Museu da Pessoa

Uma geração de graffiti paulistano

autoria: Museu da Pessoa personagem: Julio Ladislau Barreto de Souza

P/1 – Júlio, você pode começar a falar o seu nome completo, local e data de nascimento?

R – Posso, eu nasci em São Paulo, no dia 29 de maio de 1966, às oito horas e alguns minutos da noite. Quem sabe esses minutos é a minha astróloga.

P/1 – Como que é o nome dos seus pais?

R – O meu pai chamava-se Luís Barreto de Souza, um psiquiatra, minha mãe é a Vilma de Katinsky Barreto de Souza, professora da Letras, na USP.

P/1 – Vamos falar um pouco das origens familiares da sua mãe. Os seus avós são de onde, os pais dela, os maternos?

R – Olha, o meu avô, Ladislau Leopoldo Katinsky De Katina e Pielesz, húngaro, casou com a Professora Anita Casalino, filha de italianos, aqui no Brasil já, ele tinha fugido da guerra, porque ele foi aviador, era engenheiro, mas, como aviador trabalhou, depois que derrubaram o amigo dele, o Barão Vermelho Richthofen, ele veio pro Brasil.

P/1 – Mas ele nasceu no Brasil?

R – Não, ele era húngaro.

P/1 – Húngaro, nasceu lá mesmo?

R – É, aí ele saiu de lá, veio pro Brasil, casou aqui.

P/1 – Na época da guerra?

R – É, não sei exatamente que ano que ele veio, eu sei que a minha mãe é de 1935, ele deve ter vindo em 28, 29, ele fugiu da Primeira Guerra, né, ele saiu fora. Eu não posso ter passaporte húngaro, porque ele é fugido da Hungria, né? E a minha avó filha de italianos, professora, da parte da minha mãe, né? E tem um monte de gente que eu consigo saber, agora, depois que a minha tia, a irmã da minha mãe, morreu, eu fiquei sabendo de mais histórias, o meu tio, Katinsky também, contou mais histórias, tem muita história, só que eu nunca, assim...

P/1 – Mas aí o seu avô, ele, o que ele fazia aqui?

R – Aqui ele veio pra trabalhar com concreto, ele foi uma das equipes que fez, ele trabalhou com concreto armado, engenheiro, então ele fez o Salto de Itu, aquela usina que tem no alto da Serra do Mar, que a gente vê os oleodutos, ele com a equipe, se não me engano, da Light, vieram pra fazer, trabalhar com concreto armado, pontes, aqui no Brasil. O que eu sei disso, é ele, eu tô começando a sacar algumas outras coisas dele, né, conforme eu vou tendo contato com o meu tio, mas, que eu saiba, ele era engenheiro, trouxe o concreto armado pro Brasil.

P/1 – Aí casou com a sua avó.

R – Casou com a minha avó.

P/1 – A sua avó era...

R – A minha avó era professora.

P/1 – Era professora do quê?

R – Professora de Português, Português de escola, né, naquele tempo não tinha essa coisa assim, científico, de isso ou daquilo, ela era professora de escola e sobre os meus avós é isso.

P/1 – Mas ele tinha dinheiro, ele conseguiu?

R – Não, não, não posso dizer se tinha dinheiro, tudo bem que ele construiu uma casa boa, uma casa legal, que meu pai depois, quando casou com a minha mãe, o meu pai comprou a casa, a parte dos irmãos da minha mãe, não tinha grana, não, mas vivia bem, vivia-se bem nos anos 40, anos 30, 40, 50, né? Engraçado, porque a diversidade que tinha na mesa era uma, hoje é outra, vivia-se muito bem e, assim, o que eu sei do meu avô é isso, né, ele construiu umas coisas, tal, a minha avó fez umas.

P/1 – Eles tiveram quantos filhos?

R – Então, aí eles tiveram, eles casaram e tiveram a Theresa Katinsky de Katina e Pielesz, primeira turma da POLI, na FAU, a Vilma de Katinsky, que é a minha mãe, e o Júlio de Katinsky, são três, tiveram três filhos. Aí a mais velha, a Teresa, que faleceu há pouco, teve cinco filhos, a minha mãe teve cinco filhos e o tio Julinho teve um casal de filhos. O curioso é que o primeiro filho da Teresa, da irmã mais velha, nasceu no dia 1º de agosto, ao longo de todos os anos foram rolando e o último Katinsky, o último filho de descendentes de Katinsky nasceu no dia 31 de julho, que é o meu irmão mais novo, Francisco Leonardo. Então tem muito primo, tem muita história, tem coisas absurdas (risos).

P/1 – E a sua mãe conta a educação que ela teve? Seus avós eram rígidos? Qual que era a característica deles?

R – Não, atualmente eu fiquei sabendo de uma sacanagem que a minha avó fez, a minha mãe tinha me contado e o meu tio confirmou, minha mãe e a minha tia brigaram a vida inteira, minha tia morreu agora e as mulheres não se falavam há mais de 15, 20 anos. Meu tio falou: “Realmente, o seu avô, sua avó tinha preferência pela sua tia, então a Vilma, sua mãe, era sempre, não sei o que, sacaneada e tal”, a minha mãe contou isso também. Tanto que nessa época a minha mãe queria estudar pra fazer Direito e a minha avó não deixou a minha mãe estudar Direito, fez o meu tio, o Francisco Casalino, matricular a minha mãe numa escola normal. Imagina a minha mãe como advogada, o mundo estaria perdido, eu estaria bilionário, mas o mundo estaria perdido. Aí virou professora, gostou de ser professora, o Júlio virou arquiteto.

P/1 – Mas ela fez o que, magistério, normal, né?

R – Ela fez o normal, depois começou a dar aula, mocinha, já no Anhanguera, estudou no Caetano de Campos, depois foi dar aula no Anhanguera, no Campos Sales, virou professora, deu aula a vida inteira. E o irmão mais novo dela, o Júlio, é o arquiteto Júlio Katinski, um cara bacana, da FAU, um cara bem bacana, foi professor e tudo, eu tenho a maior paixão por ele, que é um tio, de todos os tios eu acho que é o mais legal, né, pelo menos, assim, da parte materna. Da parte paterna...

P/1 – E os seus avós paternos, eles são de onde?

R – Meus avós paternos, que eu saiba, bom, além das histórias, assim, tio Júlio, que era o irmão do meu avô, né, o tio do meu pai, era não sei o que, eu sei que na minha casa tem um quadro gigantesco, que é de um tal de Júlio Barreto, esse Júlio Barreto era o pai do meu avô e eles tiveram, ele teve dois ou três filhos, três filhos. O meu avô, Eduardo, teve três filhos homens, Luís, Eduardo Barreto e Fernando Barreto, eles moravam em Santos, minha avó era do lar, eu acho, porque trabalhava na Gota, eu não via ela fazer nada, também, naquela época...

P/1 – Trabalhava aonde?

R – Gota, é uma coisa de, como se fosse uma ONG hoje, uma casa de ajuda às pessoas que têm doenças, essas coisas, de caridade. O meu avô era um médico muito bem sucedido, um cirurgião, urologista, clínico geral sensacional, famoso lá em Santos, tinha até uma coisa de delegado de saúde, uma coisa dessas assim. Devia ser um velho meio de saco cheio, porque colocou os filhos todos em colégio interno, ou então, o meu pai, aos oito, nove, dez anos, devia ser um demônio, porque pro pai dele colocar o velho, o meu pai, no colégio interno em São Paulo, imagina o meu pai. Eu sei como o meu pai era, eu conheço, eu morei com ele, eu morei com ele, eu vi, eu fui o único filho que morou com o meu pai, isso é uma outra história.

P/1 – Nós vamos chegar lá.

R – Vamos. Então, da parte do meu pai tem o Eduardo e a Alzira, que tiveram Luís Eduardo e Fernando, meu pai teve os cinco, meus outros tios também tiveram os outros primos, que a gente nem consegue, nem é muito próximo.

P/1 – Mas esse seu avô fazia o quê? Brasileiro, nasceu aqui?

R – Brasileiro, brasileiro. Aí, meu, entra uma puta zona, porque eu não sei é filho, porque tem espanhol, tem gaúcho, espanhol, alemão, tem um monte de gente, até hoje eu não consegui entender direito, eu sei que tem espanhol e não sei se, agora, o alemão é da parte do meu avô materno, eu sei que português e espanhol, claro, Barreto de Souza, né, tem português e espanhol e tem umas putarias do passado aí, que o meu tio com mulheres e era uma puta zona, enfim.

P/1 – Mas o seu avô fazia o que, o paterno?

R – Médico sanitarista, sanitarista lá em Santos, cirurgião, urologista, clínico geral.

P/1 – Ele morava em Santos?

R – Morava em Santos.

P/1 – O seu pai nasceu em Santos?

R – O meu pai nasceu em Santos, eu por pouco não nasci em Santos, a minha irmã mais velha nasceu em Santos, eu acabei nascendo em São Paulo.

P/1 – Seu pai, o que ele contava, o que você sabe da educação do seu avô pro seu pai, como é que ele era?

R – Ih, bicho, o meu pai contava muita coisa do meu avô, mas o meu pai era meio misógino por causa do meu avô, eram dois misóginos. Um dia eu falei: “Pô, pai, puta saco, hein, meu, eu acho que você é viado, bicho, porque você só fala mal de mulher, você fala que o vovô falava assim da vovó, você fala isso da mamãe, de todas”, então é uma coisa talvez meio machista da época deles, eu não sei, essa coisa de homem que cresceu em colégio interno. Mas ele gostava muito do pai, desde, até senhor já de idade, o meu pai, quando falava do pai dele, chorava, porque parece que o meu avô morreu injustamente aos 60 e poucos anos, de um aneurisma, e o meu pai teve dois aneurismas, desculpa, um aqui no peito e um abdominal, que ele operou, mas falava bem do pai. Eu não lembro, assim, essa coisa de eu dizer pra vocês que a fartura era outra é porque na época deles, mesmo ainda dos nossos pais, era uma coisa meio, uns pães, um leite, um luxo de um suco, casa de médico era assim, já tinha os luxos, as frutas, mas não era que nem a gente tem hoje, um monte de potinho de milhares de coisas, né? Ele conta isso, da vida espartana que tinha-se antigamente, aí o meu pai ganhou uma grana como psiquiatra, ele ganhou dinheiro, era um cara que nos anos 70 comprou Galaxy, assim que chegou.

P/1 – Mas espera aí, o seu pai ficou quanto tempo no colégio interno, até quantos anos?

R – Ele ficou até entrar na faculdade, ele entrou até acabar o curso.

P/1 – Que colégio que ele estudou?

R – São Bento, ele fez o São Bento até o final, aí nesse mesmo, o meu pai é cinco anos mais novo que a minha mãe, mas, num determinado momento, o meu pai foi morar na pensão do Paulo Cotrim, o Paulo Cotrim foi um crítico gastronômico e tal, e o meu tio também foi morar lá e aí eu não sei o que aconteceu que o meu tio indicou a minha mãe pra dar aula pro meu pai, eles se conheceram assim. Minha mãe foi morar na pensão do Cotrim, ninguém se conhecia, a minha mãe foi morar na pensão do Cotrim, eles se conheceram e tal e a minha mãe deu aula pro meu pai e o meu pai acabou entrando na faculdade com grande louvor e tal. Você vê que coisa, namoraram sete anos, se foderam o resto da vida, enfim, edita, né, vai cortar. É um caso interessante, porque criou-se uma coisa assim, de, sem brincadeira, mais de 20 mil livros na casa, se juntar duas ou três salas dava 300 e tantos quadros, naquela casa inteira quase 500 quadros, de pôster de viagem que traz, vai, coloca, lembra, de lembrança, telas, tinha um Casalino, as minhas telas. Era uma coisa grande, eu cresci num ambiente, assim, bem bacana.

