Museu da Pessoa

Uma vida cheia de histórias

autoria: Museu da Pessoa personagem: Jayme Vita Roso

P/1 – Primeiro, Jayme, fala pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Eu me chamo Jayme Vita Roso. Nasci na cidade de São Paulo, capital, no bairro do Cambuci, no Largo do Cambuci, em cima da farmácia que meu pai era proprietário, meu pai e minha mãe. E foi no dia 16 de outubro de 1933, às 16 horas e 30 minutos.
P/1 – Agora o nome completo da sua mãe e do seu pai, e também, se você souber, data e local de nascimento.
R – Sim. Minha mãe era Helena Maria Vita Roso, nascida também no mesmo bairro do Cambuci, dia 11 de março de 1909. Meu pai, Jayme Roso, 30 de abril de 1908, nascido num distrito de Campinas, chamado Joaquim Egídio.
P/1 – O que seus pais faziam profissionalmente, Jayme?
R – Minha mãe era uma mulher além da época porque com 18 anos ela se formou em faculdade. Eu tinha um tio que trabalhava no cartório, ele conseguiu colocá-la como possibilidade de fazer faculdade e ela fez Farmácia. Saindo dos parâmetros das mulheres daquela época, ela fez a Farmácia, na então Faculdade de Farmácia e Odontologia localizada na Rua Três Rios, que hoje é um museu. E posteriormente a isso, e ainda sempre por influência do meu tio, esse tio chamava João – ele infelizmente nasceu com uma moléstia congênita e morreu com 32 anos – mas ele foi o grande inspirador da minha mãe, a minha mãe adorava ele. Eu não o conheci, mas ela entrou na faculdade de Medicina, cursou até o segundo ano, teve que largar em virtude do falecimento dele. E com o falecimento dele a minha avó teve um AVC e ela ficou com o encargo de tomar conta da minha avó, da farmácia e cuidar de casa.
P/1 – Você sabe qual é a origem da sua família?
R – Da família sei, claro. A família materna é do sul da Itália, de uma cidade da Campanha, às vizinhanças da Calábria. A nossa origem, na verdade, veio da Calábria, vieram do norte da Calábria, onde eu estive recentemente fazendo uma pesquisa para um livro que eu acabei de publicar sobre uma cidade. Tem um outro livro que poderá, eventualmente, ser publicado nos Estados Unidos sobre uma outra cidade. E aquela zona é uma zona muito, muito curiosa, as pessoas não sabem o significado histórico daquela zona, vou explicar. Ainda existem várias cidades onde permanece a cultura vinda da Albânia, então as ruas estão escritas em albanês e em italiano, inclusive há uma forte expressão cultural e religiosa dentro das igrejas, porque eles são católicos com rito grego, significando o seguinte, os padres podem casar, têm a possibilidade de casar, mas não podem ascender a cargos mais altos dentro da hierarquia eclesiástica. Muito bonito, eu visitei todas as cidades, conheço aquilo a palmo, já trabalhei na Itália, trabalhei na cidade de Padova, trabalhei em Roma também, nos anos 60.
P/1 – Você sabe por que seus antepassados vieram pro Brasil?
R – Tragicamente eu vou dizer pra você. Aliás, nós estamos vivendo a mesma história. Historicamente aquela foi uma zona muito ocupada, foi saqueada pelos turcos, pelos espanhóis sobretudo, mas mais pelos turcos. Os turcos destruíram toda a vegetação da zona. Pra fazer o quê? Com a madeira eles levavam a madeira e construíam casas, faziam barcos. Isso criou um desgaste na natureza que significou o seguinte, é comprovado cientificamente, lhe dou até toda a bibliografia que eu tenho a respeito do assunto, aquilo provocou um desequilíbrio da natureza muito grande, que vai ocorrer aqui, certo? Então, o que aconteceu? Empobreceu as pessoas, as famílias se empobreceram, começaram a surgir doenças endêmicas como malária, por exemplo. A minha bisavó materna teve quatro ou cinco malárias, por isso era totalmente calva. Politicamente e sociologicamente tiveram outros problemas, foi daí que pelo empobrecimento começaram a surgir as organizações criminosas do sul da Itália. Por isso italiano é bandido? Não, italiano não é bandido, italiano foi conduzido a ser fora da lei pelas condições econômicas. Então, na verdade, a origem do crime no sul da Itália são razões econômicas e sociais. Então surgiram então, na Calábria, a ‛Ndrangheta; em Nápolis, a Camorra, e depois na Sicília a máfia.
P/1 – Você falou um pouquinho pra gente sobre a sua mãe. E sobre o seu pai, o que ele fazia profissionalmente?
R – Minha mãe foi uma farmacêutica notável, uma mulher extremamente fora do contexto daquela época, muito culta, falava francês perfeitamente, se formou em Farmácia com 19 anos na faculdade. Ela teria se formado em Medicina, infelizmente, faleceu muito jovem, faleceu com 39 anos e sempre trabalhou. Foi muito dedicada à família, muito rígida e se eu devo uma parte da minha rigidez e muitas coisas eu devo à educação que ela me deu. E foi uma mulher excelente dona de casa também. Meu pai, de família inicialmente que estava muito bem, meu avô tinha uma fazenda nessa zona perto de Campinas, que hoje está toda desenvolvida lá em loteamentos, haras, tudo. E na Crise de 29 ele perdeu a fazenda; perdeu a fazenda, perdeu tudo. E teve um problema anterior também, que a minha avó paterna também morreu com 40 anos, morreu de tuberculose. Ela estava na fazenda, à noite ela estava muito gripada, tudo, ficou molhada com gotejamento e gerou um mal cuidado e uma tuberculose, morreu também com 40 anos. Os quatro filhos separaram, lógico, cada um foi pra um lugar porque meu avô não ia cuidar. Meu avô perdeu tudo e foi entregar marmita na cidade de Campinas. Depois mais tarde, depois de muitos anos, ele arrumou um empreguinho de funcionário público, de escrevente na prefeitura, quando faleceu com 66 anos em junho de 1946.
P/1 – Mas isso o seu avô?
R – Meu avô paterno.
P/1 – E o seu pai?
R – Meu pai, logicamente meu pai não teve muito acesso, chegou a se formar como contador, nunca trabalhou como contador, trabalhava como vendedor de medicamentos. E foi esportista na Associação Atlética aqui, era remador na época que o rio Tietê era possível navegar e nadar.
P/ 1 – Você sabe qual é a história do seu nome, Jayme? Quem que escolheu e por que você se chama Jayme?
R – Meu pai era Jayme. Jayme é uma palavra hebraica que tem como sinônimos também Jacque, Jacopo, James, Thiago é Jayme, Diego é Jayme, mesma coisa. E significa, em hebraico, vida. Em hebraico Jayme é Ya'akov, aime quer dizer vita. Eu tenho vita no nome e vita no sobrenome, que é vida, é vida.
P/1 – E você sabe por que seus pais escolherem esse nome pra você? É homenagem ao seu pai.
R – É. Ele escolheu.
P/1 – E a história do seu nascimento? Você falou que nasceu em cima da farmácia que era da sua família, né?
R – Meu avô fundou essa farmácia. Meu avô era um imigrante, pra vir pro Brasil ele teve uma história muito interessante e muito cruel, porque ele saiu daquela cidade, daquela zona que não tinha nada que eu falei pra você, onde graçavam epidemias, etc. Ele saiu de lá e foi trabalhar em Nápolis, que é perto, não é tão perto de Nápolis, são 200 quilômetros, mais ou menos, de Nápolis, 200, 250 quilômetros de Nápolis. Trabalhou lá nas docas de Nápolis, conseguiu uma passagem pra Marselha, foi trabalhar em Marselha e de lá ele conseguiu vir de navio pro Brasil. Chegou no bairro do Cambuci onde o bairro estava formando, trabalhou calçando a rua com paralelepípedos na época e ele conheceu a minha avó. Mas não era da mesma região, era um pouco mais ao norte, mas sempre dentro do sul da Itália. Minha bisavó era uma mulher muito rígida, teve uma única filha, coisa raríssima naquela época, com um detalhe muito importante: ela casou com um indivíduo que não gostava de trabalhar. Ela era baixa e o marido dela era alto, o meu bisavô. E ela foi se aborrecendo porque ele não trabalhava e criava, bebia, etc, etc e ela tinha que trabalhar, ela carregava pedra, tanto que era calva, certo? E chegou um ponto que ela resolveu naquela época dizer: “Basta!”, o que era também um grande escândalo porque nenhuma mulher se insurgia contra o marido. Mas ela se insurgiu de uma forma digna. Ela falou pra ele: “Se você entrar aqui na casa eu estou com um machado e eu corto você com o machado” (risos)
P/1 – E acabou ali?
R – Bom, ele foi parar em Juiz de Fora (risos). Ele se mandou pra Juiz de Fora, isso eu soube.
