Museu da Pessoa

Uma porta que se abre: de infrator a multiplicador do conhecimento

autoria: Museu da Pessoa personagem: Ronaldo Antônio Miguel Monteiro

Projeto: Memória CDI
Entrevistado por: Danilo Ferretti
Depoimento de: Ronaldo Antônio Miguel Monteiro
Local: Rio de Janeiro
Data: 22/09/2004
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Código: CDI_TM011
Transcrito por: Fabio Lyra
Revisado por: Juliane Roberta Santos Moreira

P/1 – Ronaldo, boa tarde! A gente poderia começar com você dizendo o seu nome completo, local e data de nascimento, por favor?

R – Ok, boa tarde Danilo. Meu nome é Ronaldo Antônio Miguel Monteiro. Nascido a 5 de abril de 1959, 45 anos. Resido em São Gonçalo, Rio de Janeiro, município de (Frigobor?). Praticamente sou nascido e criado ali em (Frigobor?), estudei naqueles colégios do entorno, Colégio Batista, Instituto de Educação, Plínio Leite, né? Colégio Industrial Henrique Lage e tenho como formação terceiro grau incompleto.

P/1 – Uhum.

R – Iniciei as faculdades de Educação Física, no Fundão, e Tecnólogo em Processamento de Dados no Lisboa. Essa é meu início de história, né?

P/1- Perfeito. Você poderia contar um pouco da sua trajetória até chegar no CDI [Centro de Democratização da Informática]?

R – Isso. Olha, nasci em uma família normal, numa família humilde, mas que me proporcionou o direito da educação. Então eu fiz primeiro grau, segundo grau, como todo jovem que sonha, ingressei numa faculdade pública federal, né, por concurso, e me formei em técnico em edificações no Henrique Lage antes de prestar o vestibular. Vim numa trajetória normal, ingressei nas forças armadas e formei-me oficial do exército. Fiquei dez anos como oficial do exército, casado, três filhas, dois netos hoje e há treze anos, atrás por desvio de conduta eu perdi o meu direito de oficialato, fui excluído, fui desligado do exército, preso e condenado a treze anos, ou melhor a vinte e oito anos de reclusão por crimes, entre os quais extorsão mediante sequestro. Foi esse crime que me levou ao cárcere, onde eu fiquei treze anos.

P/1 – Uhum.

R – Nesses treze anos, logo no início dessa minha caminhada no submundo, lá no submundo do mundo, vou dizer assim, eu tive algumas experiências, né? Entre elas, tive a experiência de iniciar um trabalho de alfabetização com internos, porque o sistema carcerário ele é entremeado de pessoas que não têm o conhecimento da escrita.

P/1 – Uhum.

R – Então eu trabalhei algum tempo com homens, jovens de vinte e dois, vinte e três anos e até homens idosos num processo de alfabetização e fomos agraciados com um projeto do governo federal que inseriu computadores no sistema penal. Computadores com fim próprio que era o Pró-Educar, um sistema voltado a educação através do computador, a educação formal, né? E programas de alfabetização de primeira série até o segundo grau, e com isso veio a ideia de nós tentarmos inserir a informática num sentido mais amplo, o que aconteceu em 1999, se eu muito me engano quando conhecemos o CDI, mas até então existia um controle muito grande do sistema penitenciário, na época era a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos, Direitos Humanos! Secretaria de Direitos Humanos que tinha o comando sobre o sistema penitenciário e houve uma parceria com o CDI e que entrou capacitando, né? Formando multiplicadores, dentre os quais eu fazia parte desse grupo. Eram alguns internos, para que a memória... Altamiro, Jean, Artur, no caso eu Ronaldo fiz o curso e dois ou três outros companheiros que, a memória às vezes falha um pouquinho, né? Então esses, ah, o Sandro (Noguê?), tinha mais um, um ou dois internos que fizeram o curso para capacitação e a partir daí começou um trabalho através da informática com o projeto CDI fazendo com que a exclusão digital deixasse de acontecer no meio de toda a população, incluindo os presidiários que estão sempre colocados, excluídos, né? Isso foi muito bom, porque não existia até então, nenhuma opção para o homem preso, principalmente para o homem preso que já tinha o mínimo de formação cultural, educacional, etc., não existia perspectiva. Nem se sonhava o homem poder usar o computador para conhecer a informática básica. A informática até então era só pro programa Pró-Educar. Começava a, e, i, o, u, bê-á-bá, ce-a-ka. E daí ia, primeiro e segundo grau e era o que nós tínhamos.

P/1 – Isso dentro da EIC [Escolas de Informática e Cidadania]?

R – Isso dentro do sistema.

P/1 – Ah, certo.

R – Era uma sala, que é montada pelo, na época me parece, pelo Senado. O Senado nesse projeto para educar, inseriu cinco máquinas, ou seis máquinas em cada unidade prisional para que fosse feito a alfabetização dos internos.

