Museu da Pessoa

Uma ativista imigrante

autoria: Museu da Pessoa personagem: Jobana Moya Aramayo

Tecban - Histórias Diversas
Entrevista de Jobana Moya Aramayo
Entrevistada por Lucas Torigoe e Mathilde Rousseaux
São Paulo, 04/08/2022
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1250
Revisada e traduzida por Genivaldo Cavalcanti Filho

(00:16) P/1 - Jobana, obrigado por estar aqui. Que bom que deu certo, que deu tempo! A primeira pergunta eu sempre falo que é muito difícil. Qual é seu nome completo, local de nascimento e data?

R - Meu nome é Jobana Moya Aramayo. Nasci em doze de fevereiro de 1981 em Cochabamba, Bolívia.

(00:36) P/1 - Os seus pais te contaram como foi o dia que você nasceu? Você sabe dessa história?

R - Sabe que é um tema que não conversamos muito? Só sei que eu nasci às duas da tarde e meus pais me levaram de Quillacollo a Cochabamba, que era o lugar

onde tinham o seguro médico para que eu pudesse nascer. Meu papai é [operário] fabril, trabalhava numa empresa e tinha esse benefício. Acho que é só isso que eu sei. (risos) Nunca perguntei muito sobre o tema.

(01:16) P/1 - Eles não falaram se foi complicado ou se demorou pra chegar lá?

R - Não. Foi um parto normal. Minha mãe, acho que teve uma boa experiência, porque ela nunca falou que foi complicado, difícil.

(01:34) P/1 - Qual é o nome completo da sua mãe?

R -

É Rubi de Aramayo Choque.

(01:40) P/1 - Ela nasceu onde?
R - Ela nasceu na Argentina, mas só ficou alguns dias lá. Depois eles se mudaram porque meu avô era mineiro, então eles ficavam andando pelas minas, nas fronteiras.



(01:56) P/1 - Então me fale um pouquinho da família da sua mãe. De onde eles são, o que eles fazem.

R - Tá. A mãe da minha mãe se chama Nicácia Choque. Ela era órfã e ficava nos centros mineiros. Meu avô se chama Hermano Aramayo Alcocer, mas Aramayo é nosso apellido [sobrenome] porque seu pai mudou o sobrenome e adotou o nome da mina onde ele trabalhava. Era uma das maiores minas na Bolívia. Falam que o sobrenome na realidade era Gambier. Não sei, não sabemos. (risos) Nem sabemos por que ele trocou o sobrenome.
Ele ficou órfão, porque seu pai era mineiro e morreu acho que com 26 anos. Ele ficou trabalhando também como mineiro. Sua mãe se casou outra vez e aí ele conheceu a minha avó.
Tem uma lenda na família que fala que minha avó o sequestrou. (risos)

Eles saíram e ela o deixou trancado num quarto pra ele prometer que ia se casar com ela, porque ela era órfã, então ela tinha medo que ele só tivesse ‘ficado’ com ela e fosse deixá-la. (risos)
Eles se casaram e aí meu avô… Tinha muitos acidentes nas minas e ele ficou preso por três dias num acidente. A mãe da minha mãe ficou com muito medo e o obrigou a migrar. Eles migraram de Potosí, porque isso aconteceu em Potosí, em Uncía e Pulacayo, que são centros mineiros até agora. Eles foram para Quillacollo, que era um lugar muito pequeno, num vale, compraram um terreno e moraram ali.
Os pais de meu pai são quéchuas, todos. Meus avós são quéchuas do altiplano do lado da minha mãe, do lado do meu pai são do Valle Alto, quéchuas também. Meu avô era de Tarata e a mãe era de Sipe Sipe. Eles se conheceram e também terminaram nas minas, tanto que meu pai nasceu na mina de Catavi.

(04:21) P/1 - Dentro da mina?

R - Tem povoados ao redor da mina, com trabalhadores. Catavi é um centro mineiro, até agora.
O pai do meu pai não trabalhava dentro da mina, ele trabalhava, acho que… Sei lá, em coisas de transporte, de alimentação. Depois o pai do meu pai migrou para a Argentina e ele voltava a cada certo tempo, aí a mãe voltou para a cidade, onde era o povoado. Meu pai comenta que passava muita fome, porque nem sabiam se meu avô estava vivo ou morto; ele demorava muito a dar notícias.
Depois ele voltou e foi levando os filhos. Ele trabalhava como pedreiro em Buenos Aires com seus irmãos e meu pai, com seus irmãos, vendiam limões nos faróis para sobreviver, porque tinha muita pobreza para os imigrantes bolivianos lá.
Acho que ele ficou até os 25 [anos], trabalhando. Ele também trabalhou em feiras com os italianos, vendendo roupas. Ele estudou só até os treze anos, porque depois ele tinha que trabalhar.
Ele sempre voltava para a Bolívia para uma festa muito grande, que é a Fiesta de Urkupiña, que é uma festa de integração. De fato, muitos imigrantes bolivianos vão para a Bolívia no mês de agosto para essa festa, e ele dançava Caporales, que é uma dança. Ele conheceu a minha mãe na festa, aí a minha mãe engravidou, ele casou e ficou, porque ele sempre voltava para a Argentina. (risos)
Que mais?

(06:16) P/1 - Eles se conheceram nessa festa. Seu pai e sua mãe te contaram como foi, como eles chegaram a conversar?

R - Uma história trágica, não? (risos) Os pais da minha mãe foram lá.
Meu avô sempre foi muito autodidata e terminou trabalhando na empresa Andrade Gutierrez, que é brasileira, fazendo estradas. Ele aprendeu sozinho a fazer ensaios, e ajudava os engenheiros civis, então ele terminava viajando muito e a situação econômica melhorou muito para a família da minha mãe.
Minha avó ficava cuidando dos filhos, vendendo roupa.
Minha mãe estava noiva, ela ia casar. No dia que o noivo foi com a mãe - que era viúva e seria sogra da minha mãe - pedir a mão da minha mãe, chegou uma mulher com uma criança na casa, e pediu pra falar com o pai da minha mãe. Meu avô saiu e a mulher falou que era filha do moço que queria casar com a minha mãe. Ela chorou muito para que ele não se casasse com a minha mãe e assumisse o filho.
Minha mãe ficou muito chateada e rompeu o compromisso. Nisso sua amiga a levou para dançar nessas fraternidades e aí ela conheceu o meu pai.
Ela disse que meu pai era muito simpático, muito protetor. Ele ganhava concursos bailando rock’n’roll, que em Buenos Aires era muito popular - na Bolívia, nem tanto. Tinha concursos. Minha mãe gostava de dançar, acho que meu pai a ensinou a dançar e ficaram muito amigos, aí apareci eu. (risos)

(08:09) P/1 - Você é a primeira filha deles?

R - Sou a primeira filha.

(08:11) P/1 - Você tem irmãos?

R - Tenho quatro irmãos.

(08:13) P/1 - Qual o nome deles?

R - Minha irmã Dayana, meu irmão Fernando, minha irmã Romina e o irmão caçula, que se chama Jesús.

(08:24) P/1 - E tem muita diferença de idade entre vocês?

R - Com minha irmã temos cinco anos de diferença, porque minha mãe perdeu um filho; nasceu um menino, mas morreu. Depois vem meu irmão, que acho que nasceu dois anos depois de minha irmã. Nasceu outro, três anos depois. E com meu irmão caçula temos vinte anos de diferença, porque minha mãe migrou para a Espanha em uma época muito difícil na Bolívia. Ela estava na menopausa e não se cuidou, aí nesse período ela engravidou, então o meu irmão tem muita diferença. Eu o conheço

muito pouco.



(09:13) P/1 - Ele nasceu na Espanha?

R - Ele nasceu na Bolívia, porque minha mãe voltou com sete meses e deu à luz a ele. Quando ele tinha dois anos, ela voltou para a Espanha, então eu fiquei cuidando dele. As pessoas acreditavam que era meu filho ou da minha irmã, porque nós não saíamos muito de casa e aí depois, quando saíamos, saíamos com um bebê, então… (risos)

(09:34) P/1 - Quais foram essas dificuldades da Bolívia que você falou nesse período? O que aconteceu?

R - Era muito instável a economia. Teve a Guerra da Água, antes [disso] a Guerra do Gás. Teve vários decretos que deixaram muito instável a economia, que já era bem frágil, porque antes teve muitos períodos de ditaduras curtas. Agora é diferente, mas na época não tinha tantas fontes de trabalho. Minha mãe é cientista social, é socióloga, mas ela nunca conseguiu trabalhar porque meu pai não deixava ela viajar para as comunidades. Ela terminou fazendo outros cursos e fazendo outras coisas.
Eles fizeram uma casa e pegaram uma dívida muito grande. O dólar… O peso começou a subir muito e o salário do meu pai não alcançava mais pagar a dívida, ficou com muitos juros. Aconteceu com muitas pessoas. A única opção era minha mãe migrar, porque o salário do meu pai não estava dando conta para manter a família, nem para pagar a dívida, então ela teve que viajar para a Espanha.
Ficou na Espanha por sete anos; voltou quando meu irmão tinha quase oito anos, acho.

(11:05) P/1 - Ela foi trabalhar com o que lá?

R - Cuidadora de idosos. Primeiro ela trabalhou cuidando de crianças, mas depois…
Ela trabalhava com o documento da minha tia, porque ela já tinha a cidadania. Minha mãe estava irregular lá. Depois ela conheceu uma mulher que disse que era melhor trabalhar com idosos e ensinou várias técnicas; quando ela foi para a entrevista, ela passou. Melhorou muito pra ela.
Em seguida, foi minha irmã, porque a família toda do namorado morava na Espanha, em Madri. Tem uma comunidade muito grande da minha cidade lá. Ela foi estudar, estudou Administração.
Minha mãe ficou com ela até ela terminar, aí voltaram juntas.



(11:54) P/1 - Em que ano elas voltaram?

R -

Minha filha tinha dois anos… Acho que em 2012, 2013.



(12:03) P/1 - Agora vou voltar lá pro começo, pro começo mesmo. (risos)

Quais seriam as suas primeiras lembranças? Se você puxar na sua cabeça, o que você lembraria de primeiro? Não sei se da sua casa…



R - Uma lembrança forte que eu tenho era ver o chão se mexer, porque meu pai tinha me dado banho e me enrolou na toalha. Os banheiros ficavam sempre fora; ele estava me carregando e eu estava vendo o chão. Depois eu me lembro do meu pai penteando meu cabelo, porque minha mãe estudava. Todos tiravam sarro, porque ficava engraçado, ele não sabia pentear. (risos) E eu lembro que gostava que ele me penteasse, sei lá por que. Ele penteava forte, mas eu gostava.
Que mais lembro? Lembro de meu avô contando histórias, todas as noites. Ele sentava num pasillo [corredor], em uma cadeira; minha avó sentava ao lado e eles começavam a mastigar folha de coca. Começava a fumar e todos os netos, nos sentávamos aos pés [deles]. Cada noite ele contava histórias que tinha vivido, mas obviamente que não. (risos) Mas eu aprendi muito sobre a nossa cultura com essas histórias, acho que isso foi muito marcante pra mim.