P/1 – Isso do lado materno.
R – Materno. E do paterno não tive acesso porque como meu avô morava longe, morava em Campinas e eu estava em São Paulo e como ele tinha muita dificuldade e a gente tinha dificuldade, porque naquele tempo a gente pra viajar era um drama. Primeiro que não tinha dinheiro, né? Segundo lugar, ele vinha uma vez por ano, ficava uns dias na minha casa e depois voltava. Ele faleceu quando eu tinha 13 anos e não tive muito acesso a conversar com ele pra saber da origem dele, da família dele. Nem sei se o meu avô teve irmãos.
P/1 – E como era o temperamento dos seus pais? A personalidade do seu pai e da sua mãe?
R – Não, deixa eu contar mais um detalhe também. A minha bisavó, mãe da minha avó paterna, ela era italiana, era calabresa. E quando ela veio da Itália, ela já veio com três filhos, depois foi morar tudo em Campinas. E era uma mulher muito dura também, muito dura de queda. E ela tinha uma banca de banana no antigo Mercado das Andorinhas, em Campinas. E ali que ela criou os filhos todos, eram quatro mulheres e um homem. E lá ela criou toda a família. O último neto da minha bisavó faleceu agora com 95 anos, era dono de uma famosa casa de mesa em Campinas. E foi um grande remador também, Romeu Nucci.
P/1 – O temperamento do seu pai e da sua mãe, a personalidade deles, como é que era?
R – A minha mãe era uma mulher de não falar muito, mas quando falava, falava com propriedade. Não tinha pavio muito longo pra aguentar. Meu pai era diferente, que meu pai era mais, não é conciliador, meu pai era um homem, ele não teve formação, não teve família, entendeu? Então era um homem que aprendeu a viver dentro da minha família, certo?
P/1 – Você tem irmãos, Jayme?
R – Tenho uma irmã.
P/1 – Como é que ela se chama e o que ela faz?
R – Maria Teresa Vita Roso Medeiros. É viúva. O marido dela era primo de segundo grau do meu pai. E hoje ela está aposentada e ela é organista da Igreja São Francisco ali na Rua Borges Lagoa. É uma mulher italianona do Sul, tá certo? (risos) Em todos os sentidos e cozinha muito bem (risos).
P/1 – Conta um pouco pra gente como era a casa em que você passou a infância. A casa e o bairro naquela época, como era, descreve um pouco.
R – Vou contar uma história. Nasci no bairro do Cambuci e nunca vi no bairro do Cambuci uma árvore de cambuci. Não existia, era só o bairro, naquela época já. Era um bairro muito tranquilo, a gente tinha ampla liberdade de sair à noite, com oito, dez anos saía e voltava dez, 11 horas da noite. Todos os meus amigos, todos os meus amigos, morreram muito jovens. Por quê? Porque todos viviam em cortiço. E você sabe que viver em cortiço o que significa. Um dos cortiços, por exemplo, tinha uma cavalariça em cima e em baixo eles dormiam, então toda a excrescência da cavalariça descia nas casas. Eu me lembro uma que não esqueci mais, uma senhora separada do marido, tinha dois filhos. O filho, um menino chamado Zé, a gente chamava ele de Zé Pretinho, e a Neusa. Me lembro dela, isso faz 70 anos, me lembro dela até hoje. Eles moravam num buraco. Eu me lembro dela quando ela ficou tuberculosa, e assim os outros ficaram. Todos morreram cedo, todos meus amigos infantis. O que nós fazíamos? No Cambuci existia uma fábrica muito grande, uma tecelagem muito grande e os empregados trabalhavam de uma forma, eu diria hoje, mais do que desumana, porque trabalhavam com os pés dentro d’água, sem bota, sem nada. Todos ficaram com reumatismo com 40, 40 e poucos anos; nenhum chegou aos 60 anos de idade. E eu brincava com os meninos entre dois postes, dois postes aqui e dois postes na frente, tinha uma bolinha feita de meia e jogava futebol. À noite a gente batia um papo, quando ia no cinema. O dinheiro do cinema era só pra ir no cinema, não dava nem pra comprar uma bala, muito menos um pacote de pipoca.
P/1 – Que cinema vocês frequentavam?
R – Era o Cine Cambuci, na Rua Clímaco Barbosa. Então a gente saía aos sábados, a gente dava uma volta no Largo do Cambuci à noite. Os meninos iam de um lado e as meninas iam do outro lado. E depois quando havia assim, a gente reunia três pra comprar uma garrafa de guaraná, tá certo? (risos).
P/1 – Você se lembra a primeira vez que você foi no cinema, Jayme?
R – Me lembro.
P/1 – Como é que foi?
R – A primeira vez que eu fui no cinema foi no Cine Santa Helena, na Praça da Sé. Fui assistir a um filme do Flash Gordon.
P/1 – E como é que foi? Como era o cinema na época?
R – Ah, era muito interessante. Passavam três filmes aos domingos, dois filmes e um seriado. A gente assistia o seriado batendo o pé no chão (risos), com todas as manifestações da gente, de amizade, porque nós éramos muito amigos, entendeu? É uma amizade que ninguém brigava, ninguém tinha inveja de ninguém porque ninguém tinha nada, entendeu? Ninguém tinha nada, pra que ter inveja do outro? E tem um detalhe, durante a guerra se fala muito em discriminação hoje, se você soubesse a discriminação que nós, descendentes de italianos, descendentes de japoneses e descendentes de alemães. Japonês era um ou dois no bairro e italiano eram muitos. O que nós sofremos, você não tem ideia! Era muito difícil.
P/1 – Você se lembra de alguma história?
R – Lógico, claro que sim! Claro. “O que vocês vieram fazer aqui? Por que vocês não voltam pra Itália agora que está todo mundo morrendo lá? Que os Pracinhas estão morrendo lá”. A história dos Pracinhas, entendeu? Então a gente passou isso muito. Aliás, aliás tem um fato muito, muito, muito clássico, impressionante. Não foi no bairro, foi na época. O professor Miguel Reale, com quem eu tive o grande prazer de ser meu professor na Faculdade São Francisco e também amigo da família, ele pra ingressar como professor, depois de ter vencido o concurso, ele teve que ir ao juízo porque não queriam que ele entrasse porque ele tinha o sobrenome italiano, ponto. Isso em 1937, 38. A guerra não havia nem estourado. Eu me lembro que meus parentes iam na Itália, voltavam alguns, voltaram na Calábria e quando vinham, vinham falando, todo vestido logicamente como fascista, né? Tinha o Mussolini como um exemplo. Porque realmente o Mussolini fez muito pela Itália naquela época. Toda a história que conta, fascista, fascista, precisa olhar os lados todos e a interpretação da história que deve ser feita com muita cautela, sem preconceito, sem preconceito.
P/1 – Você se lembra do final da Segunda Guerra, Jayme?
R – Claro que lembro.
P/1 – Onde você estava, como é que foi que você recebeu a notícia ou a sua família?
R – Nós estávamos em casa quando soltaram rojões. E me lembro também que fui receber os Pracinhas, a escola fez, todas as escolas levavam os alunos e nós marchamos a Avenida São João inteira até Santa Cecília, lá embaixo. Nós ficamos esperando debaixo de um sol tremendo (risos) umas quatro horas.
P/1 – Você se lembra de escutar no rádio alguma coisa assim?
R – Sim, eu me lembro. Eu comecei a ler, pode ser que você não acredite, eu comecei a ler com três anos e meio, entendeu? Eu com três anos e meio eu lia tudo, acompanhei a guerra inteira, antes da guerra e depois da guerra, e durante a guerra.
P/1 – O que você lia?
R – Lia o Diário da Noite e a Gazeta.
P/1 – E rádio, vocês tinham em casa? Escutavam rádio?
R – Tínhamos rádio. Mas como era época da ditadura as notícias eram muito filtradas. Aliás como hoje, hoje é filtrado pelo mercado, naquela época era filtrado pela ditadura, ponto, vamos falar claro (risos). Hoje quem filtra a notícia é o mercado, é aquele que paga, que anuncia ele não quer que saia aquilo, então não vai sair. A televisão se submete, a imprensa, falada, escrita, etc, etc.
P/1 – Você falou um pouquinho das brincadeiras de infância, de jogar bola. Do que mais você brincava, quais eram as brincadeiras?
R – A gente fazia pique-pique, batia no piques, corria. E tinha perto da minha casa uma parte muito grande ainda não construída, que depois hoje é ali no Cambuci é a parte que tem a Aeronáutica. Ali tinha os campos de futebol que a gente assistia. E todo domingo, antes do meu colégio que eu estudava, que eu estudei no colégio Nossa Senhora da Glória, na Rua Lavapés e tinha um campo de futebol. Todo domingo a gente ia de manhã, depois da missa a gente ia assistir ao jogo de futebol. E à tarde assistia, quando ouvia a rádio, o jogo de futebol. O meu pai foi um dos fundadores do São Paulo. A desgraça da nossa vida foi essa.
