Museu da Pessoa

Uma artista do Jequi

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria Lira Marques Borges

P/1 – Lira, pra gente começar, eu queria que você contasse um pouco pra gente o seu nome completo, o nome dos seus pais, a cidade que você nasceu.

R – Tá. Eu me chamo Maria Lira Marques Borges. É o nome da minha avó, chamava Lira, né? E nasci nessa rua aqui, Rua Coronel Inácio Murta. Sou filha de Odília Borges Nogueira e Tarcísio Santana Marques. O meu pai era sapateiro e minha mãe era doméstica, lavava roupa pras famílias.

P/1 – E você tem irmãos?

R – Nós somos… Do primeiro casamento, mãe teve três filhas, Lira, Vera Lúcia e Eliana, que já é falecida. E do segundo casamento, minha mãe teve vários filhos, mas que vingou foi só a Palmira.

P/1 – E como que foi a sua infância? Conta um pouco pra gente.

R – Bom, eu nasci... Via a minha mãe trabalhar também com cerâmica, que ela fazia cerâmica não assim pra vender. Geralmente ela gostava de fazer os presépios. Na ocasião de Natal, o pessoal já encomendava: “Odília, eu quero um presepinho”, e ela fazia e dava pras pessoas que moravam aqui nessa rua. E fazia outras figuras também. Então eu comecei também a fazer, não com cerâmica. Eu fazia com cera de abelha, que o meu pai tinha bastante cera em casa pra passar no cordão pra costurar os sapatos. E eu comecei as primeiras figurinhas com cera de abelha. E com o tempo eu fui crescendo, minha mãe sempre fazendo os presépios. Fazia outras figuras, que ela chamava de toco, pra colocar, porque antigamente o pessoal daqui jogava baralho, era douradinha, douradão, e ela fazia umas figuras pra poder colocar na turma que estava perdendo. E assim eu ficava olhando, presenciando ela trabalhar, e com o tempo eu quis saber mais sobre a cerâmica porque minha mãe fazia, mas não queimava, ela fazia crua. Às vezes ela misturava alguns ingredientes como a farinha de trigo, a cinza, pra poder dar mais resistência no barro, porque ela não tinha forno. E aí eu, como eu falei, eu fui crescendo, quis saber mais sobre a queima, onde mesmo que tirava o barro. Então o mistério da queima, de como tirar o barro, isso aí eu já aprendi com a Dona Joana. Eles chamavam ela, ela tinha o apelido de Joana Pinta e Joana Poteira. E ela era minha vizinha, morava em outra rua, mas que não era tão longe da minha casa. Aí eu fui até a casa dela pra poder saber da queima, ela me levar até onde tirava o barro. Então isso aí eu aprendi com ela. Ela me levava no barreiro e lá ela ia tirando o barro e me explicando que tinha que tinha que tirar mais profundo, não podia ser aquele barro superficial. Ela vinha aqui pra casa. Falou sobre o forno, como que fazia o forno. Aí logo eu tomei providência de pedir a alguém pra fazer um forninho pra mim. E aí ela foi me ensinar como que, depois do forno pronto, ela foi me ensinar como que arrumava essas peças dentro do forno. Foi me explicar também a questão de lua, que o barro não podia ser tirado na lua forte. Também pra queimar. Todo esse mistério eu aprendi com ela, e estou aprendendo até hoje porque toda vez que eu encontro com um amigo que é artesão, a gente aprende uma técnica diferente. E a gente está aprendendo até hoje. Mas a minha vida foi assim, eu não tive, fui uma pessoa que mãe tinha muita preocupação com a gente pra gente aprender pelo menos assinar o nome. Então, na época de escola, ela colocou a gente pra estudar. O que ela podia ensinar, que ela sabia ensinar ela esforçava, porque ela reclamava que ela sofreu muito na casa dos outros. Ela não teve oportunidade de estudar, mas era uma pessoa de uma sabedoria incrível. Hoje, quando eu fico vendo, quando eu estou participando de alguma exposição e que vejo eu ali naquela alegria com o pessoal elogiando os trabalhos, eu sinto assim aquela vontade de chorar lembrando que, se ela fosse viva, ela poderia estar ali também junto, participando daquela alegria. Porque a minha mãe, mesmo ela sem saber grandes leituras, eu fico vendo que ela era uma artista também. Ela tinha várias tendências. Ela tinha tendência pra teatro, ela fazia muita coisa assim manual, flores de papel e de outras coisas. Ela me ensinava como declamar uma poesia. E ela tinha uma voz muito bonita também, gostava muito de cantar serestas e esforçava pra gente aprender o que fosse bom. E foi uma boa lavadeira de roupa e passadeira também. E estou aí até hoje fazendo os meus trabalhos, que eu faço parte, e eu falo isso com muito orgulho, que é uma herança da minha mãe, que eu só deixo mesmo quando morrer ou que tiver uma determinada doença que a gente não possa executar mais o trabalho. Mas eu falo assim com orgulho, que foi uma herança muito valiosa que eu recebi da minha mãe.

P/1 – Você lembra de alguma música que ela cantava com você?

R – Assim, uns pedaços, né? Tem um canto de roda que eu costumo sempre cantar, que era nos momentos que ela estava passando roupa. Eu passava roupa em uma mesa e ela em outra, e chegava uma certas horas que eu sentia assim cansada e um pouco… Não sei se é preguiça. A gente ficava esmorecida de ficar em pé o dia todo passando roupa. E naquele tempo não era ferro elétrico, era ferro à brasa que você tinha que estar tocando com o fole pra o ferro esquentar. E aí eu falava com ela assim: “Oh, mãe, eu vou parar um pouquinho”. Ela falava pra mim assim: “Oh, minha filha, a gente não vai parar não porque senão a gente não dá conta de passar a roupa toda pra entregar. Vamos cantar porque cantando o tempo passa e o trabalho rende”. E ela gostava de cantar esse canto de roda, que chama Saudade de Taperoá. É assim: “Eu tenho saudade de Taperoá. Oi leva eu beleza, leva eu pra lá. Leva eu, beleza, leva eu pra lá. Agora me deu saudade, não posso dizer de quem, está longe desta terra quem meu coração quer bem, está longe desta terra quem meu coração quer bem. Eu tenho saudade de Taperoá. Oi leva eu, beleza, leva eu pra lá. Leva eu, beleza, leva eu pra lá. Quem me dera que eu visse hoje quem eu vejo todo dia, que meus olhos enchiam d’água, meu coração de alegria, que meus olhos enchiam d’água, meu coração de alegria. Eu tenho saudade de Taperoá. Oi leva eu, beleza, leva eu pra lá. Leva eu, beleza, leva eu pra lá. Leva eu, beleza, leva eu pra lá. Leva eu, beleza, leva eu pra lá”. Era um dos cantos que ela gostava de cantar, além de outras modinhas. Mas essa ela gostava muito de cantar.