(13:28) P/1 - Você poderia contar alguma história pra gente, que te marcou?

R - Posso. Uma que dava muito medo pra nós…(risos) Os mineiros sempre têm histórias relacionadas com o escuro, com a morte, com deidades. Ele contava que quando era bem novo ele foi ao quartel para servir. Foram a uma comunidade muito longe. O povo, o prefeito os tinha chamado porque a comunidade estava muito agitada; tinha uma mulher que falavam que ela era bruxa e que nas noites a cabeça dela saía voando, então era a chola sin cabeza.


Ele falava que essa mulher sempre andava com uma pañoleta e o povo falava que era porque a cabeça não saía, sei lá, que ela matava pessoas. O pessoal queria matá-la e queimá-la, porque tinham medo. Tinha acontecido algumas coisas, então o exército foi chamado pra resguardar.
Uma noite eles estavam resguardando a casa e ele viu a cabeça voando. (risos) Eles viram a cabeça voadora e saíram correndo, não quiseram voltar mais! (risos)
No final não soubemos o que tinha acontecido com essa mulher, mas era uma história que dava muito medo.

Em casa tinha teto de calamina, que faz muito barulho, então os tios e meu avô falavam: “Vayan a dormir temprano, porque la cabeza va a venir.” [“Vão dormir cedo, porque a cabeça vai vir.”]
Na Bolívia tem o costume de ter uma caveira, que são as ñatitas, um costume de La Paz; quando alguém rouba algo de você ou você perde algo, você coloca uma moeda e pede pra ela… Se supõe que ela dá pesadelos pra pessoa que é o ladrão e você vai descobrir. Minha avó tinha uma caveira assim, uma ñatita, e ela falava que em cada ano, em uma data, a cabeça voadora vinha visitá-la, então essa história ficou muito marcante pra mim. (risos)

(15:41) P/1 - Ele falava do escuro, né? Ele falava como era ficar tanto tempo debaixo da terra?

R - Ele falava que eles desciam com um passarinho, porque quando um passarinho morria eles tinham que sair. E que era muito quente, era muito suado. Tinha muitos derrumbes [desabamentos], então muitos mineiros morriam, perdiam membros. Ele falava que sempre antes de entrar na mina, eles tinham que fazer uma oferenda para El Tío. El Tío era a representação do diabo. É como um diabo, com um pênis bem grande; na cultura andina um falo representa a abundância, a fertilidade, então eles ofereciam álcool, cigarros e folhas de coca. Ficavam acullicando [mastigando] com ele, pedindo permissão para entrar e também para encontrar vetas de mineral [veias de mineral]. Era perigoso também pela dinamite que eles usavam.
Que mais falavam? Que era muito quente, que não deixavam entrar mulheres, porque El Tío não gostava, e aí havia derrumbes… Que ganhavam muito pouco, quase não ganhavam nada porque davam uns papeizinhos para la pulpería, que é onde você troca por alimentos e sempre ficavam devendo dinheiro… Que morriam muitas pessoas jovens com tuberculose, como seu pai, cuspindo sangue. Essa é uma lembrança que me marcou, ter visto pessoas morrer com tuberculose.



(17:20) P/1 - E sua avó, ela também contava histórias pra você? Eram diferentes?

R - A esposa? Sabe que quase não me lembro da voz dela? Porque ela falava muito pouco. Minha mãe falava que era porque ela teve uma vida muito difícil como órfã. Ela ficou órfã com o irmão, desde pequena. E minha avó tem traços de pessoa negra - os lábios, o cabelo também era meio cacheado e as tranças eram bem pequenininhas, não cresciam muito. Por que teve também… Não sei, agora, aqui no Brasil, pensei muito sobre isso, porque a cara dela era tão diferente da de meu avô, que era mais andino.
Enfim, ela ficou órfã e ela nunca falava, mas ela era… Ela não gostava de compartilhar. Eu me lembro que nós ficávamos muito bravos, porque ela adorava Coca-cola, então ela comprava e escondia debaixo da pollera para não nos convidar. (risos) Mas depois a minha mãe falou que ela era órfã, que sofreu muito, então entendi que talvez era uma coisa de criança que ficou nela, de guardar qualquer coisa que ela tinha.


Ela era muito dura. Era minha madrinha. (risos)

(18:33) P/1 - Na sua casa era ela que ficava mais com vocês?

R - Na Bolívia, em geral, você mora na casa de um dos pais. Nós morávamos na casa dos pais da minha mãe, então cresci com eles por toda a minha vida. Só quando vim para o Brasil que saí de lá.
Eu lembro dela sempre dura, quase nunca falando, e ela tinha uma tenda, que vendia coisas doces, balas. E era meu avô que dava a chave pra tirar doces, porque ela nunca, jamais queria dar pra nós. Eu lembro disso. Eu ficava… Eu não gostava dela, mas depois, com o tempo, acho que eu me reconciliei com a imagem dela, pensando nas coisas que ela teria vivido. Parecia uma pessoa tão dura, de não falar… Ela parecia invejosa, mesquinha.
Mas quando ela era bem velhinha, ela… Na Bolívia tem uma enfermidade que se chama cisticercose, que são gusanos [minhocas] que vivem na carne do porco, e eles entraram no cérebro dela. Fizeram um tratamento, mataram, só que ficou um bicho numa artéria e ela começou a perder a mobilidade do corpo. Eu lembro que minha mãe cuidou muito dela, ela ficou quase como uma criança.
Para a cirurgia eles cortaram o cabelo. Eu nunca vi minha avó chorar tanto, porque o cabelo é como a beleza da mulher. Aí minha mãe foi e comprou uma peruca de tranças; ela ficou tão feliz, como uma criança. Foi muito chocante pra mim ver a importância do cabelo pra ela.
Eu me lembro que éramos muito pobres, quase nunca podíamos comer sorvete. Um dia, não sei como, consegui dinheiro e comprei um sorvete. Eu cheguei em casa superfeliz, e ela desceu as escadas. Ela me olhou de um jeito que eu dei o sorvete pra ela. Ela ficou tão feliz!
E depois, uma coisa também que nos reconciliou foi que ela ficou muito doente. Ela ia ao banheiro e não conseguia se limpar. Um dia ela saiu e foi ao banheiro e eu era bem… Nossa, como se fala? Nojenta, não gosto das coisas… Mas sei lá, aconteceu alguma coisa, eu fui e limpei ela. A partir daí ficamos em paz. Ela não falava mais, mas eu fiquei em paz com ela. Acho que essa foi uma lembrança mais forte com ela.

(21:04) P/1 - Ela está viva ainda?

R - Não, ela morreu um tempo depois. Começou a parar tudo, deu um infarto e ela faleceu. Faleceu bem nova, acho que com 64 anos.

(21:14) P/1 - Isso faz tempo?

R - Faz! (risos) Eu tinha quanto? Acho que uns quinze, dezesseis anos, coisa assim.

(21:24) P/1 - Tudo isso aconteceu quando você era adolescente.

R - Sim.



(21:28) P/1 - Me fala um pouco mais dessa casa dela. Vamos pensar que alguém está entrando nessa casa. Como ela é?

R - Primeiro acho que tenho que contar as referências espaciais, porque em Quillacollo todos os povoados pela colonização espanhola têm uma igreja na praça e as casas principais. A casa de meu avô está a dois quarteirões da igreja principal.
Em frente estava uma mansão, a casa de José Montaño, que era muito conhecido porque ele tinha caminhões que traziam batatas. E meu avô contava que eles iam com os caminhões porque os campesinos não tinham como trazer, então eles colocavam as batatas, [as] traziam, entravam na mansão, fechavam os portões e falavam… Se tinha, sei lá, que pagar trezentos reais, eles falavam: “Vamos pagar quinze reais, porque nós trouxemos.” Eles se fizeram ricos fazendo chorar muita gente.
Mas essa é a referência para encontrar a casa da minha avó. Era uma casa de adobe, que são dois blocos de terra com paja [palha]. Tinha umas telhas bem antigas. Tinha duas portas, onde era a loja. Dentro tinha um forno debaixo, onde fazíamos pão, e no fundo tinha os quartos. Na lateral tinha dois andares; em cima os quartos dos meus avós, embaixo tinha a cozinha, a sala e tinha uma sala para os santos, que eu morria de medo.

(23:05) P/1 - Por quê?

R - Porque nós acreditamos que onde tem muitas estátuas de santos, as almas dos mortos, que estão perdidas, vêm descansar ali. E minha avó sempre mandava limpar ali. (risos)


Eles tinham uns santos muito antigos, muito lindos. Tinha uma coisa do tipo que fazem para as Virgens, como grutas.









































(23:32) P/1 - Você entrava lá sozinha?

R - Com meus primos. (risos)

Eu tinha muitos primos.
Tínhamos uma árvore muito grande, de figo. Em nossa cultura tem duendes que vivem ali. E também em nossa cultura as crianças são roubadas por duendes, que as metem no forno e desaparecem. [Na cultura] dos meus avós e dos mineiros são muito fortes essas coisas, então à noite eu e meus primos fazíamos xixi na cama porque tínhamos medo de ir ao banheiro e alguém nos puxasse pra figueira ou pro forno, que ficava ao lado do banheiro. (risos) E minha avó falava que tínhamos que ter cuidado, porque os duendes mostravam brinquedos lindos, comidas bem gostosas para nos enganar.
Eu acho que era uma alusão para ter cuidado com estranhos, mas eles usavam essa metáfora dos duendes.



(24:24) P/1 - Tinha muitas histórias… Não sei o que você acha, mas tinha muito essa coisa mística, não é?

R - Muito. Eles falavam à noite, para ver se víamos… Sabe que onde estava a casa, que agora venderam, era parte de um cemitério indígena. Quando fizeram as escavações para colocar a tubulação, eles encontraram muitos objetos de barro, túnicas, muita coisa. E era comum escutar que em lugares onde tem tesouros escondidos aparece [algo] como um fogo; você tem que ir com uma faca e cravar [naquele lugar], aí você vai encontrar. Meu avô sempre falava nas noites: “Fiquem de olho [pra ver] se aparece.” (risos) Todos procurando.

(25:16) P/1 - Você falou que tinha muitos primos.



R - Muitos primos.

(25:19) P/1 - Vocês brincavam? Como era a relação com eles?

R - Eu tinha uns primos em La Paz, que meu tio sempre mandava nas férias. E como meus tios moravam com meu avô também, brincávamos, todo o tempo estávamos juntos.
Íamos ao rio lavar roupa. Eu lembro que fazíamos represas com pedras, porque não eram rios muito caudalosos. Juntávamos muitas pedras, fazíamos como uma piscina. Depois, meus avós pediam pra pisar os pullus, que são como uns cobertores feitos de lã de ovelha, que são tecidos muito pesados. Dois primos seguravam e nós íamos pisando nas pedras do rio para lavar. Era muito legal.
Meus avós e meus pais gostavam muito de fazer excursões. Era tudo perto, então íamos caminhando. Faziam panelas de comida e íamos brincar nos rios, no campo. Fazíamos muito isso, era muito legal.