P/1 – Aí o seu pai e a sua mãe se conheceram, quantos anos, quando eles casaram, tinham quantos anos?

R – Olha, eles casaram, o meu pai se formou e casou, meu pai se formou, casou em 60, ele tinha 25 anos, minha mãe tinha 30.

P/1 – Eles foram morar aonde?

R – Então, foram morar ali perto do Mackenzie, na Rua Itambé, que eu me lembre, que eu saiba, né, pelos menos enquanto eu era vivo, tem até umas fotos, na Rua Itambé, numa vilinha. Aí nesse tempo o meu pai comprou a casa grande, que era do meu avô, o Ladislau, aonde a minha mãe morava, todos os outros moravam também, aí cresceram, foram cada um pra um lado, a minha mãe tinha saído, aí a minha mãe já saiu, já tinha voltado, tal, quando ela saiu...

P/1 – Sua mãe saiu de lá e foi morar na pensão?

R – Isso.

P/1 – Saiu de casa?

R – Saiu de casa, o meu tio que falou, aliás, pra mim isso, bateu uma nela, ela saiu fora, foi morar na pensão, conheceram-se, apresentou-se, tudo, o meu pai comprou essa casa, a minha avó morreu, a mãe da minha mãe morreu.

P/1 – Que era uma herança da sua mãe.

R – É, era herança dos três, né, aí tinha mais uns terrenos, mais umas coisas e tal, foi tudo dividido, o meu pai fez toda a divisão, ajudou, comprou a casa, reformou, fez uma puta reforma absurda com o Ohtake e o Júlio Katinsky, um dos Ohtake, amigo do Júlio, e criou a molecada lá.

P/1 – Você nasceu nessa casa já?

R – Não, eu nasci na Itambé, em 66 a gente morava na Itambé, em 70, 1970, a gente mudou pra Brigadeiro Gavião Peixoto.

P/1 – Que é essa casa grande?

R – Que é essa casa grande.

P/1 – Onde que fica?

R – Ela fica no Alto da Lapa, perto da Rua Mercedes, a Brigadeiro Gavião Peixoto, ela vem como se fosse da Anhanguera e ela vai dar na Rua Barão de Jundiaí, Clélia, é uma veia. E essa casa é do lado da casa do Alex e da Laura, onde o Alex vinha, tanto que quando a minha mãe chegou pra gente morar todo mundo junto, a Léia veio dar: “Parabéns, bem vindos”, aquela coisa antiga de vizinho, e lá que eu conheci o Alex. Que é uma coisa louca, porque a Léia era amiga da minha mãe, por a minha mãe estudar Italiano e dar aula de Italiano e ela ser italiana, a Léia, ficaram superamigas, passavam o natal em casa, toda hora trocando coisa pelo muro. E aí eu era pequenininho e ficava vendo o Alex brincando, mas isso aí é uma outra história, né, eu conto depois, edita.

P/1 – Como é que era a casa?

R – A casa, quando eu cheguei pra morar?

P/1 – É.

R – Era uma casa que tinha, tem uma puta biblioteca, uma puta garagem, duas putas salas enormes, uns quartos enormes, casa antiga, casa assim, sabe, um banheiro desse tamanho dessa sala, sabe, aí tem quintal, era uma casa antiga que o meu pai deu uma reformada, ampliou umas coisas e fez uma edícula pra gente, pros moleques, porque a gente quebrava tudo na casa, quebrava tudo. Aí a Léia construiu na casa dela uma edícula, um quartinho só, pequeno, pro Alex, o meu pai gostou da ideia, fez um monstro, chamou a Teresa, a irmã da minha mãe, fizeram um puta quarto enorme, com banheiro pra dois boxes. Assim, eu fui um puta de um, como chama isso? Filhinho de papai, ia de chofer pra escola, porque tinha cinco filhos, a mais velha estudava no Brooklin, a gente estudava na Aclimação, ele trabalhava, você acha que ele ia levar? Ele tinha dinheiro, pagava o chofer, o Seu João levava a gente.

P/1 – E a sua mãe dava aula, também trabalhava fora.

R – Minha mãe dava aula e não sabia dirigir e minha mãe não queria saber de criança, ainda mais moleque, que mais tarde ela veio me dizer: “Eu nunca soube lidar com moleque”.

P/2 – Mas ela era professora de que idade?

R – Era professora de, agora é universitário, há 40 anos que ela dá aula na universidade, ou 50, mas ela sempre foi professora de jovens, só que ela tem alguma coisa com vizinhança, amigos de infância, então ela nunca, ela falou um dia: “Eu só sei dar aula mesmo”, um dia desses que eu reclamei com ela, uns anos atrás: “Você foi uma mãe de merda”, não sei o que lá, ela: “É, eu não sei lidar com moleque, só sei dar aula”.

P/1 – Como é que era a Lapa naquele período?

R – Puta, era demais, eu sou uma das últimas gerações que ainda brincou na rua de taco, ali na Rua Tomé de Souza, acima da minha, a minha era um perigo, a minha rua, mas pra cima, ali na Rua Tomé de Souza, na Duarte da Costa, onde tem as praças, ali onde eu aprendi a andar de bicicleta, onde a empregada levava a gente pra passear, sabe, assim. Nesse quarteirão que eu moro, no meio dele tem uma coisa, se você olhar no Google, Praça Álvares de Azevedo, no meio do quarteirão tem um terreno enorme que tá desocupado. Então brincava-se nas ruas, porque era supertranquilo, né, com vários amigos, né, molecada, e tinha esse terreno também, né, que a gente brincava muito, porque a gente, eu tinha um galinheiro em casa, tinha marceneiro em casa também, o marceneiro construiu um puta galinheiro legal. Aí a gente pegava todas as galinhas, os patos, subia, eles vinham atrás, a gente cavava, dava comida pra eles, final de tarde, a gente subia no muro, voltava pra casa, eles vinham todos de volta e iam pro galinheiro, era demais. Eu tive uma puta infância, tive uma puta infância, com tudo o que eu precisava ter.

P/1 – Com quem vocês brincavam? Entre os irmãos?

R – Ah, entre os irmãos, a gente brincava todo mundo junto, eu, o Tite e o Chico, os meninos, a Elisa é uma menina excepcional, mas a Elisa, ela é mais velha que eu, então seriam, são cinco filhos, a mais velha, a Silvia, a Elisa, eu, o Tite e o Chico. A Elisa é excepcional, eu não sei qual foi o problema que teve no parto, uma hora falam uma coisa, outra hora falam outra, mas, enfim...

P/1 – A sua irmã?

R – É, mas ela não é Down, ela tem uma síndrome, mas eu não sei te dizer direito, é uma menina que fala, conversa, tudo, mas ela tem uma, você vê uma deficiência, percebe, um dia talvez você a conheça. A gente brincava todo mundo junto quando criança, eu tenho foto, eu e a Elisa brincando na bacia com água, criança com água e bacia, né, demais, eu tô aprendendo isso com o meu filho. Com a mais velha não, com a mais velha foi conflituosa a minha infância, foi porrada pra cacete, com os meus irmãos, como sempre, claro, o mais velho dava porrada, mas também brincava.

P/1 – Por que foi conflituosa com a sua irmã?

R – Ah, porque a minha irmã era mais velha e sempre foi meio fortona, assim, ou então eu era miúdo, né, aí me dava porrada, porque queria abraçar, beijar, brincar, não sei o que, e moleque não quer saber, né, aí tome porrada, aí qualquer coisa briga. Aí, puta, foi tanta briga a vida inteira, até o dia que ela tomou uma puta surra, de deixar todos os dentes da boca moles e os dois olhos assim, ó.

P/1 – De quem?

R – De mim.

P/1 – De você?

R – É, dei um puta pau nela, bicho, mas um pau daqueles, assim, tenebrosos.

P/1 – Por quê?

R – Ah, piração, a gente morava na edícula, aí a gente um dia dançou, eu e meus irmãos, a gente dançou, a minha mãe falou: “Vai ver se eles estão fazendo alguma coisa”, os moleques estavam cheirando cola, ele falou: “Ô, deixa eu ver a cola”, cheirei um pouquinho. Aí ela tocou o interfone, que era tudo por interfone, a casa era grande, “Tá tudo bem?”, eu falei: “Tá, mãe, tá tudo ótimo, beleza”, desliguei, começamos a jogar bola, uma zona, dançamos, todo mundo, dançamos com maconha. A gente ganhou aquelas, que a gente chamou de vuvuzela, e ficava a gente na nossa casa, na cobertura, fazendo barulho pra caralho, e do outro lado do terreno, ou seja, na rua de cima, as casas que davam fundo pra esse terreno, tinha os dois vizinhos que também tinham, então você imagina a cornetaria que não era, puta zona. Bom, dançamos, saímos do quarto, aí um dia a Silvia deu um pau na minha mãe, a minha irmã bateu na minha mãe.

P/1 – Por quê?

R – Não sei, isso aí eu já não lembro, só sei que deu um pau na minha mãe e, pra não ir embora, minha mãe comprou um apartamento, não, pra não ir embora, ela foi dormir na edícula, no quartão da gente, a Silvia foi dormir no quartão da gente.

P/1 – A sua irmã?

R – É, a minha irmã. Aí chegou um tempo, não sei o que aconteceu, o meu pai foi lá e comprou um apartamento pra ela ir morar.

P/1 – Ah, ela já era grande?

R – Já, já era grande, lógico, só que um dia, bicho, a gente chegou da escola, ela chegou também, e no meu armário tinha todas as fotografias das revistas estrangeiras que eu comprava, de skate, surf e ACDC, uma banda de rock que eu gostava, queria saber, pra saber tinha que ler, traduzir, então eu guardava as fotos e tinha as revistas e dicionário pra traduzir tudo. A gente dançou e ficou no armário as fotos, meu, ela falou: “Eu vou rasgar tudo”, eu falei assim: “Não, você não vai rasgar, senão você tá fodida”, ela saiu.

P/1 – Por que ela quis rasgar?

R – Porque ela veio brigar comigo, eu falei: “Não foi eu que mexi nas suas coisas”, “Quem foi que mexeu?”, “Não fui eu que mexi nas suas coisas”, “Ah, então vou rasgar tudo”, “Se rasgar, você tá fodida”, puta, ela virou as costas, subiu, ah, não, ela começou a gritar comigo, aí começou a apanhar na cozinha, apanhou na cozinha pra caralho, saiu correndo. Aí depois, é meio sórdido, acho que não precisa contar tanto assim, tantos detalhes, eu sei que ela tomou um puta pau, aí o meu pai chegou de noite, falou: “Tudo bem, né?”, eu fiquei: “Não, tudo bem”, “Tá bom, né”, eu falei: “Ah, tá bom”, ou seja, sacou: “Você apanhou a vida inteira, né? Se vingou? Então chega, tá bom” e daí foi.

P/1 – O seu pai, tinha uma vibe dele bater em vocês, não?

R – Não, o meu pai nunca.

P/1 – Nem a sua mãe?

R – Não, meu pai nunca precisou levantar a voz pra gente. Minha mãe já se fodeu com todo mundo, né, apanhou da filha, apanhou do filho, apanhou não, nunca bati na minha mãe, mas eu era terrível, eu era tenebroso, eu era o pior, era o demônio, claro, o mais velho, né, tinha, as coisas tinham que começar por alguém. Mas não adiantava nada bater, era uns puta moleques safados pra cacete, meu, três camas assim, uma, duas, três, a gente fazia os três uma puta zona, minha mãe queria que a gente dormisse. O que ela fazia? Abria o quarto pra bater na gente, uns puta cobertor assim, ela com aquele chinelinho batendo num, batendo nesse, batendo nesse, quando ela tava batendo nesse, você olhava, tava o Chico já se cagando de rir, aí ela ficava desesperada, dava a volta, e o Tite no meio rindo, aí ela batia num e no outro, aí eu tava rindo, ela vinha pra cá, meu, era uma puta zona. Aí ela: “Eu não aguento mais”, aí foi aí que o meu pai colocou, pôs a gente lá pra trás, entendeu? Foi uma puta diversão, foi, olha, foi genial, eu tive, eu posso dizer que eu tive uma infância conturbadamente feliz, foi ótimo.