P/1 – Perfeito.

R – Né? E o homem não tinha perspectiva, o homem jogava bola, ficava nas suas celas. Cursos, alguns cursos pelo Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial] na época nós tínhamos, depois foi cortado e realmente não se tinha uma perspectiva diferente em cima de projetos, e com a chegada do CDI houve uma inversão de visão, embora uma precaução grande. Mas os homens começaram a procurar e se interessar pelo mundo da informática e começamos a ministrar os cursos básicos, o Windows, o Word, manutenção e montagem. Começou a gerar um despertamento nesses homens.

P/1 – Você entrou inicialmente como educando, como aluno da EIC? É isso?

R – É, veja bem, eu já era educador do sistema Pró-Educar.

P/1 – Na área de informática também?

R – Na área de informática. Então tinha o Pró-Educar que alguns companheiros que sabiam ler, escrever, já tinham primeiro, segundo grau, começamos a alfabetizar amigos através do computador, mas só tínhamos aquele acesso, Pró-Educar, o programa preparado, etc.

P/1 – Aham.

R – Com o CDI veio a informática de fato. Poder utilizar um PC para fins mil, né? Trabalhar com texto… Certo que nós não tínhamos, nós só utilizamos o programa Pró-Educar. E começou uma nova perspectiva, o que deu origem aos internos buscarem se unir e desenvolver alguma coisa que viria solucionar vários problemas, entre eles quais: a família, a integração com a família, outro, a oportunidade de iniciação pré-profissionalizante e por aí vai. Então alguns internos se reuniram com a perspectiva do CDI apoiar, desenvolvemos um projeto chamado Projeto Ressocialização, Conscientização e Cidadania, um projeto, uma chance, que de imediato foi abraçado pelo Rodrigo. Ele abraçou o projeto, nos deu a concessão de extensão da EIC Lemos Brito e nós fundamos duas EICs externas, né? Quer dizer, ficou um trabalho externo para família, em dois locais, um em São Gonçalo, outro no Engenho da Rainha e a EIC Lemos Brito atuando com o interno, depois tivemos a EIC Hélio Gomes que também é dentro do sistema penal, né? E com isso nós começamos a gerar cursos de informática para a família, proporcionando a família a oportunidade de estar periodicamente aos sábados com o seu ente querido que era encarcerado, interno.

P/1 – Então alguns internos eles ficavam de educadores pra...

R – Alguns internos eram educadores...

P/1 – Com essa EIC externo...

R – Isso. Não, na EIC externa não. Ainda não.

P/1 – Perfeito.

R – Nós formamos o primeiro grupo e fizemos um piloto com um ex-interno. O interno saiu e foi trabalhar, foi montar a EIC externa, né? No caso foi o Altamiro, e no Engenho da Rainha, a esposa de um interno. Nós a iniciamos e ela montou, desenvolveu, o trabalho. Quer dizer isso fez com que a família periodicamente estivesse visitando o seu ente querido. Então nós começamos a fortalecer o laço de família. A mãe ia fazer informática, o filho tinha uma outra atividade, o filho fazia informática, a mãe tinha outra atividade. E com isso nós começamos um trabalho que gerou um interesse no sistema carcerário, e nós chegamos a formar em uma turma, um período, setenta e dois familiares na área de informática, culinária, gestão, pra elas poderem gerenciar os trabalhinhos que elas aprenderam e isso foi uma coisa de grande valia pra nós naquela época e teve continuidade hoje, procede, né?

P/1 – Perfeito. Voltando um pouquinho na época que você teve contato com o CDI, como é que foi a seleção, dentro do Lemos Brito, a seleção dos alunos? Como eram selecionados os alunos da EIC? Quais eram os critérios e quem fazia essa seleção?

R – Olha, responsável dentro de uma unidade prisional é a Seção de Educação.

P/1 – Certo.

R – A Seção de Educação que é um dos braços do diretor da unidade prisional, é quem faz toda a seleção, todo o trânsito do público interno. Existe um funcionário, que é o chefe da Seção de Educação, que trabalha em conjunto com outros, com o Chefe de Disciplina, Chefe de Segurança. Então é a equipe da administração do diretor da unidade. Ele fazem as seleções e etc. A primeira turma de multiplicadores, foi selecionado os educadores do Pró-Educar que já tinham um contato com o computador, com a informática. Então esses alunos do Pró-Educar, ou esses educadores do Pró-Educar, que já eram internos com faxina laborativa. Faxina laborativa dá ao interno, cada três dias trabalhado, um dia de redução de pena, então todos nós que trabalhamos, nós tínhamos a redução de pena por trabalho.

P/1 – Perfeito.

