Museu da Pessoa

Uma caminhada com suavidade e sabedoria

autoria: Museu da Pessoa personagem: Yoshico Akiyama

Programa Conte Sua História 2017
Depoimento de Yoshico Akiyama – Dona Emília
Entrevistada por Lucas Lara e Marcos Terra
São Paulo, 30/03/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV553_ Yoshico Akiyama – Dona Emília
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão: Paulo Rodrigues Ferreira


MW Transcrições



P/1 – Bom, dona Emília, vamos começar?

R – Sim.

P/1 – Muito obrigado por ter aceitado o convite de estar aqui com a gente. E vai ser uma conversa mesmo. Então, para começar, eu queria que a senhora dissesse para mim o seu nome completo.

R – O meu nome completo? De registro, não é? Yoshico... Bom, eu digo de casada, não é? Akiyama.

P/1 – E de onde veio o Emília?

R – O Emília? É do batismo. Quando eu tinha uns três anos, meu pai se mudou de onde eu nasci, de Piratininga, foi para outro lugar. E lá conhecemos uma família de italianos que queria saber meu nome. E meu pai falou: “É Yoshico”. Ela falou assim: “Olha, estamos no Brasil, ela precisa adotar um nome brasileiro, fica melhor. E depois, religião católica no Brasil, então vamos botar um nome de uma santa, qualquer coisa”. Como ela era italiana, ela achou bonito pôr o nome de Emília.

P/1 – Então eu vou chamar a senhora de Emília agora, está bem?

R – Está bem. Está certo.

P/1 – E qual o local? Onde a senhora nasceu?

R – Olha, o que meus pais falavam é na comarca de Piratininga, nos arredores de Bauru. Isso é o que eu sei.

P/1 – E o ano em que a senhora nasceu?

R – 1935. Dois de março.

P/1 – E fala um pouco para mim dos seus pais. Qual o nome dos seus pais? De onde eles vieram?

R – Sim. Os meus pais vieram como imigrantes do Japão. Partiram do Porto de Kobe e viajaram, durante dois meses, num navio chamado África Maru que eles faziam... Como se fala? Eles chegavam ao Porto de Capitan, na África, por isso se chama África Maru. Depois de lá, eles vieram para o Brasil, Porto de Santos. Chegaram ao Porto de Santos em 26 de outubro de 1933. Chegaram ao Porto de Santos. E de lá eles foram trazidos para São Paulo, a Capital - parece que pernoitaram uma noite na Capital e, no dia seguinte, eles foram transportados para o interior. Porque o destino deles era uma fazenda de café. E a fazenda ficava na... Como se chama? Estação Engenheiro Brodowski. E a fazenda era da dona Adélia A. Ferreira, a dona da fazenda.

P/1 – E eles já tinham algum parente aqui?

R – Ninguém. Ele veio com a família: os pais dele, as irmãs, a mãe. Então não tinha ninguém, não conhecia ninguém. Eles chegaram e foram lá para essa fazenda. Chegando lá, eles perceberam que o serviço de imigração não tinha preparado nada para receber os imigrantes, sabe? Eles chegaram a essa fazenda, tinha uns casebres. E a maioria dos casebres estava com o mato crescendo dentro, nos arredores. Eles viram aquilo lá, segundo eu ouvia meus pais contarem, que chegaram lá, eles tinham vontade de voltar no mesmo dia para o Japão, porque ficaram muito decepcionados. Decepcionados demais. Porque quando eles fizeram essa propaganda para atrair imigrantes, Nossa, ofereciam tanta vantagem, tanta coisa boa. E como meu pai estava passando por uma situação difícil no Japão, porque estava em crise financeira todo o país, ele resolveu vir para o Brasil, atraído pelas propagandas. Ele pensou: “Bom, a gente vai lá, trabalha por dois anos, conforme diz o contrato da imigração”. Trabalhando dois anos eles poderiam fazer o que quisessem depois, cumprido esse prazo. Mas aconteceu que eles aceitaram e ficaram os dois anos, mas sofreram para caramba. Sofreram demais. Sofreram, porque a língua, nada. Eles não sabiam nada. Os costumes, muito diferentes do costume japonês. E trabalhar na roça de café também não foi brincadeira, porque, Nossa, eles sofreram muito por falta de... Precisaram se adaptar, mas foi difícil a adaptação. E foi assim. Eles trabalharam dois anos, viram que não tinham possibilidade de voltar para o Japão coisa nenhuma, que seria o sonho dele ir embora para o Japão. Mas, resignados, eles resolveram dar um jeito por aqui mesmo. Eles saíram dessa fazenda e foram... Que eu me lembre... Eles contam lá, porque nessa época, quando eles chegaram, eu não tinha nem nascido. Eu sei que três anos, mais ou menos, depois que eles chegaram, já tinham aceitado ficar no Brasil e eles resolveram arrendar um terreninho para começar a fazer alguma coisa por conta própria. Quando eles arrendaram o terreno, não sei se a fazenda chamada Vitória, não sei direito, eu sei que eles arrendaram um terreninho e começaram no cultivo de bicho-da-seda, porque ele conhecia um pouco lá no Japão. Assim, ele tinha um pouco de conhecimento. Ele começou a cultivar bicho-da-seda. Nesse meio tempo, ele conheceu um senhor japonês que tinha vindo um navio antes dele, tinha vindo no navio Kasato Maru, acho, o navio anterior. Esse senhor já tinha vindo antes, então ele já estava mais acostumado, vamos dizer, e ele deu muitas dicas para o meu pai, a maneira melhor de cultivar o bicho-da-seda, tal. Ele ficou algum tempo. Ele falou que o bicho-da-seda dava um trabalho... porque eles comiam o dia todo. Eles comiam muito folhas de amora. Então eles precisavam o tempo todo buscar para suprir a necessidade dos bichos.

P/1 – E qual o nome dos seus pais?

R – Meu pai é Koji Ishizuka.

P/1 – E a sua mãe?