P/1 – Por quê? Conta pra gente como foi essa história.
R – Porque ele se apaixonou pelo negócio e entrou de cabeça dentro da história e pôs dinheiro que não podia, dinheiro da própria família dentro do São Paulo Futebol Clube. Isso eu falo pra você, embora eu seja são-paulino eu lamento esse fato porque nós passamos muito apertado por causa desse amor apaixonado do meu pai pelo São Paulo. Eu me lembro dos jogadores do São Paulo que vinham na farmácia tomar injeção, que naquela época os jogadores não tinham essa mordomia que têm hoje, né? Eles vinham na farmácia tomar injeção, fazer uma pressão, etc. E vou falar com todo respeito, você tira depois se precisar, eles vinham tomar injeção contra problemas venéreos, de doenças venéreas (risos) na farmácia que era grátis, tá certo?
P/1 – E eles frequentavam a sua casa? Você se lembra?
R – Não, não. Frequentavam a casa não, só entravam na farmácia.
P/1 – E vocês frequentavam o São Paulo?
R – Meu pai sim. Meu pai chegou a me deixar na Praça Júlio Mesquita, numa reunião do São Paulo, no carro – nós tínhamos um Ford 35 – ele me deixou. Eu tinha uns cinco anos e meio de idade, ele me deixou até uma e meia da manhã, dentro do carro (risos).
P/1 – Era paixão mesmo.
R – Era paixão. Era paixão. Paixão trágica em um sentido e pra ele era a realização, né?
P/1 – Ele jogava futebol também?
R – Não, não jogava futebol. Meu pai foi remador e nadador. Por isso eu não fui nada (risos), nem remador, nem nadador, absolutamente nada.
P/1 – Jayme, você contou um pouco dos cortiços ao redor da sua casa. Mas a sua casa como é que era? Descreve um pouco pra gente.
R – Era uma casa boa, era uma casa boa. Porque o meu avô havia deixado uma herança que foi que meus pais compraram essa casa. Era uma casa que pertencia a um médico famoso. Aliás, vou contar um fato muito interessante. Nós vivíamos num bairro que tinha grandes artistas. A começar por Volpi, Volpi era amigo da nossa casa. E tantos outros artistas. O Volpi era amigo do meu avô, foi amigo da minha família. Ele veio pintar os afrescos na minha casa. Depois quando nós vendemos raspou tudo e jogou fora (risos).
P/1 – A casa existe ainda?
R – A casa existe. Passei lá outro dia, foi reformada, foi vendida. Era uma pensão e foi vendida e recentemente foi reformada.
P/1 – Mas os afrescos não?
R – Lógico. Desde 1950 foram tirados.
P/1 – Que pena.
R – É. Mas eu tive o prazer de ter como vizinho, eu não me recordo agora, também de família italiana, eram todos italianos. O irmão era meu barbeiro e outro irmão foi um grande artista plástico. E ele pertencia ao grupo do Santa Helena. Grupo Santa Helena eram os artistas que tinham dentro do prédio Santa Helena, que ele fazia frente pra Praça da Sé e fundos ele fazia pra Praça Clóvis Bevilácqua. E esse artista pintou a Praça Clóvis, a Igreja Nossa Senhora do Carmo na Rua do Carmo e atrás, ele deu um lance do colégio onde eu fiz o ginásio, que foi derrubado onde está agora o Poupatempo.
P/1 – Quais são as primeiras lembranças que você tem da escola, Jayme?
R – Todas. Eu tenho todas lembranças. Desde o jardim da infância.
P/1 – Quantos anos você tinha quando começou a frequentar a escola?
R – Quatro. Toda a lembrança da escola. Das duas professoras, duas irmãs, também filhas de italianos, amiga nossa de família. A mãe dela era amiga desde a minha avó. Eu estudei o jardim da infância na Escola Paroquial da Igreja da Nossa Senhora da Glória, onde eu fora batizado, lá em cima na parte alta do Cambuci. E me lembro todas. Tinha o padre que tomava conta da igreja na época, ele era um homem muito culto, ele era luxemburguês, João Pedro. Formado em Teologia e Filosofia na Universidade de Louvain na Bélgica, que eu tive a oportunidade de conhecer. Realmente um must como faculdade em Filosofia. É até hoje. Em Louvain, na Bélgica.
P/1 – E essas duas irmãs que você mencionou? Elas te marcaram essas duas freiras que faziam parte da escola?
R – As duas irmãs?
P/1 – Isso, as duas irmãs.
R – Eram professoras.
P/1 – Eram professoras e por que elas ficaram marcadas, você acha, na sua lembrança?
R – Porque eram nossas vizinhas e foram muito boas com a gente e eu tinha boa lembrança delas. Depois eu fui estudar embaixo, a escola era em cima, quando eu cheguei de seis pra sete anos eu fui estudar embaixo, no Colégio de Nossa Senhora da Glória, dos irmãos maristas, que é onde o irmão já estava lá há muitos anos, o Irmão Justino, inclusive tem uma rua com o nome dele no bairro. Ele formou várias gerações, várias gerações. E era francês. Mas ele nem tinha mais nada de francês, nem tinha nem sotaque de francês. Da mesma forma que o diretor também era francês, mas também não. Então, meu gosto pela cultura francesa e pelo pensamento francês veio dessa época.
P/1 – Você teve alguns professores marcantes? Teve algum professor que tenha te marcado em especial?
R – Nessa época, é curioso, eu tive um professor que me acompanhou do segundo ano até o quarto, ele passava de um ano pra outro. Ele era mineiro, da cidade de Dores do Indaiá, depois ele não prosseguiu como religioso, ele saiu e foi morar numa fazenda. Eu sei que, como eu escrevo em Minas há muitos anos, então a família dele existe, mas eu nunca cheguei até Dores do Indaiá pra conhecer. Lá se fala Indaiá, o dores.
P/1 – E por que você se lembra dele? Por que você acha que ele ficou marcado?
R – Porque ele foi um bom professor. Ele era muito aberto, não era um indivíduo extremamente rígido, ele ensinava bem e exigia da gente, mas era condescendente. Porque o meu primário eu vivi durante a guerra. Nós estávamos condicionados a fila pra comprar pão, fila pra gasolina, fila pra comprar carne, fila pra comprar qualquer outra coisa. E você pra ir pra Santos você tinha um salvo-conduto, você tinha que tirar na polícia um salvo-conduto pra ir pra Santos, então ponto. E tinha um negócio chamado gasogênio. Você ouviu falar nisso?
P/1 – O que era o gasogênio?
R – O gasogênio era uma aparelho que se colocava nos carros, você enchia aquele aparelho de carvão, dava um toque de gasolina e o carro andava xiiii. Aquilo pra explodir era fácil, mas eu nunca vi explodir nenhum (risos), ou pelo menos os jornais não deram.
P/1 – E quando você era criança, Jayme, você lembra o que você queria ser quando crescesse? A primeira vez que você pensou numa profissão?
R – Pensei em ser uma coisa louca, eu queria ser filósofo (risos).
P/1 – Por quê? O que te inspirou?
R – Por que eu queria ser filósofo? Porque eu tinha um primo que trabalhava, um primo meu vizinho que foi trabalhar com a minha mãe na farmácia e com 16 anos ele era um bon vivant. E minha mãe era muito dura, ela queria que ele estudasse. Um dia mandou ele pagar a conta, que naquele tempo se pagava as contas só na cidade, os bancos só tinha na cidade pra pagar conta, não tinha jeito, você tinha que ir na cidade pra pagar conta. Ele foi pagar uma conta, ele era tão, tão assim vivendo em sonhos que ele escorregou do bonde e perdeu o pé. Imagina, numa época daquela que não tinha, você ficava horas e horas sem passar um carro, sem nada. Primeiro que não existia carro quase, certo? No domingo era um silêncio a cidade, que não tinha barulho nenhum; o carro passava a cada duas horas. Depois era o bonde, o ônibus, etc. Isso eu me lembro perfeitamente bem.
P/1 – E aí ele perdeu o pé e depois o que aconteceu?
R – Perdeu o pé, foi pra Santa Casa pra se curar. Minha mãe, que era madrinha de dois outros irmãos dele, minha mãe falou assim: “Agora você vai ter que decidir a tua vida”. Sabe o que ela deu pra ele? Um livro de Filosofia. A História da Filosofia, do Will Durant, me lembro até o nome do escritor, que era um pândego esse escritor americano que escreveu essa História da Filosofia, era uma droga de livro. Mas aquilo valeu pra ele pra incentivá-lo a ser filósofo. Ele morreu muito jovem, morreu com 47 anos, com 14 livros escritos de Filosofia. Se formou na USP e se formou também em Direito, era Procurador da Prefeitura, estava para suceder o Professor Miguel Reale na cadeira. Porque o Professor Miguel Reale fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia e ele foi secretário do Instituto até a morte, ele sempre acompanhou o Professor Miguel Reale. Ele estava predestinado a ser, provavelmente, o sucessor do Professor Miguel Reale na cadeira.