R – Então esses internos foram os primeiros que fizeram o curso com os educadores do CDI, que seriam futuramente os multiplicadores, né? E a partir daí nós começamos a procurar os companheiros internos, a determinação do Chefe da Seção de Educação, por formação educacional, aquele que tinha o maior nível educacional, porque seriam os nossos futuros multiplicadores, porque é uma rotatividade muito grande. Então nós começamos a procurar aqueles amigos que tinham uma responsabilidade, tinha pelos menos o primeiro grau completo, tinha uma facilidade de compreensão maior, porque seriam os futuros educadores, e foi o que aconteceu. Começamos a formar primeiro esses companheiros, né? Claro que o número era um pouquinho curto e aí nós completávamos as turmas com outros voluntários mesmo, mesmo pessoas com pouquíssima formação educacional, com primeira segunda série, porque pra informática não tem barreira e nós começamos e até hoje a coisa funciona assim só que num sistema muito mais veloz. Hoje existem filas para fazer o curso de informática de mais de cinquenta, sessenta homens.

P/1 – Perfeito.

R – Né? Além de nós estarmos formando duas, três turmas por ano, em média de cinquenta alunos. Três turmas por ano em média cada turma cinquenta alunos. Há um rodízio e isso...

P/1 – E na época foi difícil encontrar, convencer os colegas

a participarem ou já tinha uma demanda, um interesse dos próprios internos a participarem?

R – Ah, no início, você tinha mais as pessoas esclarecidas. Porque é difícil para um interno ter o entendimento que ele ter o conhecimento de informática vai ser útil para ele, visto que ele tem vinte anos de pena pra cumprir e vai fazer um curso por 6 meses e não terá mais acesso ao computador. Então realmente é um pouquinho difícil. Isso foi invertido com a execução do projeto, porque o próprio homem passou a ter interesse, porque o filho dele fazia informática e passou a falar uma linguagem que ele não conhecia, né? Então nós passamos a trabalhar com várias crianças e os pais passaram a ter interesse para ter a mesma linguagem, o que foi muito incrementado também pela informática nas escolas. Porque de 1999, 2000 pra cá que as escolas passaram a estar realmente com um trabalho assíduo, acentuado de computação, né? E as crianças chegam: “ah papai tive aula de computador”, e o pai não conhecia nada, então houve um despertamento pra poder estreitar esse laço pai-filho. Então os companheiros têm procurado muito as escolas, né, dentro do sistema penal, que tem, nós temos escola até o segundo grau, principalmente no complexo Frei Caneca, então também tem informática. As seções da unidade prisional, praticamente todas as seções tem um computadorzinho, muitos deles com

a mão do CDI. As máquinas um pouquinho já obsoletas tal, vieram atender, até mesmo as máquinas do Pró-Educar passaram a atender as seções do CDI, fez, completou a EIC com computadores do CDI, então liberou as máquinas que são patrimônio da unidade e das seções. E um dos requisitos pro homem ter uma vaga de inserção é ter o conhecimento de informática, né? E vaga pra trabalhar no sistema penal é rara, então todos passaram a ter o interesse de fazer o curso de informática. Hoje tem fila, tem que esperar.

P/1 – Tem que esperar. E como é integrada a atuação da EIC nesses vários outros cursos que também, nessas outras atividades que também são oferecidas ao interno? Você falou, tem o segundo grau que pode ser feito, tem alguma integração na atividade do CDI com esses outros? Ou é algo mais...

R – Olha só, não existe obrigatoriamente uma integração, mas existe uma condução que é de se compreender, por exemplo, se tiver um companheiro, que queira fazer curso de informática e não tem a sua formação completa, secular, então nós orientamos que ele se matricule num colégio pra ter a prioridade da vaga, por quê? Pra que o homem saia com uma formação secular, que é o primeiro grau, segundo grau, uma vez que tá oferecido a ele e também com as noções de informática, mas não há uma obrigatoriedade do homem estar participando do colégio, do teatro, pra fazer a informática, uma coisa completa a outra e o homem entende que é importante, né? Nós temos companheiros lá que faziam teatro, então: “não meu negócio é só teatro.” Quando eles viram a perspectiva de ajudarem a equipe do teatro, digitando texto de peça, modificando texto de peça, ele passaram a procurar a informática pra poder utilizar a informática na atividade que eles gostam. Aconteceu também na música, festival de música, então muitos companheiros faziam música e quem conhecia informática tinha uma vaguinha lá, digitava sua música já mandava a música bonitinha, digitada. Festival de poesia que é realizado pela Pastoral Penal, então a poesia tinha que ser datilografada ou impressa. Então os homens passaram a querer fazer com medo da sua poesia, a sua ideia ser copiada por outros, então isso vai gerando realmente essa integração. Há o interesse e homens que fazem a informática estão atuando em outras áreas culturais, sociais etc.