R – Ele ficou algum tempo com esse serviço e que não rendeu grande coisa também, pelo jeito. Depois eles transferiram para outro local... Não. É, eles tinham transferido para outro local, perto da serra de Botucatu. Para a serra de Botucatu. E lá ele iniciou na plantação de algodão. Ele achou melhor. Ele começou a plantação de algodão, fez uma primeira colheita, estava começando a se adaptar nas coisas do Brasil. Como a casa era de sapê... Sapê é barro, sei lá como é. E por ali diz que passava um trem, Maria Fumaça, era a vapor. Vapor não, lenha. Uma noite, o trem passou e soltou aquelas fagulhas e pegou no sapê da casa. E estava ventando muito, então diz que o fogo se alastrou muito rapidamente, meus pais já estavam deitados, já eram mais de oito horas da noite, já estava deitada toda a família, aí a minha mãe viu, de repente, aquele fogo na parte da cozinha e acordou todo mundo e saiu, porque a casa estava pegando fogo. Só sei que meu pai começou pelos velhos: minha avó, que já estava paralítica - precisaram carregá-la para fora - o meu avô foi andando e chamou minhas irmãs, que eram mais velhas, aí a minha irmã mais velha até calçou tamanquinho, eu lembro que minha mãe falava, e saiu. A outra minha irmã, um pouco mais velha que eu, continuou dormindo, aí meu pai me pegou, que estava dormindo, e meu irmão, ele pensou que pegou meu irmão, ele tinha pegado sabe aqueles futons japoneses? Edredon. Ele pensou que agarrou meu irmão e eu e pôs para fora. Quando perceberam, o telhado já estava desabando.

P/1 – A senhora tinha quantos anos?

R – Eu? Eu tinha três anos, três anos e pouco. Essa parte eu me lembro. Eu vejo aquela fogueira lá, aquela coisa. Porque minha mãe me deixou lá e eu fiquei lá, num canto lá, no escuro. Era à noite, era escuro. Eu só sei que, nessa idade, eu já percebi que algo de muito ruim estava acontecendo, mas eu fiquei lá quietinha. Eu lembro que eu tremia como uma vara verde. Era pequena, mas ficava tremendo, batendo os dentes, acho que de nervoso. Daí a pouco minha mãe começou a gritar: “Cadê o Yukio? Cadê o Yukio?”. Aí o telhado já tinha ido para baixo.

P/1 – E qual o nome da sua mãe? Qual era o nome dela?

R – É Mio Ishizuka.

P/1 – E o que ela fazia? Ela trabalhava com quê?

R – Aqui no Brasil? Era dona de casa, ajudava também na lavoura, plantação de algodão, essas coisas, quando ela podia. Mas ela já tinha outros filhos menores, então... Eu era pequena ainda, depois nasceu o meu irmão. Depois de quatro anos nasceu meu irmão. Minha mãe não tinha muito tempo, mas ela sempre ajudou, Nossa, ela cooperou demais até. Ela fazia o que podia e o que não podia para ajudar.

P/1 – E a senhora comentou dos seus avós, da sua avó que era paralítica, o que aconteceu com ela?

R – A minha avó?

P/1 – É.

R – Então, logo depois do incêndio, algum tempo depois, a minha avó morreu. O meu pai, o meu avô, as irmãs dele, foram lá para... Aí que fomos para a fazenda de São Manoel, do pai do Adhemar de Barros, do “seu” Tonico. Lá a minha tia se casou. Bom, eu não contei a parte que meu pai foi hospitalizado porque ele queimou o braço, perdeu um pedaço da orelha porque ele foi tirar a minha irmã que estava dormindo - mais velha do que eu - estava dormindo e não queria levantar. Meu pai foi pegar, mas a minha irmã se queimou muito, porque já estava bem... Ela queimou o braço assim muito e aqui a perna queimou, porque acho que estava assim... Eu lembro que eles foram levados para o hospital. Antes, ele passou na casa de um conhecido, que era mais ou menos perto de lá, pediu socorro, porque meu pai estava ferido, a minha irmã estava super ferida, ela se queimou muito. Eu lembro a gente atravessando o sítio cheio de capim, aquele capinzal, e na divisa do sítio tinha arame farpado, tinha aquele negócio, como chama? Para o boi não passar para frente, eles faziam uma cercadura bem assim para o boi não atravessar a cerca, então alguns passavam por ali e a maioria levantava arame farpado. O senhor sabe que eu me lembro disso? Para passar por baixo. Aquele vizinho lá, onde meu pai foi pedir socorro, os levou para o hospital lá perto, não sei que hospital era, eles ficaram um bom tempo lá no hospital. A minha irmã gemia e chorava que era uma coisa. Eu, nessa época, tinha três anos e lembro direitinho. Eu fui lá para o hospital também. A minha irmã chorava tanto, porque, Nossa, estava tão queimada...

P/1 – E quantos irmãos a senhora tinha?

R – Então... era assim: duas irmãs que vieram do Japão - a mais velha tinha seis anos, a segunda tinha quatro anos, segundo dizem os documentos - e meu irmão, que foi vítima do incêndio, tinha dois anos. Então eram seis, quatro e dois. Meu pai se mudou daquela fazenda e foi para a fazenda do doutor Adhemar. Logo depois, a minha avó faleceu, que era paralítica. Na fazenda do doutor Adhemar, o meu pai arrendou um terreno, diz que ele arrendou um terreno, acho que uns três alqueires. Antigamente usava muito alqueires, hoje em dia não se usa. Então, uns três alqueires e, nisso, a plantação de algodão.

P/1 – E a senhora e seus irmãos ajudavam na plantação? Como era?

R – Quem? Eu?

P/1 – É. E os seus irmãos.

R – As duas minhas irmãs ajudavam, o meu avô... Agora, as minhas tias logo se casaram. Depois que nós nos mudamos para lá, logo se casaram. Aí minha tia foi morar em outra fazenda. A minha irmã mais velha era nova ainda, aí apareceu um japonês lá também e ele quis se casar com ela. Minha irmã não tinha dezesseis anos, de quinze para dezesseis, ele queria se casar com ela e foi falar com o meu pai. Meu pai falou: “Mas ela é uma criança. Não pode. Não vou deixar casar, não. O que é isso?”. Ele insistiu, insistiu, meu pai falou: “Não”. Ele ameaçou o meu pai, falou assim: “Se você não me deixar casar com ela, eu pego a sua filha e vou embora”. Então o jovem lá estava... Acho que ele também estava precisando de uma esposa, porque dizem que ele veio sozinho do Japão. Ele veio sozinho e vivia sozinho, trabalhando um pouco aqui, um pouco ali, foi mascate, foi não sei o que lá. E ele casou. Casou. Meu pai, no fim, deixou. Deixou, porque falou: “Você vai me roubar a menina. Não”. Então deixou casar. Casou. Depois que ela se casou, ela ficou pouco tempo morando lá com a gente. Ela resolveu vir embora... Aliás, eles - ela e o marido - resolveram vir para São Paulo porque a vida do interior estava muito difícil para ele também, ele não se adaptava ao serviço do campo. Então ela veio embora para São Paulo. O meu pai ficou... Depois que ela veio embora para São Paulo, dois anos depois ela foi visitar a gente, aí ela já tinha o filho dela, o primeiro filho. E o meu pai também nunca gostou de serviço do interior. Porque a família dele plantava arroz no Japão. A família da minha mãe, a dele, plantavam arroz no Japão. Mas o meu pai não gostava de ser lavrador. Aí ele foi tentar arrumar um emprego em Tóquio. Ele só fez o ensino fundamental no Japão. Ele foi para a cidade e conseguiu emprego numa companhia de seguros, que estava muito bem naquela época em que ele foi arrumar emprego. Ele arrumou emprego lá, falou: “Para quê?” – não voltou mais para o interior. Ele voltava uma vez por mês para visitar a família, para ver como estava tudo. Ele adorava a vida na cidade. O Japão começou a entrar em crise financeira, essas coisas todas, dificuldade de manter a família, aí ele começou a ouvir essa propaganda de que o Brasil estava aceitando pessoas que quisessem trabalhar, trabalhar com... Eles falavam assim: ouro verde. É, ouro verde, porque estava em alta o café naquela época. Na época dos grandes fazendeiros de café. Meu pai pensou, pensou, combinou com a família, ele pensou: “Por que não? Aqui está tão ruim, vamos tentar a sorte por lá”. Eles vieram para o Brasil com a cara e com a coragem, não tinham dinheiro, nada. Trouxeram o que puderam trazer e vieram para o Brasil tentar a sorte.