P/1 – Qual é o nome dele, desse seu primo?
R – Luís Washington Vita.
P/1 – Então, inspirado nele, o senhor quis ser filósofo durante um tempo.
R – É. Depois, até o dia que eu fui, já maior, estava no ginásio e fui convidado pra ir numa Festa do Abacaxi. Festa do Abacaxi era uma festa que a Faculdade de Direito do Largo São Francisco dava no Cine Coliseu, no Largo da República. E eu fui na festa, eu vi uma bagunça desgraçada, entendeu, todo mundo bêbado, eu falei: “Essa é a melhor profissão, eu posso ser delegado, posso ser procurador, posso ser até advogado”, e virei advogado (risos).
P/1 – Nessa fase de adolescência, Jayme, o que mudou na sua vida, da infância pra adolescência? Mudou em termos de passeio, o que você fazia pra se divertir? Amigos?
R – Não. Nós tínhamos uma coisa muito boa, isso eu sinto saudades, que essa mocidade hoje não tem. Atrás do Teatro Municipal tinha o Clube Israelita. E o Clube Israelita aos domingos à tarde franqueava a jovens, pagando um valor simbólico, pra entrar e a gente dançava com orquestra. Orquestra de 14, 15 músicos. E dançava muito gostoso. Se namorava, tudo.
P/1 – Como eram esses bailes? O que tocava, como as pessoas iam vestidas?
R – Como era uma baile pós-guerra, a maioria era ou samba ou música americana, Glenn Miller, Tommy Dorsey. Aliás, Tommy Dorsey eu assisti no Teatro Municipal. Furei a fila, não paguei a entrada, mas assisti lá de cima. Tocava trombone de vara (risos). Esse estilo, Harry James, Benny Goodman, tudo.
P/1 – Você tem uma música que tenha te marcado nessa época? Você gostava música? Você tem alguma canção marcante?
R – Tenho, tenho. Tocava Moonlight Serenade, por exemplo, era o hino nacional. O baile começava com o Moonlight Serenade. Eu me lembro quando morreu o Glenn Miller, ele morreu num desastre de avião na guerra, né? Então, me lembro que nessa época passavam um filme, o filme passava uma vez só num cinema só, que às vezes ficava. Por exemplo, Casablanca, do Humphrey Bogart e a Ingrid Bergman, passava no Largo do Santa Ifigênia, não tinha um cinema ali na esquina? E lá ele ficou, ficou, três meses. Quando em 1945, 46 saiu a Escola de Sereia, era um filme da Esther Williams, com Red Skelton, o filme ficou seis meses no Metro, o Metro na Avenida São João. Ficou seis meses, porque era uma cinema só. Aquelas filas, etc.
P/1 – Ficava muito tempo em cartaz, né?
R – É.
P/1 – E você falou que gostava de ler muito, desde pequeno.
R – Sim.
P/1 – Queria saber também se você se lembra do primeiro livro que te causou mais impacto, ou um livro importante pra você.
R – Sim, todos os livros do Monteiro Lobato. O Monteiro Lobato era um gênio. Eu conheci o Monteiro Lobato, depois vim a saber o que ele fez por um grande amigo meu que foi um grande escritor que faleceu recentemente. O Monteiro Lobato plasmou a minha formação intelectual. Porque ele era um homem que tinha uma visão humana muito grande, mal compreendido, extremamente nacionalista, pelos livros que ele escreveu, pelo que ele interpretou, tinha uma visão, uma personalidade impressionante, e tinha um coração de ouro.
P/1 – Tem uma obra dele em especial que tenha te...
R – Tem, “O Poço do Visconde”. É a história do petróleo no Brasil.
P/1 – E como foi esse encontro que você teve com o Monteiro Lobato? Qual é a história desse encontro?
R – O Monteiro Lobato trabalhava numa livraria da Rua Barão de Itapetininga, da qual ele era sócio. Foi lá que eu conheci assim. Conheci um dia, vi o Monteiro Lobato. Naquele tempo a gente não pedia para autografar e era um drama pra comprar um livro porque a gente não tinha dinheiro, né? Tinha que fazer uma economia desgraçada pra comprar um livro, tá certo?
P/1 – Mas o senhor foi na livraria e conheceu lá? Como é que foi isso?
R – Foi assim, vi, me lembro dele, é um homem com uma altura razoável, não era grande, cabelo branco, bigode branco, tudo. Era um bom sujeito. Muito bom.
P/1 – E vocês conversaram, você chegou a abordá-lo?
R – Cheguei a conversar, ele só botou a mão na minha cabeça, que eu era moleque (risos). Aliás, nós tínhamos um programa que a gente ia. A gente ia no Programa Cultural da Rádio Gazeta. A Rádio Gazeta tinha o Programa Cultural muito importante e era uma programa de literatura, e a gente ia lá pra discutir literatura. Era um programa que o Professor Fernandes Soares, que era parente de um grande gramático português que viveu no Brasil, Silveira Bueno, ele tinha programa sobre a Língua Portuguesa. E a gente ia discutir, de vez em quando fazia até concurso lá, discussão, ele fazia pergunta, às vezes brigava (risos).
P/1 – Tinha um auditório, como é que era?
R – Tinha um auditório. Porque nesse auditório da Rádio Gazeta cantou até o Beniamino Gigli, o grande tenor italiano, ele chegou a cantar lá. E era ali na Cásper Líbero. Eu conheci o Cásper Líbero. O Cásper Líbero morreu num desastre de aviação, quando faleceu também o Arcebispo de São Paulo, Dom Jaime de Barros Câmara.
P/1 – Como você conheceu o Cásper Líbero?
R – Assim por acaso, cruzei com ele. Tem um episódio muito interessante, que nessa época o interventor em São Paulo era o Adhemar de Barros. E ele não perdoava o Adhemar de Barros, todo dia saía uma notícia contra o Adhemar. Todo dia saía uma notícia. O Adhemar era um homem grandão, gordo. Ele era médico, hein?

E ele se aborreceu com o Cásper Líbero. Tentavam apaziguar, etc, não conseguiram. O Cásper Líbero era cabeçudo também e escrevia. Um dia o Adhemar de Barros tinha se machucado, ele andava de bengala porque estava com uma perna engessada, aquele dia foi cáustico demais o Cásper Líbero, que escreveu. Ele saía da redação, o Cásper Líbero, e ia comer num restaurante chamado Don Giovanni, uma coisa assim, mais ou menos isso. E todo mundo que encontrava o Cásper Líbero nove horas da noite lá, depois do fechamento da redação. O Adhemar foi lá, provocou o Cásper Líbero, o Adhemar de Barros deu até com a bengala no Cásper Líbero, ficou famoso essa surra (risos), a bengalada do Adhemar, que era uma figura folclórica também. Mas era outro tipo de homem. Ele foi muito perseguido, ele foi perseguido. Fazendo uma avaliação, ele tinha muito erro, errou muito, ele era muito atrabiliário, mas quando governador depois, ele foi acusado de ter roubado uma urna funerária do Museu do Ipiranga e ele teve que deixar o Brasil, se exilou na Bolívia porque tinha roubado uma urna funerária indígena do museu. Quem ia roubar, imagina o Adhemar de Barros fazer isso (risos). Essas coisas são verdadeiras coisas surrealistas, é o surrealismo na política. Aliás, falando em surrealismo na política, pra mim o que me marcou profundamente, porque nós éramos de uma geração que tinha uma tendência pra esquerda, certo? E o grande homem da esquerda era o Luís Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança, o homem que tinha feito toda aquela viagem pelo Brasil, todo aquele movimento com o Cordeiro de Farias, Juarez Távora, que foi candidato a presidente da república, etc. E ele teve a mulher dele, a Anita, presa porque era judia e deportada pra Alemanha e ainda morreu num campo de concentração, isso por ordem da Gestapo Getuliana, que era chamada a polícia especial. Volta a “democracia”, é eleito o General Dutra, que foi imposto, e um dia tinha um comício no Pacaembu, que os comícios se faziam no Pacaembu, o pessoal era muito mais preparado politicamente, que ia ao comício no Pacaembu, pra assistir comício, discursos. Eu vejo lado a lado o Getúlio com o Prestes, o Prestes apoiando o Getúlio. É surrealista, né? Aquilo me deu um banho de água fria. Como ele vai aceitar um negócio desses se a mulher dele... Eu não entrei ao ponto de fazer uma crítica interna ou entrar em crise, porque eu tinha 15 anos, não dava, mas são coisas que a gente viu... Por exemplo, em 43, esse meu primo que eu trabalhei com ele e foi político aqui em São Paulo muito tempo, vereador, ele estava fazendo uma manifestação contra o Getúlio no Largo São Francisco, e veio a polícia militar. A polícia militar veio e atirou, morreram dois rapazes e ele tem uma bala até hoje, ele está com 93 anos de idade e tem uma bala no peito, entre os dois pulmões. Uma bala de fuzil.
