Museu da Pessoa

Uma troca defitiva

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria do Socorro Macedo

P/1 – Maria do Socorro, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?

R – Maria do Socorro Macedo, 11/03/66, Lavras, Fortaleza, Ceará.

P/1 – Seus pais são do Ceará também?

R – Minha mãe é de Pernambuco, mas é falecida. E o meu pai é do Ceará mas eu não sei de onde ele veio. Ele tá vivo.

P/1 – E por quê que vocês foram morar em Lavras?

R – Eu não sei, eu nasci em Lavras, agora porque eles foram morar lá eu não...

P/1 – Mas você morou quanto tempo lá?

R – Não sei, acho que poucos meses... Não sei.

P/1 – Onde você passou sua infância?

R – Olha, quando eu vim aqui pra São Paulo, eu ia fazer cinco anos. Então, passei entre São Paulo e Ceará, né?

P/1 – Com cinco anos você veio pra cá?

R – É, vim morar com o meu tio.

P/1 – Por quê que você saiu de lá e veio pra cá?

R – Ah, porque não sei (risos). Não sei. Acho que porque o meu pai largou a minha mãe eu tinha dois anos e seis meses, né? Aí, meu tio foi pra lá e me trouxe. Aí eu fiquei mais com os meus tios. Morei em Petrolina, por sinal meu tio voltou pra lá agora, e morei no Crato, né? Mas quando eu vim pra cá, então eu ia fazer cinco anos, voltei, e quando foi 74 voltei de volta, né? Pra São Paulo, não pra São Bernardo. Pra São Paulo, eu morava em São Paulo, na Catumbi, que é Belenzinho.

P/1 – Belenzinho.

R – É.

P/1 – Você morava com esse teu tio no Belenzinho?

R – Não, não, não. Aí eu já não morava mais com o meu tio. Minha mãe ficou lá no Norte, quando veio pra cá, já foi depois, né? Aí, eu morava numa pensão.

P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Eu tava com... De 14 pra 15 anos.

P/1 – Você morava sozinha?

R – Sozinha, porque eu quis sair da casa do meu tio.

P/1 – Por que?

R – Ah, porque eu queria ter minha vida. Eu queria ter minha vida.

P/1 – Mas ele maltratava você?

R – Não, não, tsc, tsc. É que eu arranjei um serviço e ele falou o seguinte, que eu tinha que escolher, ou serviço ou a casa dele. Só que na época eu não entendi o que ele quis falar. Aí, eu não respondi nada, peguei e saí pra trabalhar e não voltei mais, até hoje.

P/1 – Mas por quê? O quê que ele quis dizer?

R – Ah, ele queria falar o seguinte, que eu não tinha necessidade de trabalhar, que era pra mim estudar, pra mim ter a vida que os filhos dele tinham, que eu era tratada... Eu era filha, entendeu? Era filha não era filha do sangue – e do sangue porque era meu tio, né? – então era pra eu estudar e tudo. Ele achando que eu trabalhando tava tomando o lugar de uma pessoa que realmente precisava e eu não tava ainda na época de trabalhar. Mas, mesmo assim, eu fui.

P/1 – Você queria trabalhar?

R – É, queria trabalhar.

P/1 – Você foi trabalhar onde?

R – Numa firma chamada Lucena, uma firma de tecido, nem sei se ela ainda existe. E, daí, levei a minha vida, morar sozinha.

P/1 – Como é que era morar sozinha com 14 anos?

R – Péssimo. Ou você aprende a ser gente ou aprende a escola do mundo, entendeu? Como eu era mimada era meio difícil, mas encontrei muita gente boa, então quer dizer, que me ensinaram muito, muito. Então, eu só tenho que agradecer. Não deixaram eu entrar na droga, não deixaram eu me prostituir, não me deixaram... Me ensinaram... Não que não me deixaram, que ninguém proíbe ninguém, né, mas me ensinaram que não era bem aí o caminho, né? Então, até hoje eu moro sozinha.

P/1 – E você visitava seu tio, seus tios?

R – Sim, sim. Meu tio, aí ele faleceu. A minha mãe, eu sempre eu tava visitando a minha mãe. Depois que, aí, em 79... 79? Em 80 eu trouxe a minha mãe pra cá. Eu trouxe a minha mãe, porque ela tava doente pra ela fazer um tratamento. Ela ficou 16 anos aqui, comigo. Aí ela faleceu, em 94.

P/1 – Aí, do Cambuci, dessa pensão, você foi morar aonde?

