante, até que não deu mais para eu adiar porque eu tinha até articulado trabalho para ficar lá. Porque meus pais não tinham grana e tal, fizeram uma poupancinha, me deram, e depois não tinha mais grana. Eu arranjei trabalho lá e tal, mas aí eu já tinha matado duas semanas de aula na Faculdade e tinha esse lance também, não é? A Faculdade é uma coisa nova também, me instigava assim, aí eu voltei e voltei para BH, fiz uma semana de aula, a Federal entrou em greve - a maior greve da história da Federal – foram, tipo, seis meses de greve (risos). Aí eu podia ter ficado, mas coisas da vida, assim.

P/1 – Que curso você fez?

R – Fiz Engenharia, sou engenheira de produção. Aí é isso, assim, em uma escola que era completamente bitolada, como o Santo Agostinho, tem um lance freudiano também, não é? Porque meu pai fez Engenharia, repetição da historinha do meu pai, fez Engenharia sem fazer, forma sem ser e depois nunca mais trabalha com Engenharia, acho que é meio provação. Era tudo muito decoreba, não é? Na escola, muito decoreba. E a Matemática era o único que não era decoreba, porque não adiantava você saber a fórmula. Mesmo você sabendo a fórmula, você não conseguia resolver a equação, se você não soubesse profundamente o que estava sendo a questão ali. Então, eu comecei e falei: “Não, Matemática faz pensar, eu quero ir para Matemática”. Uma coisa meio Matemática mas, ao mesmo tempo, eu queria prática, então eu não queria só Matemática. Aí eu comecei... No colégio você tinha isso, você escolhia para qual área queria ir - se era Humanas, Gerenciais ou Biológicas. Aí, à tarde, você tinha uma aula especifica só da sua área, então o primeiro semestre inteiro eu fiz Gerenciais, pensando em fazer Economia. Aí surgiu... A Abril lançou lá o livro “Guia dos Estudantes” e um parágrafo resume o que é profissão. Eu fui ler esse livro (risos). Aí eu acabei sendo convencida por esse um parágrafo que Engenharia de Produção era um curso legal porque misturava Economia, Administração e prática, era um curso novo em BH, tinha esse lance de ser novo e ser ‘massa’. E na USP já existia há muito tempo, chamava Engenharia Industrial, e tal. E meu pai, como um cara ‘massa’, que educa os filhos de forma horizontal, o que ele fez? Ligou para a Universidade, conversou com o coordenador do curso, marcou uma reunião e me levou lá. Então eu cheguei para conversar com o cara que criou o curso ali na UFMG. Na hora em que eu chego lá, aquela mesa bem clichê, marxista, assim, era uma mesa cheia de livro, só com abertura no meio, um cara de oculinhos, barbudão, com a camisa, assim, meio abertinha, xadrez. O cara super marxista (risos). Aí, lógico que eu fui fazer Engenharia de Produção, mas é isso, se meu pai me levasse no coordenador da Biologia, eu, com 17 anos, seria convencida pelo coordenador da Biologia a fazer Biologia ou qualquer outro curso. Então eu fui fazer Engenharia, me frustrei quando eu entrei lá, porque os dois primeiros anos é só a parte bem Matemática, Física e Química, então parece um colégio, não muda muito. Eu queria ver a aplicação disso. Aí eu falei: “Nossa, não é isso, não quero e tal”. Estava meio frustrada com BH também e tal. Aí abriu uma bolsa de pesquisa e esse cara que tinha me recebido para falar da Engenharia, tinha saído fora assim que o curso começou, para fazer um pós-doc. Aí ele voltou, abriu uma seleção de uma bolsa para trabalhar com catadores de papel. Na verdade, um pouco antes, meu pai, vendo o meu desânimo com o curso, tinha uma amiga dele que trabalhava na SLU, que estava com uma grana para desenvolver uma pesquisa com carroceiros e biodigestor. Eu falei: “Não, muito legal”. Ela falou assim: “Você só precisa arranjar um professor para a gente fazer um convênio e ele receber e tal. Vocês vão desenvolver pesquisa nisso”. E biodigestor é legal demais, assim. E trabalhar com os carroceiros da cidade era um projeto muito ‘massa’. Aí eu fui atrás de professores, acabei achando um professor ‘super massa’ na Engenharia Mecânica, que é meu amigo até hoje, está aí atuando, o Marcos Bortolus. Aí eu comecei a desenvolver, fiquei um mês trabalhando nessa pesquisa, logo depois teve a seleção para trabalhar com os catadores e eu comecei a fazer essa bolsa com ele, com esse Francisco - professor Chico. Aí, nunca mais larguei. Na verdade, a minha Faculdade não foi Faculdade, a gente criou um Núcleo de Pesquisa que se chamava Núcleo Alternativo de Produção e começamos a trabalhar com Engenharia de Produção e projeto social, então, a gente trabalhava com pesquisa, economia solidária, autogestão... Eu ia à aula, sabe? Eu ia à aula, mas a minha vida era o trabalho. Essa pesquisa éramos eu; uma amiga, que é minha irmã, está lá até hoje na Engenharia e tal; um mestrando do Chico e o Chico. Iniciou assim, aí depois foi abrindo bolsas, aí depois foi abrindo bolsas, outros projetos, interseções com outros cursos, e bem legal assim.

P/1 – Não tinha ainda _____ [01:28:40] estudantil, como é que era isso?