P/1 – Nunca foi tirado?
R – É.
P/1 – Queria saber como foi essa decisão da entrada na Faculdade de Direito e como foi sua experiência na faculdade? Então, quando é que você decidiu que ia fazer Direito, quando é que você optou pela São Francisco e como foi sua vivência?
R – A minha mãe faleceu quando eu terminei o ginásio, ela morreu em seis horas, com 39 anos, de repente. Então eu entendi que nós não estávamos em uma situação financeira boa, eu tinha que começar a pensar na minha vida. Então tirei a ideia da Filosofia, vou ser filósofo de outra maneira. Entrei no Colégio Anglo Latino, que era na Rua São Joaquim, ali na Liberdade. Aliás, era brilhantíssimo, tinha uma equipe de professores fantástica, era realmente brilhante, brilhante. Eu peguei uma equipe de professores, um melhor do que o outro, todos. Foi quando eu despertei pra tudo. Um exemplo inesquecível, o professor de latim era um advogado português que trabalhava numa empresa de construção e usava sempre um avental branco pra dar aula, escrevia tudo na lousa. Ele entrou na sala no primeiro dia e falou: “Fechem os olhos, fiquem de pé. Daqui três minutos eu vou falar com vocês outra vez”. Fechamos os olhos. “Abram os olhos. Amanhã vocês vão começar o vestibular. Quem aceitar isso e entender o que eu quis dizer, o que eu quis propor pra você vai estudar os três anos e vai entrar na faculdade”, porque nós tínhamos três faculdades de Direito: Católica, Mackenzie e São Francisco. Quem não podia pagar tinha que entrar de qualquer jeito na São Francisco. E entrei, sem fazer cursinho porque também não tinha dinheiro pra pagar o cursinho (risos), ponto. A minha vida na faculdade? Nenhuma, eu não tive vida nenhuma na faculdade porque eu tinha que trabalhar, fiz o curso noturno, trabalhava de manhã, meu pai tinha uma firma que vendia material de sorvete, eu trabalhava lá. À tarde fazia estágio, já comecei a fazer estágio desde o primeiro dia porque eu queria ser advogado de verdade, como fiz. Não se ganhava nada no estágio, ao contrário, se mandavam de um bairro pro outro, inclusive até o bonde você pagava, mas não me queixo, agradeço aos advogados que me fizeram isso porque foram grandes advogados, muito cultos, pai e filho, lá no Banco Comércio e Indústria de São Paulo, que depois quebrou também, o banco.
P/1 – Esse trabalho com o seu pai era um trabalho remunerado, Jayme?
R – Sim. Dava pra quebrar o galho.
P/1 – E você lembra o que você fez com os primeiros salários que você ganhou? Se você comprou alguma coisinha que você queria, como é que você gastou esse dinheiro?
R – Vou contar, ao contrário. Com as aulas que eu dava, eu dava aula também de Português e Latim, com as aulas que eu dava eu cheguei a comprar uma História da Literatura Brasileira do Silvio Romero. Eu deixei isso guardado num lugar e me roubaram, eu fiquei tão triste (risos), aquilo custou tantos meses de trabalho, mas não tem problema. Eu fui comprar carro, veja, eu comprei o primeiro carro, já casado, com 32 anos. E eu casei com 22. Então se fazer, falar, fazia grandes histórias a respeito disso, né?
P/1 – Quantos anos você tinha quando você se formou em Direito?
R – Vinte e três.
P/1 – Você casou antes de formar então.
R – Casei.
P/1 – E aí, como você conheceu a sua esposa, Jayme?
R – Ela era minha vizinha e foi colega da minha irmã.
P/1 – E como é que vocês começaram a namorar?
R – Eu vou contar. Eu fui convidado pra uma festa da primavera na casa do tio dela e eu vi que tinha um italiano que estava querendo namorar com ela, eu falei: “Essa eu não posso perder” (risos) “Eu não posso perder”. Primeiro porque eu queria namorar e casar com descendente de italiano com quem eu me dava, eu fui criada como italiano, etc, primeiro. Segundo lugar, a família era muito boa. Em terceiro lugar, era muito bonita a minha mulher, desde criança ela foi muito bonita, muito bonita. E foi uma mulher excepcional.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Nancy Maria.
P/1 – E como vocês se aproximaram? Você chegou a pedi-la em namoro? Como é que foi essa aproximação?
R – Ahhhh, vou te contar! Eu estava no primeiro ano da faculdade e tinha o baile, Baile das Américas. E eu pensei, arquitetei como vou convidar. Nisso eu fiz aniversário dia 16 de outubro e ela me ligou, porque era colega da minha irmã, então me ligou para me cumprimentar. Aí bati um papo com ela, tudo, senti um certo charme dela na conversinha. Uma menina de 15 anos, né? E eu 18. Aí, eu ousei passar no negócio do meu sogro, ele tinha uma pequena mercearia, ousei, passei lá e falei assim: “O senhor deixaria a sua filha ir comigo no baile tal, assim, assim? A minha madrinha vai junto”, porque quem ficou morando com a gente depois do falecimento da minha mãe foi uma madrinha minha que era solteira. Ele falou assim: “Ah, ela vai?” “Vai. A minha irmã vai com o namorado, tudo”, que depois se tornou o marido dela. Então ele deixou. E ela sempre dizia que não acreditava como o pai dela tinha deixado (risos). Eu falei: “Tudo é questão de approach” (risos).
P/1 – Vocês foram ao baile juntos?
R – Fomos ao baile juntos, daí comecei a conversar com ela, tal e falei pra ela se ela gostaria de namorar comigo, tal, diz que sim. Namoramos e casamos.
P/1 – Quanto tempo vocês namoraram?
R – Um ano e pouco, quase dois anos. Ela não queria casar, ela falava: “É muito cedo pra casar”, mas o plano era o seguinte, o fato da morte da minha mãe e o segundo casamento do meu pai muito em cima, isso provocou um buraco na minha existência, buraco existencial. Então falei: “Preciso eu construir minha vida”.
P/1 – Seu pai se casou muito rápido, logo em seguida?
R – É.
P/1 – E aí você quis se casar com ela e propôs. Como é que foi, como você propôs o casamento pra ela?
R – Falei assim: “A gente casa assim” “Mas é uma loucura”, meu sogro dizia, “Você está estudando. Você vai largar, você não vai se formar”. O avô dela, que inclusive eu tenho uma grande lembrança do avô dela, ele falava: “Você é um louco de deixar ela casar” (risos). Ficamos noivos numa cerimônia em casa, tal, naquele tempo a gente fazia esse tipo de coisa, né? E até me lembro onde fui comprar o bolo.
P/1 – Como é que foi? Conta.
R – Na Brigadeiro Luís Antônio tinha uma doceira que chamava Dolce Italia (risos). Ali na Bela Vista.
P/1 – Foi ali que você comprou o bolo de noivado.
R – É.
P/1 – Você foi pedir a mão dela pro pai dela?
R – Pedi.
P/1 – E como foi esse momento? Como ele reagiu?
R – Ele falou: “Bom”. Ele era muito aberto, um homem muito bom. Eu vou dizer pra você uma coisa com orgulho, a minha sogra está viva, ela tem 98 anos. Eu nunca discuti com eles, nada, nunca saí da casa deles ou eles saíram da minha casa magoado com alguma coisa. Acho que isso pesa muito na vida de alguém, tá?
P/1 – E como é que foi o casamento de vocês, Jayme? O que você lembra da cerimônia, do dia do casamento, quais são suas lembranças?
R – Nós casamos na Igreja Santa Teresinha da Rua Maranhão. Foi no dia 16 de julho de 1955. Foi muito bem porque não tínhamos dinheiro pra festa, não fizemos festa. Fomos passar a lua de mel em Petrópolis, quatro dias em Petrópolis e cinco dias no Rio, ponto.
P/1 – E quando vocês voltaram onde vocês moram morar?
R – Morava no mesmo quarto que eu nasci, fui morar (risos).
P/1 – Ela foi morar com a sua família então?
R – Não. Meu pai não morava lá. Eu tinha aquela casa que era minha, que eu falei, que meu avô deixou para mim e minha irmã e depois a gente vendeu, mais tarde; inclusive deu uma parte pro meu pai, embora ele não tivesse direito legal de ter, nós demos pra ajudá-lo.
P/1 – Então vocês foram morar nessa casa, vocês dois.
R – Fomos. Reformamos a casa, fizemos uma pintura na casa. Não tinha nada. Eu me meti num negócio, em seguida, que foi mal, eu perdi tudo. Nós moramos durante três anos em cima de um colchão, a roupa toda dependurada.