P/1 – Você discutia política na sua casa?

R – Não, eu escutava eles discutindo política e muitas vezes, antipáticos que eram, tinha uma tia, Lia, que falava francês, e o meu pai, que fala um pouco de tudo, entende um pouco de tudo, e minha mãe, que fala francês, italiano, alemão, latim, né, um monte de coisa, eles conversavam algumas coisas. Aí até o dia que começaram a conversar em inglês também, aí eu falei: “Escuta, vai você então, tá”, não sei o que, tirei umas em inglês. Mas política não se discutia muito, não, não tinha essa, não se discutia muita política, não, discutia-se mais sociologia, psicologia, o positivismo, eles eram positivistas, eles tinham sido meio comunas, participaram da UNE, da JUC, que era juventude unida, não sei o que.

P/1 – Universitária Católica.

R – Universitária Católica, é, depois largaram a igreja, eu soube que o meu pai foi coroinha, depois se voltou contra a igreja, ficou numa puta depressão quando caiu o Gorbatchov, meio comuna, bom, tudo loucura, tudo viagem assim. Pintavam umas coisas de política, assim, mas eu não ouvia muito, eu tava em outra, eu tava em outra.

P/2 – Em qual você tava?

R – Eu? Depende de que idade.

P/1 – Vamos situar. Vocês tiveram alguma educação religiosa?

R – Eu fiz primeira comunhão, eu lembro de catecismo, coisa assim, a gente estudou na escolinha Angélica, né, no começo da vida eu estudei numa escolinha Angélica, a gente tinha catecismo e foi ali que eu fiz a primeira comunhão. Os meus outros dois irmãos, eles não foram batizados, mas, de uma certa forma, o pessoal é católico, minha mãe se diz católica, a Elisa também, a Silvia, antroposófica que virou, deve ser católica, eu não posso dizer que eu sou católico só porque eles eram católicos. Tudo bem, eu encontrei Deus outro dia na geladeira, tava lá, olhando os meus caquinhos, tomando conta, porque Deus tá em todo lugar, né, então todo dia você olha pra qualquer coisa, Deus tá ali, agora, que eu acredite em Deus não posso dizer.

P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?

R – Ah, eu não lembro direito, isso eu não consigo te dizer.

P/1 – Mas você ia de motorista?

R – Não, no começo a gente estudou, quando a gente morava na, eu não lembro qual escola que eu ia quando eu morava na Itambé, de 66 até 70 eu não sabia qual era a escola, eu estudava na escolinha Angélica, que ela era duas ruas acima, no Alto da Lapa, então eu lembro da gente ir a pé pra escola, começou ali. Depois a escolinha Angélica mudou pra rua Passo da Pátria, aí eu estudei lá, depois, de lá eu fui estudar na Aclimação, porque na Aclimação tinha a Escola Experimental Irmã Catarina, que era uma escola que aceitava a Elisa, a minha irmã mais velha, né, depois da Silvia, que a Elisa tinha um problema, uns problemas, aí juntou que tinha a sede pros excepcionais e a sede pros normais. O que o Barretão fez? A Silvia só que ficou em Indianópolis, no Brooklin, estudou na Escola Waldorf, o Chico até tentou, até tentaram colocar o Chico, mas ele foi expulso, porque pegaram ele chutando bola, depois do tricô, que ensinaram ele a fazer, ele tricotou uma bola, aí começou a chutar a bola: “Seu filho, não sei o que, foi convidado”, mesmo porque eles não gostavam do meu pai, por serem antroposóficos, o meu pai psiquiatra alopata. Então eu passei o ginásio, acho que o ginásio no Irmã Catarina, por isso que a gente ia de motorista, depois eu fui, aí começou, né, aí eu fui pro Equipe, passei um ano no Equipe, foi o ano que eu saí da casa da minha mãe por causa de uma briga, eu fui morar na casa da minha tia, essa que faleceu agora, e Equipe. Aí foi Objetivo, Santo Ivo, até eu realmente estudar de verdade no Colégio das Bandeiras, que só ia vagabundo, tinha uma puta liberdade, eu era um puta playboy, playboy no sentido, assim, eu ia de lambreta, eu tinha uma lambreta 67, sabe, estudava à noite, porque de dia trabalhava, porque tinha que trabalhar, né?

P/1 – Mas vamos voltar no primário, você lembra dos teus professores do primário?

R – Puta, eu lembro da tia Aline, que foi uma professora que eu achava ela linda de morrer. Tinha uma outra professora que eu não me lembro o nome, que um dia olhou pela escola e falou: “Ah, tá chegando a Família Trapo”, eu falei isso pra minha mãe.

P/1 – O que ela falou?

R – “Ah, tá chegando a Família Trapo”, acho que porque a gente chegava juntinho todo mundo, e aí eu falei pra minha mãe, puta, a minha mãe foi lá e deu o maior esporro, eu não sei o que aconteceu que ela foi umas duas vezes, ela entrou nessa escola, eu não percebia a autoridade da minha mãe como professora, docente e tal, né, e brava, encrenqueira, briguenta pra caralho. Enfim, a tia Vanda, eu me lembro, lembro da tia Ernestina, aí lembro das outras tias, já no ginásio também, que a gente até tem se encontrado, uma turma do Irmã Catarina andou fazendo um encontro aí num lugar à noite, num bar legal, então eu vi algumas tias, tia Celeste, né?

P/2 – Você lembra do seu primeiro contato com a arte?

R – Lembro, o primeiro contato com arte que eu tive depende do que a gente diz arte, porque tinha um marceneiro na casa da minha mãe, o Seu Francisco Bifulco, que lá ele tinha uma bancada, com oficina, porque ele era do tipo, assim, que ele reproduzia o móvel que a minha mãe queria, ela queria um outro aparador igual, ele fazia, fazia cercas, arrumava cama, arrumava isso, arrumava aquilo, ficava fazendo coisa, arrumando móvel. Aí eu me lembro de duas coisas, quando você fez a pergunta, eu me lembrei que na casa da minha mãe tem uma coisa, assim, de um contact branco colado no Eucatex, que eu me lembro de ter feito na escola uma coisa com anilina e álcool, uma coisa meio abstrata, assim, e minha mãe guardou, eu achei isso até hoje, eu falei: “Nossa, tá aí”. Esse talvez tenha sido meu primeiro trabalho de arte, eu não vou contar aquele paninho que a criança põe a mão com tinta e o professor vai lá e escreve, né, isso não conta. Daí o que eu me lembro é que eu era pequeno e o Vallauri, o Alex Vallauri, que era vizinho de muro, o filho da Léia, ele estampava umas roupas numa prensa e a prensa não enxergava, então ele tintava, passava a tinta na madeira e punha lá, imprimia, tal e pendurava no varal, ele e um amigo, não lembro agora, Neno, era pequenininho, aí eu comecei vendo isso, as imagens, essas estampas.

P/1 – Tinha quantos anos?

R – Eu ainda tinha uns oito, nove, eu frequentava a casa dele, porque eu era, né, vizinho, tal, então eu ficava brincando com carimbo, eu ficava vendo os desenhos. Aos 12 a gente tava estampando e aí ele falou assim: “Vamos pichar?”, eu falei: “Vamos”, ele tinha pegado uma das figuras que ele imprima, que era uma bota, cortou, pegou um disco, abriu o disco, fez uma máscara de uma bota e a gente foi pichar na viela. Eu comecei assim, segurando a máscara e vendo ele pichar, daí pra frente a gente saiu pichando, pintando, o que a gente, bom, depois eu falo sobre isso, vai rolar pergunta pra isso depois.

P/1 – Na escola, do que você gostava, do que você mais gostava na escola?

R – Meninas, meninas.

P/1 – Desde pequeno?

R – Desde pequeno, meninas e das barras, aquelas barras de ferro, e gostava de Biologia, Inglês, gostava das professoras, gostava dos amigos, gostava de tudo na escola, gostava de me fazer bonitinho, de tipinho, como todo moleque, né, de aquela disputa, né, testoterônica dos moleques, tem que ficar se digladiando pra chamar atenção, né?

P/1 – Como que era o caminho? Você lembra dos trajetos, os lugares que você passava da Lapa até a Aclimação?

R – Lembro.

P/1 – Como é que era?

R – Mudou muito, né, porque era basicamente assim, você saía da Lapa, faz a Marginal, Brooklin, do Brooklin Washington Luís, 23 de Maio, Aclimação, na Aclimação, né, 23 de Maio, minhocão, Lapa, aqui, então fazia meio que um triângulo pela cidade todo santo dia, todo dia.

P/2 – Seu primeiro amor, você lembra?

R – Lembro, meu primeiro amor, eu não sei se eu tinha seis anos ainda, era Lilian Cristina Santos Vieira, morava numa ruazinha ali perto do Mirante da Lapa, vizinha do Ademir da Guia, uma ruivinha, mas a gente era muito criança, eu sei que eu achava ela linda, ruivinha, bonitinha, essa foi meu primeiro amor, tanto que você vê, Lilian Cristina Santos Vieira, você não esquece, pra não esquecer é porque... Ela nasceu no dia 3 de maio, essa foi a minha primeira paixão.

P/2 – Como foi que você conheceu ela?

R – Criança, a gente conhecia na escola, na escolinha Angélica, tudo, via a letra dela, eu brincava, rabiscava, a gente fazia coisa junto, aquela coisa de criança, né, meio que umas disputinhas, não sei o que, crianças.

P/2 – E mais na adolescência?

R – Ah, na adolescência eu só me fodi, só me ferrei, eu já fiquei apaixonado pela Adriana, aí, depois da Adriana, eu fiquei apaixonado pela Jane, aí repeti de ano, porque moleque crescendo, não sei o que, quer se mostrar, não sei o que e nada de estudar o malandrinho, o malandrinho bonitinho junto com os outros amigos bonitinhos, repeti de ano por causa de uma menina. Aí quando terminei o curso, que eu não tava mais apaixonado por ela, ela ficou apaixonada por mim.

P/2 – Mas conta mais, como você repetiu de ano?

R – Eu não estudava, eu não me focava, eu não me focava na aula, eu não focava, eu tenho a caderneta da escola com uma anotação, depois eu mostro pra vocês: “Dona Vilma, não sei o que, o Júlio não trouxe o material da aula de não sei o que, dizendo não ter se esquecido e sim deixado propositalmente em casa, o material deve ser trazido à aula”, e a minha mãe respondendo: “Peço desculpa e peço que tome as devidas providências”, ponto, então, assim, tá na caderneta, mostrei pra tia Celeste: “Tia Celeste, assina aqui”, no encontro que a gente teve.

P/1 – Na sua casa vocês comemoravam festas, assim, aniversário, páscoa? Que datas que vocês comemoravam?

R – Ah, todas, todas.

P/1 – Aniversário de todos vocês.

R – Aniversários tinha até quando crianças, né, depois foi ficando mais adolescente, cada um já queria, mas eu lembro de alguns aniversários, tem muita foto também, com primos, com amigos, com os tios, tudo era motivo pra juntar todo mundo. Então ia desde o meu aniversário, aniversário da Silvia, páscoa, aí tinha aniversário junto com o meu, que era o da Mônica, que era um, são quase primos, porque é uma família ficou amigo, porque o meu pai tratou do pai da Mônica, do Evandro, então depois eles ficaram muito amigos. Então misturava todos os filhos, era uma puta zona, sabe, assim, casa na praia com 15 crianças.