(26:17) P/1 - Você tinha alguma brincadeira, ou algumas brincadeiras preferidas?

R - Acho que as comuns. Esconde-esconde, uma brincadeira que tínhamos que trocar de coração. Era feito o coração de um condenado. Um condenado era uma alma má e que foi para o diabo, então vagaria como um espírito, fazendo maldades.
Tem muito sincretismo católico, então as histórias sempre têm isso, o diabo. Colocavam em você o coração de um condenado e você vai perseguindo, colocavam um coração de não sei quê e você vai perseguindo. Era como pega-pega.
Ou cozinhar, porque lá todas as crianças têm panelinhas de barro, fogão de barro, e meus pais e meus avós acendiam fogo mesmo. Não para cozinhar, mas era como um fogão que tinha. Cozinhávamos muito.
Criávamos pintinhos, eles sempre compravam pintinhos porque se criava para comer.
Que mais fazíamos de brincar? Fazíamos muitas coisas em casa também, pra ajudar a cozinhar, descascar… Você sempre tinha que ajudar a cozinhar as ervilhas, as favas, descascar batata; com seis, sete anos você aprendia a descascar batatas pra cozinhar.





(27:40) P/1 - Vocês ouviam rádio ou vitrola, viam televisão? Como era isso lá, nessa época?

R - Eu acho que vi pela primeira vez televisão com oito, dez anos. Meu avô conseguiu uma televisão em preto e branco, mas não passava quase nada. (risos) Depois, com treze anos, meus pais conseguiram uma TV pequena a cores, e aí já chegavam programas.
Meu avô sempre escutava muitos tangos, muito Carlos Gardel. E na rua principal vendiam muita música… Não sei, folclórica. Muita música em quéchua. Mas meus pais não me deixavam falar quéchua.

(28:30) P/1 - Por quê?

R - Porque antes de Evo Morales era muito ruim você falar quéchua ou ter sotaque, então eles nunca nos deixavam falar. Falavam: “É feio, não fale.” Mas eles falavam entre eles e com meus avós. Nós não aprendemos, mas eu entendia. E minha mãe também não usou mais pollera, minha avó tirou a pollera.










































Eu sempre senti essa discriminação por meus avós serem… Não campesinos, [por] serem mineiros, cholos, digamos. E na universidade também, eles discriminavam, sabiam quem era da província. Falam que nós, quillacollenos, somos franceses, porque falamos as palavras “le voi” decir, vou fazer, não as …Brincam conosco. É muito fácil identificar que você não fala o espanhol correto.
Na universidade eu estudei Engenharia de Alimentos e claramente separavam os provincianos pelas roupas, pelo jeito de falar, pelos costumes. Eu lembro que na universidade aprendi a usar garfo e faca, porque em casa comiam sempre com as mãos ou com colher. Comecei a ficar com vergonha, porque na universidade as pessoas usavam garfo e faca e era feio que alguém não soubesse. Também comíamos com a boca aberta, então a universidade foi um choque pra mim.

(30:05) P/1 - Antes de ir para a universidade você estudou na província, mesmo.

R -

Sim, porque havia uma escola que era dos trabalhadores. Manaco era uma firma, acho que canadense, que fazia sapatos e contratava quase todos os homens - não era tanta gente. O sindicato fez uma escola para as crianças. Tinha a escola Tomás Vata, que era como o [ensino] básico, e a escola San Martín de Porres, que era para ensino médio, intermediário. Estudei lá. A administração ficou com monjas católicas, mas era legalzinho. (risos)

(30:50) P/1 - Tem algum professor que te marcou nesse período, ou professora?

R - Vários. O diretor tinha um ouvido fechado e ele era muito culto. Todos tínhamos um nível cultural parecido, eram coisas assim… (risos) Mas ele era muito culto e sempre nos incentivava a aprender muito.
Tinha uma professora de Matemática muito boa. Tínhamos uma professora de História Cívica, um professor de Filosofia… Gostava muito dos professores, eles eram muito dedicados. A maior parte dos meus companheiros conseguiu passar na prova para a universidade pública; quase todos entramos, porque o nível de educação era alto, os professores eram muito esforçados.


Eu gostei de todos, todos foram marcantes de alguma forma.

(31:51) P/1 - E como você era na escola?

R - Eu sempre fui a melhor aluna, então meus pais… Na Bolívia é muito importante estudar. Acho que está muito claro para nós, na cultura, que estudar vai nos dar acesso a outra coisa.
Por exemplo, meu pai, que estudou somente até os treze anos porque teve que trabalhar, ele prezava muito o estudo. Ele gostava de ler. Não tínhamos uma estante com livros, mas tinha um móvel que tinha uma porta e, mexendo como criança, eu encontrei muitos livros.


Meu pai gostava muito de ler, minha mãe gostava muito de ler. O pai da minha mãe, quando teve mais dinheiro, gastava muito dinheiro em comida - ter muita comida era muito importante - e também fomentava que minha mãe estudasse, porque ela era filha única. Tinha quatro irmãos e ela era a única mulher, então minha avó sempre quis que a minha mãe fizesse outras coisas.
Eles sempre me incentivaram. Minha mãe era muito exigente; se eu fizesse uma letra errada, ela arrancava a folha. Meus cadernos eram perfeitos. Minha caligrafia, minha ortografia eram perfeitas, porque minha mãe era…(faz o sinal de rígida com as mãos)

(33:03) P/1 - Naquela época ela já era cientista social ou estava se formando?

R - Ela terminou quando eu tinha seis, sete anos, então ela já era.
Ela sempre incentivou o senso crítico, e meu papá também, era sindicalista, então acho que isso desde pequena foi muito forte pra mim.
Meu pai, por ter essa experiência de migração… Minha mãe é mais clara, meu pai é bem mais marrom. Desde pequenos ele nos falava para ter orgulho de quem éramos, que éramos quéchuas; [ter] orgulho de nossa cultura, nossas práticas, comidas. E eu me dei conta que por muito tempo não gostava de pessoas brancas. Não sei como foi a experiência de meu pai, mas acho que foi muito ruim, porque ele sempre falou isso.
Minha mãe nunca foi de falar assim, mas na prática ela… Todas as danças, nas escolas você dança muito; as coisas, a comida… Acho que na prática minha mãe ________ a cultura. E ela sempre falava para mim que não me casasse com um estrangeiro, porque ele não iria me entender. Acho que isso vinha da experiência deles com imigrantes também. “Eles não vão entender você, então se case com um boliviano.” Eles ficaram chateados quando eu me casei com um brasileiro, mas depois passou.

(34:33) P/1 - Com um boliviano quéchua, da província, não de La Paz, é isso? Tinha também isso?

R -

Não, para eles bastava ser boliviano, pela cultura. Ela falava: “Você vai sofrer, vai sofrer muito”. Eu não sei o que ela viu na Espanha, nos casais, porque ela falava: “Você vai sofrer muito, não se case com alguém além de um boliviano.”

(34:54) P/1 - E seu pai, falava de Buenos Aires também?



R -

Eu adorava! (risos) Ele tinha boas lembranças. Muitas palavras que eu falo no espanhol são da Argentina, de Buenos Aires - o lunfardo que eles falam, termos que eles sempre usavam - aura [ahora], não sei quê. Eu nem sabia, eu achava que era normal, que todo mundo falava assim, e não. As pessoas que eu conhecia, que não conheciam os argentinos, falavam: “Por que você fala assim?” (risos)

“Ah, porque meu pai morou na Argentina.” Ele ficava muito feliz quando iam amigos argentinos em casa.



(35:30) P/1 - Me conta uma coisa então, antes de voltar pra escola. Quando você começou a pegar nos livros, o que você lia, do que você gostou? Tem algum livro que te marcou nesse período?

R - Sabe qual foi o primeiro livro que eu li sozinha? Foi quando abri esse móvel e vi uma tampa. Era uma mulher sem roupa, com um tigre. Por estar em um lugar em que tínhamos muito pudor com o corpo, pra mim foi assim: “Ahhh! Una mujer desnuda!” Eu quis ler escondido e roubei o livro. (risos) Era O Livro da Selva, de Rudyard Kipling. É meu livro favorito até agora. (risos)
Eu sempre gostei de histórias. O Livro da Selva fala de animais que incorporam pessoas. Pelo fato de minha avó sempre contar histórias, eu sempre gostei de mitos, de histórias fantásticas. Eu gosto até hoje, porque acho que os mitos são também metáforas, formas de descrever uma realidade que às vezes não é fácil de entender, se você tenta transmiti-la tal qual ela é. Eu sempre gostei de contos fantásticos.







(36:44) P/1 - Isso continuou até agora?

R - Até agora.

(36:48) P/1 - Entendi. Você sente que as histórias que você ouvia dos seus avós eram como essas, do livro?



R - Eram fantásticas. Eu adorava. Meus filhos, se você perguntar, eles sabem todas as histórias. Contam melhor que eu! (risos) Eu gosto, porque é lindo isso, sabe? Poder sentar com as pessoas e transmitir, porque a imaginação vai criar imagens que nenhum filme, por melhor que seja, vai conseguir. Isso cria uma conexão, porque eu sinto essa conexão com meus avós, muito viva, com meus primos, de acreditar nelas. Isso também me permitiu ver o mundo de outra forma.
Com meus filhos eu faço muito isso. Eu tenho uma filha e um dia ela chegou bem feliz porque tinha contado uma história de terror que eu tinha contado pra ela e a escola pediu. Acho que em outubro que fazem a Festa dos Mortos. E é lindo, eu vejo e gosto de ver como vamos transmitindo e como eles vibram quando contam as histórias; ficam curiosos, querem ir aos lugares.

(38:01) P/1 - E por que essas histórias eram contadas de noite?

R - Acho que… Primeiro que trabalhavam o dia todo. (risos) E a noite era lugar de encontro, sempre. Na minha casa sempre foi muito importante o momento de encontro, as comidas. [Eram]. sei lá, quinze, dezesseis pessoas num quarto bem pequeno, uma mesa… Alguns comiam e outros estavam em pé. Quem terminava de comer ficava em pé.

Sempre contávamos como tinha sido nosso dia no café da manhã, no almoço. À noite tomávamos chá e [dizíamos:] “Como estão?”
Isso que meu avô fazia para ele também era importante. Ele chamava, se sentava e ficava conversando: “Como estão? Como estão?”
Acho que para nós ainda é muito importante essa oralidade. E à noite, essa coisa que não está clara permite também que a sua imaginação voe, sabe? Muita claridade te condiciona a ser isso. Quando não está claro sua imaginação pode voar mais.