R – Não, aí eu fui embora. Eu fui embora, aí fiquei um tempo lá, aí vim...

P/1 – Voltou pro Ceará?

R – É. Aí, eu vim e fiquei um tempo no outro meu tio, em Mauá. Depois eu vim, quando eu trouxe a minha mãe e quando eu trouxe a minha mãe eu já tava na pensão, né? Aí, trouxe a minha mãe, arranjei casa, fui morar com a minha mãe, alugar casa... Foi quando em 80 e alguma coisa, 82, 83, aí, eu vim pra São Bernardo.

P/1 – Por que São Bernardo?

R – Porque minha mãe fazia um tratamento e o médico dela era lá do Hospital das Clínicas e ele dava aula aqui no Hospital Anchieta. Eu esqueci o nome dele agora, não lembro... Luiz Scarpelli, eu acho que era isso. Não tenho bem a lembrança, não recordo bem o nome dele. Aí, eu trouxe a minha mãe, ele aconselhou trazer minha mãe pra cá. Aí, eu trouxe minha mãe pra cá. Conhecia umas pessoas no meu serviço, uma pessoa morava aqui, aí eu vim pra casa dela com a minha mãe até arranjar uma casa, né? Aí, depois, arranjei a casa e fui morar com a minha mãe sozinha de aluguel, em São Bernardo.

P/1 – Aonde?

R – Vizinho à casa do vereador Osvaldo Camargo, como é o nome dele lá, Nilzinha?

P/2 – Rua Araújo Viana.

R – Rua Araújo Viana.

P/1 – Que bairro?

R – Aqui em Silvina mesmo.

P/1 – Como é que era o Silvina antes, nessa época?

R – Ah, feinho (risos). Era feinho, não tinha muita coisa, era rua de pedra, tinha poucas coisas, né? Era feio. Hoje ele já cresceu mais um pouco, já tá melhor, né? Mas, agora referente aqui ao Núcleo, que é onde falam favela, nossa, era muito mato, tinha o rio que terminava sendo córrego e era um rio antes, tinha peixe, tinha tudo quando eu vim pra cá ainda tinha, né? Tinha horta que gostavam do japonês, de ir lá pegar as hortas lá dele, as folhas e ele morreu e foi embora e terminou tudo isso aqui, terminou casa, apartamento e tudo. Então melhorou, não tá cem por cento...

P/1 – Mas essa rua onde você morava era num... Não era favela. Era favela?

R – Não, não. Não, não era. Era uma casa normal, rua normal, de escritura e tudo, né?

P/2 – Um pessoal que paga IPTU, com escritura...

R – É, um bairro normal.

P/2 – Do lado da casa do vereador.

P/1 – E como é que você saiu de lá e veio morar no conjunto? Quando que você veio pro Conjunto Habitacional?

R – Não, o Conjunto Habitacional, os apartamentos, né? Tem o que? Tem três anos... Não, fez quatro anos, agora, em março.

P/2 – Três anos.

R – Fez três?

P/1 – Antes disso você morava aonde?

R – Eu morava no Núcleo mesmo, na favela.

P/1 – Como é que cê saiu dessa casa e foi parar na favela?

R – Porque eu sempre morei sozinha, então eu não... Aí, eu troquei, eu troquei a minha casa, que não era bem uma casa, tava construída atrás mas na frente ainda era de madeira. Aí, eu peguei e troquei com um menino, porque ele queria vender pra ir embora, por outras questões dele lá que não me interessa, né? Problema deles que não me interessa. Aí, a minha casa ele podia vender, né? Então, nós trocamos e tanto que ele vendeu pra outra pessoa, né? E eu tô lá e gosto muito.

P/1 – Mas, aí, você foi pra favela?

R – Não, não. Aí, já na favela. Então, eu tô nos apartamentos. Eu morava numa casa, que era na favela...

P/1 – Mas, aí, você trocou?

R – Aí, eu troquei pelo apartamento, que agora faz três anos que eu to no apartamento.

P/1 – Tem algum fato marcante desse período que você morava lá, que você lembra?