P/1 – Quem tinha casa na praia?

R – O meu pai comprou, a gente tinha casa em Santos, na Rua Alagoas, 51, eu me lembro da casa até hoje, eu tenho a planta da casa na cabeça, e olha que foi até 73 isso, mas eu tenho a planta na cabeça, isso é uma memória que eu tenho forte. Aí o meu pai vendeu essa casa em Santos e comprou uma casa, em 73, 74, no Cibratel, no Cibratel Um, em Itanhaém, porque o Evandro tinha uma casa e naquela época só tinha terrenos, era uma ou outra casa que tinha, a casa do Evandro era uma casa mais antiga, um belo dia o meu pai foi lá e comprou a casa, 600 mil cruzeiros. Encasquetou, falou: “Legal”, tal, não sei o que, nunca mais foi pra Santos, talvez se tivesse ido pra Santos, a minha avó morava em Santos, né, minha irmã mais velha ia muito pra Santos, não ia muito pra Itanhaém, Cibratel, e lá em Cibratel foi o que foi, né, surf, maconha, cola, briga, surf, surf, surf o tempo todo.

P/1 – Você começou a surfar lá?

R – É.

P/1 – Com quantos anos?

R – Meu pai só me deu prancha quando eu fiz 14 anos, mas eu comecei a surfar com dez, né, aí aos 14 eu ganhei uma prancha, o meu irmão também, e a gente foi surfar, aprendemos a surfar lá, depois fomos surfar em outras praias, né, a gente cresce, a gente vai, mas o início foi em Itanhaém, maravilha, verões e invernos maravilhosos. Hoje tá uma várzea, tá zona leste pra cacete, nenhum preconceito, mas ficou meio feio.

P/1 – Você viajava sempre pra lá de fim de semana?

R – Sempre, sempre, sozinho, eu punha a prancha embaixo do braço, pegava o Bredão na rodoviária e ia lá de fim de semana surfar, vivia surfando, só queria surfar, andar de skate, paquerar as meninas, ia na escola, eu ia na escola, estudava um pouco. Quando eu prestava atenção na aula, o problema era esse, eu prestava atenção na aula, só que não ficava na minha casa estudando, que nem a minha mãe ficava e queria que a gente estudasse, até eu ia bem nas matérias, tanto que terminei os cursos todos. Mas eu era muito, eu tirava sarro, por isso que, eu não sei te dizer direito, assim, foi gozado.

P/2 – Você tinha tipo História da Arte?

R – Sim, tinha História da Arte, eu tive um grande professor no Equipe, por exemplo, o Gilson Pedro, tive um contato muito breve com ele, foi só um ano, mas uma delícia de professor, puta cara legal, puta, sabe, puta gênio, puta pessoa simpática. O Gilson Rampazzo era de literatura, também um puta cara bacana, o Maurício, acho que deve tá falecido já, Maurício, não lembro o sobrenome, de Biologia, alguns professores, assim, foram ótimos.

P/2 – Isso de alguma forma te influenciou a criar também?

R – Não, na verdade o que me influenciou a criar foi o seguinte, eu sou crescido numa casa com milhares de livros, centenas de pinturas e o escritório particular do meu pai, aonde eu sempre visitava e ia fuçar as coisas, tanto os quadrinhos, os quadrinhos eróticos, as revistas, os livros, o som, tudo, tudo que era imagem. E aí eu também tinha um vizinho que fazia grafite, aí eu comecei a, sempre desenhei e tal, e aí comecei a trabalhar com grafite, comecei a fazer grafite em camiseta, comecei a fazer grafite na rua, fui fazendo grafites. Aí fui fazer ilustração, aí eu aprendi a mexer com aerógrafo, fui fazer ilustração com aerógrafo, fui pintar prancha, fui trabalhar com camiseta, estamparia, criação de estampa numa confecção de um amigo.

P/2 – Vamos com calma, conta do grafite mesmo, como era, pra quem não sabe, como é fazer um grafite? Chegava em casas mesmo, em muros abandonados?

R – Olha, o grafite nos anos 70, começo dos anos 80, era uma coisa meio cabulosa de fazer, qualquer coisa que você fizesse na rua, você ou era elogiado ou você era muito xingado.

P/1 – Você começou a fazer com 15 anos?

R – Doze, 1978, dei umas paradas, óbvio, tal, o Alex também foi morar em Nova Iorque, aí eu fazia algumas coisas, umas máscaras ou outras, de vez em quando fazia uns pichos, vamos dizer, uns grafites, mas nada, assim, muito, né, e era proibidíssimo, era super proibido, por isso eu fazia umas máscaras que cabiam embaixo do braço. Até um dia que eu me enchi, fiz logo um Spirit, né, dentre as centenas de imagens, que eu olhava a rua, via onde era interessante, o ponto aqui, aquele muro ali, o ônibus para aqui, as pessoas olham, tal: “Ah, tá, já sei”, então eu estudava a cidade pra saber aonde eu ia colocar tal desenho que conversasse com os transeuntes. Isso era uma das coisas que o Vallauri me ensinou, né, e depois eu conheci o Matuck e vi que não tava errado, que eu tava mais ou menos certo, na medida que eu trabalhava de acordo com o que os outros também já trabalhavam, então eu sabia, né, tanto que hoje, se eu tô junto com eles, é porque, não sei, coincidiu, né, da gente trabalhar junto.

P/2 – Da onde partia, por exemplo, a criação das próprias imagens?

R – Ah, por exemplo, eu tenho, eu vou te mostrar uma, por exemplo, um dia eu tava em Itanhaém, na praia, verão, grafitando nada, eu tava lá pegando onda e fumando maconha, aí vi no jornal, numa matéria no jornal, que uns moleques em São Francisco invadiram um zoológico depois que o zoológico fechou e foram nadar no poço dos ursos polares. O que aconteceu? Os ursos polares comeram os moleques, certo, o urso polar tá lá, come, o que os caras fizeram? Trucidaram os ursos polares, porque, aí eu fiz um, fiquei louco, né, falei: “Puta”, aí fiquei procurando referência de urso polar, urso, urso, aí eu achei uma que era uma foto de um urso polar sentado, coçando assim, né, pronto, aí começou, né, aquela coisa de quem são as feras, eles ou os humanos. Aí eu comecei a colocar alguns tigres em tamanho natural, que eu fazia só uma silhuetona aberta, pintava e fazia uns riscos, aí punha uns tigrões pela cidade, uns ursos polares, pra questionar, então o meu questionamento era esse, às vezes vinha de uma notícia assim, né? Eu vou lá e faço uma coisa, né, às vezes, assim, tomei um pé na bunda de uma namorada: “Tudo bem, eu gosto dela. O que eu vou fazer? Eu vou percorrer todo o caminho que ela fazia pra ir dar aula”, no caminho eu ia fazendo um grafitinho aqui, um grafitinho ali, seis meses depois ela falou assim: “Você é foda, né, por isso que eu não esqueço de você, você fica pichando onde eu ando, né?”, eu falei: “É”. Então, quer dizer, é assim com os amigos, sabe, então eu ia fazendo os grafites pras pessoas, eu não fazia o grafite pra mim, pra eu ficar rico, famoso.

P/1 – Tinha um lugar, uma região da cidade?

R – Geralmente é uma região um pouco mais próxima da onde você mora, mas eu já, como eu grafitava com o Denilson, por exemplo, a gente saía pelo centro da cidade grafitando, saía com as putas, nada que ninguém saísse transando, não, eu era moleque inclusive, o Denilson me respeitava muito. O Denilson, uma bicha super legal, puta cara legal pra cacete, ele e o Vallauri, trabalhamos muito juntos, então a gente não tinha um lugar determinado, a gente ia andando, bebendo e tal: “Vamos fazer um negócio aqui?”, “Vamos”, pá, “A gente vai sair?”, “Vamos”, “Então vamos naquele lugar, porque eu preparei uma máscara pra fazer lá”, “Vamos”. Então a gente ia fazendo os grafites de acordo, inclusive, com o que já tinha grafitado, você vinha e colocava alguma coisa pra brincar com o grafite do outro, entendeu, então era uma coisa assim. Não era um trabalho, o Júlio Barreto, o Denilson Júnior, o Vallauri, não, o trabalho foi ficando grande, as pessoas foram conhecendo depois, mas aquela época não tinha internet, mal tinha máquina elétrica, né, então a gente dependia da divulgação do trabalho da gente, ser celebridade, de matéria de jornal, quando ia preso ou quando...

P/2 – Como era essa relação com a polícia?

R – Ah, a relação com a polícia é sempre melhor do que a relação com vigia noturno, te garanto, porque a relação com a polícia é aquela coisa, né, para a polícia: “O que você tá fazendo?”, eu falo: “Ó, eu tô fazendo um grafite”, fala: “O que você tá grafitando?”, “Eu tô grafitando um personagem de história em quadrinho, que não é um super-herói, na verdade é uma homenagem a vocês que trabalham, é uma crítica à secretaria de segurança, porque vocês tão aí se ferrando e esse aqui, ó, é o Spirit, é um super-herói que não tem superpoderes, ele é um policial, ajuda como se fosse você, só que ele mora no cemitério, por isso que eu tô colocando aqui nesse cemitério”. Aí os caras: “Pô, que legal, deixa eu ver então, faz o seguinte”, aí o cara fala assim: “Ó, faz o seguinte, faz de conta que você tá indo embora, a gente vai embora, aí você volta e termina”, eu falei: “Legal”, aí eu peguei, coloquei as coisas no carro, os caras foram embora, eu voltei. Quando eu terminei o Spirit, que depois saiu até na Playboy, saiu, eu tenho fotografado isso, e era anônimo, eu não assinava, né, os caras passaram lá e curtiram: “Aí, Julião, que legal, não sei o que”. Então, quer dizer, a polícia era legal, sempre foi legal, eu acho que é uma questão de você ter educação, você tá fazendo uma coisa errada, tô, tudo bem, mas é o meu trabalho, então: “Você quer me levar preso?”, “Vou te levar preso”, chega na delegacia: “Eu já sei, você de novo aqui”, “É, sou eu de novo aqui”, aí o outro: “Você de novo, meu, pô”. Então, quer dizer, não ia conseguir me parar, porque não tinha só eu, tinha muita gente fazendo e não era um trabalho contra eles, eles seguiam as normas, levavam a gente, a gente ia lá, não, saía.

P/2 – Existia uma relação com os grafiteiros da periferia?

R – Olha, não tinha grafiteiros, não tinha gente grafitando, não tinha isso que tem hoje, se você for ver a cidade nos anos 70, 80, não tinha o que tem hoje, essa agressividade, essa volúpia de pichar tudo, de fazer 23 de Maio, de fazer tudo, essas coisas americanas, coloridas, não tinha muito isso, teve muito outdoor e tal. Isso foi crescendo, porque foi todo mundo querendo virar celebridade, os grupos de pichadores querendo ser celebridade, os grafiteiros querendo ser celebridade, aí entra as coisas instantâneas, aí para, porque na edição você já faz outra pergunta, eu tô falando demais.

P/2 – Os seus pais apoiavam?