(39:11) P/1 - Voltando para a escola, você gostava de alguma matéria em específico? Você falou que era a melhor aluna. A que você gostava mais de se dedicar?

R -

Eu gostava de História, mas é certo que eu gostava muito de linguagem porque você aprende as regras ortográficas. Líamos livros, sempre gostei de ler. Não tinha TV, então eu lia muito ou ouvia histórias. (risos)

(39:52) P/1 - Você falou que seu pai era sindicalista, sua mãe era cientista social. A política entrava muito na sua casa, ou não? Como era isso?

R - Sim. Por exemplo, o pai da minha mãe sempre foi presidente ou alguma coisa nos lugares onde ele trabalhava. Meu avô sempre prezou muito a justiça, meu pai também, então eles sempre foram solidários. Éramos pobres, mas nunca meus pais se esqueceram de dar comida, de dar roupa - dar o que tivéssemos, não o que sobrava.
Às vezes eu ficava com raiva, quando criança; minha blusa estava nova e davam para alguém que precisava. Eu tinha doze anos, tudo bem.
E minha mãe também, minha mãe é extremamente solidária, sabe? Muito solidária. Ela teve uma vida assim, de ajudar muitas pessoas, outras mulheres. Por exemplo, uma vez minha mãe foi ameaçada de morte, porque meu pai tinha uma academia… Meu pai bebia muito quando era novo. Ele tinha uma academia e fabricava os aparatos, aí meu pai começou a fazer exercícios e mudou, ele deixou de beber. Eu tinha a lembrança de acompanhar meu pai e ele bebia muito. Quando eu tinha oito anos, ele começou a fazer esportes e sua vida mudou totalmente, aí ele comprou uma academia.
O pai da minha mãe cortou todo o jardim, todas as árvores para que meu pai colocasse a academia ali. Então meu pai começou a ficar ali na academia, se cuidar.
Eu me perdi, não sei o que eu estava falando. Viajei.

(41:48) P/1 - Você estava falando que sua mãe tinha sido ameaçada de morte.

R - Ah, tá. Minha mãe estava dando aula de aeróbica. Surgiu um emprego em Vinto.

Essa outra localidade tinha uma escola de surdo-mudos, de uns cristãos estadunidenses, e minha mãe foi trabalhar lá. Minha mãe não sabia, aprendeu a fazer exercícios. Quando ela começou a aprender a falar, as crianças começaram a falar para ela que o diabo vinha às noites e às vezes levavam um deles e faziam coisas feias com eles. Minha mãe começou a ficar intrigada. “Como assim, vem o diabo e leva eles”?
O cara, o diretor, era estadunidense, casado com uma peruana. Um cara do bairro pegou a minha mãe uma vez na rua e falou: “Você trabalha aí?” Minha mãe falou assim: “Por quê?” Ele falou: “Eu sou advogado, moro aqui e faz tempo que tem histórias que estão estuprando as crianças lá, mas não temos provas. Eu quero saber o que está acontecendo.” Acho que a minha mãe conhecia por [meio de] alguém esse advogado, porque minha mãe conhece muita gente.
Minha mãe falou com a psicóloga e a psicóloga era uma pessoa muito medrosa. Ela contou para minha mãe que sim, que as crianças tinham contado histórias, que ela também achava isso. Minha mãe começou a conversar mais com as crianças e o que acontecia? O cara colocava uma roupa de diabo e à noite pegava as crianças. Minha mãe denunciou. Chamaram a polícia, fizeram exame nas crianças e efetivamente, meninos tinham sido abusados. Os meninos eram pobres e surdo-mudos.
Minha mãe denunciou, o advogado e o bairro se mobilizou, denunciaram e ele tentou fugir. O advogado, minha mãe e meu pai, todo mundo foi de madrugada e pegaram, conseguiram colocá-lo na prisão. A embaixada estadunidense levou ele embora e ele está livre, nos Estados Unidos, porém o pessoal que trabalhava ali em todo esse processo, o pessoal perseguiu minha mãe e falaram que ia matá-la por

denunciar.
Acho minha mãe uma mulher supercorajosa porque meu pai pediu para ela parar. Ele tinha medo que acontecesse alguma coisa, mas minha mãe não parou, então acho que ela é muito corajosa.
Tinha uns meninos na rua que cheiravam cola e todo mundo tinha medo deles, mas se eles vinham à minha casa, minha mãe dava comida. Eles engraxavam sapatos para sobreviver, então minha mãe juntava os [sapatos] dela e os dos vizinhos e dizia: “Vocês vão ganhar o pão de vocês, precisam aprender a ganhar.” Eles engraxavam, lavavam roupa. Eles contavam para ela o que acontecia com eles, ela tentava sempre ajudar.
Tinha mulheres que roubavam, que eram ladras, mas eram amigas de minha mãe e elas contavam por que tinham que fazer isso.
Eu não tenho a coragem que a minha mãe tem. Minha mãe nunca discriminou nem teve medo das pessoas que precisavam.
Meu pai, por ser sindicalista, pelo esporte; ele criou academias, criou campeonatos de fisiculturismo e fitness no povoado; foi premiado a nível de Bolívia como o melhor treinador.

Ele fez uma campanha e colocou uma academia dentro de uma prisão da cidade para que os presos pudessem fazer exercícios.
Meus pais depois se tornaram evangélicos e também continuam fazendo suas obras sociais, mas eles não esquecem a nossa cultura. Acho interessante. (risos)

(45:46) P/1 - Eles estão na mesma cidade?

R - Estão na mesma cidade, só mudaram de casa porque meu avô morreu e venderam a casa; ela ficou muito valorizada, porque está no centro. E é um povoado em que passa uma estrada principal. A dois quarteirões da casa do meu avô havia uma estrada, unindo La Paz, que é a capital, com Santa Cruz e com Cochabamba. Mas eles moram a quinze minutos de onde era a casa de meu avô.

(46:19) P/1 - Queria te perguntar se você acha que alguma coisa mudou na sua adolescência, ou você teve algum momento, algum ano da sua vida que você achou que tinha saído da infância e entrado em outro período da vida.

R - Acho que teve várias mudanças. Quando eu tinha oito anos comecei a ser estuprada e foi por dois anos, foi por um familiar. A partir dessa idade comecei a fazer uma busca, porque nem hoje em dia as mães são unidas quando acontece, têm ferramentas para lidar com isso. Primeiro procurei na igreja, porque queria ser monja. (risos) Estudei Teologia por um ano, quando estava ainda com dezesseis anos. Comecei a buscar, entrei em associações nas escolas. Acho que isso foi marcante, de tentar buscar referências, algo diferente e…

(47:32) P/1 - E denunciar? Não exatamente.

R - Não se podia. Meu pai nunca soube, só falei para ele quando eu ia vir para o Brasil, já tinha casado. É uma situação muito complexa, as mães ficam como as culpadas, porque não cuidaram. Não sinto que minha mãe foi culpada, que ela não cuidou de mim. Foi o que aconteceu, num contexto em que ela confiava em um familiar, por mais que agora saibamos que são os conhecidos e familiares que abusam das crianças.
Eu vivia numa sociedade onde ser virgem era muito importante. Todos os meus companheiros na escola, no colegial falavam: “Eu só casaria com uma mulher virgem.” Isso me fazia sofrer naquele momento, porque eu não podia falar que não era virgem, por causa do que tinha acontecido, porque era demais. Acho que isso está mudando.
Você, como vítima, tinha vergonha porque ninguém falou comigo quando eu era criança, não me explicaram o que aconteceu, então foi uma situação bastante complexa.
Na escola, no colégio tinha uma psicóloga. Consegui falar com ela e ela me ajudou, porque você nem sequer podia falar. Quando eu cresci, conversando, eu vi que aconteceu com muitas pessoas, com muitas mulheres, mas não falávamos entre nós. Era algo que você tinha que ocultar, então acho que por isso também eu lia muito, acho que me refugiei, mais que tudo. Comecei a ser muito boa esportista, estudar muito, fiz karatê…(risos) E comecei assim, a vivenciar… Por isso o pudor com o corpo. Também era um colégio católico, então você sentia culpa permanentemente pelo que tinha acontecido. Acho que isso marcou muito minha relação com o corpo e só adulta eu consegui me reconciliar com meu corpo. Acho que a cultura paulistana me ajudou bastante com isso, entender o corpo de outra forma, não como algo pecaminoso, que você não pode nem tocar quando se banha, nem olhar, porque foi assim que eu cresci. Você, quando tomava banho, tinha que tocar e olhar o menos possível o seu corpo.

(49:53) P/1 - Para namorar, isso… Namoros com, dezesseis, quinze, catorze anos, isso afetou muito, imagino.

R - Eu acho que afetou mais no tema de confiar, porque você não confia. E se você não confia você não se compromete, você não entrega seu carinho. Eu namorei bastante, mas era isso, eu sentia que as pessoas começavam a me querer e eu me afastava. Muitos meninos ficaram chateados comigo, mas eu não conseguia confiar, não conseguia entregar o meu afeto. Os meninos se apaixonavam e eu não conseguia, então eu cortava. Não namorava por muito tempo porque eu não queria essa intimidade para falar. Eu tinha medo de contato corporal e, sei lá, tinha medo de que descobrissem o que tinha acontecido comigo, porque seria uma vergonha.
Eu lembro que eu contei para um menino que eu namorei e o filho da mãe contou para todo mundo que ele tinha transado comigo, porque ele sabia que eu não ia falar, então isso foi bem chato. E era alguém que eu confiava, então aí foi que eu não confiei mais.
Eu tinha meus amigos que me conheciam, então me protegiam muito. Acho que fui bem afortunada, tinha muitos amigos que me protegiam. Não sabiam; talvez suspeitassem, intuíssem, então eles cuidavam muito de mim. Tinha amigas, minha mãe também me incentivou e me apoiou sempre em tudo, meu pai também, só que aí a relação com a minha mãe [se] cortou. Tínhamos uma boa relação, mas nunca de falar coisas íntimas, de confiança. Mas minha mãe, acho que… Coitada, ela não sabia o que fazer, então ela ficou sempre tentando compensar e eu fui me afastando.
Com meu pai eu sempre tive uma relação muito forte mas, claro, comecei a buscar coisas fora. Na universidade fumei maconha. (risos) Bebia no colegial, bebia muito, porque eu sofria muito. Acho que tentei me suicidar duas vezes.

(52:13) P/1 - Nessa época.

R - Mas não foi…

Posso tomar uma aguinha?

(52:22) P/1 - Pode! Isso foi quando você estava quase na faculdade? Você estava prestando…

R - Não, era mais chica, tinha doze, catorze anos. Você não tem tantas ferramentas, mas depois da Igreja Católica acho que foi interessante, teve seu momento, porque ela me conteve, e as agremiações na escola também.
Na universidade foi chato, porque… Bom, foi interessante porque esse tema saiu. Na universidade, a sexualidade não era um tema, mas comecei a ser discriminada por ser provinciana, por ser pobre. As pessoas que estudavam Engenharia eram pessoas com grana, eram pessoas que estudavam em escolas renomadas, caras, e eles faziam questão de fazer você sentir que não devia estar ali, então isso foi complicado, foi difícil. Você precisava de computador e meus pais não tinham dinheiro para um computador, então eu dependia de meus amigos que tinham grana e tinham computador para poder estudar.