R – Então... Engraçado, lógico que eu ia a alguma coisa, mas eu participei pouco, sabia disso? Eu era do... Como o curso era novo, a gente não tinha DA, a gente tinha Grêmio, olha que engraçado, eu fui do Grêmio da Engenharia de Produção. A gente entrou, porque era assim: tinha 80 alunos, não é? Os cursos tinham muitos alunos, então a gente fez o primeiro Grêmio lá. Engenharia é muito careta, não é, cara? Nossa Senhora! Eu me lembro de, hoje em dia, acho que tinha esse lance também, assim... Minha mãe sempre foi muito feminista, sempre falou. Minha mãe sempre foi muito feminista e sempre falou muito disso e tal. Aí eu acho que não sei, assim. Eu, na adolescência, lembro de ter muita raiva de ser mulher. Eu queria ter nascido homem, porque era isso: “Por que eu sou obrigada a depilar?” Eu não era obrigada, mas, socialmente, era. Porque... Eu lembro de coisas, assim, ridículas, que eu ficava muito puta e hoje em dia a gente liga o dane-se, graças a Deus que a gente já mudou isso socialmente, que é tipo isso: Está calor demais: “Ah, vamos nadar na piscina de não sei quem ou no clube”. “Ah, eu não vou porque não estou depilada”. Aí você não ia nadar na piscina porque você não estava depilada, sabe? Era bem ridículo, mas era um ódio assim que eu tinha. E depois também, quando começar a vida sexualmente ativa, dos homens gozarem super fácil e a dificuldade que é gozar. Porque, lógico, adolescente não sabe transar. Como que um homem adolescente, que está aprendendo a transar, vai saber dar prazer para uma mulher? Não vai. Então, várias coisas assim. Eu não sei se eu escolhi Engenharia por causa disso, sabe? Um lugar de homem. E sofri muito também, eu lembro que assim... A gente estudava em um lugar que se chamava PCA - Pavilhão Central de Aulas - tinha o IPEX, que era de Exatas e tinha uma parte da Engenharia, que era no Centro, estava indo para a UFMG - aí já é área de produção, ela foi toda na UFMG porque ela já chegou nessa mudança. Hoje em dia, a Engenharia já está lá, saiu do Centro. Aí era tipo assim um L, um corredorzão, bem hospital, corredor comprido, cinza, e o que acontecia nos intervalos das aulas ou no começo das aulas? Era um corredor gigante e era um corredor polonês de homem. O que eu fazia? Era horrível andar ali, porque era próximo - homem aqui e homem ali. Eu chegava da aula, morria de medo de chegar um pouquinho atrasada porque aí meus amigos já tinham ido. Bom, mas aí eu chegava e ficava esperando alguém conhecido para ir comigo, eu não tinha coragem de passar sozinha. Ou quando eu era obrigada a passar sozinha, eu mirava um ponto, assim, no meio, olhava e não olhava para o lado, e saía andando. É muito... A Engenharia é muito careta e poucas mulheres. Lembro de comprar briga lá porque tinha um estudante que era assumido, assim, era homossexual assumido e teve um dia, não sei como, entraram em uma rede social dele de paquera, aí pegaram uma foto dele, meio com bunda de fora, sei lá, isso virou uma grande coisa na Faculdade, assim, de enfrentar isso com o menino também. É isso, era homem, muita testosterona, sabe? Só homem, caretice e disputas masculinas.

P/1 – Você saiu da Faculdade, terminou, ficou quantos anos? Uns quatro, cinco?