R – Olha, quando eu era moleque, eu virei pro meu pai, perguntei, eu já era artista, né, eu virei pra ele e falei assim: “Pai, o que você gostaria que eu fosse?”, aí ele falou: “Médico não, você daria um ótimo advogado e um ótimo arquiteto, mas eu prefiro você um ótimo encanador do que um péssimo advogado, eu prefiro que você seja um lixeiro competente do que um arquiteto inútil, faz o que você quiser fazer, faz com carinho”, foi isso que ele falou pra mim. E aí eu tomei essa pra mim e me ferrei, porque virei artista, hoje eu sou artista, mas eu faço o que eu gosto, a mesma coisa, dentro dessa mesma coisa, óbvio, hoje eu pinto telas, pinto quadros, às vezes uma camiseta, faço recortes, tive parceria com o Carlos Matuck, somos muito amigos, muito próximos, estudo arte com ele, com o irmão dele, com os outros artistas amigos, discussões, né, e trabalhos também, grandes, trabalhos pequenos. Mas eu trabalho com arte, eu gosto, não é uma profissão que dê dinheiro, porque eu também não me, não quis a celebrização, não quis usar o meu histórico de Júlio Barreto, que é um monte coisa, depois eu mostro pra vocês o que tem em jornal, porque o Júlio Barreto foi muito famoso. O Júlio que tá aqui falando pra vocês tá contando uma história, mas tem o Júlio Barreto que foi muito famoso.

P/1 – Quando você começou a ficar famoso?

R – Oitenta e sete, o que estourou foi a morte do Vallauri, a morte do Vallauri foi a coisa, assim, que todo mundo começou, porque já tinha os amigos do Alex, do Vallauri, os amigos nossos, tal, e a gente fazia grafite, já tinha nós três, que fazia intervenções pela cidade. Os grafites sempre existiram, os artistas de rua sempre existiram, sempre se fez grafite na cidade, sempre se fez arte de rua, intervenção, morrendo o Vallauri.

P/2 – Ele morreu como?

R – Ele morreu de AIDS, no dia 27 de março, eu cuidei muito dele durante mais de um ano, fiquei, era uma época que AIDS ninguém sabia, óbvio, usava uma luvinha, sempre com lençol, fazendo massagem através do cobertor, né, ajudava, tal, trabalhava pra ele, fazia os trabalhos pra ele, com ele, montei exposição com ele, algumas, né, e ele morreu. E aí o que aconteceu? Morreu o Vallauri, morreu o Vallauri, bum, os grafiteiros, não sei o que, fazem homenagem, aí começa, aí Júlio Barreto aqui, Jonh Howard ali, Rui Amaral, Beto não sei o que, Maurício Vilaça, Juneca, uma infinidade de pessoas, né, e eu fui um deles. Só que me cansou um pouco, porque eu comecei a ficar celebridadezinha e eu detesto a celebrização, e aí, quando eu vi que começou a ficar muito famosinho, eu não tinha maturidade, eu tava com um monte de recortes, todo mundo me reconhecia. Até o guarda um dia falou: “Ah, é você, ah, sei”, um evento que aconteceu com o Dino Dragone, pegaram a gente grafitando, me deram o maior pau, puseram aqui e eu atrás, deram o maior pau da gente, aí chegou a polícia, eu mandei chamar a polícia: “Meu, chama a polícia, pelo amor de Deus”, chegou a polícia.

P/1 – Quem te deu pau?

R – Um vigia noturno, viu a gente, sacou, os moleques com pasta e mochila, não deu outra, a gente já tinha grafitado o Itaim inteiro, aí a última coisa, eu fui lá segurar pro Dino, tomei o maior pau. Bom, aí, enfim, rolou isso, né, aí eu parei de fazer grafite em 90, 91, então assim, na cidade efetiva e hardcore eu, conhecido já como grafiteiro, eu trabalhei três, quatro anos. Foi intenso, porque chegou a atingir Estado, fui pago pela Secretaria da Cultura pra viajar com o Matuck, pra gente fazer grafite no interior, mostrar como é que era, espalhar o que a gente sabia fazer. E era legal, por quê? Era o que eu queria, era mostrar que eu faço um trabalho legal e você pode fazer também, é só olhar, olha e tenta fazer, você faz, então o que eu faço, a minha intenção é essa, é mostrar que as podem fazer o que elas querem, por isso que eu ensino, quando quer, eu ensino como é que faz. Tem gente que não, né, tem gente que: “Ah, não vou mostrar”, eu já vi isso, e eu não, por ser filho de professor, amigo de gente generosa, eu não pinto pra mim, eu pinto pros outros, quem quiser vai lá, olha, depois adquire, sei lá. Mas a fama incomodou.

P/1 – Então você começou a grafitar desde cedo, o que mais você fazia na sua juventude?

R – Fazia esporte, fazia esporte, ouvia música.

P/1 – O que você ouvia?

R – Ah, eu comecei a escutar, bom, desde todos os jazz que eu tenho, que eram do meu pai, depois foi Beatles, aí dos Beatles pro Rolling Stones, aí ACDC, aí Frank Zappa, tudo aos 12 anos, e aí eu fiquei traduzindo. Então eu não sou um cara que, por exemplo, hoje em dia, gosta e conhece tudo, ouve tudo que é novo, eu não tenho a menor paciência, eu tenho aí, vamos dizer, um acervo de 30 ou 40 coisas de alguns vários estilos, que eu conheço algumas coisas e gosto muito do que eu conheço. Eu não sou um descobridor de um novo violinista, um novo cantor, não, eu gosto de música clássica, blues, jazz, música contemporânea, rock, que é o Frank Zappa, Police, ACDC, alguns rocks, né, muita música brasileira, adoro, eu tenho muito amigo músico, né? Aprender inglês por causa da música me trouxe contatos maravilhosos, eu fiquei conhecendo o Napoleon Murphy Brock, que tocou com o Zappa quando ele veio aqui, né, o próprio Zappa chegou a ver um recorte que eu tinha feito no palco pros meus amigos, né? Então eu tenho umas peças, assim, de uma vida meio realizada, assim, eu tô meio tranquilo, claro, gostaria de ter mais, mas só pra, não é nem mais pra mim, é mais pro meu moleque, por enquanto o que eu tenho tá bom, tá sendo.

P/1 – Maconha você experimentou a primeira vez quando?

R – Quando eu tinha 14 anos, com 13 anos eu descobri, o Alex, eu falei: “O que é isso aqui?”, eu saquei que era: “Ah, isso aqui é maconha, isso aqui a gente pega, põe no tabaco do cigarro, porque senão fica muito forte”, aí ele me deu um pouquinho, eu não fumei, levei pro Anglo Latino pra mostrar pro Edu, 12, 13, 14 anos de idade. Fui mostrar pra ele no banheiro, chegou o professor, a gente dançou com uma porra de um negócio que não dava nem um baseado, eu falei: “Puta que o pariu”, foi foda, porque o diretor olhava, o Edu chorando e eu ali, assim, e a professora, a professora falou assim: “Esse menino tá maconhado, você tá muito quieto, tá muito calmo”. Eu virei pra ele, falei assim: “Olha, eu não estou maconhado e, se você repetir isso de novo, eu vou pedir pra ligar já pro meu pai, eu vou fazer um exame de sangue e, se comprovar que eu não usei nada, eu te processo”, ficou assim, ó, tia Celeste ou tia Margot. O Edu não acreditou: “Ah, a maconha é dele, a maconha é dele”, “Essa maconha não é minha, eu ganhei, eu não conhecia, eu fui mostrar pra essa besta aqui”, aí foi isso. Aí fumei, mas nunca fui um fumador de cem gramas, não, fumei minhas maconhas, mas tem uma idade, né, que você conhece, aí você fuma bastante, aí vai pra Ubatuba, fuma pra caralho com os amigos, passa mal. Aí quando começar a fumar e baixar pressão, fica: “Ô, Júlio, você tá meio verde”, eu falei: “Vou vomitar, já venho”, quando você começa a passar mal, para, que é geralmente uns 28, 30 anos, hoje em dia eu quase não fumo.

P/2 – Ela também te ajudou no processo artístico?

R – Não, eu acho que no processo artístico você não pode jamais, no meu entender, se utilizar de uma química pra se tornar um estúpido, achando que você tá criando, quando na verdade você tá fugindo da sua realidade e a sua realidade é difícil, porque você criar careta é muito mais, entre aspas, fácil ou difícil do que drogado. Só que você cria drogado, algumas coisas são ótimas, como, por exemplo, eu não sou contra gente que adora fumar maconha pra jogar futebol, pra estudar Biologia, pra fazer ginástica, pra dirigir carro, pra dar aula, eu não consigo. Eu fumo um pra ficar relaxado, sabe, assim, pra desencanar, fazer qualquer coisa, esquecer aonde eu pus a chave, tudo bem, eu tô no meu ateliê, foda-se, sabe, agora, pra criar é complicado, eu acho que é fugir de uma coisa que você tem que encarar, sabe? Não é legal usar droga, assim, nesse sentido, entendeu, você não constrói nada usando droga.

P/2 – Quando você se depara com um quadro, assim, você cria a partir do nada ou você já tem uma ideia do que você quer criar e vai vindo?

R – Eu tenho os cadernos de anotação, né, então, por exemplo, eu tô olhando pra vocês aqui, então eu olho pra Rosana e vejo às vezes o brilho da calça dela, eu vejo o drapejamento da sua calça, né, e vou lá pro ateliê, às vezes, e fico fazendo uns desenhinhos, uns cartuns. Volta e meia, se eu tenho uma vontade de pintar, eu vou rabiscar, eu vou desenhar, eu vou pegar referência, né, eu vou dar uma olhada, tal: “Eu quero este tipo de coisa, vamos fazer assim”, feito isso, aí sim, aí eu me arrisco. É difícil sair pintando, essa coisa de: “Ai, eu sou um talento, eu faço qualquer bosta”, eu sou contra, eu desenho, posso até vir a colorir o desenho, ou seja, pintar, mas sempre parte de um desenho, desenho este que você pode tanto imaginar e criar ou de uma memória que você tenha, você tem uma memória, você pega de memória, você desenha. Eu desenho muito de memória de situações que eu já vivi, por exemplo.

P/2 – Teve alguma bem marcante que você lembra?

R – Não, não tem uma ou outra marcante.

P/2 – Tem um quadro que foi muito importante?

R – Não, não, tem quadros muito legais, que eu adoro, e tem quadros que eu acho uma merda, detesto, acho uma bosta, mas também fico quieto, porque não me deixam mexer: “Não, tá pronto, não mexe mais”, “Tá bom, então tá”, né, os caras entendem. Agora, eu fico nessa viagem, né, eu nunca acho que tá bom, tá, é legal, é legal, pode melhorar? Posso, mas então, puta, eu vou comprar outro em vez de pintar de novo, pinta, deixa assim, experimenta, é que nem desenho, não se joga fora nada, desenha no papel, guarda, depois você vai comparando ou usando pra criar outra coisa.

P/2 – Você sente que teve algum, por exemplo, algum momento na sua trajetória artística que você deu um salto, assim, de melhoria de qualidade?

R – Não, não, quer dizer, quando eu comecei a trabalhar com o Turco, com o Carlos Matuck, e comecei porque ele viu que eu tinha a mesma piração que ele de máscara com o traço limpo, que a gente faz máscaras, uns estênceis, que têm grampo de vários tamanhos, a maneira como eu gosto de aplicar, né, na parede, fica uma coisa limpa, né, por ver isso, ele me chamou pra trabalhar com ele. E aí é um cara muito legal e a gente faz muito bem juntos o trabalho, tanto o meu trabalho sozinho eu faço bem como ele faz o dele, como os dois quando juntam, é que nem você chegar, o disco e a agulha, sabe, assim, põe, já toca, ou seja, ele entra, eu já sei o que tem que fazer. Quando eu tô fazendo, ele fala: “Tá aqui”, ou quando eu peço ele já tá trazendo, então é uma simbiose, simbiose, uma coisa muito forte, muito bacana, ao mesmo tempo a gente tem trabalhos bem diferentes e muito iguais também. Então, a partir do momento que eu comecei a conhecer o Turco, que eu comecei a assistenciá-lo.