P/1 – Logo depois de casar?
R – Depois de quatro anos.
P/1 – E o que foi esse negócio?
R – Eu e mais quatro advogados, cinco advogados, resolvemos montar uma fábrica de relógio (risos). Não preciso falar pra você o que é isso (risos). Era um sonho, fazer uma coisa nova, bonita, etc. Nós chegamos a fazer, mas a questão é que houve um erro técnico, tinha uma peça que era importada da Suíça, era muito bom pro clima da Europa, aqui no Brasil enferrujava logo. Perdemos todos os relógios e tivemos que pagar tudo. Aquela tragédia. Os bancos são muito gentis, você sabe, né? Eles são muito lenientes (risos), facilitam a vida de todo mundo.
P/1 – E depois disso como é que você se restruturou, Jayme?
R – Eu estava trabalhando já com meu primo, o João Brasil Vita, que foi vereador muitos anos. Ele me facultou essa possibilidade de trabalhar com ele, trabalhar com ele não é ser empregado dele, ele não ganhava nada, o trabalho que ele me dava eu tinha participação. Fiquei com ele oito anos e assim me recompus, pagamos todo mundo, construímos a casa, comprei o escritório, fui trabalhar depois no meu escritório.
P/1 – Você trabalhava com ele como advogado.
R – Como advogado, ele tinha escritório de advocacia. Como ele era político eu tinha que segurar as barras da política também, toda uma campanha política, etc.
P/1 – Vocês tiveram filhos?
R – Três filhas, mulheres.
P/1 – E como veio a notícia da primeira gravidez?
R – Esperada, né? (risos) Veio bem, veio bem. A Vera nasceu dia 23 de setembro de 1957. A Teresa Cristina nasceu no dia 14 de dezembro de 1959. Ana Cláudia nasceu dia 20 de fevereiro de 1964.
P/1 – Você acompanhou o nascimento delas, Jayme?
R – Fiquei na maternidade. Na primeira, naquele tempo, no mês de setembro chovia pra burro. Eu me molhei todo, fiquei preocupado e fiquei molhado a noite inteira (risos), ela nasceu de manhã.
P/1 – E você lembra da sensação de ver ela a primeira vez?
R – Lógico, lembro, lembro direitinho.
P/1 – Como é que foi?
R – Foi muito bom, uma sensação inusitada, né? Foram partos normais, as três. Minha esposa amamentou as três filhas. Ela fazia a roupa delas, não comprava, ela fazia.
P/1 – Ela costurava, a sua esposa.
R – Também, né? Ela fazia. Ela se formou em Dietética, então, assim, nós vivemos lá. Mudei depois, comprei um terreninho lá no Alto da Boa Vista em Santo Amaro, pra chegar lá era um drama, ia de bonde, trabalhava aqui no centro. Saía de lá de bonde até, você não tem ideia do que era pra chegar na minha casa eu tinha que andar dois quarteirões no barro (risos). Mas não tem importância, passou. Foi muito bom, foi ótimo!
P/1 – Como é que foi ser pai pra você, Jayme? O que mudou na sua vida? Como é que foi ser pai?
R – A responsabilidade de proporcionar a elas uma vida boa, uma educação razoável e tudo pra isso eu tinha que conquistar, foi o grande vácuo na minha vida, que eu trabalhei demais e não vi elas crescendo, quando eu abri os olhos elas estavam grandes. Trabalhei feito um burro, trabalhei no mundo inteiro.
P/1 – Qual que é essa história? Você mencionou que trabalhou na Itália, né? De que maneira, você trabalhava viajando? Você ficou um tempo morando.
R – Não morei na Itália, ia e voltava, ia e voltava. Inclusive da África, tudo. Dos Estados Unidos, do Japão.
P/1 – Isso já com seu próprio escritório?
R – É.
P/1 – Qual era o tipo de?
R – Advocacia?
P/1 – Isso. Empresarial, econômica. Depois, quando eu já estava com 40 anos, trabalhando inclusive muito na Europa ainda, eu resolvi fazer um mestrado e consegui fazer o mestrado na USP, quando abriu o mestrado. Eu fiz crédito no mestrado pra doutorado, tirei dez em tudo, matéria inteira, sempre. Propus um tema, estava falando hoje mesmo que eu fui advogado dos Correios, então tinha trabalhado com alguma coisa. E o sistema de Telecomunicações estava sendo implantado, o Ministério de Telecomunicações começou a ser implantado a partir de 1965, 66. E então eu resolvi fazer uma tese sobre isso. Seguraram a minha tese e faltando três meses recusaram. Uma questão política, né, porque queriam colocar outro no lugar. Eu tinha o fato de eu ter feito serviço na União Soviética, então o Jayme é isso, o Jayme é comunista. Uma coisa é você ter trabalhado profissionalmente, outra coisa é uma questão ideológica, certo? Mas não tem importância, depois eu refiz tudo, já bem idoso, fiz o curso de mestrado em Bioética, cidadania e ambiental.
P/1 – Você chegou a trabalhar nessa área de bioética e ambiental ou não?
R – Ambiental eu tenho um projeto. Eu não sei se é malfadado o dia que eu decidi, inventei disso, certo?
P/1 – Como é que foi que você tomou essa decisão? Quando você começou a se aproximar desse tema, como foi isso?
R – Sabe o que é? Freud talvez explique melhor. Vou te explicar o porquê. Eu fiquei marcado pela minha família ter que migrar da Itália por causa da destruição ambiental, fiquei marcado com isso. E depois o fato de eu ter trabalhado na África algum tempo, indo e voltando, e visto o que é isso, a destruição ambiental e o que provoca eu resolvi fazer dentro da cidade de São Paulo uma reserva. Comprei umas terras dentro da cidade, área toda destruída. Não chegava lá, eu fiz a estrada pra chegar, puxei a luz, puxei telefone, etc. E lá fiz, lá plantei 800 mil árvores das quais tem 600 mil e mantenho tudo isso até hoje. Uma parte do ar de São Paulo que você respira se deve a mim, porque dou ar pra 200 mil pessoas por dia (risos).
P/1 – Qual é essa região, Jayme?
R – Da Zona Sul, no bairro do Curucutu. Curucutu é uma palavra onomatopaica do guarani que significa coruja, o som da coruja, curucutu. Ao lado fica, a uns dois quilômetros da aldeia dos índios ali, no mesmo bairro. Fica lá. Hoje quem toca essa orquestra é a minha filha mais velha e continuo trabalhando, ainda hoje, pra poder pagar e manter aquilo, porque infelizmente nunca encontrei alguém, ou empresa, ou governo, que ajudasse.
P/1 – É a sua família, você e a sua família que mantêm integralmente?
R – Sim senhora. Sim senhora.
P/1 – Quando foi que você começou esse projeto, Jayme, que ano mais ou menos?
R – Eu comprei essa área nos anos 60, 65, 66. Depois parei, deixei como estava e comecei em 77, 78, pra começar a fazer uma casa e minha mulher ia toda semana lá com o jipe, e ela fez a casa.
P/1 – Ela fez a casa?
R – Ela fez a casa. Não, ela dirigiu a construção da casa e todo o resto.
P/1 – E como é administrar essa área toda?
R – Administrar essa área é muito complicado porque hoje é uma coisa. Eu fiz lá dentro uma série de estradas pra preservação ambiental ser garantida, como agora essa seca, se pegar fogo em alguma coisa lá pega fogo em tudo. Aliás, a minha filha mais velha que cuida disso, é a decepção dela. Ela fala: “Hoje eu avalio o que o senhor sofreu”, porque agora com essa seca que estamos em São Paulo ela ligou pra avisar: “Nós temos uma área assim, assim, assim, é uma Oscip, uma área ambiental”. O sujeito que atendeu ela, a polícia florestal, deu risada. Ela já foi várias vezes assaltada. Até os tratores roubaram, até os fios da eletricidade. Você pensa que adianta?
P/1 – É uma área aberta pra visitação?
R – Ela pode ser visitada, mas a gente não pode deixar a pessoa entrar dentro, se alguém jogar um fósforo lá pode queimar tudo. Então tem que ser visitada acompanhada. Pode, já foram lá várias escolas, tudo.
P/1 – Como é o nome da Oscip, Jayme?
R – Curucutu Parques Ambientais.
P/1 – E vocês recebem grupos, então, agendado?
R – Sim. Podemos.
P/1 – É totalmente administrada pela família então.
R – É.
P/1 – E esse mestrado na área ambiental você chegou a terminar então, conseguiu concluir.