P/1 – E você lembra de alguma outra modinha que você goste muito, assim, cantando com os seus irmãos, sua avó?

R – Deixa eu ver. Modinhas assim a gente sabe pelos pedaços. Ela gostava de cantar: “Sertaneja, se eu soubesse, se Papai do Céu me desse, um espaço pra voar”. Eu não lembro mais o outro pedaço. Tinha uma Rosa de Maio, que ela gostava de cantar e várias outras, só que a gente sabe assim pelas metades. Agora os cantos de roda eu lembro mais, pra cantar mais um pouco. Tinha uma Casinha de Bambuê, que ela gostava de cantar também: “Casinha de bambuê, forrada de bambuá, oê oê oê, oê oê oá. Meu benzinho é um brilhante, não precisa lapidar. O defeito que ele tem, namorar e não casar. Casinha de bambuê, forrada de bambuá, oê oê oê, oê oê oá. Você diz que não me quer, por isso não vou chorar. Tenho muito quem me queira, que me saiba acarinhar. Casinha de bambuê, forrada de bambuá, oê oê oê, oê oê oá”. Aí a gente vai jogando os versos, o que quiser.

P/1 – Lira, você podia contar um pouco mais das suas raízes, sabe, de onde o seu pai veio, de onde a sua mãe veio.

R – Oh, pelo que minha mãe conta, a gente tem descendência das três raças: do negro, o índio e o branco. Porque aqui tinha os índios, os botocudos, né? E minha mãe, a gente vê na família pessoas bastante, da pele bem negra e dos cabelos muito lisos, assim, iguais aos seus, de olhos puxadinhos. Tem várias pessoas na família assim, como tem gente branca do olho igual uma pedra de anil, na família. Então a gente é a mistura dos três. Às vezes a gente puxa mais, ora mais pra negro, outros puxam, às vezes, mais pra índio. Mas o que eu vejo na família, o que a minha mãe conta dos avós, bisavós, e mesmo assim, às vezes, os nomes também digam um pouco. Tinha uma tia com o nome Romana, Constância, esses nomes mais antigos. Inclusive os nomes, aqui em casa, eu tenho o nome da minha avó. Tem outros aqui que tem sobrinho que tem nome do avô, né? As meninas, as minhas sobrinhas, tem umas que têm o nome de tia. Então eu vejo que na família da minha mãe muitos têm o nome de tradição de família. Vai colocar os mais novos, coloca os nomes nos filhos de avó, de tataravó e assim por diante.

P/1 – Lira...

R – É o nome da minha avó. A minha avó chamava Lira, que era mãe da minha mãe.

P/1 – A sua mãe, ela aprendeu com a avó dela, assim?

R – Olha, assim dos cantos, quando eu perguntava, sempre ela falava que aprendia... Que ela não conheceu também a mãe dela, mas geralmente aprende com o tio, com a avó, assim, com outra pessoa. A cerâmica eu não sei porque ela foi criada sem mãe. Ela conheceu o pai dela, mas a mãe ela não conheceu. Mas eu não sei de onde, hoje eu fico assim pensativa se os dons que ela tinha... Ela sabia algumas notinhas de violão, ela sabia quando a pessoa estava cantando desafinado. Às vezes eu estava cantando, ela me chamava a atenção: “Você está cantando desafinado, moça”. Às vezes eu fazia uma peça, ela olhava e falava assim: “Esta peça está torta”. Ela tinha, assim, aquele golpe de vista. Qualquer coisa que a gente fizesse e que não tivesse aquela perfeição, logo ela falava que aquilo estava mal feito, que não estava certo, que estava torto. E esses dons que eu estou te falando ela tinha mesmo. Eu, quando estudava, naquele tempo, hoje eu não sei, eles chamavam a gente na frente pra declamar uma poesia. Você tinha que declamar ela todinha. E ela me colocava, ela falava comigo assim: “Quando você for deitar você coloca o caderno debaixo do travesseiro”. Ela dizia que era pra inteligência abrir. E de manhã ela já me chamava cedinho. Eu ficava aqui nesse quintal com um caderno. Se era de poesia ou se eram os pontos, que eles tomavam, eles falavam até arguir: “Amanhã eu vou arguir a poesia, vou arguir o ponto”. Então, no caso de poesia, a gente tinha que ir na frente da sala declamar todinha, falar o nome do autor da poesia. E ela me ensinava isso. Então, às vezes, quando eu fazia um gesto pequeno ela brigava comigo: “Moça, faz um gesto maior pras pessoas poderem compreender e ficar bonito, ficar elegante”. Então ela tinha isso porque foi uma pessoa que estudou muito pouco. Ela falava que às vezes ela chorava pra ir na escola e quem criava ela falava: “Ah, você não pode ir na escola hoje não que você vai olhar o menino, você não pode ir na escola hoje não que você vai fazer isso”. Então ela não estudou. Mas quando eu fico olhando assim, ela tinha dons, bons dons pra arte. Ela às vezes tinha algumas coisas que eu fico vendo hoje, que era de circo. Ela ensinava a gente algumas manobras. Ela envergava todinha, tinha as juntas muito moles. Ela estalava dedo, ela batia castanhola. Ela tinha muita coisa que a gente vê que, hoje quando eu fico vendo assim muita coisa eu vejo minha mãe. Se ela tivesse a mãe dela, outros recursos pra sair fora, pra desenvolver essas tendências que ela tinha, que eu vejo que não era só uma tendência, várias.

P/1 – Qual que era o nome dela?

R – Odília Borges Nogueira.

P/1 – E ela incentivava muito vocês, tanto ao estudo...

R – Ela incentivava pra estudo. Ela falava: “Eu quero ver vocês com diploma na mão”. Então ela esforçava pra isso, pra ter uma boa caligrafia, porque ela tinha uma caligrafia muito bonita, muito redondinha, era bem desenhada, em cima da linha. E ela falava comigo que eu tinha uma letra muito pequenininha. Ela falava assim: “Ah, você fica com esses garranchos, parecendo umas formiguinhas”. E aí ela brigava mesmo, e até batia, pra mim consertar a caligrafia. Ela falava: “Tem que fazer uma caligrafia bem redonda”. E eu agradeço tudo a ela, eu ter uma caligrafia legível eu agradeço a ela.

P/1 – Como que era no começo, estudar, ter que ajudar em casa, fazer cerâmica?