P/1 – Agora fala um pouquinho para mim, dona Emília, da senhora. Como era a senhora criança? O que a senhora gostava de brincar quando era criança?

R – Quando eu era criança, não lembro, mas praticamente não brinquei. Porque, assim... No interior não tem vizinho, não tem nada, eram só pessoas da família. Meus pais são japoneses, japoneses antigos. Então, naquela época, a família de japonês, olha, a meu ver... Agora, depois que eu cresci, fui para a escola, comecei a enxergar melhor, mas a família de japonês, eles tinham filhos porque acho que era coisa natural da vida ter filhos. Assim... eles não eram pais amorosos, de agradar a criança, contar história. Acho que alguns outros são diferentes, mas eu tenho ouvido, parece que a maioria dos pais, sabe, para eles era: ter mulher, ter filhos, botar os filhos no mundo. Ele não fazia a criança participar da vida familiar. A criança nascia, ia crescendo. Então, desde os três anos eu comecei a guardar as coisas da vida, comecei a ter conhecimento das coisas. Meu pai nunca me pegou no colo. Ele gostava dos filhos, mas ele nunca fez um agrado, nunca falou qualquer coisa de conversar carinhosamente.

[trecho retirado a pedido da entrevistada]

P/1 – E conta para mim, dona Emília, vocês ficaram lá no interior até quando?

R – Até 1942. Quando foi no mês de junho de 1942 meu pai resolveu vender tudo, porque ele achou que na vida do interior não dava mesmo para continuar sobrevivendo. Eu sei, eu lembro que a preocupação dele era me pôr numa escola, e lá não tinha escola perto. E ele também não estava gostando mesmo do serviço de lavoura. Ele resolveu... A minha irmã já tinha vindo para São Paulo fazia uns três, quatro anos, em São Paulo, e meu cunhado estava tentando a vida e ele conseguiu. O meu cunhado era muito aventureiro, ele se aventurava para qualquer emprego. E ele se dava bem, então ele melhorou. Ele melhorou e falou com o meu pai: “Ah, a gente faz uma coisa, faz outra, e vai dar para ir levando”. Meu pai falou: “Vou fazer isso também, vou tentar qualquer coisa lá em São Paulo”. Pegou a família toda e veio para São Paulo. Era na época da guerra. Acho que tinha começado a guerra do Japão com... A Guerra Mundial, a Segunda Guerra. Ele veio para São Paulo e tentou arrumar um emprego. Arrumou não, ele que fez. Ele começou a fabricar doce, o meu pai, bananinha. E ele aprendeu muito bem. Nossa, meu pai era pessoa jeitosa, esperta, ele aprendeu muito bem a fazer as bananinhas e pão de ló. Ele fabricava num dia e no dia seguinte ia entregar. Ele se saiu muito bem. Conseguiu alugar casa, pagar casa.

P/1 – E para onde vocês vieram aqui em São Paulo? Você se lembra da sua primeira memória da cidade de São Paulo? Como você se sentiu quando chegou aqui?

R – Para mim foi uma alegria porque eu não gostava do interior. Eu tinha medo dos bichos do interior: cobra, lagartixa, aquelas coisas, raposa. Eu tinha medo daquilo. Tinha pavor. E depois, aquelas coisas que... Como se fala? Os empregados, os trabalhadores da roça, as histórias que eles contavam no interior, sabe, de alma penada, árvores que gemiam de noite, aquelas coisas todas, eu tinha medo, ficava pensando: “Meu Deus do céu, que coisa horrível, que vontade de sumir”. Minha irmã lia aquelas histórias da cidade, de pessoas morando em Santos, que tinha o mar aberto, e passeavam, e soltavam pipa, eu falei: “Ah, meu Deus do céu, por que eu tenho que ficar num lugar desses?”. Para mim foi a glória quando chegamos a São

Paulo. Foi muito bom. Eu já tinha falado que São Paulo era da garoa nessa época. Eu tinha sete anos. Eu cheguei, estava garoando. Era mês de junho, estava garoando. Eu falei: “Não é que é São Paulo da garoa mesmo?”. Foi muito bom. A sensação, a impressão.

P/1 – E para que bairro vocês vieram?

R – Nós chegamos à Estação da Luz, meu cunhado já estava esperando a gente, ele já tinha preparado a casa dele para receber a gente. A casa dele tinha dois dormitórios grandes, sala grande, então ele comprou um monte de colchão para a gente ficar por ali no começo. Foi bom. Eu brincava com o meu sobrinho, que já estava meio... Foi muito bom para mim. Foi muito bom. Achei São Paulo pitoresca. Bom, eu falo pitoresca agora. Naquela época, sei lá. Mas eu gostava. Tinha o leiteiro, que entregava leite e deixava no muro da casa. O litro de leite e o pão deixava ali no muro, ninguém pegava. Ficava lá até a gente pegar. Era muito bom. E passava verdureiro, passava vendedor de sabão, era muito interessante.

P/1 – E, dona Emília, a senhora comentou da época da guerra, da Segunda Guerra. Vocês sofreram algum tipo de preconceito, ou tiveram alguma dificuldade por serem japoneses aqui no Brasil? A senhora se lembra de alguma coisa?