P/1 – É, uma dúvida, uma questão. Como trabalha o CDI, ele foca muito a sua proposta pedagógica na questão da cidadania. Como é trabalhado isso dentro de uma situação carcerária e que os direitos das pessoas estão suspensos?

R – Cerceados.



P/1 – Exatamente. Como se trabalha isso?

R – Olha só, o que acontece é que essa palavra cidadania, ela é nova, né? Não sei você que é um homem de comunicação, mas você não ouvia falar em cidadania de cinco anos pra trás, você não ouvia “pô”. Cidadania não. Eu digo pra você, eu fui oficial do exército, estudei em faculdade, duas faculdades, e tenho o segundo grau completo, tinha uma abertura dentro do meio social razoável por minha função e profissão na época, e quando eu vi pela primeira vez a palavra cidadania, eu saí procurando, não achei. Você entendeu? Sabia o que era cidadão, cidadão é um homem que faz parte do contexto social, entende? Mas o termo cidadania como é apresentado hoje eu não entendia e passei a procurar. O que que é isso, cidadania? Como é isso? E passei a entender que é a essência de você conhecer e reivindicar seus direitos, como também conhecer e cumprir seus deveres, né? Então é

bem simples, mas é uma coisa que não é conhecida, e para o homem, ele entende que o preso, o encarcerado, o interno, ele tem o dever de estar em respeito ao funcionário, de estar em respeito às leis, de estar em respeito a isso e aquilo, ele tem o dever de estar no horário “x” em tal lugar, mas ele não sabe que aquilo faz parte de um contexto de cidadania. Ele tem também os direitos, o direito da visita, se não tiver nenhuma transgressão disciplinar, ele tem o direito da progressão, do advogado, do atendimento técnico, social, psicológico, etc. E quando você tem essa ferramenta na mão e pode falar com a mesma linguagem dos companheiros, isso dentro de um processo pedagógico, tudo se torna fácil.

P/1 – Uhum.

R – Então você fala pro homem, explica o que é, dizendo pra ele que algumas daquelas coisas ele pode ser que ele não consiga realizar naquele momento, mas futuramente ele pode trabalhar aquilo. Você diz pro homem, quando fala de cidadania, que o filho dele tem o direito a estudar e quando alguém diz que não tem uma vaga no sistema público de ensino, alguém está ludibriando a ele, ele tem o direito de procurar a assistente social, a psicóloga da unidade, dizer: “olha, meu filho está sem escola” e ela vai tomar as providência cabíveis pra proporcionar àquela criança uma vaga numa escola da rede pública, e o que passou a acontecer conosco, uma vez o homem sabendo, conhecendo os direitos e os deveres, não só dele, mas do cidadão, do homem, do ser humano, através da própria, dos direitos do homem, né? Ele passa a ter um novo campo, um novo horizonte de vida, e isso passou a acontecer conosco, com o sistema pedagógico com o sistema pedagógico apresentado e orientado pelo CDI.

P/1 – Você poderia da um exemplo, Ronaldo, das atividades que vocês como educadores desenvolviam dentro da EIC do Lemos Brito? Dentro dessa...

R – É, tá, eu acho que eu não... eu não entendi bem, como assim Danilo? Das atividades?

P/1 – Como que você trabalha essa questão, como era um dia de curso, não é? Um dia de aula, atividade em si mesmo, no dia-a-dia, inscrição e tal, chegavam os internos...

R – Isso, eu entendi, eu entendi. Olha só, vou iniciar o processo, existe a inscrição de números homens pra fazer o curso, antigamente era um pouquinho diferente, mas com a nova pedagogia CDI a coisa tomou uma nova forma. Então antes, nós exigíamos do companheiro o curso de datilografia, nós tínhamos máquinas, cedidas por instituições, igrejas etc., e montamos também

um curso de datilografia, porque o homem chegava no computador e realmente tornava-se difícil o cara desenvolver alguma coisa. Então nós cobrávamos a datilografia, depois um curso normal de Windows, depois o Word e assim sucessivamente. E como era feito o processo de seleção? O homem procurava a Seção de Educação ou um dos educadores pra dar o nome pra entrar na relação. Quando nós levantávamos o número de turmas e vagas, né, era diretamente proporcional aos educadores, porque nós educadores também tínhamos outras atividades, né? Então o número de turmas que poderíamos desenvolver, tantas turmas, tantos alunos por turma, temos oitenta vagas. Fazíamos a convocação desses homens, uma pequena entrevistazinha, somente pra valorizar a entrada do homem, pro homem se sentir realmente fazendo parte do sistema e uma vez o homem distribuído pra turmas dentro do horário que ele podia, porque uns estudam de manhã, outros estudam a tarde, outros tinham futebol, outros têm, né, algumas atividades. Distribuímos os homens por turma. Fazemos uma relação, essa relação é aprovada pela administração da unidade, porque é cobrado da unidade, da administração, da direção, o comportamento do interno, visto que o curso, também, ele dá remição de pena. O homem entra, faz o curso, aquele período ele tem três dias trabalhado, no que a lei diz de um horário e tem um dia, mesmo simplesmente, simplesmente entre aspas, né, tendo um curso através da EIC, não só com trabalho.