P/2 – Que foi quando isso?

R – Ah, eu comecei a assistenciar o Turco em 89, 90, 89, em 89 a gente foi viajar pela Secretaria do Estado da Cultura, num projeto chamado Grafites, um grupo ia pra Guararapes, depois ia pra Brodowski, depois ia, não sei, foram algumas cidades assim, pra grafitar na cidade e era tudo bacana, alojamento, hotel, tudo legal, e depois a gente mostrava o trabalho, como que era, tinha uma apresentação pública, né? Eu tenho, Mococa, eu fui pra Mococa, eu tenho um cartaz, a minha mãe guardou até hoje, senão não tinha história, achei umas coisas históricas, que eu falei: “Puta, olha que demais”, os cartazes, sabe, umas coisas que hoje não existe mais, hoje é tudo flyer virtual, né, então ele fica piscando na sua tela, né? Então a partir do momento que eu comecei a trabalhar com o Matuck, eu tecnicamente fiquei muito bom, beirando o chato, quando me toquei que tava tão técnico, tão chato, que eu falei: “Agora chega, eu vou pintar”. Ele já tinha falado: “Júlio, você tem que pintar, Júlio, não adianta você ficar só me assistenciando, você tem que pintar, senão você fica louco”, não sei o que. Foi ele que, junto com a assistência, me tirou da cocaína, porque eu era um molecão de 20 e poucos anos de idade, lambreta, cheirava e bebia e mulherada a noite toda, e ia trabalhar com ele, aí eu ficava deprimido, ele: “Tá, tá deprimido? Vamos lá pro ateliê”. De tanto eu ir pro ateliê com ele, eu acabei realmente desencanando e parei, então a arte me ajudou nesse sentido.

P/1 – Você chegou a fazer faculdade?

R – Eu entrei em Comunicação na FAAP, mas eu cheguei três meses depois da matrícula, é, eu entrei na última lista, o Afonso, amigo meu, falou: “Meu, você entrou na faculdade, você entrou lá”, eu falei: “É mesmo?”, “É, na última lista”, eu falei: “Pô, legal, e aí, vou lá”, “Não, nem vai, bicho, nem vai porque já acabou o prazo de matrícula”, eu falei: “Então tá”, amarrei as pranchas no carro e voltei pro sul pra pegar onda. Mas estudei um ano de Artes Gráficas no Senai, um curso intensivo, das sete às cinco, um ano inteiro, sem faltar, na Artes Gráficas, não existia Desktop Publishing, como tem hoje. Então eu conheci impressão, tudo, porque o meu tio, que trabalhava na Abril, o irmão do meu pai, viu eu fazendo grafite, ele falou assim: “Olha, famoso você já é, e já vi que você tem noção de registro e tal. Você não quer estudar Artes Gráficas?”, eu falei: “Eu vou estudar”. Aí eu terminei o curso e fui fazer um estágio numa agência, eu tava pronto pra virar assistente de direção de arte na Abril, mas eu falei: “Não, não quero ser empregado, não quero ter patrão”, me fodi, virei artista, mas depois fiz ilustração pra Carta Capital, pra outras revistas de uma editora, que conhecia o meu tio, Eduardo Barreto, o irmão do meu pai, então assim...

P/2 – Por que você fala assim: “Me fodi, virei artista”?

R – Porque é uma maneira brincalhona de dizer que arte é difícil de ganhar dinheiro, é uma maneira brincalhona, irônica, sabe, assim, porque tem muita gente que se gaba: “Eu sou artista”, sabe: “Vendo a um milhão de reais, estive em Inhotim”, não posso falar, né? Vocês editam isso, mas eu falo, gente que casa com o dono de Inhotim, sabe, depois separa, não sei se é Varejão ou se é Milhazes, gente que quer usar o pincel de ventosa social pra poder subir e ficar milionário no mundo das artes. Então tem gente que se orgulha de ter feito grafite em tal lugar e de valer tanto, apoio todos os grafiteiros, Os Gêmeos, por exemplo, são milionários, eles quiseram ficar ricos, era a intenção deles ficar ricos, se o trabalho deles é bom ou não é, isso não me interessa, se eu gosto ou não, isso não interessa, alguma coisa eu gosto, outras não, outras eu acho bobagem, tudo cansa, datado. Daqui a 15 anos a gente vai levar esse mesmo papo e a gente vai falar sobre os grafites de hoje e os daqui a 15 anos, se não estão os de hoje iguais aos que já tinham há 25 anos atrás, só muda nome, e eu não tô nessa, né? Por que eu tô falando isso? Porque você perguntou.

P/1 – Por conta de: “Sou artista, sou fodido”.

R – É, que é uma gozação que eu faço, porque, assim, os acadêmicos, os Katinsky, vamos dizer, tirando outro sarro, ou gente como a minha mãe, tal: “É artista, é artista”, tem gente que é artista e é milionário não por causa da arte, porque é milionário e vira artista. Eu sou artista e não sou milionário, sou duro e, por ser duro, sou duro por ser artista, porque, se eu fosse um arquiteto, talvez eu fosse mais bem sucedido, como artista eu também poderia ser mais bem sucedido se eu tivesse abertura de faringe e estômago pra engolir todos os sapos e as pessoas chatas e o esquema que você tem que entrar pra se tornar um artista de grana. Porque de grana é uma coisa, o importante pra mim, eu acho, eu não me importo em ter grana, mas eu preciso ter grana com uma coisa legal que venha do meu trabalho, eu não tô interessado em vender pra Rosana 153 telas azuis porque os clientes dela querem telas azuis, esse não é o meu trabalho, entendeu? Depende do dinheiro, tá, a gente pinta (risos), mas, sabe, assim, tem gente que faz de tudo pra virar artista.

P/1 – Que momento que você decidiu, teve esse momento que você decidiu: “Vou ser artista”?

R – Não sei te dizer, Rosana, eu, desde moleque que eu fazia essas máscaras com o Alex pra pintar, às vezes pintava meus quimonos lá em casa, tal. Foi talvez por falta de, por ser vagabundo mesmo, foi por ser vagabundo, eu era muito filhinho de papai e tinha já um conhecimento, gostava de marcenaria, com o Seu Bifulco e tal, então eu sempre me dei bem com bricolagem, vamos dizer assim. Se eu tiver equipamento necessário, o suficiente, eu ponho coisa, monto coisa, entendeu, isso talvez fosse a veia do marceneiro com o arquiteto, não sei, porque eu gosto de movimentação de móvel, espacial, trabalhar isso, o espaço que o ser humano habita, né? Eu sou filho da Dona Vilma, a gente carregou móvel a vida inteira, a casa tava sempre, então resolvi ser artista porque me disseram: “Olha, você tem um desenho bom, por que você não vai estudar mais desenho?”, aí eu fui estudar mais desenho. E os grafites, eles foram tendo uma aceitação muito legal, e dos grafites viraram possibilidades de pintar camiseta, de juntar com um amigo que era dono de uma empresa e eu tinha pichado uma camiseta, ele gostou e queria fazer, eu falei: “Vamos fazer”, fizemos, vendeu tudo. Eu tava tendo um retorno e a simpatia de volta de um trabalho que eu gostava de fazer, né, então punha gente pra estampar pra mim, eu estampava junto, eu sempre gostei, então desde criança que eu...

P/1 – Com quantos anos você saiu de casa?

R – A primeira vez eu passei dos 14 aos 15, eu fiquei um ano na casa da minha tia Terezinha, que eu briguei com a minha mãe, louca, me pôs pra fora, mas eu saí de casa mesmo quando tudo tava muito fácil demais, aos 23 anos. Fui morar num apartamento que a gente tinha ali na Marechal Deodoro e minha mãe falou: “Artista não vai conseguir morar sozinho”, eu falei: “Não, mãe, eu vou dividir com o Wilde”, “Ah, o Wilde fez USP, o Wilde é biólogo, ele tem emprego, então tá”. Desde que eu fui morar com ele, ela nunca me deu um puto, nunca precisou me dar um puto, hoje em dia não, hoje em dia ela me ajuda a pagar o meu plano de saúde, né, tcham. Aí no começo, puta doido, fazendo máscara em casa, saía sete da noite, chegava sete da manhã, quando o Wilde chegava, eu tava saindo e ele tava voltando, eu, careca, com mais duas meninas, careca, sabe, assim, era engraçado. Então essa época dos 23 aos 25 anos foi muito gozado, foi puta zona, mas eu já era artista, né, eu já vivia fazendo, toda hora, toda hora eu tava trabalhando, eu tinha que me sustentar. Eu falei: “Mãe, eu preciso ir embora daqui”, “Por quê?”, “Porque acabei de negar um grafite, pra mim tá muito fácil morar aqui e não precisar fazer nada, eu quero me ralar”, o Matuck que fez isso comigo: “Sai de casa, meu, é a melhor coisa”. Saí e fui trabalhar e, olha, não dá mais pra voltar pra casa da mãe, que tem lugar, tô fora.

P/2 – Nessa época aí, quais eram as suas influências artísticas?

R – Ah, meu, é difícil de dizer, cara, porque um quadro que me marcou muito foi o Cézanne, algumas coisas do Cézanne, que tinha uns pôsteres em casa. A casa da minha mãe, se você entrar hoje, é difícil, você vai entender o que eu tô te dizendo, porque tem Bernard Cide, que era um cliente do meu pai, tem pintores desconhecidos, tem o tio Casalino, Francisco Casalino, que era bem naif, tem os impressionistas, tem os contemporâneos, os abstratos, tem gravuras. Tem muita coisa, que eu não fui criado num estilo, não, tinha tudo, tudo o que você pode imaginar, ainda tem, aliás, sabe, coisa que eles traziam da África, pintada em cortiça, reprodução do Picasso, do, a montanha lá, como é que chama? Do cavaleirinho lá, do Dom Quixote, aqueles nanquim, pintura chinesa, pintura a óleo, tudo, e até alguns meus, né? Então é difícil te dizer qual é a minha influência total, hoje eu posso dizer pra você que o que eu mais gosto, eu não vou falar do choque que eu tomei quando eu vi os Picassos, o que ele fazia aos 14 anos, se você olhar, você vai ficar mal, o Velázquez, que eu vi todo mundo de perto, Goya. Colocando pra cá, pra mim os melhores, o melhor é Rubens Matuck, porque o Rubens faz tudo, as aquarelas, ele é uma pessoa insuportável, que nem a minha mãe, às vezes, edita, hein, Rubens, ele faz aquarela, ele faz escultura, ele faz ilustração, ele faz pintura a óleo, ele dá aula, ele ensina, ele faz um monte de coisa, que eu nem quero fazer esse monte de coisa, mas viver com ele. O Aldemir Martins me deu vários toques nas pinturas, sabe, assim, eu conheci um pouquinho só a Tomie Ohtake, mas eu vivo com muito amigo, com muita gente mais velha, e eu pego um pouco de tudo e vou insistindo, geral, assim, é difícil de dizer, Jonas, as minhas influências são várias. Agora, eu, que vim do estêncil, do grafite, ainda uso o estêncil pra algumas coisas, mas o meu trabalho mesmo, se você for ver, como vocês viram lá, tem muito quadro que não tem mais estêncil, é tudo na mão mesmo, direto, sabe? Por exemplo, o Baselitz eu gosto, aquele alemão, o Baselitz, adoro a pintura dele, adoro.

P/1 – Na sua juventude tinha exposição de artes?

R – Tinha, eu ia, eu ia.

P/1 – O que tinha que você lembra?