R – Cinco anos. Então... Aí eu terminei com essa história de ficar muito mais envolvida com o trabalho do que com o curso em si. E já terminei trabalhando em projetos grandes, ligados à reciclagem, catadores. Eu saí de lá e fui ser coordenadora de um projeto, porque a ideia era a primeira fábrica de plástico reciclável, onde os donos eram catadores de papel. Aí, meus amigos, muitos das Humanas e tals, eles tinham bandas e etc. Meus pais, com esse grupo de teatro, então eu comecei tanto a ajudar o grupo de teatro dos meus pais, paralelamente, quanto estar junto nesse lance das bandas dos meus amigos. Então, a gente gravava disco na casa, assim, fazia home studio e ficava gravando disco e tal, aquela coisa bem de jovem, de ficar semanas e semanas um na casa do outro, assim, fazendo esse processo. Aí, uma das bandas dos meus amigos começou a ser chamada para fazer show e precisava de produtor, e como eu já estava ali meio articulando isso, acabou que eu virei a produtora da banda, então a gente começou junto, tanto a banda quanto eu enquanto produtora cultural. Nós começamos juntos, eu não entendia nada de produção, penando um pouco, assim, isso foi em 2007, eu me formei em 2006 e aí comecei a fazer paralelamente: trabalhava com Engenharia de Produção, em projetos ligados à Engenharia e à parte social e, ao mesmo tempo, era produtora cultural. Aí teve, depois de uns... 2011 assim, eu larguei mesmo a Engenharia de Produção, larguei as pesquisas, tudo, e fui só ser produtora cultural. E foi isso, não é? Eu acho que Belo Horizonte passou por um processo. Belo Horizonte é uma cidade que é cercada de montanhas, não é uma cidade... Apesar de ser esse lance de ter essa memória, de ser uma cidade muito arborizada e tal, ela não tem espaços, não é? De convivência, espaços públicos de convivência. Então, ela estava muito passando por esse processo, assim, que as pessoas simplesmente usavam o espaço público para transitar. Você saía da casa de alguém, ia para a casa de alguém ou ia para alguma festa ou uma boate, ou sei lá o quê. E aí a gente teve essa aliança entre PT e PSDB, que inventou um político que se chama Márcio Lacerda, e essa cara começou a fazer a gestão dele como se fosse uma administração de empresa. Como eu era da música, a gente começou muito antes desse processo da Praia da Estação, um pouco, a gente tinha vários amigos com banda e Belo Horizonte era uma cidade que era referência, nacionalmente, de banda cover; então, a melhor banda cover de Beatles era de Belo Horizonte e etc. E a gente, com essas bandas autorais, começou a se juntar e falou assim: “Poxa, não é essa realidade, existe outra cena muito forte, porque isso não sai daqui, a gente tem que fazer isso ser visto, inclusive, pela própria cidade”. Então, nós começamos uma movimentação chamada... Na época, a gente deu o nome de Outro Rock, aí era um coletivo de várias bandas. Teve época de ter 30 bandas, que a gente se encontrava semanalmente e nós começamos fazendo um festival na rua - na praça Floriano Peixoto, que não tinha sido adotada pela Unimed ainda - então era uma praça abandonada. Nós conseguimos, com a Prefeitura, palco e etc. Nós fizemos um festival com 12 bandas independentes, gratuito e foi um festival que teve muito sucesso. Aí, no ano seguinte, a gente fez o festival de novo, acho que foi na Praça da Savassi. E era uma época em que o fora do eixo estava nascendo e crescendo forte e que ele estava muito na pegada musical; depois, ele se transformou muito, mas ele estava muito ligado aos festivais de músicas, às bandas independentes. E tinha várias questões, porque eles queriam que todo mundo fosse fora do eixo, e a gente falava: “Não, nós vamos ser parceiros, mas nós não queremos ser fora do eixo”. E com isso, a gente começou a ser um grupo mesmo, uma organização, que a gente se encontrava toda semana para discutir questões de leis de incentivo, questões de fórum da música, o que a gente queria e etc. Olha isso, há tão pouco tempo atrás a gente lutava por ter uma lei de incentivo com mais recurso, ou então que abrisse Edital para passagens, e, hoje em dia, a gente retrocedeu de estar lutando de novo para ter aposentadoria, coisa que já tinha sido resolvida lá atrás. É um choque mesmo, o golpe. É um choque mesmo. Mas, bom, essa cena pulsante do governo do PT, da Cultura e a gente com essa coisa forte, de que BH tem música autoral, sim. Então, era um movimento muito legal e a gente começou a fazer essa articulação coletiva disso. Uma banda ia dar um show no Rio, ele não só levava o CD dele, camisa dele, ele levava de todas as outras bandas, ele divulgava essas outras bandas. A gente começou também a fazer eventos semanais, assim... Tinha uma terça- feira que era Outra Jam, que era uma jam session, no Bordello, que foi um boteco icônico, ali perto do Duelo de MC, no Viaduto Santa Tereza, toda terça- feira, então os músicos se encontravam e faziam um improviso assim. A gente começou a ganhar muita força na cidade. Não só na cidade, como fora. Então, algumas bandas que estavam despontando aí, que a gente conseguia ter público, a gente via isso muito indo para São Paulo. Em São Paulo, qualquer bandinha que estava mais ou menos parecida com a gente, já saia uma fotona na Folha de São Paulo; a gente jamais conseguiria isso, nem no Estado de Minas, porque a imprensa mineira também é uma questão. Eu lembro de uma vez que o primeiro show, acho que foi no primeiro disco do Graveola e o Lixo Polifônico, a gente o fez no Palácio das Artes, esgotaram-se os ingressos; e lá cabem mais de mil pessoas. No dia seguinte, não tinha nada sobre show e tinha falando da banda Garotas Suecas, de São Paulo, que estava lançando clipe com o Jacaré, do É o Tchan. Então assim... Esse lance mesmo do nosso trabalho em BH ser muito maior, nesse sentido, para furar essa bolha. A gente sacava isso, que quando a gente ia para São Paulo, várias bandas também eram amigas, de se encontrar por aí em festivais e tal, que era isso, a galera dava show, tinha, sei lá, no máximo 100 pessoas no público; aqui a gente tinha muito público, uma banda independente tinha 200, 300 pessoas, o lançamento do primeiro CD do Dead Lovers, que era a banda com a qual eu trabalhei, dos meus amigos, a gente teve 800 pessoas. Eram duas bandas: o Dead Lovers e o Fusile, isso nenhuma banda independente da época, de São Paulo, conseguia fazer, sabe? Então, foi muito forte assim, teve o lance do Fórum da Música, que a gente começou a participar das reuniões, entendendo que era importante ter essa ligação na institucionalidade, só que eles também vieram cobrar: “Não, vocês precisam ter um CNPJ, vocês precisam ser uma pessoa jurídica”. E a gente falou: “Não, uai, a gente não quer criar um CNPJ, nós somos uma organização autônoma”. E a gente tinha muito mais pessoas participando do Outro Rock nessas reuniões, ativamente, do que as instituições que compunham o Fórum da Música, que eram instituições com CNPJ e que ninguém participava, na verdade. A gente reivindicou muito isso dentro do Fórum da Música e eles falaram: “Tá, então vocês vão poder participar das reuniões, mas vocês não podem votar”. A gente começou a participar das reuniões, apesar de não conseguir votar, mas tinha uma voz ativa e uma pressão política forte. A gente começou a ser reconhecido. Aí, o Márcio Lacerda, então, no final de 2009, ele proíbe eventos de qualquer natureza na principal praça de Belo Horizonte, que ela é feia, concreto, não tem nada, mas é uma praça simbólica, de disputa mesmo, assim, porque lá é que acontecem as grandes manifestações, lá que tem os grandes shows gratuitos e tal. E o Márcio Lacerda, então, proíbe eventos de qualquer natureza. Lá que tem as quadrilhas, não é? Em janeiro, então, teve uma reunião, no final do ano de 2009, que foi chamado Movimento de Camisas Brancas, e foram poucas pessoas, mas nessa se articulou, então, fazer uma grande manifestação, continuar esse ato em janeiro. E a galera falou: “Mas como fazer um ato legal e tal?”. “Ah, vamos transformar isso daqui em uma praia. Então, nós vamos vir aqui com isopor, guarda-sol e tal”. E essas pessoas mobilizaram outras pessoas. Aí, em janeiro de 2010 começa a Praia da Estação, que eu acho que é um marco na transformação da cidade de Belo Horizonte. Eu acho que a cidade respira e é outra coisa depois da Praia da Estação. Há pouco tempo eu fui em uma audiência da Secretaria de Cultura, apresentando o trabalho dela e o Juca - que nem é daqui, é baiano, já foi Secretário de São Paulo e etc. - ele falou assim: “Olha, eu estando aqui, ouso dizer que Belo Horizonte não é uma cidade conservadora mais, o que eu estou vendo aqui é outra história”. Eu acho que a cidade já entendeu outra dinâmica. Em 2010, a Praia da Estação foi um marco. Por quê? Porque foi o encontro de todas essas movimentações, tipo Outro Rock, de todas as áreas da cultura, então tinha gente da dança, da música, do cinema e tal, tal, tal, com os movimentos sociais também. Essa juventude toda que estava na rua, cada uma na sua, atuando, ela se encontrou, se conheceu e isso se potencializou à décima potência. De tipo isso: “Dandara está para ser despejada. Vamos lá fazer um mega-evento, levar a galera para lá, palco, na, na, na”. Evento mais de 1000 pessoas, a cultura em peso lá e isso ganhou uma visibilidade na imprensa e etc, tal. Então rolou esse encontro mesmo dessas pessoas que estavam atuando separadamente. Isso que eu sinto da Praia da Estação, as pessoas se conheceram assim. E isso: “Ah, vou fazer um espetáculo, estou precisando de som”. Aciona a galera da música. Então, começou a rolar essa grande troca. Aí, logo depois, veio o Carnaval, e logo depois... A praia foi em janeiro, em fevereiro tinha o Carnaval, Belo Horizonte... Não é que não tivesse Carnaval, o Carnaval é muito antigo aqui, a Lagoinha, onde a gente estava agora, o Cura, é o berço de Carnaval de Belo Horizonte, mas ela estava parada mesmo. Tinha alguns amigos que tinham feito dois bloquinhos pequenininhos, em 2009, aí a gente, com a inspiração da Praia da Estação e esse lance de ocupar a cidade mesmo, a cidade é nossa, nós podemos estar em uma praça e curtir essa praça. Nós podemos estar nessa rua e etc. A gente então, resolveu fazer... Pegar os dois blocos de Carnaval desses amigos que tinham feito em 2009 e preencher o calendário. Aí, com isso, a gente preencheu com o Bloco da Praia da Estação e o Bloco Filhos Tchatcha, que é o Rafael Barros, que está aí, assessor da (Áurea?) [01:47:47], que é todo mundo da mesma rede. Então, nós fizemos esses cinco blocos. Foi um ano, inclusive, em que o Carnaval do Rio deu ruim, saiu na imprensa que foi super lotado, que a galera passava mal porque não tinha água, não tinha ambulância, tal. E os vídeos do Carnaval daqui, os amigos todos que saíram para o interior e para o Rio... Estava muito gostoso, não é? Ainda mais vídeo e foto, mostram só os melhores momentos; então, com esse Carnaval de 2010, que foram 300 pessoas mais ou menos, era a mesma banda - só mudava o nome - o mesmo público - só mudava o nome e o local - era isso. Carnaval, as outras pessoas voltam para BH e: “Poxa, que ‘massa’. Vamos fazer mais Carnaval, esse carnaval não pode parar”. Aí, a gente faz um chamado no facebook, organiza uma reunião para organizar o Carnaval de 2011, então o segundo semestre... Aí começou a aparecer gente que a gente não conhecia e tal, e foi muito legal, porque aí, esse movimento, o que a gente fez? A gente montou um calendário, onde os blocos não batessem o horário, porque ainda eram poucos blocos. Hoje em dia nem faz sentido falar isso mais, são 400, 500 blocos de Carnaval, um dos maiores Carnavais do Brasil. A gente organizou o calendário dos blocos e nós tínhamos um... Conseguimos como parceiro... Ele estava com uma parceria com uma gráfica que topou imprimir um livretinho para a gente e a gente fez isso, o Outro Rock acabou recebendo todas as letras, a gente diagramou e não só isso, a gente fez questão de gravar todas as marchinhas. Então, nós lançamos essa campanha “Carnavaliza BH”, que foi até cooptada por uma produtora, que registrou o nome e tal. Mas era isso: você de BH fica em BH, você de fora, vem para BH. Aí, a gente lançou... Como é que chamava? Bandcamp, na época era bandcamp. Nós lançamos marchinhas, acho que eram 11 marchinhas, gravamos todas, assim, estúdios de amigos, então muito ligado a galera da música, do Outro Rock, pegamos grana do fundo do Outro Rock, porque a gente fazia evento e fazia fundo. Outro Rock a gente comprou uma guitarra, um baixo, várias coisas para Outra Jam e para ficar rodando aí nos shows. Com esse fundo, a gente bancou, então, essa impressão desses livretinhos - ainda tem vários aqui em casa até hoje, doou, doou e não acaba. Aí já foi um Carnaval maior em 2011, vários blocos surgiram em 2011, com essa empolgação do que tinha sido 2010, essa articulação que a gente fez no segundo semestre. Aí eu morava em uma casa verde aqui no Santa Tereza, eu adorava manjericão, uma amiga minha tinha dado uma pala, que uma outra amiga falou assim, quis disfarçar e falou: “Ah, alguém tem manjericão?”, querendo dizer maconha. Aí esse amigo, que era o Rafa Fares, com quem eu morava, a gente tinha vivido dois carnavais em Recife e tem um bloco em Olinda, que chama Segura a Coisa, que sai quarta-feira de cinzas à meia-noite e que é um bloco anti-proibicionista e tal, pela legalização. Aí a gente cria o Bloco do Manjericão, em 2011, e a gente sai na quarta-feira de cinzas, assim. As nossas entrevistas sempre era meio zoando a imprensa, então: “A gente adora manjericão e tal”. E a gente comprava muito manjericão. No começo do bloco, a gente saia distribuindo para os foliões, então, realmente, ficava muito cheiroso, disfarçando também o outro cheiro, não é? É um bloco tradicional, hoje em dia, uma referência canábica mesmo, até nacional. É isso, o Carnaval foi ganhando força mesmo e ele se transforma também, não é? Ele virou outra coisa. É isso, carnaval é da cidade, então a cidade vai transformando, o mercado também vai transformando esse Carnaval, mas o Carnaval nasceu dessa luta de “vamos ocupar a cidade” e foram quatro anos para a Prefeitura reconhecer a gente, na verdade. A gente fazia reuniões e reuniões na Belo Tour e etc, era um diálogo difícil, assim.