P/1 – Eu sei, uhum.

R – Então o homem passa por uma triagem e uma vez não tendo nenhuma objeção ele é matriculado. Essa relação passa pelo crivo do Chefe de Segurança, que entrega o controle, né? E numa cadeia fechada, como Hélio Gomes, seguem senhas pro homem ser tirado da cela e participar do curso. Segue uma senha.

P/1 – Perfeito.

R – Com o nome, o horário e o destino do homem. O homem é retirado pelo agente de segurança penitenciária, ele faz o curso, saindo ele é de novo deslocado a sua célula. Numa cadeia aberta como Lemos Brito, uma penitenciária, o homem ele já fica solto no interior, na cadeia, a partir de um horário, né? Ele só é confinado num determinado horário pra pernoite etc. Durante o dia ele tem o livre acesso às dependência internas da unidade, desde que esteja com o comportamento, desde que a cadeia esteja disciplinada, etc. Então o homem, ele simplesmente

chega no portão, né, de controle, porque a nossa EIC é fora do coletivo e se identifica e o agente tem a relação. Normalmente o educador, ele anuncia a cada dez minutos antes da turma e fica aguardando os seus alunos no portão de passagem. É uma exigência da segurança da unidade. O homem entra na sala sem problemas. E as turmas, as aulas se dão diariamente de segunda a sexta, diferente de uma EIC normal, porque lá nós temos essa disponibilidade, pra nós é importante, visto que se você tiver aula todo dia, em vez de você levar 6 meses pra ministrar um curso, você ministra um curso com três meses. Por aí vai. Então pode ser que tenha mudado, tá, porque sempre há mudança. Então, até a minha estada lá, até março, eu formei a última turma.

P/1 – Março?

R – Desse ano.

P/1 – Desse ano. Perfeito.

R – Eu sai dia 9 de março. Então, formei a minha última turma, acho que foi em fevereiro, porque se estenderam pra formar em dezembro, mas com os problemas dos internos, é normal, a gente teve aulas suspensas, e eu completei ali, janeiro, fevereiro. Quer dizer, então nós tínhamos aulas todos os dias, né? Exceto quinta-feira que tinha um programa especial pra alunos que já tinham formação básica, faziam um pacote de Corel Draw, Photo Draw, alguns programas softwares mais avançados, então era às quintas-feiras. Então o homem entrava, assistia a aula que é na parte da manhã, nós fazíamos o controle, isso aí. Normalmente, tínhamos horário disponível para treinamento e orientação, né? Por exemplo, vamos ter um trabalho de colégio, então quando tinha um horário vago a gente abria, disponibilizava pro homem. Então o horário e o mecanismo do fluxo de homem é assim. Você faz a seleção, entrevista, faz a documentação, as fichas de presença, entrega na seção de direito, né, que

controla o fluxo de internos. Os internos são cadastrados na seção de disciplina, quando os internos estão fazendo o curso, o homem é cadastrado na classificação porque depois do curso vai pro currículo pra ficha disciplinar do homem e tudo isso gera benefício pro homem porque serve na avaliação de um juiz, serve pra uma liberdade, pra uma progressão de regime.

P/1 – É Ronaldo, como você explica o que que é o CISC, né? O Centro de Integração, é...

R – Social, Cultural.

P/1 – Social, Cultural. É.

R – Bom, como eu falei, como o braço.

P/1 – Braço?

R – É, um braço da EIC Lemos Brito, o CISC foi fundado para atender, primeiro; a um interno egresso que estava recentemente saindo. Então ele sai, ele tem como um ponto de referência um Centro Cultural que até ampara aqueles que fizeram o curso, tem condições de ministrar uma aula de informática e isso aconteceu com o Altamiro que hoje é o educador,

é o coordenador da EIC Maracanã.



P/1 – Uhum.