R – Olha, eu lembro Nikolichev, eu lembro do Tosi, lembro de umas coisas que vinham de uns outros artistas, que agora não me vem direito na cabeça, tem o Álvaro Vaz, que é até meio contemporâneo meu, um pouquinho mais velho, e tinha outros também que eu ia. Mas às vezes eu ia também por causa dos vinhos de graça (risos), lógico, né, quer beber de graça vai em vernissage, é lógico, né, meu, quer, pô, fala sério, era o que eu fazia, mas aí acabava olhando e conhecendo e vendo e falava: “Pô, olha só”, tinha umas coisas que você fala: “Não, medíocre, não dá” e você vai discutindo, conversando. Tem coisas que eu adoro, tem coisas que não, mas não quer dizer que são coisas boas ou são coisas ruins.

P/2 – A arte já chegou a fazer um negócio de tirar da realidade mesmo?

R – Não.

P/2 – Tipo você ver um quadro e você ficar totalmente absorvido?

R – Não, não, quer dizer, não nesse sentido de: “Ahh”, tem gente que fica: “Anh” com Dali, eu olho, acho legal, acho bonito, outras coisas do Dali eu gosto. Pollock, por exemplo, todo mundo conhece o que do Pollock? Aqueles espirros, né, vai ver o trabalho figurativo dele antes, do caralho, entendeu, vai ver os desenhos com 14 anos do Picasso, as primeiras telas que ele fez, os desenhos. Então as pessoas gostam de, sabe, do quadro que o Picasso fez dos cachorros que o Velázquez tinha pintado, legal, mas não conhecem nada, ou então não gostam do Picasso, porque o Picasso fazia um olho assim, não sei o que. Meu, alguém já viu o Picasso fazendo os trabalhos? Então, quer dizer, é difícil você dizer: “Ah, o que me impressionou foi isso”, não, eu vi várias pinturas desde Bonardi, aquele outro, o Egon Scheele, do Paul Klee, sabe, o Rubens, o Aldemir, aquele louquinho. Como é que chama aquele que ficou no hospício a vida inteira? O Bispo do Rosário, sabe, essa coisa piração, essa coisa da art brut, sabe, dos excepcionais, eu tenho uma irmã excepcional que tem pilhas de desenhos, que ela não parou de fazer por minha causa, ela conheceu a música, o rock’n’roll por minha causa, e ela nunca mais parou de pintar em papel. Ela vai deixar um acervo monstruoso, eu não sei o que fazer com isso, eu queria levar pra Suíça, pra Suíça ver o trabalho dela e ver o que poderia fazer, como artista essa seria a minha glória, fazer com que um trabalho da minha irmã Elisa, com que a Elisa se torna-se uma pessoa, que ela pudesse ir pra um museu de uma pessoa, pro Museu da Pessoa. Eu acho que tudo bem, o meu pai foi isso, eu fui aquilo, a minha mãe, não sei o que, legal, mas quem é Elisa Barreto de Souza, minha irmã mais velha? Que foi de uma certa forma colocada de lado por vergonha mesmo.

P/1 – Isso que eu ia perguntar, voltando atrás, como é que era? Como é que os seus pais lidavam com essa sua irmã?

R – Como podiam, hoje em dia você pode até dizer, falar mal, que o meu pai errou, mas o que tinha na época era o que foi oferecido, hoje você tem escolas com interatividade, que as crianças vão lá, os jovens, então tem escola clube, tem escola, essa, essa, só pra pessoas excepcionais. Naquela época, o meu pai tinha um jeito, tinha uma escola, educou a Elisa e alfabetizou ela legal e tal, talvez existisse, mas talvez não houvesse também, da parte deles, disposição ou o que, alguma falha houve que eles conduziram errado a criação emocional da Elisa, até social e ela ficou confinadinha, vamos dizer assim, no sentido de ela fala pra você: “Eu sei que eu sou excepcional, eu sei”. Um dia ela falou um negócio pra mim que eu fiquei mal, então ela tem noção, eu não posso

dizer pra você que os meus pais falhara, fizeram o que deu pra fazer, mais ou menos assim, foi feito com a Elisa o que a minha mãe conseguiu fazer com os meninas, ou seja, a minha mãe não sabe lidar com criança, com menino, então ela lidou de um jeito básico, nada de Coca-Cola, só suco de laranja, Coca-Cola só em festa. A Elisa, como uma pessoa excepcional, foi cuidado, tudo, normal, sempre meio que na igualdade, né, em todos os sentidos, mas não sei se eles souberam, porque o meu pai era médico, medicava a Elisa, morreu, trocou, a gente começou a ver que a Elisa começou a ficar com problema, tal: “Vamos ver o que é?”, “Vamos”, tirou um monte de medicação da Elisa, porque o meu pai era um que tava depriminadasso, se fodeu e delegou tudo, né? Então hoje a gente vai na casa da minha mãe, né, tá lá com ela e é assim.

P/1 – Você casou?

R – Casei, casei, eu conheci Patrícia em 2001.

P/1 – Seu primeiro casamento?

R – É, de casamento mesmo, né, eu conheci Patrícia em 2001, a gente se casou em 2008 e ficamos casados até 2013, aí em 2013 eu fui mandado embora, com uma certa razão e com outra certa não razão, eu dou razão pros dois lados, fui mandado embora. Eu tenho um filho com a Patrícia, que veio depois de muita luta, muito custo, muita batalha, moro hoje aqui na Vila Madalena e eles moram em Moema.

P/1 – Quantos anos tem o seu filho?

R – Fez quatro ontem, dia 17.

P/1 – O que mudou na sua vida depois que você teve filho?

R – O que mais tá pegando pra mim é o papo do cigarro, que é a única droga que eu uso que não me dá nada, dor de cabeça, nada, mas sei que vai me detonar, como já tem me detonado. Eu tô hoje com 49 anos e tô sentindo algumas diferenças, por exemplo, no tônus muscular, tô preocupado com o cigarro. O que mudou com o meu filho, fez com que eu tirasse as minhas tendências suicidas ou autodestrutivas demais, vamos dizer, ou seja, tirou a minha liberdade de beber pra caralho e andar de moto como eu quisesse, tirou minha liberdade de dormir onde eu quisesse, tirou, sabe? Eu tive que me tornar um homem, vamos dizer, não vou nem fumar do lado dele, né, e tento não fumar mais do lado dele, claro, às vezes, ele já me viu, ele já sabe, ele já pegou o cigarro, falou: “Eu gosto do cheiro do cigarro”, eu falei: “Filho, o cigarro faz mal”. Então eu acho que o que mexeu, além de outras coisas, que talvez só numa sessão de terapia pra poder explicar direito, mas, resumidamente, inevitavelmente vem a comparação com a minha paternidade, com o que eu tive de pai, o modelo de pai que eu tive e o modelo de pai que eu sou. Mas eu repensei isso de novo, ainda mais ontem, depois que eu vi que ele pegou o meu celular e desbloqueou, como que o moleque consegue desbloquear o celular? Desbloqueou, eu falei: “Pô”, então, quer dizer, é um outro tratamento, é uma outra coisa, sabe, é uma outra preocupação, tá bem cuidado com a mãe dele, uma pessoa ótima.

P/1 – Vocês se dão bem?

R – Não, a gente não se dá bem, porque ela é muito turrona, ela não quer entender, eu não tô brigando e não nos darmos bem não significa que a gente briga, simplesmente ela me processou, um puta processo litigioso, pelas costas. Eu, em vez de entrar com os dois pés também e falar: “Fodeu, pau a pau, me dá tudo aqui, não sei o que, o que é meu, o que é meu, não sei o que”, eu ia fazer o que, eu ia tirar tudo dela e deixar o meu filho como, com o quê? Não, eu montei a casa pra eles, pra nós, se eu saio, tudo bem, saí, beleza, dói muito mais do que a perda do meu pai, em 2013, 2014, 2014 meu pai morreu, não senti nada com relação ao que sofro até hoje, da saudade que eu tenho do meu filho, do levar ele pra escola, do buscar, de ficar com ele de noite. Ao mesmo tempo, eu gostava disso com a mulher junto, só eu não dá, eu não consigo, entendeu, então eu sofro, mas é assim.

P/1 – Por que vocês se separaram?

R – Porque eu sou uma pessoa insuportável, a Patrícia não conseguiu me entender muitas vezes, ela entrou num silêncio absoluto, eu perdi a cabeça, porque não conseguia mais conversar com ela, porque agora tinha o Pedro, porque não pode brigar, porque não sei o que. Tentei terapia de casal, fiz terapia, tomei antidepressivo, fiz o diabo, não conversou comigo, não conversou, um dia eu perdi a cabeça e mordi o celular dela e peguei ela pelo braço, pegar no braço e falar no ouvido dela em tom de ameaça, pra mim isso foi uma coisa muito chata. Sexualmente a gente já se pegou até com mais força, sabe, mas isso foi uma espécie de uma agressão, então eu não machuquei nada, não machuquei, só peguei, desesperado, falei: “Meu, fala pra mim, meu, você não fala comigo no celular, não manda torpedo, torpedo é de graça, uma conta com a outra e você não sai. O que tá acontecendo?”. Aí me mandou embora, eu já tinha visto essa cena, ou seja, eu vivi isso, o meu pai batia na minha mãe e não conseguia sair fora, o dia que eu perdi a cabeça, isso já tinha acontecido alguns anos antes com outra namorada, quando subiu à cabeça, que me deu vontade, eu falei: “Fora, acabou, some daqui”, porque me deu vontade de dar porrada. “Ah, por que não deu?”, porque eu não sou homem de dar porrada em mulher, e aí Patrícia pediu pra sair, como a terapeuta pediu pra que não houvesse gritos, porque o Pedro não merecia, eu resolvi não gritar, não brigar, ou não fazê-la gritar, porque, afinal, ela tinha razão em alguma coisa, não só sou eu que tenho razão. É diferente, as medidas de castigo, ela me pôs um castigo muito pesado, talvez eu não merecesse, não sei, ou merecesse por um tempo, mas, enfim, foi isso, a separação foi assim, infelizmente agora eu preciso arrumar um advogado, porque eu tenho direito de revisão de guarda e eu quero ficar o fim de semana com o meu filho e ele também quer e ela não entende que a lei permite.

P/2 – Você sente que em algum momento vocês se amaram mesmo?

R – Sim, claro, sim, a gente se amou, sim, bastante, sempre, sempre você só consegue ficar com uma pessoa, tô falando até por Patrícia, se você ama ela, ela tinha que me amar de alguma forma, mesmo eu sendo insuportável, eu a amava também e tentava ser menos insuportável, mas às vezes ela me dizia, eu tentava agradar. Eu não sei, depois começamos aquela coisa de casal, aquela coisa comum, clichê, também não vou falar aqui sobre o convívio e tal, não sei o que, acostumar, sabe, aquela coisa.

P/2 – Insuportável como?

R – Ah, eu tenho um gênio meio franco demais, meio gozador, né, difícil você, assim, você pode ver pelo Facebook as bobagens que eu escrevo lá de vez em quando, que, aliás, eu até parei, porque uma amiga minha falou: “Você é muito agressivo”, “Tá bom, tá bom”. Eu tiro sarro, eu tiro onda e às vezes eu sou muito perfeccionista, eu sou neurótico com horário, por exemplo, gosto de fazer umas coisas, mas é difícil dizer, Jonas, assim, só você convivendo mesmo. Eu acho que eu fui insuportável com ela, porque eu fui escroto, fui estúpido algumas vezes, falei algumas coisas meio pesadas, não de xingar de puta: “Vai tomar no cu”, não, eu falei coisas que pegaram pesado e que não se fala, que não se faz, ou então aguenta depois.

P/2 – Você lembra qual foi o melhor momento com ela?

R – Ah, não lembro, foram vários, a gente foi viajar pro Chile, pra Argentina, pra Arraial do Cabo, pra Florianópolis, com amigos também, vários momentos muito legais, muito legais, vários, foi bem bacana, valeu a pena.