R – Não, era assim. Nós éramos três, a Vera, a Liana e eu. Então ela saía pra trabalhar, pra lavar roupa, e eu morava nessa casa de antes, que era uma casinha só de enchimento, era só de varinha barreada com barro, e a gente morava aí. Então ela saía, se ela tinha os mantimentos pra dar aqui pros vizinhos, pra cozinhar e dar pra gente, ela levava e falava assim: “Eu vou lavar roupa”. Tinha uns vizinhos aqui, que era até a minha madrinha, e ela falava assim: “Eu vou deixar”. De tudo que ela tinha, dos mantimentos, de tudo ela dava um pouquinho pra eles cozinhar junto com o deles e quando ficasse pronta a comida trazer pra gente comer, né? Então ela ia cedinho pro rio. Trancava a porta e jogava a chave de baixo da porta, que a porta tinha aquele vão embaixo, que alguém do lado de fora podia meter a mão pra pegar a chave pra abrir a porta. Então, quando a comida ficava pronta, os vizinhos vinham trazer a comida numa gamela, numa vasilha só, que aí as três comiam. E era muito engraçado porque a minha irmã, a mais nova, a Liana, a gente sentava as três pra comer, sentadas no chão. A gente ia comendo. Quando a comida começava a ficar pouca, o quê que ela fazia? Ela levava uma mãozinha no resto da comida e a outra batia no meu rosto e no rosto da vera, com medo de acabar tudo. Ela punha uma mãozinha que nem tapava direito a comida, e com a outra ela ia assim no rosto da gente. Aí até que a vizinha falava assim: “Oh, eu não vou sair daqui enquanto vocês não terminarem de comer pra você poder deixar as outras duas, vocês comerem igual”. Então era assim. Eles ficavam olhando porque ela era um pouco assim brava e batia na gente. Eu não tinha, como a mais velha, não tinha coragem de judiar dela. Então a vizinha ficava esperando as três terminarem de comer nessa gamela pra poder ir embora. Quando a minha mãe chegava a gente já estava... A gente foi criada presa, até que eu fui ficando maior e minha mãe começou a me ensinar a fazer a comida. Então ela ia lavar roupa, ou ruim ou bom, quando ela chegava nós três já estávamos com a barriguinha cheia. E quando ela não tinha nada pra dar aos vizinhos, ela falava: “Eu não tenho nada hoje pra dar pra cozinhar, mas faz a comida e dá pras meninas”. Tanto que a gente não sabe o que é estar de porta em porta pedindo. Se precisava de alguma coisa, um sal, uma coisa, a gente ia pedir, mas pra estar assim espiando nas casas, pedindo, a minha mãe soube muito criar. Ela não criou assim não, ela criou trabalhando. E foi dessa maneira assim, pedia pra fazer a comida e dar. Se ela não tinha as coisas ela não dava. E ensinou também a fazer a comida. Aí ela ia trabalhar. Quando chegava, ia despreocupada, as outras duas já estavam com a barriguinha cheia. E quando chegou a época de escola, ela me colocou na escola. Ela ia pro rio lavar roupa e eu ia pra escola estudar. Aí ela chegava cansada e ia olhar o quê que tinha marcado pra fazer, os deveres. Se ela sabia ensinar ela ensinava, se era uma coisa que ela não sabia ensinar ela pedia a alguém que soubesse ler pra poder me ensinar. Me punha pra decorar as tabuadas. E o quê que ela fazia? Tomava salteado pra ver se eu tinha aprendido mesmo. E foi assim até... Aí depois a minha mãe ficou viúva. Ela ficou viúva com as três filhas. A primeira vez que a gente saiu daqui, que ela tinha um irmão que morava fora, não morava em Araçuaí, morava pra baixo de Teófilo Otoni. E esse irmão sempre vinha pra visitar e sempre queria levar ela pra passear na casa dele, mas nunca que ela ia. Ele deixava o dinheiro, quando ele ia dando as costas, ela gastava o dinheiro e comprava alguma coisa com o dinheiro. Aí, no ano seguinte ele vinha e falava: “É, nega, você me logrou, não foi?” Aí, de uma vez que ele veio, o quê que ele fez? Ele comprou a passagem e deixou pra ela. Aí não teve jeito. Aí arrumou e a gente viajou. Eu sei que o meu pai trabalhou até meia-noite fazendo sapatinho pra nós, pras três. E nós viajamos. Ela deixou ele gordo, trabalhando. Com dez dias que nós saímos de casa, o meu tio deu de querer fazer uma viagem e deixar a gente lá, aproveitar que a gente estava na casa dele pra olhar a casa. Quando ele estava arriando os animais pra poder viajar ele viu uns vultos vindo. Foi vindo muito longe e ele falou assim: “Odília, vem umas pessoas ali muito longe, eu vou esperar. Eu vou aqui arrumar os animais, mas vou esperar devagar pra ver o quê que é”. Quando as pessoas aproximaram da casa dele, aí eles tiraram o envelope e entregaram. Aí meu tio leu e chegou dentro de casa e falou assim: “Odília, tenho uma notícia aqui que não é boa”. Ela foi logo dizendo assim: “Pode falar. Ou é Tarcísio que morreu ou é o (Vedouro?), meu irmão. Aí meu tio falou pra ela: “É Tarcísio que faleceu”. Aí eu lembro que eu pus a cabeça entre pernas, fiquei com a cabeça metida dentro da perna. E aí a minha mãe, sempre ela foi uma mulher muito forte, ela lacrimejou os olhos. E a viagem que o meu tio ia fazer, ele acabou de arrumar os animais pra colocar nós pra vir até Pedro Versiani a cavalo. Ah, eu esqueci de falar, porque a carta foi isso. Porque naquele tempo carta só ia por mão de portador lá nesse lugar que a gente estava, em Mata de Santaninha. Aí ele aproveitou dos animais que estavam já arriados. A gente juntou a nossa roupinha, colocou nós em cima do animal e nós viajamos pra Pedro Versiani e lá nós pegamos o trem pra Teófilo Otoni. Chegou em Teófilo Otoni, e mãe sempre forte. Ela sempre falando: “Eu só acredito que Tarcísio morreu se eu chegar lá em casa, achar o rastro que acendeu o fogo e o rastro da vela”. Porque a gente usa até hoje, quando morre uma pessoa a gente faz um fogo, uma fogueira na porta e ali passa a noite com os amigos, conversando e velando o corpo que está morto. Agora não porque já está tendo, mas em muita casa ainda usa, porque hoje já tem o velório, que pode levar o velório. Mas mesmo assim os que não querem levar pra velório a gente acende um fogo na porta da casa e fica ali, passa a noite com os amigos. Faz um cafezinho pra turma tomar e fica velando o corpo até dar na hora do enterro. Aí nós chegamos aqui em Araçuaí. Aí chegou estava o fogo, estava o resto de velas, que coloca na mão da pessoa pra ajudar a morrer. E aí a gente foi ver que tinha morrido, foi contar a história de como foi que ele morreu. E aí foi continuar a vida, dar continuidade à vida. Ela continuou a trabalhar lavando as roupas dela pras famílias. Eu