R – Ah, tem. Tem. Na favela tem. Era córrego... A minha casa era aqui, e tinha um córrego, e minha mãe era paralítica. Então, pra andar com a minha mãe, pra descer ali, não tinha condições, tinha que trazer a minha mãe ou no colo, ou numa cadeira, que a rua não era aberta. Então, era um córrego mesmo, era só uma beiradinha, tinha receita pra passar, era um sufoco. Nossa. Tanto que quando a minha mãe vinha paramédico, né, ver a minha mãe em casa, nossa, era o maior sufoco. Quando a minha mãe faleceu, com uns meses depois, minha mãe faleceu em novembro e, quando foi em março de 95, abriram a rua em frente à minha casa. Nossa, eu tava trabalhando, quando eu cheguei que vi aquilo, a rua aberta, nossa, foi a melhor coisa que parece que me aconteceu no momento, porque nós tava brigando muito com a prefeitura pra abrir, entendeu? Pra abrir, pra fazer rua, porque não tinha como a ambulância entrar, não tinha um... Não entrava carro, entendeu? Era um sufoco, era um sufoco. Então, quando abriu a rua, nossa, mesmo sendo barro, sendo tudo, mas a gente já sabia que tava melhorando, que a situação tava melhorando. E foi a coisa melhor que me aconteceu no momento, foi ver aquela rua aberta, porque lógico que eu não ia precisar mais passar pelo sufoco da minha mãe mas tinha mais pessoas que tava, que aquilo ali ia ajudar pessoas, ia pelo menos uma ambulância chegar na porta. Aí, foi bem marcante pra mim aquele dia, eu achei legal, sinal que tava crescendo, o povo tava crescendo e os dirigentes também tava começando a dar valor pras pessoas.

P/1 – Qual foi a principal transformação na sua vida, sair da favela e vir aqui pro prédio?

R – Se você me fazer a pergunta ao contrário eu te respondo. Qual a minha transformação de sair do bairro nobre pra ir pra favela. Se você me perguntar isso, eu te respondo.

P/1 – To perguntando, então.

R – Porque o jeito que eu fui criada, eu fui criada preconceituosa, eu tinha um monte de parafuso solto na cabeça. Então, na época eu trabalhei na Bombril e pedi a conta na Bombril, porque eu descobri que a maior parte das pessoas que trabalhavam na Bombril, principalmente ali no meu setor, morava na favela do DR e eu era preconceituosa, achava que não prestava, entendeu? Aí, eu pedi a conta do serviço, aí eu vim conhecer a favela, que eu conhecia por nome, mas conhecer lá dentro quando eu cortei o meu pé e que eu precisei vir morar dentro da favela. Aí, sim, aí eu aprendi a conhecer as pessoas, eu cresci mentalmente e aprendi a conhecer as pessoas, saber o que realmente é a vida, que nem todo mundo que mora na favela é ruim, é bandido. Não! É que tem pessoas que não têm condições de ter um lugar melhor pra morar. Então, nossa, isso é um aprendizado. E aprendi a fazer trabalho voluntário, aprendi a ajudar muito as pessoas, me ajudar também, né? Me ajudar também e conhecer um pouco melhor o mundo através do local que eu tô. Aí, quando eu fui pros prédios, pros apartamentos, lógico que a moradia é melhor, eu gosto de lá mesmo que eu não era contemplada pra ir mas como eu fiz a troca, né? Eu gosto de lá, me sinto muito bem, não vou dizer que eu me sinto assim com toda a vizinhança porque eu não conheço todo mundo, porque eles trabalham e eu também trabalho, né? Agora que eu tô, como quebrei o joelho e tô mais em casa, é que eu tô melhor, assim, tô conhecendo mais. Então, mas eu gosto muito do lugar que eu moro.

P/2 – Eu estou com dúvida e queria perguntar, você morava na parte que era urbanizada já, que era loteada. O que você pensava dos apartamentos ali, como é que você tinha a sua ideia, a sua imaginação do que seria ali?

R – Melhor, melhor. Porque...

P/2 – Você acha que era melhor do ali onde você tava, aquelas casas ali?

R – Sim, sim. Porque aonde hoje é local dos apartamentos, é como eu falei no início, era um córrego, era uma lama. Então, as pessoas moravam ali dentro de um córrego. Lógico que a maioria das pessoas também não se ajudava, como hoje não se ajudam, são muito acomodadas. Mas era horrível, ali era horrível. Vi muita enchente, vi muitas coisas feias ali, entendeu? Mas, com a chegada dos prédios, percebi que ia ser melhor, as pessoas não iam estar morando dentro do córrego, não estar com os ratos, ia ter um endereço, né? Que antes as pessoas não tinham endereço. Então, quando foi feito os prédios, eu falei “pronto, a coisa tá andando, as pessoas vão crescer e vai melhorar”, né? E ficou bonito, é que nem todo mundo ainda esqueceu... A pessoa tá nos prédios, mas não esqueceu aquela origem passada, né, que deveria dar mais um pouco de valor no local, pelo menos já tem o endereço certo, chega carta, chega as coisas, né? Só isso, dona Nilza? Quer saber se eu to feliz? Tô, mais uma vez.