P/1 – Você estava falando então, que demorou para a Belo Tour e a Prefeitura...

R – Então, isso. Assim... A própria cidade entender que ela tinha Carnaval também. A gente viveu muita opressão da polícia mesmo, a polícia chegava nos blocos de Carnaval querendo prender, que não podia, e a gente alegando que era uma manifestação popular e que era legitima perante a Constituição, do tipo... Eu lembro da gente indo para o Metrô, fantasiado, e para pegar o Metrô e chegar no bloco de Carnaval e o pessoal não deixar a gente entrar porque a gente estava caracterizado. Era uma mascação ali: “Pô, mas qual é a maior festa do Brasil? É o Carnaval. Você que... No Rio de Janeiro o pessoal não anda de transporte público fantasiado?” Então foi isso. Acho que a cidade foi se acostumando com isso. Hoje em dia, a cidade já entende que tem Carnaval e, inclusive, quem não gosta, sai da cidade, aluga seus imóveis, já chegou a esse nível, da galera ganhar dinheiro com aluguel da própria casa para receber turista. Mas é isso, começou com essa história de ocupação mesmo de espaço público e de luta, e a gente sempre pautava várias coisas, a luta por moradia e tudo, assim. A gente saiu muitas vezes em ocupações urbanas, foi esse processo e virou essa coisa gigantesca. Aí é muito louco também você pensar o tanto que só depende da gente, não é? Para mudar o entendimento social, mesmo, de uma cidade, assim, que são pessoas que queriam usar a rua e se divertir na rua e, de repente, virou um grande Carnaval, sabe? Então é isso. É simples também, a gente não enxerga isso, não é? A gente hoje enxerga porque a gente viveu e fez, mas assim... É louco pensar isso. No começo, eu pensava, eu andava na rua, tipo assim, eu andava na Antônio Carlos, por onde eu sempre passava, e você andar com um bloco de Carnaval na Antônio Carlos é você enxergar a cidade em outra perspectiva, você só passa ali de ônibus, correndo e tal, e você está andando, você fala: “Nossa, que árvore. Nossa, minha cidade tem isso. Nossa, daqui dá para ver a Serra do Curral, que linda a Serra do Curral”. Sabe? Então, você vai redescobrindo a sua cidade também e outros lugares gostosos de estar também, sabe? É ‘massa’, é uma outra perspectiva mesmo.

P/1 – E o Cura começou mais ou menos nessa pegada?