ajudei também, fui ajudar também ela a lavar roupa pra família. E naquelas horas vagas eu ia fazer o meu artesanato, que nem vendia naquele tempo. Eu fazia e ia juntando, aquilo quebrava. Até que ela achou uma pessoa aqui no morro mesmo, que era vizinho, um rapaz que já era um pouco idoso. Ela ficou sete anos viúva, achou essa pessoa, que eles começaram a gostar e ela casou, o segundo casamento dela, que ela tem uma filha com por nome Palmira. E aí eu sempre continuando as atividades de lavar roupa, passar. Nas horas vagas ia fazer o artesanato, mas que não vendia, fazia pra mim mesmo. Aquilo às vezes quebrava, tornava a fazer. Até que chega o Frei Chico aqui pra Araçuaí. Nessa época que o Frei Chico chegou tinha também a Codevale [Consórcio Público de Desenvolvimento do Vale do Ivinhema], que atuava na região, comprava peças ali de Turmalina, ia pra Chapada, Berilo, chegava até Araçuaí também. Depois veio o campus avançado pra cá, vinham os estudantes da Católica de Belo Horizonte, vinham de Lavras. De São Paulo vinham os estudantes de Medicina, de Lavras vinha Agronomia, de Belo Horizonte vinha a Psicologia, Estudos Sociais, jornalistas. Aquele Chico Pinheiro, Letícia Mota passou tudo aqui pelo Vale, e assim por diante. Aí, com essa vinda de Frei Chico pra cá, logo criou o coral Trovadores do Vale. Eu logo ingressei no coral. E foi muito interessante porque a primeira vez que eu vou no coral... Que eu sempre assim, a minha criação foi assim, da escola pra casa, da escola pra casa e Igreja. A minha mãe não criou a gente participando de baile, dessas coisas, que ela falava: “Oh, minha filha, eu cheguei cansada, trabalhei o dia todo”. Ela não tinha coragem de deixar ir num baile com qualquer pessoa. Ela falava que estava cansada e que ela não podia estar levando. Então a gente foi criada assim, muito em casa. Sempre era na Igreja nos domingos, escola. E não tinha assim, não fui criada, tanto que eu também não tive assim aquela juventude de estar brincando nas casas dos outros não. Sempre que brincava também era assim, era de roda, era de esconder, de pique, mas sempre na porta durante a noite, que naquele tempo também não tinha luz elétrica, a luz era só até a meia-noite. Tanto que a gente já ficava com o fifó, fósforo, tudo reservado, porque a luz piscava três vezes. Na última vez era dando um aviso, ela ia embora, aí a gente acendia as luzes. E a luz elétrica era daqueles postes de madeira ainda. Não tinha calçamento. Então eu não tive também aquela infância pra ficar à vontade nas casas não. A brincadeira sempre acontecia à noite, na porta, e juntava todas as crianças com adulto pra contar história. E foi assim até que aí chega o Frei Chico. Ele junta um grupo de moças aí, forma um coral. E logo, assim, eu tinha notícias dele mas nem o conhecia. Ele colocou um anúncio na Igreja convidando mais moças pra participar do coral e pediu a cada elemento que levasse uma pessoa conhecida pra participar do coral. Aí tinha um vizinho que era do coral, veio aqui me convidar: “O Frei Chico está pedindo pra cada um de nós levar uma pessoa pra participar do coral, você não quer participar?” Aí, com muito empenho dele, eu dei o sim, mas levando uma colega também, vizinha, pra ir comigo. Era muito assim tímida, né? Aí fui pra participar do coral. Na chegada lá do coral, eu cheguei e apresentei. O Frei Chico logo perguntou o meu nome, eu falei: “Eu chamo Maria Lira”. De cheio ele já gostou do nome: “Ah, que nome bonito. Senta aqui na roda, vamos participar”. E tudo que eu vi lá já me cativou, os enfeites que tinha no xique-xique. Ele decorava tudo, né? E ele muito espontâneo, alegre. As meninas que eu estava vendo lá era tudo do mesmo nível meu mesmo, pessoas simples. E quando começou a cantar logo já bateu no meu coração. O que eu logo senti, era os cantos de roda, era batuque, e o quê? Era o que minha mãe cantava! Aí eu, percebendo aquilo, eu cheguei aqui, como eles aqui em casa falavam, que eu cheguei aqui igual uma vaca brava. Eu cheguei assim: “Mãe, mas o padre canta isso, o padre canta aquilo, é os cantos de roda, é canto de batuque”. Aí pus ela doida: “Ah, canta esse pra mim levar pro padre, que o que a gente está cantando lá é isso”. Logo eu me identifiquei com o coral. E aí eu ia pedindo a ela: “Canta esse canto de roda, canta esse, canta aquele”. Ela ia cantando e eu ia colhendo aquilo e levava lá pro frei: “Olha o canto de roda que a minha mãe cantou”, e ele foi colhendo aquilo, colhendo aquilo e logo, quando ele viu que eu tinha dom pra coisa, gosto, ele me convidou pra trabalhar com ele. E não foi assim muito fácil também porque naquele tempo mulheres não podiam frequentar muito a Igreja pra estar invadindo. Lá tinha ainda até escrito “Clausura”, que a gente não podia passar pra dentro. Mas aí eu falei com mãe, mãe falou: “Ah, vai. Se ele está chamando, se é pra ajudar a trabalhar, vai”. Aí eu fui. E logo aquilo também quebrou, que já podia, as pessoas também podiam entrar. Aí eu comecei a ajudar ele na pesquisa e já trabalhava com a cerâmica. E, com a chegada do campus avançado pra cá, então o quê que acontecia? Os estudantes vinham pra ver o quê que tinha na cidade e a partir do que eles estavam conhecendo, ajudar a gente. Aí o quê que tinha? Já tinha o coral Trovadores do Vale, já tinha eu que estava trabalhando, tinha a Zefa, tinha Adão, tinha um pessoal da (Baixaqueto?) que vendia as coisas deles, o artesanato deles na feira. Aí eles começaram a frequentar a casa da gente. Era todo mundo com aquela blusinha amarela escrito Projeto Rondon, e cada um às vezes pegava um chapéu de palha, todo mundo muito curioso com o que tinha na cidade, começou a visitar as casas pra pesquisar, perguntar o quê que a gente fazia. Aliás, eles já vinham até sabendo que Lira trabalhava com cerâmica e que Zefa trabalhava com cerâmica. E aí eles ficavam com a gente. Às vezes ficavam até quase o dia todo presenciando a gente trabalhar, ensinando pra gente a reivindicar os direitos, que o que a gente fazia tinha valor. Logo propôs eu por numa cestinha as coisas, levar no campus avançado pra mostrar lá pro diretor, e isso foi crescendo. Eles visitavam também o coral Trovadores do Vale, iam ver o coral cantar. Convidavam, às vezes, pra fazer uma noite cultural, o coral ia lá pro campus avançado. Se tinha outro grupo, um grupo de folião, de Folia do Divino ou da Folia de Reis, ia também. Aí juntava