P/1 – Voltando um pouco lá atrás, você disse que o seu pai batia na sua mãe, que momento que você viu isso, quando vocês eram pequenos isso acontecia?

R – Sim, quando a gente era pequeno, eu lembro que o meu pai até tinha um Galaxy, a gente, eu, como irmão mais velho, né, todos ouviam, eu, talvez por ser mais velho, tomei a postura do meu pai, porque eu discerni errado, eu via ele pedindo pra parar: “Pelo amor de Deus, para de não sei o que, não é verdade, não é verdade” e a minha mãe enchendo o saco, enchendo o saco, pum, porrada. Aí tinha briga que ia lá pra baixo, aí ele ia sair de carro, porque ela mandava embora, aí ele ia embora, ela não deixava, sabe, aquela puta zona. Bom, resumindo, rolava uns pau, acho que eu vou pro último, que foi quando eu estava no banho, entrando no banho, tocou o telefone, eles tinham telefone aqui, ela atendeu o telefone e daqui a pouco ela começou a gritar, dar risada, não sei o que, ou gritar, não sei. Aí eu só sei que eu saí do banheiro, quando eu saí do banheiro eles já estavam brigando, saiu eu, veio meu outro irmão e o outro irmão menor, eu peguei meu pai assim, aí eu dei uma porrada no braço dele e falei: “Ó, se você encostar de novo na minha mãe, eu mato você de porrada”, isso junto com o Tite. Ele era barrigudo, aí eles ficavam discutindo e a minha mãe é foda, minha mãe, ela põe o dedo na cara, ela faz assim, ó, de tirar fora do foco, sabe, e o cara detestava dedo na cara, ah, meu, aí ele vinha com aquele barrigão e pumba, dava barrigada nela (risos), voava: “Ó, não encostei a mão nela, eu não encostei a mão nela”. Eu falei: “Mãe, o que que você tem que chegar perto do meu pai pra ameaçar ele?”, dava uns puta pau.

P/1 – Por que eram as brigas?

R – Porque são dois loucos, eram dois loucos, quem que não é louco? Uma louca, minha mãe é louca e meu pai era outro louco e eu causei muita briga também, porque eu era o capanga. Lembra daquela piada do Chico Anísio, pai, pai? Então, ele era o pai, pai e eu era o filho do pai, pai, uma coisa péssima que a minha mãe fez foi isso, foi de tentar separar: “Olha, vocês dois, filhos, vocês fiquem sabendo que seu pai não queria ter vocês, seu pai gosta do Júlio, ele não gosta de vocês, o Júlio é protegido do papai”. Isso foi uma puta sacanagem, porque hoje eles tão vendo o absurdo que foi, então eu fui estigmatizado na casa como filhinho preferido, o que é um grande absurdo, talvez com uma explicação, é bom que fique gravado mesmo. Eu posso tentar elucidar isso da seguinte forma, meu pai teve a Silvia, aí teve a Elisa, só que essa Elisa morreu, aí veio a outra Elisa, excepcional, aí nasceu o Júlio, que dizem que era normal, não sei, né, até hoje, mas o Júlio bebê teve uma infecção urinária e tinha umas puta febre, não sei o que. Numa das chapas viram que eu tenho um puta defeito de coluna, e aí tiveram que reimplantar meus ureteres, então o primeiro filho do cara, eu era um bebezinho bonitinho, o primeiro filho do cara, depois de perder uma filha e ter uma outra excepcional, é claro que o primeiro filho ele vai cuidar e, se viessem outros com problema, como eu tive, ele também cuidaria, sorte que não tiveram. E minha mãe não conseguiu entender isso, que o meu pai, se tivesse alguma preferência por mim, talvez é porque quando eu era pequenininho eu tinha asma brônquica, de alergia a pelo de gato. Depois, quando eu cresci, com uns 20 e tantos anos, havia sim uma diferença, por quê? Porque eu lia Paulo Francis, Woody Allen, João Ubaldo Ribeiro, Veríssimo, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Millôr Fernandes, Jaguar, Pasquim, a Bundas, eu lia essas coisas pra poder, primeiro, entender o que eles tavam falando e eram coisas engraçadas. Eu tinha sempre uma coisa muito rápida, de resposta rápida, que o meu pai adorava e minha mãe ficava puta da vida, então, quando juntava dois, três, minha mãe aqui, minha mãe já ficava contra meu pai e aí eu tirava sarro, que minha mãe falava pra caralho, puta, como fala, e falava de boca cheia e a gente: “Mãe, falando de boca cheia”, a gente enchia o saco dela, puta que o pariu. E aí foi isso, que eu saiba, que mais?

P/1 – Seus avós conviviam na sua casa?

R – Sim, tem fotos deles, né, eu sei que eu fui um dos únicos netos que tomou umas chineladas do meu avô Barreto, porque, por causa de alguma coisa do meu irmão, que eu falei, desafiei ele, xinguei ele, nem me lembro, mas eu sei que eu tomei umas chineladas que não doeu, assustou. Meus avós frequentavam, a minha avó, a mãe do meu pai, morreu na casa da gente, né, há uns dez anos, sei lá, dez ou 15 anos, acho que dez anos, nem isso. Meu avô Barreto morava em Santos, então eles vinham de fim de semana, tudo, a gente ia pra lá, havia uma coisa familiar, isso aí tinha. Minha avó materna morreu antes e o meu avô materno morreu quando eu tinha um ano e meio, mas a gente ia pra casa da tia Terezinha de noite, de Galaxy, de pijama já, pra comer pizza e brincar na cada da tia Terezinha com as primas e o primo, foi uma família normal, assim.

P/1 – Na adolescência, que lugares que você, na juventude, você frequentava em São Paulo?

R – Rose Bombom, Radar Tantã, lógico, depois foi aquele Aeroanta, os outros bares ali nos Jardins, um ou outro, frequentava muito, eu ia muito pra casa dos meus amigos, né, da Aclimação, quando eu ficava em São Paulo, porque de fim de semana era praia, era surf direto, né? Então tinha vários lugares, assim, pra mim os mais claros foram os lugares como Rose Bombom, como o tal do Singapura, lembra do Singapura? Que não sei se é na mesma rua do que era o New York, o New York só tinha cheirador, era uma puta zona, esses lugares. Tinha o outro lado também, que tinha o Frevo, né, o Frevinho, que mais, tinha os cinemas também, às vezes eu ia em alguns cinemas, eu ia muito, eu ia em cinema sozinho, eu ia em cinema sozinho, minha namorada é cinéfila, fala não sei o que, eu falo: “Eu ia em cinema sozinho”, ela não acredita, mas tudo bem. Foi lá que fui no cinema sozinho, por causa de uma dor de barriga eu tive que entrar no cinema, que eu assisti o filme com o Peter Sellers, O Videota, Muito Além do Jardim, assisti quatro vezes o filme, de tão lindo que eu achei, uma coisa maravilhosa.

P/2 – Você falou dessas regiões que você rodava, eu queria saber quais as regiões que você rodou grafitando.

R – Olha, Jonas, teve um tempo que eu morei no Planalto Paulista, né, no Planalto Paulista, onde morava o Maurício Vilaça e a Alice morava aqui, do outro lado da Avenida Indianópolis, então, como eu vivia na casa da Alice e o Vilaça ali, então eu grafitei muito por essa zona sul. Eu grafitei um pouquinho na zona norte, mas era mais a zona central mesmo, zona oeste, Lapa, um pouco de cada tudo, assim, do Planalto Paulista pra cá, no centro, lá no centrão, na zona oeste, Pinheiros, bastante, é difícil de dizer assim: “Ah, mais a zona leste, mais a zona norte”, eu ia um pouco de tudo, assim.

P/1 – Como que você ia?

R – Às vezes eu ia a pé, andando, o Alex, por exemplo, fazia assim, eu comecei a aprender assim, você pegava um táxi, ia até tal ponto da Paulista, de tal ponto da Paulista você ia a pé, grafitando até a Vila Mariana, da Vila Mariana você descia, dava nos Jardins, aí grafitava nos Jardins, aí pegava um táxi, voltava aqui pro Alto da Lapa, aqui perto da Heitor Penteado e vinha andando e grafitando. Então eu saía de noite, às vezes de ônibus mesmo, saía de ônibus, às vezes tomava táxi de volta, né, às vezes de carro, quando eu comprei um carro, né, eu fiz um grafite numa festa, comprei um carro, o filho rebelde, o vagabundo comprou o próprio carro fazendo grafite no aniversário do pai, neguinho ficou assim. Acontecem coisas estranhas na minha vida, acontecem, ô, muitas.

P/1 – A gente vai encaminhar pras perguntas de final, Júlio, olhando, deve ter várias coisas que a gente não tocou, tem algum fato, algum momento da sua vida ou algum registro que te venha agora e que você queira deixar gravado?

R – Eu não sei, a gente não falou, não, eu acho que, se eu tô aqui hoje, foi pelo o que meu pai falou: “Faz o que você quiser, faz com carinho”.

P/1 – Olhando a sua trajetória de vida, se você pudesse mudar alguma coisa, você se arrepende de alguma coisa que você fez, que você faria diferente?

R – Eu me arrependo de muita coisa que eu fiz, mas eu não voltaria o tempo pra fazer isso diferente, eu voltaria no tempo pra fazer outras coisas que eu deixei de fazer, mas não de não fazer o que eu fiz. Eu queria talvez ter aproveitado um pouco mais algumas palavras, como: “Estuda, estuda”, sabe, eu aproveitei inglês e computador, computador eu não gosto, inglês eu gosto.

P/1 – Quais são os seus sonhos hoje?

R – Olha, os meus sonhos hoje são: conseguir fazer um trabalho legal, conseguir ter dinheiro pra comprar uma casinha pequenininha pra mim, pra eu poder ter o meu ateliê, com os meus livros, uma casa pra mim, pro meu filho, que vai ficar com ela, e uma casa onde eu possa receber as pessoas pra ensinar o que eu sei, seja dando aula, dando curso ou festa ou o que quiser. Assim, eu acho que eu tô nessa, porque, cara, eu tenho visto a morte esse tempo todo, o que sobra, meu? Não sobra nada pra mim, tem que sobrar pro resto, que sobre bom, né, que seja bom.

P/1 – O que você achou dessa experiência de contar a sua história de vida aqui pro Museu da Pessoa?

R – Acho que é super legal, é importante, agora, é legal se tivesse mais vezes, porque tem mais histórias dentro desses tópicos que são interessantes de serem colocadas, como, por exemplo, o que eu acho do grafite e da pichação, o que eu acho do PSDB ou do PT, não, política não, tô fora. Qualquer coisa, sabe, assim, o que eu acho sobre educação de criança, o que eu acho sobre criança, posso entrar com uma verborragia absurda sobre uma brincadeira, sobre homens e mulheres, posso fazer piadas, eu posso sei lá, contar sobre como que eu deixei de acreditar em Deus ou se eu acredito ou não, às vezes sim, às vezes não. Acho interessante deixar certos depoimentos, porque, queira ou não, eu fiz alguma coisa na Cidade de São Paulo, daqui a 25, 30 anos tá lá o Júlio Barreto, o John Howard, o Rui, então eu fui um dos caras que fez alguma coisa. Se hoje a cidade tá desse jeito, foi porque abriram portas pra mim e eu abri outras portas pra muita gente, e hoje em dia tô aqui no Museu da Pessoa e tem gente em Nova Iorque ganhando rios de dinheiro (risos), mas eu tô numa boa (risos), tá ótimo assim.

P/1 – Obrigada.

R – Imagina, tá aqui com vocês inclusive, e se puder, sempre que vocês precisarem, eu venho acrescentar qualquer coisa.

P/1 – Tá ótimo, vai ser um prazer, muito obrigada.

R – Obrigado vocês.