R – Então... O Cura veio bem depois. O Cura veio em 2017, a Praia foi em 2010, Carnaval de 2010, mas o pessoal do grafite e da arte urbana sempre esteve nesses movimentos, não é? A gente já convivia com essa galera, veio 2013, depois de tudo isso, veio junto 2013, que foi um soco mesmo no estômago de todo mundo e uma vivência muito intensa, não é? Eu acho que a nossa geração, que tem esse lance de Cuba ou dos meus pais e tal, a minha geração, uma coisinha que a gente viveu foi 2013, desse enfrentamento contra o Estado. A gente sempre saía do Centro e andava 13 quilômetros para chegar ao Mineirão, a polícia em cima e tal. Aí, a gente começou - eu e um grupo de pessoas - nós começamos a pensar como dar visibilidade para o que estava acontecendo aqui para a imprensa internacional, a gente estava com essa estratégia. A gente andou pesquisando e viu o lance dos grandes bandeirões, então nós fizemos. Eram umas nove pessoas, a gente fez uma vaquinha e nós compramos pano, tinta e escrevemos assim: “Polícia, Estado”... O que era mesmo? “FIFA, Polícia e Anastasia”, que era o governo do estado, não é? Que é responsável pela Polícia Militar, unfair players, como se eles fossem jogadores sujos, jogadores que trapaceavam. Aí, a gente fez esse grande bandeirão e foi um sucesso, realmente, na manifestação; foi muito tenso, porque a gente levando aquela coisa pesada, mas quando a gente... Aí, rolando bomba de gás lacrimogêneo, a gente falou assim: “Não, vamos desistir e tal”. Alguém chegou e falou assim: “Não vamos desistir, nós temos que ficar juntos, nós vamos subir naquele viaduto, que foi onde morreram os dois estudantes, e nós vamos soltar ela ali em cima”. Assim, o bicho pegando, a galera colocando fogo em carro e tal. Nós subimos e jogamos o bandeirão. Aí foi muito forte, todo mundo parou e foi uma... Realmente, uma foto que circulou o mundo. Com isso, a gente criou um coletivo que chamava Nós temporários, que era Arte, ativismo, assim, e começamos a fazer várias ações na cidade, de tipo placa de Pare, a gente colocava Pare e o nome do político: “Pare, Aécio Neves”. Começamos a fazer frases e colar nos pontos de ônibus, várias coisas assim. Lembro, na Virada Cultural, a gente tinha um movimento ‘Fora Lacerda’, que veio aí um pouco antes da Praia da Estação, e tal. A gente colocou uma poça de tinta laranja, que era a cor do movimento, aí as pessoas, sem ver, andavam nessa poça, então a Praia estava cheia de pegadas laranjas, assim. A gente fez umas viagens, umas residências artísticas que a gente foi convidado para fazer lá no Rio e em Brasília também. Aí, com isso, tinha algumas pessoas que eram grafiteiras: o Dereco, que atualmente é meu marido; Priscila Amoni; a Tita Marçal, e tem o lance do piche, não é? Que a gente também começou a fazer umas tags pela cidade, não é? Nessa época. Então eu comecei a ficar perto da arte urbana, entender mais e tal, ver amigos fazendo e minha mãe fez uma pós-graduação na Ginart, que chamava “Pichação, arte maldita”. Eu lembro demais, eu era adolescente, ela: “Para o carro, que eu tenho que tirar uma foto”. Ela com a maquininha dela tirando foto de piche, eu nem ligava para piche e com a minha mãe eu comecei a ler piche, a entender, achar bonito e etc. Aí, com esse lance de 2013 começou a se aproximar mais de pessoas que faziam grafite na rua e tal. Em 2015, eu participei de um grande projeto da Prefeitura, que se chamava telas urbanas, que convidou 80 artistas para fazer obras no corredor Antônio Carlos, Pedro I - era o corredor meio indo para o aeroporto, assim. Fiz a produção desse projeto e painéis enormes. Aí, a Priscila, que era desse grupo Nós temporários, ela é pintora, começou a querer ir para a rua também, com o lance de 2013, pintar na rua e não só estar fazendo ações, assim, mais políticas. Aí, deu vontade nela, depois de um tempo, de pintar uma empena e ela foi conversar com uma amiga nossa, que é da Prefeitura, a Mara. A Mara foi e falou assim: “Pô, a Juliana, que também é nossa amiga”... tudo amiga (risos). Falou assim: “O Maza” - que é o marido da Juliana - “também está querendo pintar uma empena, a Ju está estudando isso. Por que vocês não se juntam e vê um jeito fácil, vai conversar”. Quando a Priscila foi conversar com a Ju, elas falaram: “Pô... Porque, em vez da gente tentar fazer essas duas empenas, vamos fazer um festival”. Aí elas falaram: “Vamos chamar a Jana, que ela é uma produtora cultural, entende de produção e acabou de ter uma experiência da arte urbana”. Então nós sentamos para desenhar esse festival, o que seria esse festival. Aí era um festival de empenas, já existia, tem muitos festivais de empenas no mundo, a gente pegou, inclusive, a Mara, essa amiga, já tinha mapeado várias empenas, porque ela tentava pintar uma empena, na Virada Cultural, já fazia um tempo; então ela já tinha empenas mapeadas. Aí, ela manda essa lista para a gente, a gente começa a analisar quais empenas no centro da cidade que a gente ia pintar. Nesse mapeamento, ela já tinha mostrado, assim: “Ah, tem lugar tal que dá um mirante, que dá para ver quatro empenas, tem outro mirante e tal”. Mas nesse mapeamento, com esse lance de pensar ocupação mesmo de pessoas e espaço público, me veio... Falei: “Poxa, nosso festival, em vez de ter empenas espalhadas, a gente podia colocar essa experiência para o público ver todas sendo pintadas ao mesmo tempo”. Do mesmo jeito que você vai e vê um show, você está vendo um live paint, assim, não é? Então o show seria essa pintura. Aí, a gente muda o festival e faz esse recorte, que a gente transforma um mirante da Sapucaí em um grande mirante de arte urbana a céu aberto. A gente o desenhou em 2015, tempos de projetos, captar e etc. A gente o executa em 2017, com quatro empenas. É isso. Como Belo Horizonte tinha uma grande pintura, que era do Ramon, que foi feita pelo Shopping Oi, que é um quadrado lá no centro da cidade... Mas não tinha empenas, apesar de ser um desejo: desde a década de 90, todo mundo quer pintar um prédio. Mas é difícil executar, porque você trabalha com construção civil - o Cura - vira mestre de obras, está lidando com construção civil porque é tipo reforma predial, depois vem a pintura, mas apanhamos muito para entender como era o processo e são não só cifras muito grandes, mas é um projeto muito grande, muito grande. É muito material, é muito tudo. Só os cachês que ainda não conseguiram ser grandes, mas o resto todo é muito gigante. Ele, como é no mesmo ano, foi engraçado porque a gente escreveu esse projeto em 2015, aí eu acho que em 2016 saiu no jornal uma notinha falando que em São Paulo ia ter o festival Obra, que era a mesma pegada nossa. Não tinha o lance do mirante, mas festival de grandes empenas e tals, e em São Paulo já tem muita empena, não é? É isso, só que uma obra em São Paulo é como se fosse mais um festival de música em Belo Horizonte, porque tem vários. Em BH não, o Cura virou uma sensação, porque nunca tinha acontecido uma pintura em uma empena aqui. Nunca, sabe? Então vira uma coisa grande e, querendo ou não, é isso: a gente está atuando na cidade, a gente modificou o horizonte daquela vista de Belo Horizonte; então é muito incrível. Em São Paulo é mais um, mas em BH você, realmente, tem um marco; aí ele começa grande, ele já - apesar de ser pouco recurso, a gente terminou o festival cheio de dívidas - mas ele já começa grande, muito grande, assim, no sentido de que qualquer vídeo institucional de Belo Horizonte aparece o Cura, hoje em dia. Aí, no mesmo ano, a Cemig... Belo Horizonte estava fazendo 120 anos, a Cemig quis dar um presente para BH, quem ela escolhe? O Cura. Então, vamos fazer duas empenas, nós pintamos mais duas empenas que, inclusive, é uma que marcou mesmo BH, que é exatamente o Viaduto Santa Tereza, aquele prédio, que é a garagem São José, mas ela tem a moldura ali daquele prédio. É isso. Aí, depois, no outro ano, nós fizemos mais quatro empenas. Então nós temos dez obras, é uma coleção que a gente chama... È a coleção Cura, na Sapucaí, e este ano a gente mudou de território, a gente foi para a Lagoinha e foi muito legal, porque foi um convite dos moradores, que ficaram um ano insistindo para a gente fazer um Cura