R – O (Lorian?) que está numa empresa de nível internacional. Hoje, por exemplo, o Pólo de Gás do Rio de Janeiro, ele é uma das pessoas que estão sendo treinadas pela Alemanha e etc., tá coordenando essa parte ali de informática, tudo a base de computadores, então ele está muito bem. Nós tivemos o (Emezer?) que também passou pelo… saiu da unidade, na outra semana estava com turma e depois desenvolveu um período ali de seis meses arrumou um emprego melhor. Então uma das finalidades é isso, ter como uma oportunidade do homem que passou pela EIC já dá aula, uma oportunidade pelo menos começar a respirar e olhar o que está ao seu redor. Outro, atender a comunidade local, no caso Cisc era minha comunidade de origem, fui nascido e criado, e a ideia era formar novos Ciscs, né? Só que é muito difícil, porque é preciso ter alguém pra tá dando suporte, fazendo a divulgação, granjeando parceiros pra custear esses projetos que são de grande valia. E eu acredito que “Papai-do-céu” me colocou aqui fora... Nós já estamos com pretensão de estar abrindo alguma coisa até o final do ano, já têm pessoas que querem, tão pedindo, e têm amigos pra ajudar. Então o Cisc atende o interno saindo, a comunidade e também a filhos de internos, mas que moram na região entorno, que aconteceu comigo ontem. Ontem eu recebi uma ligação da esposa de um interno que está no sistema, tem três filhas pedindo três vagas pra informática, que fica difícil deslocar aqui pro Rio pras crianças estudar, e vai estar, essa nova turma que nós abrimos, essas crianças, filhos de presidiários, vão estar, de internos, eu tenho alguns lá também. Então essa é o funcionamento, só que o Cisc não funciona só como uma EIC.

P/1 – É isso que eu ia...

R – Ele é uma esfera, é um centro cultural que tem outras atividades, tem esporte, capoeira tem teatro, tem reforço escolar, tem alfabetização pra adultos, e engraçado que Deus colocou no nosso coração, eu até fiz o comentário e foi totalmente abraçado pelo CDI, que saiu o programa Brasil Alfabetizado do Governo Federal e nós conseguimos montar uma turma, eu tenho vinte e cinco adultos que estão fazendo alfabetização. Só que nós não estamos fazendo um trabalho de alfabetização comum, eles têm a alfabetização e de quinze em quinze dias eles têm acesso a informática e aquilo que eles fazem na sala nós executamos no computador que torna-se mais fácil e tá sendo um encanto, eles estão conhecendo o mundo da informática, né? E isso foi apresentado na Secretaria de Educação em São Gonçalo, muito bem recebido também, e para os nossos alunos tem sido maravilhoso. Não só eles, porque eles levam netos de quatro, cinco anos, e os netinhos vão nos computadores a noite e isso tem sido também de grande valia na comunidade. Então nós temos outros cursos, temos parceria, temos um pólo de DST [Doenças Sexualmente Transmissíveis], que compõem um grupo de ONGs em São Gonçalo, onde nós ministramos a orientação de doenças sexualmente transmissíveis, tem um agente de saúde

que compõe o pólo, quer dizer, nós estamos realmente atuando na comunidade e isso graças a iniciação do Rodrigo que aprovou a EIC. Foi o pontapé inicial a aprovação da extensão da EIC Lemos Brito através do Cisc e hoje ele é uma EIC reconhecido pelo CDI. Estão hoje com em torno de cento e trinta alunos de informática e outras atividades.

P/1 – O Cisc nasceu da EIC, é isso? Dessa extensão...

R – Através da EIC Lemos Brito.

P/1 – Através da EIC. E aí a partir daí que foi se criando...

R – Criando corpo e continua criando corpo

P/1 – Toda a estrutura da instituição. E como é esse tal dos recursos, Ronaldo? Como vocês levantam os recursos pra se manter? Porque essa é uma das características...



R – É, olha só. Nós não temos hoje uma fonte de recursos que sustente o sistema Cisc. Nós temos amigos que chamamos de patronos ou parceiros, né? Que são profissionais, são pessoas que tomam conhecimento e ligam. Nós tivemos uma matéria na revista Época [PAUSA], nós tivemos uma matéria na revista Época feita pelo CDI e a partir dessa matéria ser apresentada [PAUSA]...

P/1 – Podemos continuar.

R – Então nós temos os patronos, os parceiros, que tomam conhecimento e ligam: “ah vou ajudar, como é que pode ajudar?” Eu digo:

“olha você pode ter um aluno que vai ser seu afilhado.”

P/1 – Perfeito.

R – Tá. Porque eu não faço limite lá no Cisc, né? Abriu a turma, chegou alguém, nós temos uma taxa mínima que é autorizada pelo CDI. Nós cobramos dez reais por mês. Mais de cem, hoje eu tenho de informática oitenta e poucos alunos, eu tenho dezessete que podem arcar. E aí você vê as despesas são dez vezes mais isso, não é? Principalmente ajuda de passagem pros educadores, né? Que são da comunidade mas a gente dá uma ajuda de passagem, uma [____] e etc. Então eu tenho dezessete alunos, dos oitenta e alguns de informática, sempre tem uma evasãozinha, que podem e arcam, alguns são inadimplentes, passam um tempo, então tem essa média ali, e outros, eu tenho mais uns vinte, vinte e cinco em média que são patronos que também é difícil, que chega abraçar: “não vou ficar com dez alunos, vou ficar com cinco.” E nós estamos trabalhando com isso através de um