(53:35) P/1 - Você teve que mudar de cidade também?

R - Não, você se deslocava porque era uns treze quilômetros. Você fazia super
rápido, eram 45 minutos, então todo dia eu ia de uma cidade a outra para estudar. É o que fazem as pessoas até agora, não tem universidade onde meus pais moram. Ela [a cidade] cresceu muito, mas universidade tem em Cochabamba, na cidade.

(54:01) P/1 - Menos de uma hora? Quanto tempo?

R - 45 minutos, uma hora, tanto para ir quanto para voltar.

(54:10) P/1 - Por que Engenharia de Alimentos? O que você pensava na época?

R - Eu queria estudar Direito. (risos) Todo mundo queria que eu estudasse Medicina, Biologia, porque eu sou boa de memória, memorizo muito fácil, mas eu queria estudar Direito por essa coisa da justiça, por toda essa paisagem. Meu pai, acho que ele entendeu que Engenharia de Alimentos tinha algo a ver com Nutrição, tinha a ver com academia e eu não quis contrariá-lo, aí eu estudei Engenharia de Alimentos. Não tem nada a ver com Nutrição, mas tudo bem. E eu gostei.

(54:46) P/1 - Foi de que ano a que ano? Quantos anos você tinha?

R - Eu fiquei uns seis anos, mas eu estava fazendo TCC quando me casei e vim para cá, porque foi um momento de ruptura. Eu estava namorando há uns três anos, ele terminou comigo. Entrei em depressão e depois de três meses me recuperei.
A empresa onde estava há um ano não comprava os reativos para fazer os testes que eu precisava para o TCC. Eu trabalhava de graça, como estagiária; não te pagam na Bolívia, você não é pago. Só me deixavam almoçar na fábrica, depois eu pagava passagem, tudo. E sempre que eu perguntava “vocês vão comprar os reativos?” eles falavam “vamos comprar” e nunca compravam, então fiquei bem chateada com isso. Aí apareceu o meu marido e nos casamos. Tchau, me voy.

(55:51) P/1 - Você tinha terminado a faculdade, estava terminando.

R - Estava terminando. Fiquei, inclusive, seis meses mais, que era o tempo que precisava para encerrar esse estágio. Só que na fábrica era essa enrolação para ter [os reativos] e trabalhava de graça. Não aguentei, falei: “Vou ficar aqui quanto tempo mais?” Eles não compravam e eu tinha que fazer um teste com margarinas,

precisava dos químicos, que eram caros. Eu não poderia comprar, então eu saí.

(56:20) P/1 - E como você conheceu seu marido, então?

R - Quando eu estava na universidade, no meio de tudo isso, conheci uma amiga. Ela se chama Cláudia. Ela era muito legal e muito curiosa, sempre queria conhecer as coisas mais loucas que havia e eu ia com ela. Eu era bastante tímida, mas ia com ela. Inclusive, na faculdade achavam que éramos um casal lésbico, porque sempre andávamos juntas! (risos) Gostávamos muito uma da outra.
Ela estava apaixonada por um menino e esse menino nós conhecemos na AIESEC, que é uma organização internacional e que vende um discurso… Um discurso, porque na prática era outra coisa. Ela me implorou para ir a essa organização, aí fomos. Eram meninos com grana, que bebiam muito, mas traziam pessoas de intercâmbio, trouxeram pessoas superlegais, que eu conheci. Era algo interessante, mas tinha algumas coisas bem classistas, era muito classista e eu só ia pela minha amiga, porque ela estava superapaixonada por esse menino, queria vê-lo.
Ele era presidente da AIESEC e saiu, porque tinha encontrado o Movimento Humanista. Ninguém sabia o que era. Minha amiga me falou que se encontrou com uma menina e ele tinha combinado uma reunião do Movimento Humanista, tinha pedido por favor para que ela fosse e eu fui com ela, à força. (risos)
Eram uns argentinos que tinham chegado, porque o Movimento Humanista nasceu na Argentina. É uma corrente ideológica que promove a não-violência ativa e a não-discriminação. São voluntários, foi uma reunião informativa.
Minha amiga nunca mais voltou, porque viu que não ia dar certo com o menino, mas eu senti uma… Eu não entendi nada do que falaram, mas eu senti uma verdade, senti que havia algo que eu estava buscando ali e fui acompanhando. Essas ferramentas da não-violência ativa tinham a ver com o autoconhecimento, então [era] entender o nível de atenção, sua paisagem de formação, como reconciliar, como integrar várias coisas de autoconhecimento. Comecei a ir, gostei muito.
Comecei a fazer atividades na minha cidade, porque muitas mulheres tinham migrado para a Espanha e elas mandavam remessas [de dinheiro]. Eram jovens, crianças com muito dinheiro, usando drogas, bebendo muito para compensar esse vazio. Minha mãe também mandava dinheiro para nós, só que… Sei lá, eu queria saber por que mamãe não contava o que acontecia.

(59:22) P/1 - Na Espanha?

R - Ela não falava nada e eu ficava muito preocupada, porque chegava dinheiro, mas ela não falava nada, estava sempre bem.
Enfim, eu comecei a fazer [atividades] com as ferramentas da não-violência, me capacitei porque o que você aprende, você transmite; você se transforma à medida que transforma o mundo. Para mim isso foi muito interessante, porque eu senti que isso podia ajudar a me reconciliar comigo mesma, com o que eu tinha passado. “Vou encontrar alguma resposta.”
Comecei nas escolas a trabalhar com os jovens, fazer oficinas. Ali fiquei, até que teve um evento de integração dos povos no Chile, que foi organizado pelo Movimento Humanista, onde foram diferentes movimentos sociais de Chile e do Peru, porque teve uma guerra histórica. Na Bolívia e no Peru há um ressentimento com os chilenos pela Guerra do Mar e a ideia é que os movimentos sociais reescrevessem a História, para reconciliar os povos. Nós fomos da Bolívia, eu fui e meu esposo foi porque ia fazer um evento entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, porque também tiveram guerras e para esses países o Brasil Imperial… (risos) tirou territórios. Enfim, ele foi para ver como era, como funcionaria.
Eu o vi e lembro que foi assim, bem novelesco. Eu saí do ônibus, porque chegamos tarde e comecei a ouvir uma voz de alguém falando, um homem falando, aí eu falei: “Ai, acho que encontrei o amor da minha vida.” Eu nem sabia como ele era!

(risos) Pela voz eu senti, escutei a voz e fiquei [pensando:] “Meu, esse é o amor da minha vida.” Fui correndo e o vi, todo lindo, mas ele estava casado na época. Tentei falar com ele e ele foi super respeitoso, super amável, mas falou deixou claro que estava casado e não tinha interesse em nada. (risos)

(1:01:31) P/1 - Como é a voz dele? Por quê…

R - Porque estava transmitindo… Eu sou muito de escutar as verdades internas. Senti uma verdade interna no que ele estava falando. E foi isso.
Depois conversamos e acho que ele estava inspirado nesse momento em algo que ele acreditava. Eu o ouvi falar.
Foi em Iquique, no Chile. Passaram-se dois ou três anos, terminei meu relacionamento. Teve um evento em Buenos Aires, porque o Movimento Humanista é muito internacionalista, estão sempre fazendo coisas entre países. Todos são voluntários, você viaja e tem que pagar tudo. Fui a Buenos Aires também para ‘despejar’ um pouco a mente, ver amigos.
Ele estava no evento e eu não sabia que ele tinha se divorciado, estava separado há um ano. Eu o encontrei, conversamos muito e eu vi que ele estava a fim, mas achava que ele estava casado, então… (risos) Ele me chamou para conversar e era muito amável; brasileiros têm esse jeito que você não consegue não conversar. Ele me levou para conversar porque era um campo e ele me roubou um beijo. Eu fiquei muito brava com ele, fiquei extremamente irritada; não falei com ele por dois dias, porque pensei que ele estava casado ainda e não gostei. Na minha cultura não se faz isso, é muito invasivo. (risos)

(1:03:14) P/1 - Ele falou para você depois?

R - Uma amiga falou pra mim. “O Marquinhos está solteiro.” Eu falei: “Estou muito irritada, porque ele me beijou e não pediu permissão. Não gostei”, aí ela falou que ele estava solteiro.
Depois nos encontramos no último dia, no almoço. Começamos a falar, falamos de relacionamentos e eu falei que estava buscando um relacionamento, mas que eu queria casar e queria ter filhos. Se ele não estava interessado nisso, então… Ele falou assim: “Eu quero casar e quero filhos também”, mas ele estava paquerando. (risos)
Isso foi em janeiro. Continuamos falando por telefone.
Nem eu nem ele lembramos como decidimos nos casar, mas ele foi pedir a minha mão, porque minha família é tradicional. Eu não poderia casar na igreja. Eu não queria, mas minha família queria. Ele era divorciado, já tinha se casado na igreja, então falei: “Pelo menos você tem que falar com meu pai.”
Ele viajou [para a Bolívia]. Fui esperá-lo no aeroporto e nem lembrava da cara dele! (risos) Falei: “Meu Deus, ele vai descer e eu não vou lembrar quem é ele.” Mas ele me reconheceu e foi conversar com meu pai. Foi super legal.
Isso foi em abril. Em maio fomos para Punta de Vacas, em Mendoza, fizemos uma cerimônia de matrimônio com amigos. Eu vim em agosto fazer os trâmites no Brasil; em dezembro voltamos e casamos. Casei super rápido.

(1:05:04) P/1 - Em que ano foi isso?

R - Casei em 2007.

(1:05:07) P/1 - Foi rápido mesmo?

R - Foi rápido, porém devo dizer a meu favor que eu conhecia várias pessoas que o conheciam, e ele conhecia pessoas que me conheciam, então tínhamos uma garantia. E também porque compartilhamos do mesmo projeto de vida. Ele é uma pessoa extremamente solidária e que gosta muito de fazer trabalho social como voluntário. Trabalhamos, somos ativistas e eu queria… Sendo ativista, tinha tentado namorar outras pessoas, mas [diziam:] “Ai, não, vamos ao cinema! Por que você vai ajudar?” Não entendiam. E para ele era tão importante quanto para mim acreditar que um mundo diferente seja possível, acreditar que você pode se transformar e transformar a outros. A não-violência pareceu um caminho para mim, então acho que foi também esse projeto, porque nessa altura da minha vida queria compartilhar um projeto com alguém e eu acredito que o amor não alcança, em algum momento. Se depois não há um projeto de vida compartilhado é difícil que se sustente e fazia sentido isso.

(1:06:31)

P/1 - Você tinha… 26 anos?