P/1 – E tem alguma história, algum fato marcante que tenha acontecido aqui, no apartamento? Alguma coisa que você acha importante deixar registrada?

R – Tem. Quando eu consegui a troca, que eu consegui ir pra dentro. Nossa, foi a melhor coisa que me aconteceu naquele momento, porque eu me sinto segura, minhas coisas tá organizada, minha vida tá organizada, entendeu? Então, pra mim ali é o meu canto, é o meu lugar, eu me sinto muito bem ali. Então, é bem marcante pra mim quando foi efetuado e mais marcante quando a menina da Habitação chegou e falou que tinha aceito, né, que a Márcia chegou e falou que tinha sido aceito a minha troca. Nossa, isso aí foi como ter ganhado na Mega-Sena, então, pra mim, até agora só vitória. Só Vitória mesmo, espero melhorar bem mais, né, essa rua (risos).

P/1 – E você trabalha em que?

R – Eu sou cuidadora mas como eu caí em junho e quebrei...

P/1 – Cuidadora do que? De um...

R – De idosos, né?

P/1 – De uma casa específica?

R – Não, não.

P/2 – Trabalha por conta.

R – Trabalho assim: tem uma pessoa que tá precisando, aí eu vou pra acompanhar aquela pessoa, ser acompanhante daquela pessoa, né? Assim, doente. E eu quebrei o joelho, então não tô trabalhando, tô fazendo bico de manicure, eu trabalho de bico, que é no momento a única coisa que eu posso fazer.

P/1 – Quais são os seus sonhos hoje?

R – Nossa, vários. Vários, vários... Terminar um curso que eu comecei a fazer... Aí, não tenho como descrever, “é muitos”, “é muitos”. Voar, voar, entendeu? É muita coisa. Ver onde eu moro bem melhor, ver as pessoas melhores. É isso, o meu sonho é esse. Crescer, pegar asas, sabe? É isso.

P/1 – O quê que você achou da experiência de contar um pouquinho da sua história aqui?

R – Legal, porque alguém vai, é uma coisa que eu não contava e sei que alguém em outro lugar vai ver um pouco da minha história, que isso é só um pouco, tem muito mais, entendeu? Então isso é muito bom, achei importante, foi legal.

P/1 – Tá bom, então. Obrigada.

R – Obrigada eu.

P/1 – Tem alguma coisa que você queira deixar registrado, que a gente não falou?

R – Não.

P/2 – Seus meninos, não vai falar dos seus meninos?

R – Ah, dos meus filhos. Quatro filhos que eu tenho, esqueci deles.

P/2 – Mãe solteira, né? Tem os quatro filhos.

R – Sou mãe solteira, crio sozinha.

P/1 – Quando que você teve os filhos? É tudo do mesmo pai?

R – Ah, não, tsc, tsc, tsc. Ah, eu tenho o Raj, que é siamês (risos).

P/1 – Ah, gato!

R – Aí, eu tenho a Mariana, que já uma misturebinha. Aí, tenho a Raiane, que é filho do mesmo pai do Raj, e tenho o Ralf que é o sapeca. Eu não sei a história dos pais deles, entendeu? Então, não me deixou pensão, eu tenho que batalhar pra cuidar deles e estamos aí, que são os meus quatro filhos de pata, quatro gatos, duas meninas e dois meninos.

P/2 – Um já tem 18 anos, né, já entrou na velhice.

R – Um a dona Nilza – eles eram bem comportados – aí a Dona Nilza foi na minha casa, e pôs na cabeça dele que ele já tinha 18 anos, que ele já podia sair pra namorar, ele podia dar os rolês dele. No dia que ele saiu, ele comeu a minha mão, fui pegar, ele não gostou, me mordeu, “comeu” a minha mão. Agora ele só olha pra mim, alguém chega “vai pra porta, vai”, aí ele fica lá um tempo, depois ele volta pra dentro de casa. Mas a Nilza que pôs na cabeça dele que ele tem que ser rueiro. E a Raiane que é muito amiga dela, que tem uma poltrona que só ela senta, ela não deixa ninguém sentar, só a Nilza senta. E se outra pessoa senta, enquanto a pessoa não levanta, ela não para de passar a unha. E é só, pronto, eu falei dos meus quatro filhos (risos). E é só.

P/1 – Obrigada.

R – Obrigada eu.