lá, e convite igual a esse a gente tem vários, a galera acha que é fácil: “Vem aqui fazer o Cura. Mas vocês fazem tudo”. A gente não, a gente só vai, a gente está aqui ralando, captando, escrevendo projeto para o nosso Cura, que é onde a gente acha que tem que ser, na Sapucaí, e etc. Mas quer que faça no Rio? Então, ‘massa’, a gente até escreve projeto junto, mas vocês vão pagar a elaboração, vocês vão captar, aí a gente entra, essa pré toda. E eles ficaram insistindo, aí eu acho que eles queriam tanto, que eles jogaram tanto para o Universo, que no começo do ano a Wäls chamou a Juju, minha sócia, para trocar ideia, para fazer uma ação de arte urbana, ela falou de mil projetos, nenhum a Wäls gostou, aí no final da conversa ela falou: “Ah, porque nós estamos querendo lançar uma cerveja, Lagoinha, e tal”. Aí a Ju falou: “Opa, tem uns moradores querendo fazer o Cura Lagoinha”. E o cara ficou apaixonado com a história. Então, foi esse primeiro semestre inteiro, a Wäls tentando viabilizar e tirar recursos de onde ela conseguia para tentar viabilizar o festival. Inicialmente, iam ser seis prédios, porque é um bairro a que a gente jamais iria, porque não tem prédio, então a gente jamais escolheria a Lagoinha para ir. Nós já temos outros lugares que nós estamos querendo chegar, mas a Lagoinha não tem prédio. Mas, chegando lá, já tinha mapeado esses seis prédios, aí vai caindo o recurso, o patrocinador fala: “Ah, acho que eu vou conseguir tanto”. Depois: “Não, metade”. “Um terço”, e tal. E nós conseguimos, na verdade, pintar dois prédios, sendo que só tem uma empena mesmo, que é faixada cega, que a gente deu para o Zé Dinilson, que é um artista local incrível, ele é pedreiro, trabalha com texturas e vem pintando em cima. Ele sempre tem mensagens muito legais, eu acho uma das obras mais bonitas do Cura, eu não conheço alguém no Brasil fazendo o trabalho que ele faz, sabe? E foi muito legal ele se reconhecer enquanto artista, até ele liga um dia sim e um dia não para agradecer e falar que, até agora, não entendeu o que aconteceu, que está aos poucos assimilando. A gente conseguiu entregar 11 obras para o bairro, dessa vez foi diferente, nós tivemos esses dois prédios e o resto foram muros, assim, o que foi muito legal viver também, ter esse festival de outra forma, que é um festival de arte urbana e não só um festival de empenas, assim. E o que eu achei mais legal foi essa história do território, que eu acho que não só a gente mostrou a Lagoinha para fora, para a cidade de Belo Horizonte, como a gente mostrou o potencial do território para os próprios moradores, assim, sabe? Eles chegavam lá: “Nossa, mas eu não sabia que essa rua podia ser tão legal”. Aí me veio o lance da Praia da Estação, era a minha sensação, não sabia que essa praça podia ser tão legal, que eu podia me divertir tanto nessa praça. A mesma história, assim... Os moradores redescobrindo mesmo o bairro, porque ali a gente não está revitalizando nada, ali já tem muita cultura, é o berço. Tem morador que falou uma coisa muito legal, inclusive, no filme Moradores, da Nitro, que ele fala assim: “A Lagoinha participou da fabricação de Belo Horizonte”. É meio que isso, as pedras para construir Belo Horizonte vieram de lá, o samba de Belo Horizonte veio de lá, o Carnaval de Belo Horizonte veio de lá e a cultura pulsa ali, os moradores ainda estão no bairro, entendeu? Apesar de todo o corte, o isolamento que o poder público fez com aquela região mesmo. Ele, simplesmente, cortou mesmo o bairro, separou da cidade, não é? Ali era o centro, tinha uma praça, ele implantou rodoviária, implantou aquele complexo de viadutos e isolou ali, parou de investir naquele local. Agora, alguns anos se fala em reinvestir, tem uma especulação imobiliária, os moradores estão... Assim... Eles conseguiram barrar o Centro Administrativo da Prefeitura Municipal, do Márcio Lacerda lá, foi uma movimentação popular, conseguiram mudar regras ligadas ao plano diretor que foi aprovado atualmente, e tem vários processos de tombamento lá, para guardar essa memória do bairro. E a vida ali ainda é a galera que mora ali, sabe? E esses moradores trouxeram o Cura, acho que meio que para isso: “Olha, cidade, existe a Lagoinha”. Prefeitura a gente fez uma mesa, que eram quatro Secretarias que estavam atuando lá, foi muito legal, foram moradores da Pedreira e tal. Então, é isso: “Poder público, vem cá, investir na gente, olha para a gente e tal”. Porque a gente teve um processo muito legal de autorização do prédio do Senai, que é um prédio horizontal, que a gente convidou o artista Elian Chali, argentino, que ele trabalha... Ele é um artista que trabalha, faz pinturas abstratas, ele trabalha... O projeto dele, a maioria, é pintar prédios tombados, então, nós o escolhemos a dedo. Aí, a gente já tem essa experiência do Cura, na região central, de ter que aprovar no Conselho de Patrimônio. Aí, a primeira aprovação foi ok, mas “a diretoria vai ter que acompanhar essa obra”. Mandamos todos os relatórios e tals, aí, quando a gente mandou o layout, uma semana antes o pessoal falou: “Olha, eu acho que o Conselho não vai aprovar o layout, ele está muito impactante”. Era um julgamento subjetivo, sabe? Aí a gente falou: “Puts”. Porque a gente já tinha começado a montar o prédio, ou seja, a gente já tinha gastado cerca de 50 mil reais, que é a reforma, a reforma não, mas o reparo do muro e os andaimes e tal. Então, para a gente, para além da gente não entender essa negação, assim, achar meio pesado esse lance de não poder pintar, era simplesmente a obra que você viu lá, que são só cores e sacar que isso virou uma discussão muito forte dentro do Conselho, de abrir a cabeça mesmo, porque tem uma discussão de patrimônio, que é o patrimônio mais humanizado, que não é aquela coisa, você pega o edifício, reconstrói exatamente do jeito que ele nasceu, põe dentro de um vidro, tipo Museu, e não deixa ninguém chegar perto. E não, já tem uma outra galera que trabalha... Patrimônio não, esse prédio viveu experiências, isso tem que estar na marca dele, como rugas, não é? Nós vivemos, isso daqui são marcas da vida, então ele tem essa rachadura porque não cuidou, na época em que era escola, ok, nós vamos colocar só um grampo ali e a rachadura vai ficar. Então, é isso. A gente juntou a Priscila Muse, que é uma arquiteta do Estrela, que ganhou prêmios e tal, que trabalha esse outro pensamento de patrimônio, e o Joviano, advogado. Aí, nesse dia, foi muito tenso porque o relatório inicial era contra a gente, os conselheiros começaram a falar contra a gente. Aí, um dos moradores, na hora em que ele pediu a palavra, falou: “Olha, eu prefiro mil vezes que os moradores estejam discutindo se essa obra é bonita ou feia, do que ficar discutindo sobre violência e crack, porque só isso que aparece na cidade”. E, realmente, assim... Todas as matérias que vêm da Lagoinha é que lá é a cracolândia de Belo Horizonte e não é só isso que rola lá, entendeu? Inclusive, a violência não é maior do que em outras regiões, mas o que a imprensa mostra do bairro e fica martelando é isso. O território é muito mais do que isso, as pessoas, inclusive, várias pessoas: “Ah, quando eu cheguei aqui eu ficava com medo, depois de seis meses, hoje eu ando ‘de boa’”. Então tem isso: o que se vende o bairro para fora. E a gente descobriu um lugar maravilhoso e incrível. Como a população colou esses 11 dias, foi timidamente. Primeiro dia que teve, primeiro sábado que teve hip hop, era mais a galera mesmo da região central, mais hip hop e tal e, aos poucos, uns moradores foram chegando e tal. Foi incrível o fim de semana e muito legal essa construção que a gente fez. E a gente só fez - isso que eu acho - não é mérito nenhum nosso, sabe? Porque os moradores que levaram o Cura para lá, os moradores que fizeram articulação local, eles apresentaram a maioria das coisas que estavam na programação. Então assim... O Cura no centro, a gente... O tema central do festival inteiro, das oficinas, palestras e tal é a arte pública, lá o tema era Lagoinha, então tudo foi Lagoinha, assim, eu acho que foi muito ‘massa’. Foi um festival massa, foi legal ter vivido essa experiência de troca de território.