R – Olha, nossa família? Ah, sim, preconceito sim. Naquela época, não existia muito japonês no Brasil. E eu lembro que quando eu vim para São Paulo... Lá no interior não, mas quando eu vim para São Paulo, no começo, a gente ia pela rua assim, os brasileiros, essa gente falava assim... Eles achavam que estavam falando em japonês, falavam assim: “Garigatô. Garigatô”. Assim, sabe? Eu achava chato aquilo, mas tudo bem. Achava chato sim, essa parte. Eu lembro que os patrícios, Nossa, sofreram perseguição daqueles... Como chama? Gurentai não sei o quê, máfia japonesa que perseguia os daqui, que falava que o Japão perdeu a guerra, não sei o quê. E eles eram fanáticos, então eles visitavam essa gente e extorquia dinheiro da família. Você não colaborava com certo valor que eles pediam... Diziam que o valor era para mandar para o Japão, para ajudar o Japão. Eles extorquiam grandes valores. Se a pessoa não colaborava, eles matavam. É. Eles matavam. Até um conhecido meu, que morava lá para o nordeste de São Paulo, perto de Tupã - o lugar chama Adamantina, se não me engano - ele tinha um armazém lá em Adamantina, armazém para os fazendeiros da fazenda, aí eles apareceram, parece que dois ou três caras lá, armados, e foram falar para ele assim: “Entrega tudo que você tem aí. Você não quer ajudar o Japão? O Japão está precisando de ajuda, então tem que ajudar”. E a esposa dele estava grávida. Quando ela percebeu que entrou essa gente, ela pulou pela janela dos fundos, deu tempo de ela pular. Mas ela estava grávida, o menino nasceu todo defeituoso. Até hoje ele vive, mas não cresceu. Cresceu de tamanho, mas não... Para nada. Está vegetando. Mas essa época foi terrível. Tinha livro que falava dessa época. O meu pai nunca morou perto de japonês (risos). É uma mania que ele tinha. Ele nunca tinha assim vizinho japonês, tanto é que eu não aprendi a falar japonês. Eu não fui para uma escola, como muita gente aqui, muita gente vai, eles fazem questão de colocar numa escola japonesa. Meu pai não. Meu pai sempre morou longe.

P/1 – E a senhora disse que quando vocês vieram para São Paulo, seu pai também queria muito que você fizesse uma escola. Como foi essa entrada na escola?

R – Então... foi o seguinte: meu pai alugou uma casa perto de onde minha irmã morava, na outra rua, por sorte. Tinha uma coleguinha que morava três casas para baixo na rua e ela já estudava nesse colégio. Eu perguntava para ela: “Onde você estuda?”. Porque meu pai estava falando que precisava uma escola para mim. Eu perguntei para ela: “Onde você...”. Marilene, ela chamava. Ela falou assim: “Eu estudo na escola das freiras ali”. Que ficava atrás da igreja, a escola. Ficava atrás da igreja, no fundo. Era uma escola grande já. Ela falou assim: “Olha, o dia em que eu for à escola, numa reunião que eu vou ter na escola, eu vou te levar, você vai conhecer a escola”. Eu falei: “Ah, que bom”. Ela me levou, me apresentou para essas freiras aí, que me encantaram logo de início, e elas gostaram muito de mim também. No ano seguinte, meu pai me matriculou lá. A freira falou: “Olha...”. Já estava no meio do ano, não podia me pôr no meio do ano. Aí aguardei meio ano. Fui matriculada. Fui matriculada lá e fiz os quatro anos muito feliz. Muito. Muito.

P/1 – A senhora se lembra do seu primeiro dia de aula?

R – No meu primeiro dia? Se me lembro. Nossa senhora, se me lembro. A minha irmã fez o uniforme, a minha irmã já costurava, ela me fez o uniforme e meu pai me arrumou um caderno, uma brochura, e um lápis. Eu levei na mão o caderno e o lápis, a freira não tinha nem pedido. Eu levei. Ah, meu primeiro dia, que gostoso. Eu lembro tudo. A freira entrou assim na sala de aula, mandou todo mundo se levantar. Naquela época era um respeito tremendo pelos mestres. A gente se levantou, tudo, ela falou: “Bom dia, crianças. A partir de hoje vocês vão estudar aqui, vamos nos dar muito bem e vocês vão gostar da escola”. Ela já começou a explicar as coisas, tudo, como seria. Já no primeiro dia ela já tocou piano - tinha um piano na classe - e cantou musiquinha de criança para a gente. Eu lembro até hoje a música.

P/1 – Canta para a gente.

R – Era assim: “Na noite escura, sabe o que ouvi? Grilos cantando: ‘Cri, cri, cri, cri’”. Nunca esqueci. Foi muito bom. Adorei desde o começo.

P/1 – E essas freiras, elas eram de que ordem?

R – Hein?

P/1 – Elas eram o quê, essas freiras? Elas eram franciscanas, a senhora comentou?

R – É. Freira franciscana. Freira franciscana. Elas tinham escola lá em Filadélfia, Saint Joseph School. E de lá elas foram escolhidas para construir escola no Brasil. Porque no Brasil, naquela época, não tinha assim grande... Eles acharam bom nos moldes norte-americanos. Então foi assim, muito bom. Fazia festinha, a gente dançava, aquelas musiquinhas dos Estados Unidos, dançava aquelas danças dos Estados Unidos. Muito bom. Muito.

P/1 – E a senhora era uma boa aluna?

R – [trecho retirado a pedido da entrevistada] Mas, olha, desde o primeiro ano. Naquela época, a nota máxima era cem. Nossa, desde o primeiro ano tudo nota cem: comportamento, tudo. Até pouco tempo eu tinha os boletins. No fim, eu joguei fora. Para quê?

P/1 – E aí a senhora foi crescendo. E quando a senhora era mais mocinha, o que a senhora fazia para se divertir? Para onde a senhora ia? À cidade? O que você gostava de fazer?

R – Ah, ia muito ao cinema. Naquela época, cinema estava em alta. Cinema falado, porque antes não era nem falado. Preto e branco. Depois que eu fiquei mocinha, comecei ir ao cinema. Meu pai levava, porque ele adorava cinema. Ele gostava de cinema. Ia muito ao cinema. De vez em quando ia a um baile. Depois que fiquei com dezessete anos assim, o meu cunhado gostava de dançar - o marido da minha irmã - aí ele levava a gente para dançar no Carnaval até (risos). É assim. Mas foi bom. Foi muito bom.

P/1 – E a senhora gostava do Carnaval? A senhora tem alguma lembrança para contar para a gente dessa época de Carnaval?