todo mundo, coral com outros grupos, e isso foi assim dando esse incentivo, foi crescendo. E o Frei Chico, ali na música, foi um grande incentivador criando o coral Trovadores do Vale. Outro grupo, às vezes, que já existia, mas lá no seu cantinho, caladinho, com essa descoberta de Frei Chico aqui, com o coral, eles também foram animando, um grupo animando o outro. Tinha aqui os tamborzeiros da Festa de Nossa Senhora do Rosário, e isso tudo foi, nessa época que tudo foi pro alto, pro auge, o artesanato, os Trovadores, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, tudo assim nessa época de (Codevaldo?) Campos, com a vinda do frei. E aí o Frei Chico nem assim conhecia. Eu trabalhava com a cerâmica, mas ele ainda não tinha conhecimento do meu trabalho não. Aí foi uma época que eu estava fazendo muito busto. Aí o Valter pediu o busto. Ele veio aqui me convidar pra entrar no coral e falou assim: “O padre, o Frei Chico, ele gosta muito dessas coisas. Você podia fazer, me vender um busto desse”. Eu fui, virei pra ele e falei assim: “Não, eu vou fazer, eu não vou te vender o busto não. Eu te dou pra dar pra ele”. Eu podia ter contado essa parte primeiro. Até aí eu ainda não estava no coral não, né? Aí eu preparei a peça, ele levou essa peça pro frei. Ele enfeitou lá o xique-xique com a peça. Aí, depois que eu fui pro coral, aí eu falei com ele: “Você dá a peça pra ele, mas você não vai falar que fui eu que fiz não”, porque, com a timidez, eu tinha vergonha de falar que eu tinha feito aquelas peças. Foi uma época que eu estava fazendo mais os bustos. Aí, logo ele me chama também pra entrar no coral, eu vou. Aí eu estou lá sentada. Antes, o Frei Chico lidava também com muita criança. A menina lá do coral vê a peça lá no xique-xique e virou pra o Frei Chico e falou assim: “Oh, os homens de barro que Lira faz”. Aí ele falou assim: “É a Lira que está no coral?” Aí a Margarida virou pra ele e falou assim: “É ela mesmo. Ela é minha vizinha, mora lá perto de casa”. Aí ele pediu à Margarida pra trazer ele aqui em casa. E nesse tempo a casa aí só tinha quatro cômodos. A máquina de costurar, eu tinha colocado um bocado de busto em cima da máquina. Aí ele chegou de uma vez e ficou doido, falou: “Eu não sabia que você fazia esse trabalho de cerâmica não”. Aí ele foi me perguntar se eu colocava um espelho na minha frente pra poder depois fazer os bustos. Ele foi me contar que os artistas, antigamente, punham um espelho pra poder desenhar. Eu falei pra ele que não. E dessa feita ele não me deixou mais ter sossego. Ele ia trazendo os estudantes: “Vai lá ver os trabalhos da Lira”. Chegava outra turma, ele trazia. Trazia algum padre que vinha aqui visitar a cidade. Ele foi no Adão, pediu ao Adão, que o Adão tinha a tenda dele aí na Rua Dom Serafim, pediu ao Adão se ele deixava eu colocar as peças que estavam prontas lá. O Adão falou que podia fazer e levar pra colocar lá. E aí foi uma descoberta assim de tudo, aquela descoberta. Ele descobriu que eu trabalhava com a cerâmica, ele deu força. Nessa… (pausa) Pois é, então, como eu estava dizendo, nessa época foi assim que tudo tomou um rumo e um sentido bom, nessa época do canto, do frei, da Codevale aí na região. E aí a gente ia apresentar com o coral lá no campus, a gente ia no arraial dos crioulos também com a turma. E aí, como eu estava explicando, o Frei Chico, conhecendo o meu trabalho de cerâmica, ele deu força, e ele dá força até hoje, não parou de dar as forças. E pra mim foi assim, esse trabalho junto com ele, pesquisando sobre a cultura popular no Vale do Jequitinhonha, também deu muito incentivo no meu trabalho como artesã, na cerâmica. Muitos trabalhos eu parti através de música, da pesquisa. E então eu não lembro se foi 74 ou 75, foi a primeira apresentação dos Trovadores do Vale em São Paulo, o GTU. Os estudantes de lá organizaram esta feira lá em São Paulo, que aí a abertura foi com os Trovadores do Vale. Então nessa época foi eu pra feira, eu, a Zefa, o Adão e a Dona Isabel de Santana. Foi a primeira exposição realizada, né, de nós, foi em São Paulo. Eu não estou lembrando se foi em 74 ou 75. E aí os Trovadores foi também pra fazer a abertura dessa exposição, que por sinal foi muito boa a exposição. Mas primeiro o Professor Galante falou comigo assim: “Lira, a gente vai levar uns cinco bustos destes pra São Paulo. Se tiver aceitação a gente vai fazer uma exposição sua, da Zefa, do Adão e de Dona Isabel lá em São Paulo”. Aí teve aceitação. Ele vendeu os bustos, trouxe o dinheiro, muito alegre. E aí eu fui trabalhar pra essa exposição. O coral foi lá, fez a abertura, voltou e a gente ainda ficou durante uma semana lá trabalhando, dando entrevista, que não foi fácil porque nessa época eu nunca tinha entrado num ônibus na minha vida. Assim como eu nunca tinha entrado num ônibus, às vezes tinha uma ou outra menina também que nunca tinha entrado num ônibus. Tanto que quando a gente veio de volta, que o ônibus parou aqui pra gente poder sair, eu saí do ônibus, eu caí de barriga no chão. As pernas ficaram trôpedas pela viagem. A Zefa perdeu até o rumo da casa dela. Eles pegaram ela assim: “Não, Zefa, volta. O rumo da sua casa é lá”. A gente estava assim tonto da viagem porque é uma viagem longa e a gente, eu pelo menos, não conhecia uma roça aqui que tivesse uma légua, não conhecia naquele tempo. Então foi uma viagem assim de muita coisa que a gente não conhecia, um elevador, uma televisão. A gente não tinha conhecimento dessas coisas. E ali diante de televisão também, e só dando as entrevistas. Foi uma coisa assim que foi bom, mas no fundo, no fundo, foi muito cansativo pra nós, né? Mas valeu a pena tudo isso, né?