projeto que o CDI já tomou conhecimento. Nós temos uma oficina de papel reciclado artesanal na Lemos Brito que facilmente pode nos fornecer o papel artesanal e nós fazermos as edições de cartões, de cartão de Natal, alguma coisa assim na área de informática que pode granjear um retorno, recurso, não só pra ajudar a EIC como também para poder ajudar aqueles que vão estar “linkados” lá com a EIC mas já como pessoas produzindo e tendo uma captação de recursos pra eles também. E o CDI já deu o aval e nós vamos estar já mandando projetinho que é coisa pouca, nós precisamos mais de uma máquina e impressora que possa trabalhar com papel artesanal, tá certo? E essa divulgação que vocês vão fazer, cartão de Natal e papel artesanal, cartão de visita e todo tipo de material impresso em papel reciclado artesanal, né? Só papel reciclado, papel reciclado tem o industrializado. O nosso é artesanal que nós temos feito. Então o nosso recurso nós viabilizamos assim, temos hoje por exemplo nas nossas despesas os recursos através dos patronos e dos usuários que

reembolsam os dez reais, a taxa simbólica, mais ou menos 30% da nossa despesas, que nós cobrimos. Os outros 70% Deus tem provido através da diretora, né? E pessoas próximas que aí a gente recorre na hora pra poder sanar.

P/1 – Tem alguma relação da Cisc com a instituição, com o presídio e com a vara de segurança?

R – Olha só, o Cisc continua sendo uma extensão do projeto Ressocialização, Conscientização e Cidadania. Embora tenha a CNPJ, toda a documentação e etc., até pelo contrário, hoje quem dá a sustentação ao Projeto Uma Chance é o Cisc, porque na realidade o projeto criou uma ONG, onde na realidade a ONG executa projetos, né? Projeto gerou a ONG, e hoje a ONG é totalmente uma pessoa jurídica, dá a legalidade ao projeto que continua. Nós damos os recibos nas vendas de papel através da ONG que foi criada. Uma coisa até diferente.

P/1 – Diferente. É, você citou, você fez muita menção ao fato do... Ronaldo, o que, qual o sentido, qual o significado do Cisc pra sua trajetória pessoal?

R – Ok. Eu falei Danilo, ainda pouco que o Cisc tem sido uma porta pra vários companheiros que têm saído que procuraram se preparar pra sair, né? E hoje tenho o CISC como uma pedra, como um porto, né? Nós temos companheiros que fizeram curso de música, internos que fizeram curso de música. Então se sair e quiser montar uma escolinha de música, nós temos uma instituição, o Cisc, onde ele pode ali formar vinte, trinta alunos. Essa semana nós começamos o curso de inglês, um amigo que não é do sistema, mas chegou: “poxa, eu queria dar uma aula de inglês pra criança e vai me ajudar.” E ele já tem uma turminha de inglês, tá abençoando a eles e tá sendo também gratificado com isso. Então é um porto seguro o Cisc. No meu caso, a minha decadência se deu por uma escolha errada e eu enveredei pelo crime, sequestro, tráfico e etc. E com isso eu destruí vidas, né? Eu fui um mau exemplo pra muitas crianças que me conheciam e pra pais que conhecia, e hoje o Cisc tem me auxiliado a reverter essa imagem. Hoje eu tô gerando vida através do Cisc. Nós temos lá em torno de setenta crianças, sessenta crianças, que o que se fala elas ouvem e procuram aplicar, né? Existia quando eu cheguei, dia 9 de março, entre as duas comunidades uma rivalidade muito grande e quando todos procuraram pra fazer aula no Cisc, quando entraram e se depararam numa sala, quando eu notei eu falei o que que houve? E tomei conhecimento e falei: “olha, vocês são todos meus amigos?” “sou seu amigo.” “então quem é meu amigo tem que ser amigo do meu amigo.” E hoje eles vivem, tem uma harmonia. Nós vamos estar com quarenta no festival de cinema aqui e vêm todos juntos, entram junto na sala, não tem mais a rivalidade que antes tinha lá na rua, um apedrejando o outro, aquela problemática, eles ouvem. Então estou podendo realizar um projeto de vida através do Cisc e foi igual com os outros companheiros. Eu recebi semana passada de (Urian?) que foi dar uma aula de manutenção e na turma de manutenção ele encontrou vários alunos que há dois anos foram alunos da iniciação em informática dele, né? Então a gente vê aí a realização dele, de encontrar alunos do básico hoje fazendo manutenção que é uma nova etapa. O Cisc tem sido isso pra mim e pra outros companheiros, uma realização e uma porta aberta. Através do Cisc várias pessoas têm nos procurado e as portas têm se aberto pra gente, têm se aberto pra nós. Então o Cisc tem sido isso na minha vida.