R – Olha, o que me traz na lembrança é aquela introdução, aquela música que eles tocam no início de começar o baile. Aquilo me ficou na memória. Eu gostava sim. Gostava dos bailes de Carnaval. Fui duas vezes. Depois não fui mais. Eu frequentava muito a igreja. Muito. Domingo, feriado assim.

P/1 – E como foi essa passagem de estudar para trabalhar? Em que ano a senhora começou a trabalhar? Como foi?

R – O ano eu não lembro. Eu estava com quinze para dezesseis anos. De 1935, vai 15...

P/1 – 1951?

R – Vamos dizer, dezesseis anos. De 1935 para 16, quanto?

P/1 – Por volta de 1951.

R – É. É por aí. Foi bom também.

P/1 – E onde a senhora foi trabalhar?

R – Nessa indústria de doce Fukudaya. Até o meu pai era vendedor de doces dessa fábrica. E ele que me arrumou. Ele falou assim... Ele conversou com a dona da fábrica, falou: “Eu tenho uma filha assim, assim, eu gostaria de arrumar um emprego para ela, nem que fosse só para ser...” – como fala?

P/1 – Assistente assim?

R – Assistente, somente. É. “Não precisa nem pagar” – falou assim – “Para ela ir aprendendo, se adaptando.” Ela me aceitou. E trabalhei um ano e pouco, depois a fábrica começou a ficar fraca, não sei... Ah, porque ela se aventurou a fazer chocolates também, além de tudo. Fabricar chocolates. Aí precisava uma pessoa técnica em chocolate, tudo. E nessa época parece que as embalagens ficaram muito caras, não sei, comecei a ouvir essas coisas. E ela fabricou um bom tempo, ela fazia cada chocolate... Nossa, cada chocolate... Eu sei que durou pouco tempo, depois abriu falência. Os gastos eram maiores que os lucros.

P/1 – E o que a senhora fez com o seu primeiro salário?

R – Hein?

P/1 – O que a senhora fez com o seu primeiro salário?

R – Como eu já falei, eu fui consertar um dente que tinha uma cariezinha, que estava meio preto aqui. Aquilo me incomodou muito, aí eu falei para o meu pai: “Papai, olha, o primeiro dinheirinho que eu ganhar, eu quero ir consertar o dente”. E foi o que eu fiz. Foi bom. Eu falava assim: “Ah, foi pouco, mas deu para consertar o meu dente”.

P/1 – E, dona Emília, como foi, assim, a senhora chegou a namorar muito? Como foi para conhecer os rapazes?

R – Olha, quando eu estava com quinze anos tinha um rapaz na minha classe que ele estudava lá, eu era muito boba naquela época, que eu não entendia muito dessas coisas de namorar, não tinha muito conhecimento, não. Porque estudando em colégio de freira, falando que tudo é pecado, tudo é pecado, então eu não ligava para essas coisas. Mas eu notei que acho que ele gostava de mim, porque toda vez que saía da aula, ele queria me acompanhar. Um dia eu falei para ele: “Escuta, Moacir, o que você está querendo comigo? Toda vez você me acompanha”. Ele falou: “É que eu gosto de você. Gosto da sua companhia”. Eu falei para ele: “Olha, muito obrigada por você gostar de mim, mas eu não quero, não. Não sei o que é esse negócio de namorar. Eu sou muito nova. Sou muito nova” – falei para ele. Eu não gostei, não. E sabe por que eu não gostei também? Porque acho que ele trabalhava... Ele era mais velho que eu, trabalhava numa oficina mecânica, ele vinha para a escola com aquela roupa ensebada. E lá na escola todo mundo ia impecável. Pobre, mas impecável, limpinho, bonitinho. Eu também não gostei dessa parte, falei: “Não. Não quero”. Eu era pobre também, mas procurava tanto quanto ir mais ajeitadinha. Ele poderia tomar um banho. Acho que não tinha tempo, não sei. Poderia tomar um banho, mudar de roupa.

P/1 – Depois que a senhora saiu dessa fábrica de doces, a senhora chegou a trabalhar em algum outro lugar? Como foi?

R – Trabalhei. Trabalhei num escritório de uma tipografia, na Liberdade. Liberdade. Até do lado de uma pizzaria que se chamava 1100. Tinha uma pizzaria pegada à tipografia. Era de um senhor italiano, se chamava Rossetti. Como é? Não me lembro do primeiro nome dele. Armando Rossetti. É uma tipografia, eles vendiam muita estampa de igreja, vendia para outros estados, medalhas, tinha muita coisa. Medalhinha de igreja, tudo. Eu trabalhei lá como auxiliar de escritório. Mas o italiano era ruim, sabe? Nossa senhora, ele era muito grosseiro. Que coisa. Ele se orgulhava de ser italiano, tudo, ele e o irmão dele, que era dono daquilo. Eu datilografava as coisas para ele, escrevia umas cartinhas mais simples assim, para cliente assim. Lá trabalhava uma senhora na parte da loja, ela era coordenadora lá dentro. Ela fazia café para eles e para a gente também, para tomar café. Quando ela não vinha, ele me mandava fazer café. Ai, como eu não... eu não gostava. Não gostava de fazer café, mas eu fazia. Eu só sei que ele não era muito educado. Ele não tinha modos, só entre eles, sei lá. Outra tipografia, o dono da outra tipografia ao lado, ele sempre vinha lá para conversar com o tal do seu Armando. E ele me via lá, ele sempre parava para conversar comigo. Um dia ele falou assim para mim: “Emília, o seu Armando é chato. Você não quer sair daí? Não é melhor você sair daí? Você é uma menina tão educada”. Ele falou assim para mim: “Vou te arrumar um emprego”. Eu falei: “Nossa, seu Armando, na sua tipografia?” – eu falei. Ele falou: “Não. Eu conheço um contador, que é contador da Cooperativa Agrícola de Cotia e lá eles estão precisando de uma auxiliar. Eu vou falar com ele e você vai lá”. Ele me mandou ir lá, tinha conversado com o contador lá, e ele falou assim: “Olha, você vai lá. Vai falar com ele”. Fui falar com ele, o moço gostou de mim, fez uns testes lá, passei. “Você pode vir no dia seguinte”. Olha, foi ótimo para mim. Nossa, foi muito bom. Trabalhei seis anos lá. Trabalhei seis anos, aí eu conheci meu marido.

P/1 – E lá em Cotia isso?

R – É. Lá mesmo no escritório.

P/1 – E como a senhora fazia para ir e voltar?