R - 25, em seguida completei 26.

(1:06:35)

P/1 - Qual é o nome dele?

R - Marcos Aurélio Rodrigues.

(1:06:40) P/1 - E de onde ele é daqui do Brasil?

R - Ele é do Paraná, de Umuarama.

(1:06:47) P/1 - Além de fazer as atividades do movimento, ele trabalhava com o quê?

R - Era vendedor em uma empresa de produtos químicos.

(1:07:01) P/1 - Quando você veio para o Brasil, você já tinha visitado o país antes ou foi a primeira vez que você veio?

R - Eu nunca tinha viajado de avião, foi a minha primeira viagem. (risos) Foi a primeira vez. Eu cheguei, conheci os pais dele e fomos à polícia para ver todos os papéis. Foi muito pouquinho então, mas foi um choque depois, porque quando você vem a turismo tudo é lindo. Quando você vem morar você tem o choque cultural, linguístico e as dificuldades que é se incorporar.

(1:07:42) P/1 - E com o Marcos você veio morar direto em São Paulo?

R - Primeiro moramos em Osasco, em um quarto da casa do irmão dele. Eu lembro que tínhamos um colchão de solteiro, éramos muito magros e dormíamos ali. Depois moramos no Largo do Arouche, moramos ali por três anos.
Depois ele tinha um terreno, um lote em Caucaia do Alto, que é onde moramos. O aluguel estava muito caro e eu estava grávida; decidimos que queríamos sair, que teríamos casa própria. Pegamos empréstimo no [programa] Minha Casa Minha Vida e com isso conseguimos construir nossa casa.

(1:08:31) P/1 - Que é onde você mora hoje.

R - Que é onde eu moro agora.

(1:08:35) P/1 - Tem um trem ali perto também, né?

R - O trem de Santos, passa por trás.

(1:08:40) P/1 - Agora me fala uma coisa. Quando você chegou no Brasil, você falou de algumas questões linguísticas. O que você percebeu de diferente? Como é que foi a sua experiência aqui, nos primeiros anos?

R - Acho que o primeiro foi o choque da realidade, porque o que aparecia na televisão boliviana do Brasil era o carnaval no Rio de Janeiro, com mulheres quase nuas, ou o Carnaval da Bahia, que estão todos de branco, então quando eu vim eu achava que todo mundo estaria vestido de branco ou caminhando de sunga ou biquíni na rua. (risos) Primeiro foi o choque cultural, as pessoas se vestem e muito aqui em São Paulo.
Depois, acho que me chocou muito a falta de solidariedade em São Paulo - no primeiro momento, porque agora já consigo ver que existe. Nós estávamos na rua, uma mulher caiu e todo mundo seguiu caminhando, como se ela não existisse. Eu fui a única a ir ajudá-la a levantar. Fiquei aborrecida e chocada.
Depois aprendi o que era a discriminação. Na Bolívia tinha sido discriminada, mas por uma questão de classe social e também vinculado ao tema indígena, mas quase todos tinham a mesma aparência. E aqui ficou muito claro que o meu fenótipo era muito marcado. Primeiro que as pessoas fazem piadas com drogas - até agora bolivianos, acho, são associados ao narcotráfico. Ou eram costureiras, me perguntavam isso.
Já sofri muita xenofobia em transporte público, em espaços públicos. Quando caminhava com meu esposo de mãos dadas eu via como as pessoas me olhavam. Já escutei de mulheres brasileiras que era uma vergonha que o brasileiro buscasse uma mulher que não fosse brasileira.
Eu não falei por seis meses. Eu não falava português, não entendia, não sabia nada. Meu marido tem uma sobrinha de cinco anos que era a única que me entendia; não sei como ela entendia tudo, ela era minha tradutora. (risos)
Quando viemos, a proposta do meu marido era só ficar dois anos no Brasil e depois voltar para Bolívia, só que ele é o filho mais velho. O pai ficou doente, depois a mãe ficou viúva, e aí vamos ficando. Estou há quinze anos aqui.
Nos primeiros anos foi ver isso, uma discriminação racial muito forte, não poder me comunicar. As pessoas falavam muito alto, até hoje não consigo me acostumar, fico com dor de cabeça. Em casa também, meus filhos falam alto. De verdade, me doem os ouvidos, porque na Bolívia não, o tom de voz é mais baixo. E o jeito de se relacionar… Sei lá. A corporalidade é diferente aqui; a corporalidade fala, se põe também, então me sentia um pouco intimidada com isso.

(1:12:20) P/1 - E trabalho, você buscou também aqui? Como foi?

R - Então, quando você não fala a língua você não tem [trabalho].
Comecei a trabalhar com meu esposo como assistente administrativa, mas foi bem difícil, porque geralmente a gramática em português é muito diferente do espanhol. Eu fiz um curso na USP, que depois fecharam, para tentar [aprender], mas era difícil porque as pessoas falavam de um jeito comigo na rua e na faculdade eles ensinavam de outro jeito, então eu não conseguia. Se eu tentasse falar o que a professora me ensinava, as pessoas não entendiam, então…

(1:13:10) P/1 - Era muito formal?

R - Acho que era muito formal e as pessoas têm outro jeito de falar na rua, então foi difícil. Eu fiz carteira de trabalho, pela primeira vez assinei um contrato como estagiária, mas a primeira firma depois de quinze anos de carteira. Fui nesse trabalho como informal, digamos, porque me permitiu também uma escolha que fizemos com meu esposo. Eu queria ficar com meus filhos, porque eu vi que aqui o pessoal precisa trabalhar muito, então coloca as crianças desde muito pequenas na creche. Ficam sem vínculos familiares, são muitos migrantes internos também e para mim isso era demais, porque eu venho de um lugar onde você cria os filhos. Meu trabalho, trabalhando como assistente administrativa me permitia trabalhar de casa, online, e estar com meus filhos.
Pude ter um parto normal, com uma parteira, [da] minha primeira filha. Do segundo filho foi em uma casa de parto. Tem a ver com ativismo, com [o fato de] denunciarmos a violência obstétrica. Pedimos que se valorizem as práticas e saberes como a saúde das mulheres migrantes. Pude amamentar meus filhos; minha filha mamou todos os anos, meu filho por quatro anos, por isso que nunca busquei outro trabalho. Não sei, fiz curso de fotografia de produtos, então fotografava produtos; fiz curso de design, trabalhei muito com _____, administração de palavras-chave. Coisas que me permitiam fazer online.
Eu curtia bastante, mas era um trabalho muito solitário. Em um momento me cansei e também senti que precisava de um título aqui, porque você não consegue trabalho se você não tem um título no Brasil. É a verdade, tem um protecionismo muito grande. A não ser que você seja estadunidense ou europeia, você não vai conseguir um trabalho.

(1:15:28) P/1 - O diploma da Bolívia, o pessoal não…

R - O TCC ficou _____. Eu fui até ver, porque não tinha na época… Agora existe o acordo Andrés Bello, que é de Engenharia, e as faculdades na América Latina têm uma grade curricular similar; na minha época não existia, estava começando a entrar, então teria que fazer três anos de faculdade e era em Pirassununga, outro lugar onde ficava a faculdade. Meu marido trabalhava aqui. Você tem que ter grana para isso, aqui não dava, então pensei em fazer coisas práticas que conseguisse. Mas depois que meus filhos cresceram, senti que preciso de um título daqui e por isso eu comecei a estudar Sociologia. No ano que vem termino [o curso].
Com um título brasileiro, um diploma brasileiro eu sei que vai me permitir melhores condições de trabalho, porque já trabalhei em várias coisas… Eu ganhava 700 reais e a pessoa que fazia quase o mesmo que eu ganhava cinco mil, porque tinha um diploma e eu, não. Isso se passa muito com migrantes racializados e isso me irritou muitíssimo! Como boliviana, nunca dei muito valor para diplomas, porque são muitos os conhecimentos empíricos também, mas aqui em São Paulo é muito importante o diploma. Por mais que você não saiba nada, se você tiver um diploma…

(1:17:03) P/1 - É uma cultura.

R - É também uma cultura de desvalorização dos conhecimentos ancestrais empíricos, porque todo conhecimento acadêmico também se sustenta nesses conhecimentos e não os reconhecem, os invalidam. A academia tem muito extrativismo, pegando movimentos sociais, indígenas, todos os saberes… Tudo bem que existem matizes, ordenam, elaboram teorias que são super importantes, mas não valorizam como devem todo esse conhecimento. Enfim, comecei a estudar e aqui estou.

(1:17:43) P/1 - É interessante você falar que você sentiu isso não teoricamente, foi na pele. Conte um pouco mais sobre isso. Foi em uma empresa específica? Como isso aconteceu?

R - Foram vários trabalhos, várias coisas que me chamaram para fazer e falei que não ia fazer, porque queriam pagar você como ativista, como migrante. Você tem um acúmulo de experiências e conhecimentos, você se torna um especialista, só que sem diploma não vale. Muitas vezes te chamam para fazer trabalhos onde um acadêmico vai utilizar os seus conhecimentos e ganhar com isso. Eu acho que temos que nos complementar, mas não acho justo que o mundo acadêmico tenha esse extrativismo com as pessoas, com seus conhecimentos, não lhes dê valor. Alguém pode ser um pajé, uma pessoa que cura e tem conhecimentos, aí pagam quinhentos reais. Vem um médico; porque ele estudou sete anos, tem que pagar quinze mil. Não sei, para mim isso é bem questionável, bem desproporcional, porque o mundo não é isso. O mundo é diverso, amplo; essa pessoa tem um acúmulo de gerações, de anos a dedicar-se a isso, tem que também ser valorizado.
Para você ver como se precariza laboralmente os conhecimentos, pobre tem que ser pobre. O pobre, o que se enxerga como pobre nessa sociedade tem que fazer de graça ou tem que comprar pouquinho. Como ativista eu não cobro, eu não quero cobrar, mas tem coisas que são de trabalho. Acho que é justo ser bem paga por isso, como você pagaria qualquer profissional, porém você não pode pedir. Alguém que estudou e tem diploma pode pedir o que quiser, porque ele merece, porque ele estudou, mas tem pessoas que têm muito mais conhecimento e não merecem. “Olha que atrevido, está pedindo para ganhar não sei quanto. Ele nem estudou e quer ganhar.” Parece que é esse olhar sempre, o pobre é atrevido porque quer ganhar o justo. Para a sociedade que valoriza somente esses valores ocidentais, somente a pessoa que foi para a universidade tem direito a ser bem pago, então não sei… Entrar na academia tem sido interessante para mim, porque é importante ocupar esses espaços para questionar essas coisas, essas relações de poder e desigualdade. Mulheres que têm que trabalhar tripla jornada, não nos pagam igual aos homens. E se você é uma mulher não-branca, racializada, é muito pior. São coisas que não se falam.

(1:20:55) P/1 - Você entrou em Ciências Sociais quando? Em que faculdade?