P/1 – No começo, antes de você conhecer o Frei Chico e de começar a expor assim, o quê que você fazia na cerâmica?

R – Na cerâmica eu já fazia escultura, porque a minha mãe, como eu estou te contando, além dos presepinhos que ela fazia, a minha mãe, com esse negócio do jogo... Aqui nesse morro todo domingo tinha partida de jogo. Eu não entendo muito de jogo não. Eu vejo eles falando em douradinha, douradão, era o que eles jogavam. Então vinha uma turma que morava na Rua de Baixo jogar com os moradores do Morro da Liga, porque aqui o nome da rua é Rua Coronel Inácio Murta, mas é conhecido também por Morro da Liga porque tinha a Liga Operária aqui que foi demolida. Era dos operários. Todo mês tinha reunião aí. Então tem o apelido de Morro da Liga. Então esses moradores da Rua de Baixo e de outras ruas aí, eles vinham jogar esse jogo de baralho aqui. E mãe fazia umas mulheres grandes. Ela fazia uns personagens que tinham apelido aqui na cidade. Tinha o Zé Preto, o Zé Vermelho, todos os dois eram varredores de rua. Então ela fazia algumas figuras e eles eram contra, jogavam contra os moradores daqui. Então ela fazia essas figuras, o Zé Vermelho com a carrocinha na mão, o outro com uma vassoura na mão. Fazia coisas engraçadas pra, na hora que eles estavam perdendo eles chamavam, ela chegava com aquele objeto e colocava no centro da mesa: “Olha aqui o toco”. Era chamado de toco. Era uma coisa assim, ou que ela fazia uma coisa engraçada ou que era muito feia, pra poder, como que eu vou dizer isso, pra mexer com aqueles que estavam perdendo. Então ela, de tudo ela fazia. Então eu já comecei com figuras mesmo.

P/1 – Figuras de pessoas?

R – É, pessoas. Como eu estou te falando, teve uma época que eu fiz muitos bustos. Eu gostava de fazer Sócrates, eu gostava de fazer Platão porque eu tenho uma certa, como que eu vou dizer, eu gosto desse tipo de pessoas, né?

P/1 – E onde você pegava a imagem deles?

R – Não, não pegava imagem. Eu fazia como eu imaginava, porque eu não sei pessoas trazer retrato disso ou daquilo, de alguém: “Faz aqui”. Além de eu não saber copiar, eu não sinto aquele gosto, aquele prazer. O meu prazer é de criar. E eu fazia Sócrates, fazia Platão, eu imaginava. Depois de muito tempo que eu entrei na escola é que eu fui ver retrato de Platão, é que eu fui ver retrato de Sócrates. Tanto que quando eu fui na Holanda, que eu estava visitando o Museu (Elaidin ?), que eu sou apaixonada até hoje, eu falei assim pro Frei Chico: “Eh, diacho, se eu encontrasse aqui o Sócrates”. De repente, eu andando pelo corredor, olha Sócrates lá. Tanto que eu tenho retrato tirado abraçada com o busto de Sócrates lá na Holanda, no Museu (Elaidin ?). Eu tenho uma certa simpatia por essas pessoas, esses filósofos. Eu tenho uma coisa assim, uma atração por esse tipo de pessoas, né? E aí eu fazia os bustos, mas sem conhecer. Fazia a meu modo.

P/1 – Mas como você ficou sabendo que existia um Sócrates, existia um Platão?

R – Não, porque toda vida também a gente gostou de ler e eu escutava as pessoas falarem. Até que você entra na escola, você vai ficando mais esclarecida das coisas, porque toda vida eu gostei de ler. E aí é que eu fui ver mesmo um busto de Sócrates num livro de história geral.

P/1 – E as pesquisas com Frei Chico...

R – E as pesquisas com Frei Chico pra mim foi um incentivo muito grande. Também porque o que a gente sabia, os cantos de roda que eu via a minha mãe cantar, via outras cantar, a gente não sabia o valor que tinha. Eu só vim saber o valor que tinha depois que o Frei chega, forma, junta esse grupo de pessoas, forma um coral e fala pra gente que essas coisas tinham valor, que os cantos de roda tinham valor. E o trabalho com ele só foi me incentivando a ter mais conhecimento desses cantos, os cantos de trabalho que minha mãe cantava. Canto pra apanhar arroz, canto pra levar o gado, canto dos canoeiros pra levar as mercadorias, que saíam daqui as canoas. Eu até, ainda, alcancei as canoas com aqueles mastros, com aquelas tolda, né, que chama. As canoas saiam daqui até Salto da Divisa, que já é Bahia, iam até Belmonte levando mercadoria e trazendo mercadoria. Os tropeiros saiam daqui com as tropas pra Diamantina levar as moças pra estudarem. Ainda naquele tempo iam a cavalo pra estudar em Diamantina. Mãe contava que meu avô levava também estudante, naquele tempo, pra fora, que ele mexia também com tropa, o pai dela. Então existem os cantos de boiadeiro pra levar o gado, os cantos de tropeiro pra levar a tropa. Então eles vão cantando pra viagem mais alegre. Para numa parada, vai cozinhar, junta pra cantar: “Você me chama meu tropeiro, eu não sou tropeiro não. Sou arrieiro da tropa Marcolino, o tropeiro é meu patrão. Menina suspende a saia, moda anágua não barrar. E a renda custou dinheiro, Marcolino, dinheiro custou ganhar. Você me chama meu tropeiro, eu não sou tropeiro não. Sou arrieiro da tropa Marcolino, o tropeiro é meu patrão. Passarinho que tanto canta no galho do xique-xique, cala a boca passarinho Marcolino, quem se canta morto fica. Você me chama meu tropeiro, eu não sou tropeiro não. Sou arrieiro da tropa Marcolino, o tropeiro é meu patrão”. Aí a gente vai cantando e colocando versos. É um canto...

P/1 – Canta pra gente.