R – Eu? Ir e voltar do serviço?

P/1 – Isso.

R – Tomava ônibus. Tomava dois ônibus. Tomava Vila Zelina até a Mooca. E lá da Mooca tomava outro para ir para a rua Cantareira, onde tinha a cooperativa. Era do lado do Mercado Municipal. Era meio puxado, acordava seis horas, seis horas estava no ponto de ônibus. Mas estava bom. Tive bastante colegas no serviço,estava bom.

P/1 – E a senhora se lembra do mercado naquela época como era, o Mercado Municipal?

R – Lembro. Eu volta e meia passava lá no mercado, comprava frutas lá. Mas naquela época, não era como agora, assim, organizado. Agora está bem melhor. Está um shopping. Está muito bom agora. Quando chovia, dava enchente por ali. Nossa! Que um dia eu fui trabalhar, eu tive que pedir para um caminhoneiro me atravessar a parte alagada lá, para poder chegar ao escritório. Porque o Rio Tamanduateí passa em frente. Mas quando chovia, enchia tudo, toda aquela parte do mercado. Só aqueles caminhões bem altos que podiam passar. Um dia, eu perdi a vergonha e pedi para ele: “O senhor não me atravessa até o outro lado da rua?”.

P/1 – Mas voltando, dona Emília, a senhora ia começar a contar como a senhora conheceu seu marido. Fala para a gente.

R - Como eu conheci o meu marido?

P/1 – Isso.

R – Ah, foi o seguinte: ele trabalhava na sede, que é em Pinheiros. Na sede. Ele trabalhava no escritório da sede. Ele trabalhava em... Como se fala? Não sei o quê planejamento. Era qualquer coisa de planejamento. Ele foi ao outro escritório, onde eu trabalhava, para fazer levantamento de tudo que os funcionários de lá faziam e como faziam, se era muito trabalhoso, essas coisas todas. Ele foi lá para fazer um levantamento. Eu estava lá trabalhando, fazendo livro-caixa, antigamente não tinha computador, então livro-caixa era desse tamanho, movimento diário, essas coisas. Eu estava lá fazendo o livro, ele apareceu, a primeira coisa que ele falou: “Mas que letra bonita. Nunca vi uma letra tão bonita”. O meu chefe daquela época falou assim: “Ei”. “Ei” – ele falava assim, sabe? E foi indo, foi indo, ele sempre me elogiando, aí sem querer eu já estava começando a namorá-lo. Aliás, ele que queria mais. Ele que me telefonava mais, e tudo. Comecei a sair com ele. Sabe que eu o conheci e me casei em oito meses? Eu não queria assim tão rápido, mas é o seguinte: meu pai estava viúvo nessa época, estava viúvo já há dois anos e ele queria se casar de novo, o meu pai. E como na minha casa tinha eu, a minha irmã mais nova, meus dois irmãos menores, ele ficou meio achando que a mulher não ia gostar porque tinha muita gente em casa. Eu já estava namorando-o, aí meu pai apressou meu casamento com ele. Falou assim: “É melhor você se casar logo, porque ficar muito tempo namorando também não é bom. Vamos tratar disso”. Fui conhecer os parentes dele, tudo, gostaram de mim. Eram de Mogi das Cruzes os parentes. Ele me levou para conhecer, eles gostaram de mim, marcamos casamento.

P/1 – E qual o nome dele?

R – O nome dele é Shizuo Akiyama. O pai dele tinha um sítio lá em Mogi das Cruzes, um lugar que se chamava Cocuera. Cocuera, acho que... O sítio deles. Ele tinha um bom pedaço de terreno lá. Lá tinha a granja, eles criavam galinhas, tinha a plantação de caqui, e tinha pêssego, tomate, essas coisas. Tomate, pimentão, berinjela. Estava razoável.

P/1 – E como foi o casamento? Onde a senhora comprou o vestido?

R – Ah, foi lindo. Eu devia até ter trazido. Nossa, eu fiquei uma noiva muito... (risos).

P/1 – Depois a senhora manda foto.

R – É? Precisa? Porque a minha filha falou: “Leva. Leva”. Eu falei: “Ah, eu não. Não vou levar do casamento”. Ficou tão bonito que até... Bom, acho que é conversa de fotógrafo, falou: “Mas a senhora está muito bonita”. Ficou lindo. Eu mandei fazer na rua São... Como chama aquela rua? A rua das noivas lá.

P/1 – José Paulino?

P/2 – Rua São Caetano.

P/1 – São Caetano.

R – São Caetano. Nossa! A minha irmã tinha feito o dela lá, ficou muito bonito. Quando eu fui me casar, eu fui também lá. Ficou muito bonito. Ficou lindo. Casei-me na igreja de São Francisco, ali do Largo de São Francisco, me casei lá. E teve festa, tudo. Foi muita gente. Foi bom.

P/1 – E as freiras que te educaram na escola foram ao casamento também?

R – Ah, não, porque já fazia muito tempo e elas já tinham ido embora. Fazia muito tempo. As freiras não vieram, não.

P/2 – E como foi a escolha da igreja?

R – Hein?

P/2 – Como foi a escolha da igreja para casar?

R – A escolha da igreja? Ah, foi assim: tinha muitas colegas que se casaram lá, da cooperativa, aí achei que era bom casar lá. Até fomos falar com o padre... Como era o nome dele? Era um padre alemão. Ele falava bem Japonês. Como era o nome daquele padre, meu Deus? Padre Bonifácio? Bonifácio? Não tenho certeza mais. Nós fomos lá, o meu marido se batizou antes, porque a igreja católica não aceita pessoa que não seja batizada, aí ele precisou fazer o curso de batismo. Ele falou: “Tudo bem. Para me casar com você, eu faço qualquer coisa”. Fizemos o curso de... Tem um curso de casamento que eles... Fizemos o curso, tudo, e um dia...

P/1 – E onde vocês foram morar?

R – Ah, eu fui morar em Pinheiros. Fui morar em Pinheiros, na rua Mourato Coelho.

P/1 – Eu moro na rua Mourato Coelho.

R – Mora lá? Era Mourato Coelho, 956. Era uma série de apartamentos térreos. Apartamentos. Eu morei lá.

P/1 – E conta para mim como era Pinheiros e a rua Mourato naquela época.

R – Olha, a rua Mourato Coelho, naquela época, tinha bastante sobrados. Era limpinha naquela época já. Toda sexta-feira tinha feira, passava bem em frente onde eu morava. Era um barulho logo de manhã, fazendo pregão lá. Depois que a minha filha nasceu... Que minha filha nasceu um ano depois logo. Minha filha era... Era não, ela é muito... A primeira filha, muito bonitinha.