R - Eu entrei em 2020. Estou na FESP-SP, a Fundação Escola de Sociologia de São Paulo.

(1:21:12) P/1 - No centro, né?

R - No centro, Vila Buarque.
Eu queria fazer Relações Internacionais, mas uma amiga muito querida falou: “Faz Ciências Sociais, depois você pode se especializar em algo mais focado.”
Eu também queria Políticas Públicas. Também foi um processo talvez de… Vamos usar a palavra ‘acenação’ para minha mãe, que estudou e nunca conseguiu exercer [a profissão]. Falei: “Vou estudar, vou ganhar título.”
Eu converso com ela, falo: “Não, mamá, você que estudou, que viu..” Porque está como apagado que ela estudou e o que ela é. Quando apresento agora a minha mãe, eu falo “minha mãe também é socióloga”, porque ela é. Acho que foi por várias coisas.

(1:22:05) P/1 - Você falou muito de reconciliação. Você acha que é um pouco isso que aconteceu, várias reconciliações da sua vida?

R - Acho que sim. Como ser humano, como espécie, é importante nos reconciliar, auxiliar as coisas que acontecem na nossa vida, porque senão isso gera um sofrimento mental. Isso vai afetar suas relações, tudo o que você faz vai ser atingido por isso, porque você não integrou, não reconciliou. Acho que é muito importante.
Eu vejo esses processos, como a descolonização… Agora estou fazendo um escrito - faz alguns anos (risos) - falando que a reconciliação para mim é um caminho para a descolonização. A descolonização não é só um processo de reparação, é um processo também de autoconhecimento, de todo sofrimento que essa _____ colonial gerou, que até agora cria essa igualdade, essa vulnerabilidade que está em nossas vidas. Temos que enxergá-lá, por mais que seja doloroso, e tentar acomodar para poder seguir adiante.

(1:23:20) P/1 - E me conta uma coisa, você tem dois filhos?

R - Tenho um filho de oito anos e uma filha de doze.

(1:23:29) P/1 - Como é que foi o nascimento da sua filha?

R - Por causa do que tinha acontecido comigo eu não queria me casar, ser mãe. Tinha muito medo, mas esse processo do Movimento Humanista me ajudou muito a rever conteúdos, e aí eu vi que queria ter filhos.
Tentei com meu marido por três anos e não conseguia engravidar. Tenho ovários

policísticos, mas fiz um tratamento aqui no Brasil e aí eu consegui engravidar. Depois foi conflitivo, porque todo mundo queria que [o parto] fosse cesárea. Na primeira consulta já queriam marcar uma cesárea. Eu saí quase chorando, muito brava, porque a primeira coisa que me falam é: “Quando que vai ser a cesárea?”
Conversei muito com meu marido que eu não queria cesárea, mas como ele havia nascido de cesária e para a família a cesárea era melhor, ele teve uma forte tendência a crer que no hospital eu teria um filho nas melhores condições. Eu já tinha várias amigas que estavam com parto humanizado, o parto ativo, que dialogavam com o que, para mim, era normal.
Comecei a pesquisar e na época podíamos pagar uma parteira. Pedir a indicação de uma parteira foi difícil, porque meu marido não queria. Ele tinha medo que acontecesse alguma coisa e a família de meu marido o tempo todo [dizia] também: “Não, é perigoso, pode acontecer algo.” E eu brigando, brigando. Falei para o meu marido: “Se você me obrigar a ter uma cesária eu me separo de você, não quero saber nada. E também quero amamentar, porque tem que dar mamadeira… Se você colocar uma mamadeira na boca da minha filha, acabou esse casamento.” Nem tinha nascido a filha e já tinha essas discussões. (risos) Estava com meu marido como esticados, dos dois lados.
No dia do parto ele foi trabalhar, eu fiquei sozinha. Começaram as contrações e isso é ruim, quando você é migrante você não tem redes familiares, não tinha ninguém para me olhar. Liguei, pedi para ele voltar. Tinha conhecidos, mas não sentia que eram amigos pra quem poderia falar: “Venha a minha casa, estou sozinha, não estou bem”. Como migrante, acho que foi um momento de muita solidão.
Ele voltou, a parteira veio; veio uma amiga também, que me acompanhou. Eu não conseguia dilatar, aí a parteira falou para mim: “Olha, conversa com seu marido, porque isso é da sua cabeça.” Aí eu sentei e pensei, porque eu me dei conta que não achava que meu marido confiava em mim e eu pude verbalizar isso. “Eu acho que você não acredita que eu vou conseguir parir.” Ele olhou para mim e disse: “Eu acredito.” Aí comecei a dilatar e minha filha nasceu. (risos)
Foi um parto lindo. Para meu esposo também foi transformador ver a vida se manifestar. É uma nova vida, é um bebê. Foi uma experiência muito linda para os dois.

(1:27:06) P/1 - Qual é o nome deles?

R - Minha filha se chama Wayra, significa vento. E meu filho se chama Fernando, como meu papai e meu sogro.

(1:27:19) P/1 - Me fala um pouquinho como eles são.

R - A Wayra é brava. Eu lembro que quando fomos levá-la para tomar a primeira vacina ela não chorou. A enfermeira ficou: “Nossa, é a primeira vez que não choram.”
Ela é muito dura e eu acho que você vai passando coisas. Eu queria que ela não fosse tão dura, mas eu acho que por ser a minha primeira filha, ela pegou isso de mim Isso é algo cultural; você aguenta, você resiste às coisas. Era assim como vivíamos frente a todas as carências e dificuldades. Meus pais sempre me ensinaram: “você avança e nós vamos um passo atrás.” Não importa o que se passa dentro, o que não é tão legal, mas era uma forma de sobreviver. Minha filha é um pouco assim, porque é essa coisa que falamos, a paisagem de formação opera, transpassa para seus filhos e você não se dá conta disso se você não reconcilia seus conteúdos.
Vendo minha filha eu vejo que eu queria melhorar, porque ela é dura, cascuda, como falam aqui. Ela é muito cascuda para a idade dela, mas muito solidária. Eles têm uma sensibilidade que eu não tenho, mas como nós somos humanistas eles têm muito senso crítico. Eles têm muito orgulho de ser quéchuas, são muito corajosos quando veem injustiças, falam; são muito amorosos também. Eles gostam muito de aprender. Wayra toca em meu grupo, ela sempre foi, desde pequena porque também, como boliviana, acho que as crianças têm que ser socializadas e não há outra forma de aprender, se não se compartilham os espaços. Minha mãe me levava sempre nas reuniões, meu pai também; para mim foi normal sempre ver reuniões de pessoas decidindo coisas. Meus filhos sempre participaram de tudo, até porque não tinha com quem deixar e não deixaria também, pelo que tinha acontecido comigo. Sempre tenho os filhos muito colados em mim.
Fernando já é muito mais sensível que a minha filha. Ele faz amigos onde vai. Ela é mais tímida, ele é mais extrovertido. Os dois gostam de cantar, dançar.
Meu filho tem uma trança e é motivo de muito sofrimento para ele e para mim, porque vivemos num país, num mundo sexista, então sempre estão questionando porque ele tem esse cabelo e sempre temos que explicar, porque somos quéchuas, quéchuas têm cabelo trançado. Isso é algo que se passa com muitas crianças, especialmente equatorianos em São Paulo; terminam o cortando o cabelo porque não aguentam a xenofobia, a discriminação e o racismo. Nas escolas tratam como bullying e não vão ao fundo do problema.
É algo que não sei como vai afetar o meu filho. Eu vejo que ele sofre e várias vezes já falei para ele cortar o cabelo e acabar com isso, mas ele não quer.
Eles têm uma profundidade que às vezes parece que não consigo entender. São muito mais sensíveis, têm muito mais bondade que eu.

(1:31:08) P/1 - Hoje em dia o seu ativismo e as suas atividades estão organizadas como? Onde vou encontrar a Jobana, se eu quiser procurar?

R - Você busca nas Warmis. Warmi significa mulher em quéchua; warmicuna seria mulheres, mas coloquialmente falamos warmis. É um coletivo de mulheres imigrantes de diferentes nacionalidades. Aderimos à proposta do Movimento Humanista e usamos a metodologia da não-violência ativa. Fazemos todo o trabalho de forma voluntária e temos bandeiras, digamos, ou frentes de ação: a violência obstétrica, entendendo que as mulheres e o corpo das mulheres são espaços de disputa, e que acreditamos que temos saberes de nossos países, de nossas culturas, que é importante respeitar e que vão ajudar a melhorar para todos o atendimento de saúde da mulher - o parto normal, amamentação, a valorização da diversidade cultural. Temos grupo de música, para mostrar que as mulheres também podem ser produtoras culturais; no mundo andino as mulheres não sopram. Essa proposta vem de alguns países, mulheres que começaram a tocar como no Chile e na Argentina e nós fazemos, nós tocamos aqui.
Mulheres imigrantes e filhas imigrantes são nosso principal público, digamos, para ser parte do grupo, porém os ensaios são abertos para qualquer mulher que queira aprender. E também para valorizar que há uma transmissão de sabedoria oral das mulheres, que as mulheres também politicamente possam se posicionar. Participamos muito da construção de políticas públicas no município.
Que mais? Estamos impulsionando faz dois anos a campanha Regularização Já;

nos inspiramos no movimento da Espanha com os companheiros africanos. Conseguimos articular uma campanha regional com Chile, Peru, Bolívia, Argentina e Brasil. Conseguimos articular coletivos de imigrantes no Brasil em nossa campanha, que se somaram conosco, pedindo que… Migrar é um direito, que a regularização migratória seja acessível ou seja permanente. E seja gratuita, para não criminalizar a migração.
Que mais? Como somos mães, várias de nós, então são muitos temas vinculados ao bilinguismo, porque há muita discriminação nas escolas para crianças que falam espanhol, não outras línguas. Mostrar que é importante que não se obrigue as crianças a não falar, que não está errado, que não é feio. Enfim, tudo que envolve cultura, tudo que envolve a cultura de paz.
Em Cotia fazemos parte da Caminhada pela Cultura de Paz e Não-violência. Fazemos muitas oficinas gratuitas para a comunidade, de politização, de manejo das ferramentas. Para o público brasileiro [fazemos oficinas] de sensibilização com a migração. E fazemos oficinas de bordado andino, de tulmas para o cabelo, de tocar e cantar e, inclusive, do uso do aguayo, que é o tecido onde se carregam os bebês. Vamos fazendo o que temos vontade de fazer.
Estamos nas redes sociais, no Instagram, YouTube, Facebook e temos uma página na web, tudo feito por nós, que somos voluntários.

(1:34:54) P/1 - Como é que você sente hoje - e pensa também, claro - a migração no Brasil hoje? Você, que se mudou para cá, acha que mudou a política? Desde então vieram mais pessoas… Enfim, como é que você vê o fluxo migratório no Brasil, em São Paulo, das pessoas do seu país e de outros países?