R – Bom, eu terminei de cantar pra vocês um canto de trabalho que é dos tropeiros, pra levar as tropas. Geralmente esses cantos falam da luta do nosso povo e da vida do nosso povo. Eu agora vou cantar um dos canoeiros. Quando eles saíam daqui pra levar as canoas com mercadoria até Salto da Divisa, Belmonte, né? Vou cantar o canto do beira mar: “Beira mar novo foi só eu é que cantei. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. To remando minha canoa lá pro poço do pesqueiro. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Adeus, adeus, toma adeus. Eu já vou-me embora. Eu morava no fundo d’água, eu não sei quando eu voltarei. Eu sou canoeiro. To remando minha canoa lá pro poço do pesqueiro. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Eu não moro mais aqui, nem aqui quero morar. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Moro na casca da lima, no caroço do juá. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Adeus, adeus, toma adeus. Eu já vou-me embora. Eu morava no fundo d’água, eu não sei quando eu voltarei. Eu sou canoeiro. To remando minha canoa lá pro poço do pesqueiro. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Rio abaixo, rio acima, tudo isso eu já andei. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Procurando o amor de longe, que o de perto eu já deixei. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Adeus, adeus, toma adeus. Eu já vou-me embora. Eu morava no fundo d’água, eu não sei quando eu voltarei. Eu sou canoeiro. To remando minha canoa lá pro poço do pesqueiro. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Rio abaixo, rio acima, numa canoa furada. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Procurando o amor de longe, que o de perto eu já deixei. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia. Adeus, adeus, toma adeus. Eu já vou-me embora. Eu morava no fundo d’água, eu não sei quando eu voltarei. Eu sou canoeiro. To remando minha canoa lá pro poço do pesqueiro. Oh, beira mar, adeus duna, adeus riacho de areia”. Eu fiz um pouquinho errado, eu cantei um verso duas vezes. O outro verso que eu queria cantar é assim: “Vou descendo rio abaixo numa canoa furada, arriscando a minha vida por uma coisinha de nada”. Esse verso eu queria cantar, mas aí eu cantei duas vezes o outro, né? Então existem esses cantos de trabalho, como os cantos de roda, os cantos de batuque, acalantos, os cantos de pedir esmola, que tem um assim: “Meu patrão, meu patrãozinho, passa lá e passa cá. Mete a mão na sua gibeira, tira uma nica e me dá, passa uma mão na sua gibeira, tira uma nica e me dá”. Então foi um trabalho assim que nós fizemos, da cultura popular, pesquisando com as pessoas mais velhas todos esses cantos que eu acabei de falar, os cantos de pedir esmola, os cantos de penitência pra pedir chuva. Inclusive aquela pecinha ali, que vocês estão vendo ali, chama A Penitência. Então eu estou querendo retratar, essa ali, que é pro Museu do Pontal lá no Rio de Janeiro. Eu estou querendo retratar porque aqui, na época de seca, o pessoal usa fazer penitência pra pedir chuva pra poder dar os mantimentos, porque tudo que é plantado na ocasião da seca não nasce, morre tudo. Então o quê que acontece? O pessoal perde a plantação que ele fez. Às vezes tem que ir pra São Paulo, pro corte de cana, e não ganha praticamente nada nisso. Os pais de família às vezes morrem por lá. E então a própria pesquisa me inspira também pra eu fazer o meu trabalho, que eu só posso fazer muita coisa através dessas pesquisas, como é a peça da penitência. Tem uma outra peça, a peça da seca, e vai por aí afora. Teve uma peça minha que foi inspirada numa música que é assim: “Oh, vida triste é a vida da pobreza. Oh, vida alegre é a vida da riqueza. Às horas certas tem a cama e tem a mesa. Eu quero dormir um sonho no colo de uma princesa, ai, ai”.

P/1 – Lira, antes, no começo, você fazia esculturas.

R – Esculturas. Toda a vida eu já comecei com as esculturas, os bustos.

P/1 – E depois, como foi mudando assim?

R – Oh, de repente você vai mudando, que a gente nem sente. Quer dizer, o meu trabalho a gente pode, dá pra ver, que não são... As máscaras geralmente foram inspiradas no negro, no índio, porque eu tenho descendência dos dois. Então eu gosto muito de expressão de rosto, de fazer as máscaras. E essas outras peças são inspiradas mesmo na própria pesquisa. E os bustos eu já expliquei, pensando muito nessas pessoas, nos filósofos. Inclusive eu até nem estou fazendo mais os bustos. E figuras de animais, que eu mesmo gosto de criar. Eu costumo chamar “bichos do meu sertão”. Tanto eu faço na cerâmica como nos desenhos com as terras coloridas que tem na região. Então é um trabalho bastante variado. Eu sempre gosto de estar criando, de estar imaginando. E o próprio Vale do Jequitinhonha, todo o vale é inspirador. Eu gosto muito de mostrar essa parte da luta, da opressão. Não é só no Vale do Jequitinhonha que tem pobreza. Mas é claro que isso inspira. Eu sempre falo também, se eu soubesse escrever, vamos supor: “Escreva aí sobre a seca no vale ou lá no Nordeste”, eu ia escrever. Mas eu sempre digo, eu não sei escrever, estar fazendo poesia. Então eu posso mostrar isso no trabalho de cerâmica, eu posso retratar na cerâmica, fazendo aquilo que eu sei fazer.

P/1 – E você faz vasos, esculturas?

R – Não, eu nunca mexi com vaso não. Não sei fazer vaso não. Eu até já experimentei. Se eu for fazer, sai, mas eu vejo que não é igual aquela pessoa que dedica, como que eu falo, a trabalhos utilitários. Eu já tentei fazer vaso, já tentei fazer uma panelinha. Sai. Quando eu estive nesse Museu (Elaidin ?), eu vi muita miniatura de cerâmica, castiçal, que aquilo eu fiquei louquinha, assim, achei lindo. Cheguei aqui em casa, tentei fazer castiçal, tentei fazer umas panelinhas, todas em miniatura. Achei lindo, mas eu vejo, eu tenho assim dificuldade. Sair sai, alguma coisa sai, mas que não me deixa assim satisfeita igual o que eu já faço, porque eu já comecei foi com escultura mesmo. Então eu não faço peças utilitárias não. Eu gosto. Já tentei, mas eu sinto dificuldade, enquanto que nas outras coisas que eu faço é mais espontâneo, captando aquilo e tentando fazer. Na época das enchentes eu presenciava, saía andando pra ver a barraca dos flagelados e eu fiz a barraca dos flagelados na cerâmica. Eu reproduzia aquilo que eu via. Às vezes eu passava, tinha lá uma criancinha deitada lá no chão, uma mulher com a mão no queixo, um cachorrinho sempre ao lado, que faz parte da família, sempre tem um cachorrinho. Então eu tentava, aqui em casa, reproduzir aquilo na cerâmica.