P/1 – E agora o que vocês estão pensando? Tem muitos lugares para tocar o Cura, não é? Agora vocês estão triando novos bairros aqui ou vocês pensam em sair de Belo Horizonte? Como vai ser? O que você acha?

R – É. O que a gente sacou, mais uma vez, é que a gente só... É muito... E sempre quer realizar tudo e vai chegando perto do festival, a gente fala: “Mas isso daqui tem que ter, isso daqui tem que ter”. E a gente tem que entender, assim... Enquanto coletivo, qual é a realidade financeira, qual é a realidade de execução, então, eu acho que a gente tem que estar mais tranquilo, sabe? Menos é mais, eu acho assim. Eu acho que a gente exagerou muito todas as vezes e agora a gente tem que ter mais maturidade mesmo. Assim... em relação ao projeto. E que uma empena já é muita entrega para a cidade, e duas empenas também, você não precisa fazer dez, como a gente sonhava, não precisa fazer onze obras. E sim... E um dos nossos... Meu desejo, assim, é fazer a rua Soares, completá-la. Em uma edição só você faz. Acho que vai ser muito louca essa experiência, porque os prédios estão muito perto, então você deitar ali naquele gramado e ver uma pintura pertinho... Porque, na Sapucaí, não rola isso, não é? As pinturas são mais longe, assim. E um dos objetivos do Cura eu acho que a gente cumpriu, assim, que é colocar Belo Horizonte na cena mundial de arte urbana. E a cena mundial, ela, apesar de ser grande, também é pequena e toda conectada. Então, já, desde o Cura Um, a gente teve essa sabedoria de chamar o InstaGrafite, que é um perfil que tem mais de um milhão de seguidores. Desde o Cura Um, todo mundo já conhecia o Cura. Todo mundo é exagero, não é? Mas, assim... Aí, a gente faz essa coisa, a gente chama um artista de peso internacional, coloca um artista da cidade, chama alguém nacional, então a gente sempre está alavancando também a cena de BH para fora, que é uma das cenas mais tudo do país, só que nem sempre ela é conhecida. Tanto que, no primeiro dia, que a gente falou assim: “Então, agora esses são os artistas da Lagoinha”. Soltamos Gabriel Dias. Duas horas depois, ele foi convidado para participar de um festival no Rio, falando: “Não conhecia seu trabalho, queria alguém do seu perfil e lhe vi no instagram do Cura”. Eu acho que é exatamente isso, é trazer a galera de fora para conhecer BH e deixar sua obra aqui, você ter obra de importância mundial na nossa cidade. A (Riuro?) [02:21:01], ela tem uma relevância mundial, então é importante ter isso aqui também, como alavancar a carreira dos artistas de BH.

P/1 – Como foi contar um pouco da sua história?

R – (risos). Nossa, foi legal, não é? Eu acho que revivi muitas coisas. Assim... Eu acho que, inclusive, gastei muito tempo no começo, acho que foi trazendo essa memória, aquela coisa de tomando café e falando da vida, então foi mais lento, assim. Aí, nesse final, aqui que tem muitas coisas, eu deixei de falar coisas muito importantes, assim. Mas eu acho que foi um apanhado ‘massa’.

P/1 – Você é mãe agora, não é?

R – Então, tipo isso que eu não falei (risos).

P/1 – Como foi o nascimento do seu filho?