R - Primeiramente, creio que é bom ter o contexto. Em 2017 começamos a ter uma nova Lei de Imigração, que é a Lei do Estrangeiro. Era uma proposta muito boa, mas o governo Temer fez muitos vetos, então acabou ficando muito engessada.
Por exemplo, pouco se fala dos conflitos armados em territórios, como no caso da Colômbia, que constantemente tem deslocamentos; da condição da Venezuela, que também gerou uma onda de migração venezuelana muito grande. Mas também no Brasil há a comunidade haitiana, os companheiros do Congo, Angola. E nesse momento há muitos sírios [aqui].
São Paulo tem uma coordenação de políticas para imigrantes, o que não é pouca coisa. Tem um plano municipal pensado para políticas de imigrantes. Eu mesma estou como estagiária nessa coordenação e sinto muito orgulho, porque fomos nós que lutamos muito para que isso exista. Tem um Conselho Municipal de Imigrantes. Lutamos para que os conselhos e as subprefeituras tenham vagas para imigrantes. Agora estamos nos mobilizando com o tema da regularização.
Uma pauta que temos é o direito ao voto. Vários países latinoamericanos e cidades permitem a participação de imigrantes, pelo menos para eleições municipais. Nós, imigrantes no Brasil, não temos esse direito; você tem que se naturalizar para isso. Isso é complicado, porque na política pública é fundamental que haja o exercício dos cidadãos e dos imigrantes, especialmente pobres, não-brancos. Não temos uma cidadania plena.
A lei brasileira é bem abrangente, permite a educação universal, o acesso universal à saúde, mas na prática você tem um racismo estrutural muito grande no Brasil. Por exemplo, o nosso coletivo traz muitos temas indígenas, porque no Brasil os indígenas são estrangeiros, as pessoas não reconhecem os indígenas como brasileiros e isso nos afeta diretamente, porque temos fenótipo indígena. É difícil quando todas as estruturas têm esse racismo tão enrustido assim, e não se fala [disso].
Creio que temos avançado muito, porque temos a coordenação, o Conselho Municipal. Conseguimos sensibilizar muito os equipamentos. O governo Haddad foi muito favorável no município de São Paulo para os imigrantes; inclusive, quando Padilha era secretário de saúde, ele lançou um programa para a saúde, [fez] materiais, mas quando saiu esse governo todos os materiais foram encaixotados e nunca foram distribuídos. Foi uma pena, porque nós trabalhamos muito também nisso.
Está melhor do que antes, com certeza, só que este contexto político, este governo promoveu muito a xenofobia, o racismo, a discriminação. Desde que começou esse governo acho que muito mais pessoas começaram a ter medo, os imigrantes, porque as pessoas racistas, xenofóbicas, fascistas, não têm medo, acreditam efetivamente que não vai acontecer nada com eles. Isso pinta um panorama complicado para imigrantes dentro do Brasil, porque temos que ter cuidado com o que dizemos, cuidado com o que fazemos. E há muitas pessoas trabalhando emcondições análogas à escravidão - não só imigrantes, brasileiros também, porque tem uma crise tão grande que as pessoas agora fazem qualquer coisa para sobreviver. Gerou-se novamente essa xenofobia, falando que os imigrantes estão tirando empregos num contexto de crise, aqui e no mundo. Nós, imigrantes, sempre vamos ser o bode expiatório.
Por mais que existam leis interessantes em São Paulo - em alguns estados também estão tentando avançar - há um contexto político e de opinião pública que não é favorável para a imigração, porque o Brasil sempre olha os Estados Unidos e a Europa para se inspirar em suas leis e os Estados Unidos estão com esses Centros de Detenção, que são prisões, e a Europa também, com políticas que são uma vergonha no tema de imigração.
O Brasil militarizou suas fronteiras na pandemia e, por exemplo, os indígenas não podem migrar porque necessitam ter um documento indigena, que historicamente foram deslocados usando referências como rios e não com fronteiras. Estão em conflito com a lei porque a Lei Brasileira de Imigração não reconhece que um indígena não conhece fronteiras. Então tem uma lei que é muito interessante, mas tem um contexto político que não é nada favorável, de opinião pública também. Está complicado.
(1:41:20) P/1 - Como é que foi a pandemia para os seus filhos, para sua família na Bolívia? Como é que foi esse período para você?

R - Acho que sou privilegiada, porque meu marido não perdeu o emprego. Eu também continuei trabalhando de casa. Nunca me faltou comida.
Ficamos fechados com os filhos, não saíamos. Durante um ano e meio não saí de casa, meu marido que ia e voltava.
Minha família na Bolívia se conteve. Felizmente, não aconteceu nada, ninguém faleceu. Economicamente conseguiram se manter estáveis. A economia boliviana, apesar do golpe de estado que teve e da crise que esse golpe gerou, justo durante a pandemia… Minha família conseguiu manter alguma estabilidade.
Creio que foi muito solitário, muito triste começar a receber pedidos de ajuda de mulheres que não têm o que comer. Nosso coletivo fez uma coisa que nunca antes tinha feito, que foi pedir aportes econômicos. Conseguimos levar cestas básicas e fizemos um mapeamento de mulheres - mulheres solo, mulheres trans, mulheres migrantes, em geral, que estavam chefiando famílias. Não muito, mas houve um número expressivo de abandono familiar, de homens que se foram e deixaram as mulheres com as crianças.
Conseguimos levar cestas básicas, conseguimos levar cestas de empresa na pandemia. Por mais que estivesse em casa e as companheiras também, pela trajetória e pela confiança que nosso coletivo tem com as instituições e as pessoas, conseguimos apoio. Teve uma organização, a FICA, que doou dez mil reais. Eles compraram cestas básicas para doação. Pedimos que comprassem diretamente as cestas, entregamos nas casas das mulheres. Recebemos, inclusive, doações de hortelões urbanos, conseguimos levar verduras para as mulheres.
Foi muito aprendizado essa coisa também de começar a nos conectar pela internet, porque sempre fomos presenciais em todas as ações. Como aprender a manejar [a internet], a criar eventos. Por mais que não tenha saído de casa, foi muito forte.
Havia também o tema das eleições na Bolívia. A comunidade boliviana se mobilizou muito para que nós, bolivianos no Brasil, pudéssemos votar, então foi bastante agitado. (risos)

(1:44:13) P/1 - Infelizmente eu vou ter que passar para as perguntas finais, pelo tempo. Queria te perguntar… Antes de mais nada, vocês querem fazer alguma pergunta?

P/2 - Não.

(1:44:34) P/1 - Tá bom. O que você projeta para o futuro agora? Você tem sonhos e objetivos?

R - Que pergunta, hein? (risos)

(1:44:53) P/1 - Sim, é uma pergunta complexa.

R - A pergunta de milhões. (risos)
Eu tenho um projeto. Como te falo, eu gosto muito do Brasil, mas nunca quis ficar aqui, então eu lembro que por oito anos… Não sei se vocês alguma vez viajaram… Eu sempre falo esse exemplo: você cansou de viajar e quer voltar para sua casa,

fica essa coisa. Imagine, morei oito anos assim aqui no Brasil, nunca sentindo que chegava em casa. Isso desgasta muito, psicologicamente é um desgaste muito grande. Mas nos quatro anos, quando estava dirigindo `______. eu senti pela primeira vez que estava voltando para casa. Isso foi tão aliviante, deixar de sentir esse peso.
Aí me questionei o que eu queria fazer, porque me dei conta que todos os meus projetos eram de curto prazo e sempre e a qualquer momento poderia estar pronta para ir embora. Mas minha realidade é outra. (risos) Meus filhos vivem aqui, eu tenho projetos aqui.
Meu plano é esse: terminar a graduação, fazer mestrado e doutorado, porque seria uma possibilidade de ser professora universitária na Bolívia. Acredito que aprendi muito, que poderia levar muito para a Bolívia, para Cochabamba tudo isso que eu aprendi aqui em políticas públicas, um monte de coisas. Acho que aprendi muito aqui, Jobana aqui se expandiu muito. São Paulo me permitiu crescer de uma forma que jamais teria crescido no meu país.
Se não conseguir retornar, pelo menos conseguirei ter um trabalho que me permita viajar algumas vezes para a Bolívia e estar aqui, transitando, como imigrante. Porque quando estou aqui sinto saudades de lá e enquanto estou lá sinto saudades daqui, então nunca mais você fica no lugar, então pelo menos conseguir economicamente me deslocar mais.
E também, como mulher… Eu já fui mãe, me dediquei a ser mãe completamente e amei isso. Sou muito agradecida, porque tive o privilégio; nem todas as mulheres têm esse privilégio.
Agora penso também que se acontecer qualquer coisa com meu marido eu quero ter autonomia econômica para dar respostas. Também gostaria que meu marido não trabalhasse, que descansasse, viajasse porque geralmente… Tudo bem que eu não ganhei um salário, trabalhei muito, mas ele também trabalhou muito para nos sustentar, foi uma coisa complementar. Eu também queria que ele pudesse não ter que trabalhar tanto, eu também não trabalhar tanto.
Gostaria também que esse projeto me ajudasse a ajudar mais mulheres imigrantes. Esse é o meu projeto, é um projeto de dez anos. Não sei o que vai acontecer agora, vou terminar uma parte dele, mas creio que me ver até o fim dos dias como siloísta, humanista, fazendo projetos sociais, daria muito sentido à minha vida

(1:48:18) P/1 - Você tem alguma coisa que você gostaria de deixar como legado para as pessoas, para os mais jovens?

R - Ah, com certeza. Gostaria de um mundo menos violento. Algo concreto, gostaria que em São Paulo, ou no Brasil, a cada novembro se trabalhasse a Semana da Não-violência. Que a não-violência seja uma possibilidade de mundo para as pessoas, em todas as facetas da violência e das relações, porque não é normal viver num mundo tão violento, não é normal ter cidades tão violentas. A violência está muito normalizada. Gostaria, junto com outros que me antecederam, somar a isso: um mundo diferente sem violência, que é possível viver

(1:49:15) P/1 - Como é que foi contar um pouco da sua história para gente hoje?

R - Foi legal, porque em São Paulo você fica nessa correria e tem poucos momentos pra poder parar, refletir, rever as passagens da sua vida. Cada vez que você para você vê de um jeito diferente, mas a essa altura da minha vida isso é maior. É legal, acho que vivi bem, não vivi mal. Tenho uma vida boa, estou agradecida com isso.
(1:49:51) P/1 - Obrigado, Jobana! Foi um prazer!

R - Amei! Foi um prazer conversar com vocês três.

(1:49:56) P/1 - Obrigado! Tem alguma coisa que eu não perguntei e que você gostaria de falar?

R - Acho que eu gostaria que se pensasse mais na presença indígena nas cidades, na presença indígena migrante. Que se reconheça nossa existência, porque estamos aqui, aqui chegamos e que nossas práticas culturais possam ajudar muito também aqui. É isso.

(1:50:28) P/1 - Obrigado, Jobana!

R - Obrigado, querido.






































































































































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