P/1 – E hoje em dia, como é que tá? O que você tem de projeção pro futuro dentre os Ciscs?

R – Olha só. Eu fui ontem a uma reunião, tô sempre contando exemplos de vida porque é o que está acontecendo, né? Então o Ronaldo foi um mês, toda mídia como sequestrador, como monstro, como etc. Eu tenho falado em reuniões de empresários, eu tenho apresentado projetos como ontem no Sest [Serviço Social do Transporte] e Senat [Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte] que vai ser inaugurado amanhã com a presença da governadora, o secretário de segurança, eu vou estar presente lá, não é isso? E vou estar presente com a participação do Cisc, o Cisc vai estar presente lá, né? Nós vamos tentar montar alguma coisa pra apresentar lá no Sest Senat, através do Cisc nós cadastramos mais de duzentas famílias pra usufruírem, dentro daquilo que é o programa e o estatuto do Sest Senat que é voltado para um público que são homens do Ministério do Transporte, mas na responsabilidade social eles estão trabalhando pra comunidade e o Cisc que cadastrou mais de duzentas famílias pra poder eles estarem usufruindo também desse quinhão.

P/1 – Uhum.

R – Então, quer dizer, hoje o Cisc tem sido isso pra mim, minha vida. Hoje a minha vida está voltada a ele, uma vida junto à sociedade, um homem reconhecido, realmente reintegrado, ressocializado, e o Cisc tem me dado essa transparência.

P/1 – Perfeito. Teve algo Ronaldo, que você queria, algo que você queria falar, ou um exemplo que você queira dar que não foi perguntado? Você queria adicionar alguma coisa?

R – É, eu de pelo menos deixar como registro e se for possível fazer parte do material, seria bom. Cada EIC tem a sua realidade e o Cisc ele tem a sua característica como as EICs nos presídios também.

P/1 – Uhum.

R – Né? É um público totalmente diferente e é importante que as pessoas que estão conhecendo, vão ter acesso a esse material, entendam que a oportunidade gera vida, na integra, quando você dá oportunidade ao homem de se expressar, de conhecer, ele se sente valorizado ele está aberto pra outras coisas. Isso foi importante para o Ronaldo lá dentro no Lemos Brito, no Hélio Gomes, porque o Ronaldo ele é uma estrelinha daquelas estrelinhas da história que todos conhecem, um menino no mar de estrelas morrendo, ele pegava alguma e jogava no mar e alguém perguntou: “tolo, tá vendo que não vai fazer diferença você retornar cinco, dez, cem?” o menino pegou uma estrela e disse: “olha, pode não fazer diferença pra alguns, mas pra essa com certeza tá fazendo.” Pra mim fez diferença.

P/1 – Uhum.

R – Pra alguns companheiros que estão saindo tá fazendo diferença. E que as pessoas olhem com esse ponto de vista, faz diferença quando você entende a realidade de cada um, não pode ser aquilo que alguém quer mas aquilo que nós necessitamos. EICs dentro do sistema penal têm uma necessidade, Cisc tem uma necessidade, ele funciona pra comunidade que precisa não só da informática, mas de outras coisas, mas a informática ali foi fundamental dar a base, estruturar o trabalho que hoje acontece. Isso eu queria deixar registrado.

P/1 – Perfeito. Ronaldo, o que você achou de dar esse depoimento pessoalmente?

R – Bom eu quero agradecer ao Rodrigo, a toda equipe que trabalha com ele, agradecer a você essa paciência, viu, Danilo.

P/1 – Imagina, foi um prazer.

R – Esse carinho, essa paciência de tá remarcando, de tá estudando, eu não tenho palavras. É importante, nós nos sentimos úteis quando a nossa história de vida que foi feia num determinado momento passa a ser adubo pra belas flores. Então é uma, eu tenho uma gratidão para com cada um de vocês e agradeço a todos.

P/1 – Perfeito. E o que que você acha da idéia do CDI resgatar a memória da instituição?

R – Olha isso é necessário como eu vou te mostrar, eu tenho ali mais de mil fotos desses treze anos que eu passei no cárcere, não vamos ter tempo de você ver as mil, mas que você veja algumas que você achar que é importante registrar algumas, o registro é vida. O nosso público, o nosso povo ele tem uma memória bem necessitada de ser exercitada, e com essas iniciativa do CDI, como nós temos feitos também em outra coisas, isso vai ser um instrumento valioso pra amanhã alguns virem: “Olha aconteceu graças a isso.” O CDI ta de parabéns e vocês tão de parabéns.

P/1 – Obrigado, Ronaldo, agradeço em nome do Museu da Pessoa e do CDI.