R – Então... Teve boa parte da minha vida que eu falei que não queria ser mãe, coisa de jovem. Eu engravidei já, antes de ter meu filho, três vezes. E abortei três vezes, por escolha. Não era a hora, e depois foi isso, eu acho que a vontade veio, assim, amigos tendo filhos e eu estava namorando e tal, ele também quis ter. Aí a gente, então, no final do ano, nas férias, a gente falou: “Então, sem camisinha”. Aí começamos, a gente engravidou no Carnaval (risos). Eu achei uma experiência muito louca, ficar grávida, me senti um alien mesmo, achei uma coisa muito louca, te tira do eixo mesmo, existencial, é isso. Como assim? Tem um ser vivo na sua barriga? Parece uma lombriga, um alien. E, de repente... Quando eu escutei o coração, eu fiquei assim: “Tem dois corações batendo dentro de mim”. Isso é muito surreal, tem dois corações batendo dentro de mim e depois de três meses tem dois corações e um pênis dentro de mim. É muito louco isso. É muita abstração, derretimento da realidade mesmo, mas eu não sou daquelas... Não senti aquelas coisas de ser apaixonada pela gravidez, adorar a barriga; na verdade, o contrário. Achei a gravidez um saco, porque toda hora mudam esses efeitos colaterais, achei meio chato, e tal. Mas, assim... Uma experiência linda e o parto eu fiz questão de ser um parto em casa também. Até pela história da minha mãe e muito louco, toda vez que eu falava que eu tinha nascido em casa, era muito louco para Capital, assim. “Como assim? Você nasceu em casa? Como assim? Você não nasceu no hospital?” E já a minha geração já vem, com a força do movimento feminista, voltando esse lance do parto humanizado, voltando esse lance do parto em casa. Aí eu escutava muito isso, muito ruim você estar em casa e, de repente, para tudo, você tem que entrar no carro, ir para o hospital e mudar o clima. Aí só depois, quando você está no quarto lá, que você volta ao processo. E eu não queria isso. Então eu fiz tudo para ser um parto em casa - na casa dos meus pais - e fiquei lá horas, de manhã até a noite. De manhã não, meio na hora do almoço até a noite, em trabalho de parto. No começo, eu falei: “Ah, eu sou forte para dor, já senti várias coisas e tal. Não, sou forte para dor”. Aí, no final, eu comecei a ter dores que eram aquelas dores de contrações surreais, aí deu mecônio, que é quando o bebê caga dentro da barriga, aí você tem que ir para um hospital. Então, eu tive que ir no auge de um trabalho de parto entrar em um carro. Só que não é no comecinho, que é muito mais agradável. Entrar em um carro, ir para o hospital, cheguei no hospital - que é o hospital referência nacional - que é o Sofia Feldman, ele, por ser lua cheia, por ser período de Carnaval, estava lotado. Eu fiquei duas horas na recepção do hospital, sem poder ser internada e foi muito ruim, foi muito ruim esse lance de não... Eu só queria que o pessoal falasse: “Olha, é aqui que você vai parir”. Então é aqui. Aí eu me acostumava a olhar e falava ok. Agora, esse lance de estar em trânsito é muito ruim. Aí, uma hora liberou um quarto, eu entrei, fiquei mais 40 minutos em trabalho de parto, uma dor surreal, essa história, que eu ia em várias rodas de conversas de mães e tals, falando: “Não vamos falar de dor, é só amor e tal. A dor não é importante, não sei o quê”. Caiu por terra, porque é uma dor inacessível mesmo, você não aperta, não apalpa. Eu acho que o pior é não saber o quanto tempo vai ser essa dor, entendeu? Você não sabe se você vai ficar em trabalho de parto mais uma hora, então você tem que se resguardar para ter força mais uma hora ou se você vai ficar mais dez horas, e isso é muito difícil. Aí, depois, vendo Democracia em Vertigem... Não tem nada a ver, mas é dor também... Mas a Dilma falando: “Para aguentar tortura, eu pensava que só ia durar mais um minuto, porque senão eu não daria conta”. E é meio que isso, você tem que pôr uma meta em você, porque era tipo: “Eu não aguento mais e não sei se eu vou ficar só mais meia hora nessa situação ou mais dez horas”. E o Mano nasceu, super saudável, lindo, aí é só amor mesmo, aquela coisa maravilhosa, assim. Só amor, entrega total, eu não queria saber de nada, o que estava acontecendo, dane-se tudo, durante um tempão, assim. Aí teve o lance do nome, não é? Porque a gente resolveu dar o nome dele de Mano. Aí, quando a gente foi registrar - o Dereco foi registrar, porque o pai é quem tem que fazer isso - quando foi registrá-lo, a mulher do Cartório... Também é isso, quem avalia é a pessoa que te recebe, então é uma avaliação subjetiva... Falou assim: “Não, Mano não pode”. “Como não? Existem vários Manos e tal”. Tem 130 Manos registrados no Brasil, aí ela falou que não podia, eu falei: “Então escreve uma justificativa aí que a gente vai mandar para a juíza”. Aí ela escreveu uma justificativa. E o que a gente não sabia é que essa justificativa significava que a gente estava abrindo um processo jurídico nacional. Se a gente não tivesse escrito a justificativa, a gente poderia ter ido em outro Cartório, que a avaliação talvez tivesse sido outra. E o que a gente entendeu também é que é isso, os Cartórios da Zona Sul, lógico, por uma questão classista, aceitam muito mais os nomes do que o Cartório da periferia, e esse hospital era lá em Venda Nova, então o Cartório era de lá. A gente tentou ir em outro Cartório, a pessoa falou assim: “Você está brincando comigo, você já entrou com um processo e tal”. Então, nós tivemos que entrar na Justiça e a resposta da Justiça foi negando também. E foi uma resposta muito classista, que era “É uma gíria utilizada no meio criminal”. Meu marido vem do hip hop, do grafite, ele fala mano muito, ele fala a cada dez palavras, duas é mano. Eu lembro os amigos dele, quando ele contando: “Mano, essa mulher está falando que nós somos tudo criminoso, é isso que essa mulher está falando”. É isso, uma avaliação completamente classista, racista mesmo, e aí a gente teve que entrar na Justiça, fazendo uma peça, o advogado usou argumentos do tipo: “Tem vários nomes que são usados como gírias criminais”, tipo Tereza, que é a corda de lençol que os presidiários fazem para fugir da cadeia; Maria Joana, que é maconha, e assim vai. E também usou os cobertores e coisas que estavam bordado o nome, falando que ele já tinha esse nome social, usou Mano Brown, Mano Tchau, Mano Menezes, todo mundo entrou nessa argumentação jurídica. O filho da Marisa Monte que chama Mano Vladimir. Aí, a princípio, foi negado, porque o juiz responsável estava de férias, o que estava lá cobrindo não se sentiu com liberdade mesmo para dar causa para a gente. Então ele ficou dois meses sem nome, aí só depois a gente conseguiu dar nome ao Mano. Aí ele foi registrado, ele chama Mano Machado Macruz.

P/1 – Nasceu que dia?

R – Ele nasceu em 18 de novembro de 2017.

P/1 – Um ano e... Quase dois anos.

R – Quase dois anos, eu fiz o Cura um com uma barrigona de seis meses, foi uma loucura.

P/1 – Obrigada, Jana. Foi ótimo.

R – (risos). É “nóis”.