R – Terminei. Escrevi auditoria jurídica pra sociedade (risos). Um tema meio romântico, né? Auditoria Jurídica para a Sociedade Democrática (risos). Eu posso dizer, eu fiz o projeto pro Presidente Itamar Franco a pedido de um amigo, que era ministro dele, sobre lei antitruste. Se eu tivesse feito, se tivessem aprovado meu projeto muitas bandalheiras teriam sido cortadas. E se tivesse aprovado auditoria jurídica, que auditoria jurídica vai além da auditoria do Tribunal de Contas, da União, do Estado, etc, que tudo isso é tudo conversa. Porque é vinculado à Política. Então não adianta, é tudo conversa mesmo. Você vê todo dia: “O Tribunal de Contas da União mandou ver o negócio da Pasadena”. E daí? Como advogado atuei muito na parte social. Eu que tive os primeiros casos de antitruste no Brasil, eu criei isso. Mesmo porque eu fazia, eu pertencia à ordem dos advogados nos Estados Unidos nessa seção. Eu aprendi e sei quais são os efeitos disso.
P/1 – Você se lembra de um caso marcante que você possa contar?
R – Posso. Não tem mistério. Foi o caso dos pneumáticos. As empresas fabricantes de pneumáticos no Brasil se reuniam e faziam um oligopólio, que são poucas empresas pra atuar no mercado, e davam o preço diferente pra uma, pra outra, só que instruída toda a rede. Com isso eles compraram toda a rede distribuidora que já existia, a preço de banana. Eu consegui provar isso, consegui ganhar o processo no Cade, foi um processo, o caso número sete. Ganhei isso pela intervenção direta do Presidente Geisel, que eu fui falar com ele. Falei: “Esse negócio não pode passar em branco”, e ele sabia. Eu refiz isso depois, a lei, a pedido do Presidente Itamar Franco. Fiz de graça, hein? Fiz de graça. As viagens que eu fui pra Brasília, as 12 viagens foram todas de graça. Não tinha carro, nem hotel, nem comida, fiz como cidadão, ponto. Aliás, depois não foi nem cidadania, né? (risos) Então, entendeu, eu fiz isso. Realmente. Saiu um artigo na revista Science agora muito interessante, esse último prêmio Nobel de Economia que é francês, ele é especializado, escreveu sobre oligopólios. E realmente ele dá um perfil do oligopólio, da tragédia que é pra economia mundial. Porque já não existe mais economia, hoje existe o mundo financeiro, só. O mundo financeiro é manobra, IPO, abre, vende, uma compra a outra, outra compra a outra, outra compra a outra. Então, tudo está na mão de meia dúzia, faz o que querem.
P/1 – Jayme, dessas viagens todas que você fez a trabalho eu queria saber se você viveu algum episódio, alguma história que tenha te marcado, uma experiência mesmo que tenha ficado na memória.
R – Foram várias, cada uma foi uma.
P/1 – Conta alguma coisa pra gente que tenha ficado.
R – O que me encantava muito era ir trabalhar no sul da França, que é muito bonito. O sul da França é muito bonito. Todas aquelas histórias do impressionismo francês é verdade, porque aquilo é igual, está no quadro. Trabalhei na Itália, vi coisas muito bonitas; trabalhei na Suíça com vários conhecidos meus.
P/1 – E nesse contato na África? Não sei em que países você chegou a ter contato.
R – Eu trabalhei no Congo, antigo Congo Belga, no Congo Francês, um lugar bom, na Costa do Marfim.
P/1 – Vários países.
R – Senegal, tudo de língua francesa. Foram muito bons. Mas eu aprendi uma coisa, os problemas nossos são os problemas deles: corrupção esbragada, corrupção à vontade, incontrolável, como aqui também é incontrolável.
P/1 – E tem um episódio que tenha te impressionado?
R – Tem, tem, eu vou contar, vou contar. Já passou, né? Nós tínhamos uma reunião marcada com o presidente do Gabão. Ele era baixinho, Bongo, marcou uma reunião e nós íamos embora à noite. Marcou uma reunião pras quatro horas. Ele estava um pouco apertado. Pra mostrar pra ele o que tínhamos feito e o que poderíamos fazer. Uma coisa, o palácio dele tem um leão, primeira vez que eu vi um leão de verdade, o resto de circo é outra coisa. Leão de verdade, quando ele ruge você treme com o rugido dele. Bom.
P/1 – Está preso?
R – É, está preso. Então, marcamos uma reunião pras quatro horas, chegamos lá três e meia; quatro e meia e o homem não vinha. Até que: “Escuta, vamos embora, né? O avião sai às sete”. Ele chega às quinze pras cinco: “Boa tarde. Desculpe, desculpe, eu estava com a minha namorada e esqueci” (risos).
P/1 – Ótimo (risos). Nenhuma formalidade.
R – Não tinha jeito. Ele falou isso com um amigo dele, que era amigo dele e esse amigo dele falou, eu falo agora (risos).
P/1 – Muito bom, muito bom (risos). E Jayme, você é avô?
R – Sou. Tenho cinco netos. Já três formadas, tenho uma advogada que tem o escritório dela, trabalha muito bem, vai casar o ano que vem; o outro é formado em Direito e Administração, mas trabalha só na Administração de Empresas do pai; uma neta que é romântica como o avô porque ela foi fazer Pedagogia, trabalha feito burra, não ganha nada; trabalha numa escola que custa uma fortuna pros pais e ela ganha mil e cem reais por mês, ponto. E os dois outros, um está fazendo Engenharia na São Carlos, Engenharia é muito difícil, rapaz extremamente estudioso. E a outra uma menina muito bonita, muito bonita, muito bonita, está fazendo Publicidade (risos), Cinema.
P/1 – E como é que foi ser avô? É diferente de ser pai?
R – É. É diferente.
P/1 – Por que?
R – É diferente porque é uma sensação diferente, você já está maduro, mais maduro na vida, está mais realizado. Você se sente também na obrigação que sendo avô ajudar no que for possível, isso eu assumi também com a minha mulher, né? É uma sensação diferente, a gente sempre fazia as festas juntos, vivemos juntos, etc.
P/1 – O que você faz atualmente, Jayme? Como é o seu cotidiano, seus interesses?
R – O meu cotidiano, hoje eu vivo sozinho, tenho uma empregada permanente. Moro na Padre João Manuel, ao lado do Piselli que eu não vou porque é muito caro (risos), tá certo? Bem em frente ao Maremonti que também é muito caro, em frente ao Dalva e Dito e ao Alex Atala. Então eu só olho e eu faço a minha comida aos fins de semana, certo? Eu vivo dessa forma. Faço um pouco de auditoria jurídica, auditoria jurídica é um problema muito sério porque se tivéssemos auditado não teriam acontecido todos esses grandes escândalos, de verdade. Só me dá trabalho, serviço pra fazer, quem é sério. Porque eles não querem um parecer encomendado, eles querem um parecer autêntico. Então eu tenho pouco serviço por causa disso. Escrevo muito, estou com dois livros quase prontos.
P/1 – O que você escreve? Me conta um pouco sobre esses trabalhos?
R – Ah vários. Sobre auditoria jurídica que eu lancei. Infelizmente a Ordem dos Advogados não aceita isso por causa de conflito de interesse. Tem muito advogado que trabalha por conflito de interesse e eles têm peso muito grande na Ordem, que eu não tenho pra Ordem aprovar a estruturação da auditoria jurídica. Mas um dia vai ser aprovado, eu sou um sonhador (risos).
P/1 – Escreve sobre o Direito mesmo?
R – Não, escrevo pra uma revista em Minas Gerais há 14 anos. Eu tenho quatro livros escritos, todos os temas possíveis, imaginários, que passem na cabeça eles publicam.
P/1 – Qual é essa revista?
R – Chama-se Mercado Comum. Na época de um determinado presidente da república, faz um pouco de tempo isso, ele disse: “Olha Jayme”, me ligou, “Você quer que eu publique isso mesmo? Você vai ser processado, hein?” (risos). Eu falei: “Não, pode publicar” (risos)
P/1 – E foi processado?
R – Não, não. Não fui.
P/1 – E os livros que você tem publicado são sobre o quê e quais os nomes?
R – São vários livros. Eu escrevi 18 livros.
P/1 – Muitos.
R – Então eu ponho livro, muitos nomes até, por exemplo, aproveitei o Paulo Dantas que vivia lá com o Monteiro Lobato e o Monteiro Lobato o ajudou, peguei um pedacinho de um livro dele.... esse daí também foi muito, muito, ele foi o reescritor do Euclides da Cunha, muito bons os livros dele são muito interessantes. Também tem um que eu lancei na Embrac esse livro, eu tenho até o DVD, chama-se “Colocando o i no pingo” (risos). Escrevi sobre os intelectuais franceses contemporâneos, são sete, escrevi “Carrefour para intelectuais franceses contemporâneos”. O último livro que eu escrevi foi com base nos julgamentos do Mensalão. Peguei um trecho e coloquei no título. Lancei numa galeria de artes de um amigo meu, falei assim: “Um livro desses, numa galeria de artes dessa contrasta porque é um livro provocativo numa galeria de gente muito top, e o negócio não é esse”. Mas ele falou: “Não, Jayme, a gente aceita”.