P/1 – Qual o nome dela?

R – É Sueli. Era lindinha. Não sei se eu trouxe foto dela pequena. Então era muito graciosa. A moça que vendia verdura... Era uma família de japonês que vendia verdura lá, tinha duas moças. Nossa, quando via a menina, ela falava assim: “Deixa a menina aqui, a senhora vai fazer compra. Deixa a menina que nós tomamos conta”. Elas ficavam o tempo todo com a menina lá e ficavam dando doce para ela. Então eu fazia feira tranquila e elas ficavam com a menina. Foi uma época muito boa. A minha filha foi muito bonitinha, que todo mundo gostava. No ponto de ônibus todo mundo queria pegar a menina, era uma coisa. Muito bonitinha. Muito graciosa.

P/1 – E quantos filhos a senhora teve?

R – Eu tenho essa primeira e a Eunice.

P/1 – E qual a diferença entre elas?

R – Quase quatro anos. A Sueli estava se formando no primário, aí a Nice entrou. Só que a Nice entrou um pouco mais cedo, sabe? Porque ela faz em outubro aniversário, aí quando ela estava com cinco anos, quase seis, eu achei que ia demorar muito quando ela fizesse sete anos, já teria passado quase meio ano. Mas não, é outubro, então uns três, quatro meses. Então eu perguntei para... Também foi num colégio de freira que eu matriculei, sabe? Aqui em Vila Sônia. O colégio se chamava João XXIII. Eu a matriculei com seis anos.

P/1 - E qual das duas é mais arteira? Teve alguma que te deu mais trabalho, que aprontava mais? Como é?

R – A mais arteira?

P/1 – É

R – Nossa, a mais arteira é a primeira (risos). A primeira sempre foi mais arteira, mas muito inteligente, viu? Inteligente e caprichosa nos trabalhos que ela fazia. Nossa, muito. Muito. Hoje ela é arquiteta, só que não trabalha na profissão. A Nice sempre foi muito quietinha. Nossa, quieta, eu achava que... Eu falava: “Por quê essa menina é tão quieta, se a outra fazia tanta arte?”

E a Nice não, a Nice nunca foi assim arteira, sempre foi mais quietinha, mas foi muito boa aluna também. Inteligente.

P/1 – E a senhora tem netos?

R – Hein?

P/1 – A senhora tem netos?

R – Tenho netos. Três: duas netas e um neto.

P/1 – Qual o nome deles?

R – A primeira é a Harumi. Harumi Faria. A segunda se chama Tiemi. Tiemi Faria. Agora, o terceiro é Guilherme... [trecho retirado a pedido da entrevistada]

P/1 – Então são três netos?

R – Três netos.

[trecho retirado a pedido da entrevistada]

P/1 – E agora tem um bisneto também.

R – Tem o bisneto. Agora tem o bisneto que se chama Matheus. Tem um ano. Ele fez um ano em outubro.

P/1 – E qual foi a sensação de ter um bisneto, quando a senhora foi à maternidade?

R – Ai, Nossa, uma alegria.

Eu sou muito carinhosa. Nossa, mas foi uma sensação tão boa, tão boa. Nem sei como... Eu só sei dizer que é uma sensação boa. Gosto demais dos netos, do bisneto também. É joia.

P/1 – E, dona Emília, a senhora voltou a estudar depois de ter seus filhos? Como foi?

R – O meu irmão, que é caçula, ele é bem formado. Ele sempre falava para mim assim: “Ah, eu gostaria tanto que você tivesse feito uma faculdade. Por que você não fez uma faculdade?” É porque... Não sei. Não sei mesmo. Porque na época eu achava que trabalhando, não ganhando muito, mas estava dando para os gastos. E eu não queria estudar. Não tinha vontade de estudar, mas eu estudei. Fora isso, eu estudei Inglês, estudei um ano e meio de Inglês, e Espanhol também um ano e meio.

P/1 – Mas a senhora trouxe uma foto para a gente, a senhora recebendo um diploma de universidade? Como foi?

R – Aquilo é universidade de terceira idade. Não é nada assim... Assim... o que a gente aprendia lá era tudo assuntos gerais, mas principalmente coisa do nosso interesse, pela idade, sobre a saúde. Eles ensinaram muito sobre a saúde, as regras para seguir uma saúde mais... Como se diz? Uma saúde melhor. Saudável. Foi muito bom também. Fui eu, meu marido. Meu marido já era formado em economista, economista não, Administração de Empresa. Mas para lazer, essas coisas, foi bom. Tinha festa, dia do idoso, tinha comemoração, tudo. Teve essa festa de formatura que eu nem esperava. Nossa, eles mandaram vestir uma beca. Foi muito bom.

P/1 – E o seu marido ainda é vivo, dona Emília?

R – Não. Ele morreu faz dois anos. Ele morreu com 90 anos.

P/1 – E o que a senhora gosta de fazer hoje? Como é o seu cotidiano? A senhora acorda, o que a senhora faz?

[trecho retirado a pedido da entrevistada]

P/1 - A senhora faz ginástica?

R – Faço. Faço três vezes por semana: na segunda, no sábado e no domingo. Na segunda-feira tenho ginástica, na terça-feira eu tenho aula de pintura. Eu pinto tela. Na quarta-feira eu vou à aula de memorização. Tudo ela que me leva. Aí ela não pode me buscar, ela manda um táxi para me pegar e levar para casa. O que mais eu faço? Memorização. E agora eu me matriculei para fazer aula de Japonês (risos). Agora (risos). Que meu pai nunca se incomodou se eu falo Japonês ou não. Para ele... Até um dia, ele falou assim: “Olha, se um dia você precisar, você vai estudar”. Eu não estou precisando, sabe? Mas eu vou, para o meu primo do Japão não ficar falando: “Você manda carta em Inglês, por que que não escreve em Japonês?”. Ele fala assim: “Escreve em Japonês que eu entendo melhor”.

P/1 – A senhora tem família lá ainda?

R – Eu tenho primo, tinha tia até cinco anos atrás. Tinha uma tia, a irmã mais nova da minha mãe. Ela tem um restaurante lá em Tóquio. Agora está com o meu primo.

P/1 – E a senhora já foi para lá?

R – Nunca. Nunca deu. Mas não faz mal. Eu conheço Brasília, conheço Caldas Novas. Está bom. Eu não conheço nem o Rio de Janeiro. Queria conhecer Foz do Iguaçu, mas não faz mal.

P/1 – E a senhora está com quantos anos agora dona Emília?