P/1 – Qual é o nome desse livro? Foi super recente então, né?
R – É. Você sabe que agora eu esqueci?
P/1 – É?
R – Eu coloquei um título tão sofisticado que eu esqueci.
P/1 – Que é difícil de lembrar.
R – Que é difícil de lembrar. Desculpe-me.
P/1 – Mas foi lançado recentemente, né, porque o mensalão é...
R – Foi, foi lançado. Se você me dar o endereço eu te mando um livro desses.
P/1 – Tá certo (risos).
R – Tá certo? Aliás, fiz um livro na Itália sobre provérbios numa cidade da Itália e o livro, fiz a apresentação do livro dentro do pátio de uma antiga igreja que virou propriedade do Governo. Um livro interessante. Eu mando os dois pra você. Porque o fim do livro está escrito, você vai ler, os ditados da cidade em português, tem português, italiano e calabrês, eu mando os dois pra você.
P/1 – Você conseguiria citar um provérbio pra gente agora?
R – Italiano?
P/1 – É.
R – Ti hanno pizzicato nel mezzo di un mucchio di paglia , quer dizer (risos) “Pegaram você no meio de um monte de palha e descobriram uma agulha”, que é você (risos).

P/1 – Muito bom (risos). Está certo, Jayme, eu vou encaminhar para o final da nossa conversa, acho que teria muito mais, é uma vida muito longa, não sei se tem alguma coisa.
R – Não faça que ela vire longa (risos).
P/1 – É uma coisa boa uma vida longa (risos). Queria saber se tem alguma coisa que não tenha perguntado e que você gostaria de deixar registrado.
R – Deixar registrado?
P/1 – É. Qualquer coisa.
R – Deixar registrado, sabe qual é? Eu acredito, apesar de tudo, no Brasil, isso eu quero deixar registrado. Eu amo esse país, senão eu já teria ido embora há muito tempo porque eu tive a oportunidade, eu fui advogado nos Estados Unidos, já estou aposentado lá, etc. Mas vai ser necessário que Deus esqueça do Brasil uma meia hora, que aconteça uma tragédia nesse país pra acontecer essa melhora desse país, isso precisa, mas precisa mesmo. Porque é impossível você aceitar o que está ocorrendo, não agora, já vem ocorrendo. Tanto que eu escrevi esse artigo há 12 anos e já vem numa sequência. Tudo em cima do dinheiro, tudo em cima do mercado, essa geração está poluída porque eles não pensam mais. A geração de hoje não pensa, ela e impulsionada pelo que é jogado na imprensa ou nos meios sociais, isso é lamentável, lamentável. Olha, hoje, hoje eu recebi uma carta. Hoje, recebi um e-mail do filho de um amigo meu na Argentina. A diferença dos cursos na Argentina do Brasil é visceral. Eles pensam. O menino de dez, 12 anos, escreveu a meu respeito pro professor num trabalho que eu fiquei emocionado e chorei. O que ele escreveu me interpretando, nem eu me interpreto assim. Um menino de 12 anos, 13 anos. Nós não temos gente capacitada pra isso. E na escola pública dão latim ainda. Quer dizer, pro cara que estuda latim, eu digo por mim que estudei sete anos de latim, eu levo uma vantagem muito grande sobre um monte de gente, inclusive profissionalmente. Não temos cultura clássica, não pensamos. Eu vejo amigos meus que os filhos estão estudando, por exemplo, Filosofia. O curso de Filosofia que dão, ah, é o crime, ele sai de lá sem saber nada! Sem saber na-da. Eles ensinaram o quê? Nada. O Brasil precisa criar juízo, precisa criar vergonha, o Brasil precisa criar vergonha. É incrível que nós tenhamos hoje, por exemplo, no Legislativo, um exemplo. O Legislativo, o que ganham os deputados, o que ganham de adicionais. Selo pra mandar correspondência, carros. Não é possível isso mais, nós estamos jogando dinheiro fora, meu Deus do céu. Dinheiro ou se ganha roubando ou se ganha trabalhando honestamente. Então estão pautando trabalhar roubando. É roubando que se faz isso, pra ter tudo, pra manter. E o Governo não vai ter mais dinheiro pra pagar. Eu estou aposentado, sabe quanto eu ganho por mês? Quanto eu ganho?
P/1 – Não sei.
R – Um mil e 700. Sabe quanto ganha um cara que se aposenta como deputado? É 30. É muito desigual, é muito desigual. Você vai dizer que eu sou revolucionário? Nesse ponto eu sou revolucionário. Tem que fazer uma revolução, se tiver que fazer que se faça, até cruenta, mas tem que parar com isso. Parar com isso, mas parar de verdade. E não foi nessa última campanha que eu vi isso. Nenhum dos dois, nenhum dos dois, um pior que o outro. Desculpe.
P/1 – Você quer fazer alguma pergunta? Não mesmo? Ficou uma coisa pra trás que eu queria só retomar, a questão da sua esposa. Faz muitos anos que ela faleceu?
R – Três e pouco.
P/1 – É recente então.
R – É.
P/1 – Desde então o senhor mora sozinho, é isso? Então vou encerrar, são duas perguntas finais.
R – Duas.
P/1 – A primeira é quais são seus sonhos.
R – Eu sonho ver meus netos bem, minhas filhas bem, sempre, viverem muito. Que as desigualdades nesse país sejam melhoradas. Sonho que nós tenhamos um Legislativo bom. Sonho que tenhamos um Judiciário de verdade, não de picaretagem, de fancaria. Sonho que exista uma distribuição de renda melhor. Sonho que nós tenhamos condições de pagar a dívida interna, que este país está quebrado, porque nós temos essas despesas que são criadas aí. Esses são meus sonhos. E espero que Deus me dê saúde, porque eu sou religioso, confesso, sou religioso. Sou católico apostólico romano, ponto.
P/1 – E olhando pra sua trajetória, Jayme, vou fazer mais duas então. Qual que você acha que foi o momento mais difícil, que você vê hoje como o momento mais difícil que você vivenciou e como você acha que você atravessou isso?
R – Quando?
P/1 – Na sua vida.
R – O falecimento da minha mulher e o falecimento da minha mãe. Foram dois momentos muito difíceis, um com 15 anos, que minha mãe morreu de repente, e outro o processo longo de dez meses da doença da minha mulher. Afinal de contas eu vivi 56 anos com ela, não é um dia.
P/1 – Uma vida.
R – Eu acho que ela foi uma heroína pra me aguentar (risos).
P/1 – E por fim, então, como é que foi contar a sua história?
R – Como é que foi contar a minha história?
P/1 – É, o que você achou dessa experiência aqui?
R – Ah, mas eu achei essa experiência foi ótima. Ela representa exatamente aquilo que eu sou. E não falei nada mais, nada menos daquilo que eu sou, espontânea, não tenho vergonha de ter nada, não tenho nada que me pese na consciência, de ter feito mal a alguém. Aliás, fiz mal uma vez, reparei, de verdade. Depois de dez anos me lembrei que tinha feito aquele mal e reparei, bem.
P/1 – Você quer contar essa história?
R – Não.
P/1 – Tudo bem, é só uma pergunta.
R – Tá certo? Reparei. E assim espero. Só faço o bem. A prova foi essa carta que eu recebi hoje, que esse menino fez na escola em Buenos Aires, de um menino que trabalhou comigo como estudante, que mora em Manaus, trouxe ele de Manaus, paguei curso pra ele, recente nós nos encontramos e o que ele fez? Ele veio aqui pra São Paulo comemorar o aniversário dele, tem 50 anos já, imagina (risos). E ele convidou vários colegas dele daquela época. Eu vi todos já homens, alguns grisalhos já, que foram meus colegas, meus estagiários. Todos eles gostando muito de mim, me agradecendo. Tenho um grande advogado aqui em São Paulo que, esse exagera em dizer pros outros e falar em público o que eu represento na vida dele. Eu sempre procurei fazer o bem pros outros, sobretudo pros jovens, sempre incentivar os jovens a ser éticos. A profissão, você tem dificuldades, você vai vencer, você pode vencer com ética. Agora, se você quiser seguir o caminho de fazer trambique você faz, que tem vários e você vai ganhar muito mais. E vai ganhar mais rápido. Aí você não vai comprar como eu, depois de sete anos de casado um Fusca, você vai comprar uma BMW. Tudo bem, é uma questão de opção, certo? É uma questão de foro íntimo, uma questão de perfil moral e perfil ético. É uma questão do que você pensa da sua vida e do que você pretenda da sua vida, isso é importante.
P/1 – Tá bom, Jayme, muito obrigada, viu?
R – Eu que agradeço.
P/1 – A gente agradece muito e encerra por aqui.
R – Tá bom.
FINAL DA ENTREVISTA