R – Em março, dia dois de março, eu completei 82 anos.

P/1 – E fizeram festa?

R – Aquela festa surpresa lá.

P/1 – Conta para a gente. Como foi?

R – Então... o meu irmão mora na Aldeia da Serra, lá em São Paulo. Aí ele conversou com a Eunice e a mandou falar para mim: “Olha, no dia tal, aquela sua colega de infância quer te ver. Então ela vai lá, vai estar na casa do tio” – ela falou. Eu falei: “Ah, é? Poxa! Ela vai estar lá?” Eu falei: “Tudo bem”. Eu tinha acabado de completar 82 anos. Completei acho que foi no domingo, aí na segunda-feira a Nice falou assim... Falei: “Está bom, eu vou. Eu vou”. Ela me comprou roupa nova, tudo, pensei: “É presente de aniversário”. No dia, ela falou assim: “Vamos fazer cabelo”. Eu falei: “Nossa, o que isso?”. Mandou ir fazer as unhas. Falei: “Está bom. Está bom”. Tudo que ela manda, eu faço. Aliás, ela que me leva. Chegou no dia, nós fomos, chegamos lá. O meu irmão já estava lá na porta da casa, na frente. Eu desci do carro, falei: ”Ela já chegou? Ela já está aí?”. Ele falou assim: “Está sim. Está lá dentro. Está lá dentro”. Quando eu entro, está todo mundo lá, batendo palma. Falei: “Nossa Senhora, o que isso?”. Foi uma coisa inesquecível. Nunca tive coisa igual. Toda minha parentada estava lá, me abraçaram, Nossa Senhora, que coisa. Até meu bisneto estava lá. O meu irmão nem conhecia meu bisneto. Estava lá. O marido da minha neta, estava todo mundo lá. Foi uma coisa memorável. Uma coisa memorável. Acho que, não sei, acho que é o último da minha vida. Tem mais alguma coisa?

P/2 – Eu tenho uma pergunta para a senhora. A senhora comentou...

R – Hein?

P/2 – A senhora falou que quando era jovem, os seus passeios com o seu pai era ir ao cinema. E quando os seus filhos eram pequenos e adolescentes, onde vocês gostavam de passear? Como que era o convívio da família?

R – Quando minhas filhas eram pequenas? A gente ia mais à casa de parente. À casa da minha irmã, da sobrinha. No dia da Páscoa, eu costumava fazer reunião de família, fazia um almoço lá, ia todo mundo, meu pai. Era muito bom também. Quando meu pai vivia, todo mundo se reunia onde ele estava. Então era assim, quando meu pai vivia, a família parece que se juntava mais, que é meu pai, tal. Depois que ele faleceu, as pessoas começaram... Sabe? É coisa de... Mas agora, aos poucos, também está começando... Porque todo ano a gente costuma reunir a família. Todo ano. Todo ano a gente gosta de comemorar ou Natal, ou Ano Novo. Mais Natal, a gente comemora. Reune todo mundo na casa de alguém. A minha neta tem feito muita reunião na casa dela. O marido dela, [trecho retirado a pedido da entrevistada] Os assados ficam por conta dele. [trecho retirado a pedido da entrevistada] É muito bom.

P/1 – Dona Emília, eu vou fazer uma última pergunta aqui para a senhora. Eu queria saber o que a senhora achou dessa experiência de contar a sua vida, de contar um pouquinho para a gente da sua trajetória?

R – Olha, é muito bom. Muito bom mesmo. Um tipo de... Como se diz? Um desabafo também. Pode ser. Um tipo de desabafo. Porque, normalmente, a gente não conta para a família as coisas. É interessante. As minhas irmãs também nunca me contaram nada, então através delas não sei nada dos antepassados também, e nem da vida atual. Se bem que minha irmã já morreu, meu irmão já morreu. Foi bom. É um tipo de passar por um psicólogo e contar. Agora, a gente não conta as agruras, as coisas duras da vida, as coisas que magoaram muito a gente, essas coisas a gente conta para o psicólogo (risos). Porque tem. Mas é assim, a minha irmã mais velha que eu... ela já morreu, ela sempre falava: “Olha, Yoshico...” – ela me chamava de Yoshico – “Você sempre foi a mais felizarda da família, porque a tua vida mesmo começou depois que veio para São Paulo”. Porque depois que veio para São Paulo, para mim foi tudo bom mesmo. Tive vida de criança e adolescente, tudo. Ao passo que ela trabalhou muito na roça. Ela sofreu muito. E eu, quando era pequena, quando tinha cinco anos, seis anos, andava sempre atrás da minha irmã. Porque em casa ninguém conversava comigo. Não tinha ninguém para trocar ideia, falar qualquer coisa. Isso eu lamento muito. Porque pouca coisa que eu sei de Japonês é de ouvido, de ouvir meu pai e minha mãe conversarem, poucas vezes que eles conversavam. E outra coisa, a minha mãe era mais carinhosa, então quando ela tinha uma pequena folga, ela costuma ir debaixo da árvore que tinha lá na casa do interior, levava um monte de laranja aqui no colo, no avental, descascava e dava para a gente. E, nesse meio tempo, acho que com saudade do tempo em que ela era estudante no Japão, ela cantava as músicas que aprendeu na escola. São várias músicas de criança, música de criança. Eu tenho tudo no ouvido. Guardei todas as musiquinhas. De vez em quando eu canto lá em casa.

P/1 – A senhora quer cantar alguma para a gente?

R – Eu não tenho voz boa.

P/1 – Não tem problema.

R – Eu gosto muito de cantar, mas lamentavelmente eu não tenho voz boa para cantar. E cantava no coral da igreja, música religiosa. Mas a freira falava assim: “Olha, você pode cantar na segunda voz, porque segunda voz fica entre outras vozes e não vai aparecer tanto, então pode cantar”. Tem uma música que é muito bonitinha, que se chama assim: “Ottete tsunaide nomichi wo yukeba. Minna kawai kotori ni natte. Utawo utaeba kutsu ga naru. Hareta Missora ni kutsu ga naru”.

P/1 – Muito bonita.

R – É bonitinha, não é? E tem outras. Várias.

P/1 – Então está certo, dona Emília. Eu queria, em nome do Museu, agradecer muito a sua participação, a gente ficou muito feliz em ouvir a sua história.

R – Eu falei direitinho?

R/1 – Falou muito bem.

R – É?

R/1 – Falou muito bem.

R – Deu para entender?

R/1 – Deu para entender tudo. Está bom?

R – Então está bom.

P/2 – Muito obrigado.

FINAL DA ENTREVISTA