P/1 – Me fala só um pouco das coisas que você faz. Por exemplo, máscaras, esculturas. O que mais?

R – As máscaras, as esculturas, alguns trabalhos que às vezes eu dou um nome, outras eu deixo sem nome. Por exemplo, a peça do parto. São peças assim mais fortes, que eu não quero mostrar simplesmente, nessa peça do parto, uma mulher tendo um filho, não. O parto é todo esse sofrimento que não é só no Vale, mas que está no Brasil inteiro. Muita coisa acontecendo. É claro que existe, aqui no Vale do Jequitinhonha, existe muita coisa bonita. Tem os poetas, os escritores, os artesãos. Mas eu vejo também que a gente não pode esquecer que existe a miséria que existe. Quem tem, tem. Quem não tem, não tem e está pelejando, está lutando. Isso é bonito, mas tem que dar suporte também dessas pessoas viverem com dignidade. E pra viver com dignidade, esses artesãos, eles têm que lutar muito, né? É claro que não existe só pobreza não, existe essa beleza. Você vai olhar, no Vale inteirinho tem artesão, cada um tem a sua linha de trabalho. Tem os poetas, tem os músicos. Beleza, mas que essa beleza tem que ser mais valorizada e tratada com dignidade. Tem a peça que chama Basta, me ajude a levantar, que essa peça está com uma grande amiga minha, a Tereza Coelho, lá em Belo Horizonte. Foi através de uma palavra que uma pessoa falou comigo, vindo aqui na minha casa pela primeira vez conhecer o meu trabalho, e virou pra mim e falou assim: “Uai, essas peças de barro têm valor?” Aí eu virei pra pessoa e falei: “Têm valor, as pessoas estão gostando, os estudantes estão gostando”. A pessoa, com um par de brincadeira, rindo, falou comigo assim: “Ah, moça, você está boa de moer caco de vidro com a bunda”. É uma expressão usada pra dizer que alguém não quer trabalhar. A gente usa: “Ah, Fulano está bom de moer caco de vidro com a bunda”. Isso é pra dizer assim de uma pessoa que não quer procurar serviço. Virou pra mim, com aquela brincadeira, e falou assim. E depois virou e disse: “Você está boa de procurar um serviço”. Quer dizer, eles não consideram isso como um trabalho não, consideram não. Considerado serviço é você estar no fundo de uma cozinha lavando, com a trouxa de roupa, lavando, grosando. Pra muitos o que é considerado trabalho é isso. Aí virou pra mim e falou assim. Eu fiquei muito triste. Foi na época que eu estava no auge, eu estava assim trabalhando, os estudantes estavam indo, dando incentivo e falando pra levar lá. A gente estava sendo descoberto. E aí saiu, era um jornalzinho. Em Campos tinha um jornalzinho que circulava na cidade. E aí eles mandaram fazer uma entrevista aqui comigo. Eu tenho o jornal guardado. Saiu assim: “Uma artista em anonimato”. Então, quando se estabeleceu na cidade, aí tinham as pessoas com aquela curiosidade, uns que nunca tinham vindo na minha casa. Aí começou a vim gente pra poder ver, mas muitos com aquela curiosidade, não assim de conhecer o trabalho e de colocar pra frente não, dar bom incentivo, não. Essa pessoa falou isso pra mim. Eu fiquei muito chorosa. Ela saiu, eu parti pra uma peça e dei nome pra ela: “Me ajude a levantar”. Porque você pode ajudar as pessoas, você pode ajudar comprando. Se não compra, mas com o incentivo: “Vai pra frente, Fulano”. Não precisa achar bonito, porque a gente gosta é do que quer gostar, mas basta dar um incentivo pra pessoa e não dizer isso, e dentro de sua casa. Então a pecinha chama Me ajude a levantar. Tem essa, Barraca dos Flagelados, é inspirada na barraca dos que estavam sem moradia. Tem a peça da Penitência, inspirada na seca, a peça da seca, né? Deixa eu ver. E mais outras assim que eu dou o nome, outras eu deixo sem nada. A pessoa aí, cada um interpreta da sua maneira, mas algumas eu dou um nome pra ela. E as máscaras, os animais, bichos do meu sertão. E parti agora também pros desenhos com as terras coloridas que tem na região. Depois que um médico falou pra mim que trabalhar na cerâmica, que eu fiquei doente. Que eu tenho problema de pressão. A pressão, toda vida, desde nova, antes de 30 anos eu já estava tomando remédio pra pressão muito alta que eu tenho. Depois veio problema de coluna por conta de muito peso que a gente já pegou. Aí, quando você vai ficando mais velho, aí começam a aparecer as consequências, né?

Hoje eu tenho esse problema seríssimo da pressão muito alta, problema de coluna. E aí um tempo o meu braço começou a ficar duro, não dava nem pra pentear cabelo. Eu fui consultar em Belo Horizonte, aí o médico esclareceu o quê que estava acontecendo, que era tendinite e que era uma consequência de trabalho repetitivo, e se eu continuasse que no final eu ia pra uma cadeira de roda. Aí eu fiquei muito sentida com aquilo e comecei a chorar. Fui lá na casa do Frei Chico e falei pra ele. Aí ele virou pra mim, pegou um bocado de lápis lá, de cor, pegou uns pincéis, colocou na minha mão e falou: “Lira, vai desenhar”. Eu virei pra ele e falei: “Frei, mas eu nunca desenhei na minha vida, nunca peguei num pincel pra pintar”. Ele virou pra mim e falou: “Lira, nas suas peças de cerâmica você já faz desenho”. E sempre, toda vida, eu fiz desenho assim na fronte das peças, porque geralmente as minhas máscaras têm a fronte bem larga. E sempre eu faço algum rabisco ali. Mas eu mesma nunca tinha percebido que eu estava desenhando. Ele virou pra mim e me pôs pra refletir: “Você já desenha nas suas peças”. Foi pegando algumas peças que ele tinha, foi me mostrando: “Oh, isso aqui é um desenho que você faz”. Às vezes, com a própria terra, eu pintava, fazia alguma coisa também. Outras vezes era com risquinho. Aí ele me mostrou aquilo, eu comecei a refletir. Ele pegou um bocado de papel lá, que saía do computador, restos de papel, e mandou que eu pintasse. E caiu de sorte que nessa época que deu essa crise no braço eu estava lá em Belo Horizonte fazendo uma exposição no Sesi [Serviço Social da Indústria] Minas. Tanto que quando eu cheguei lá, ao invés de ir lá pra exposição, a Cláudia me levou diretamente pro médico. E eu tive que vestir roupa dela, que eu só tinha blusa que vestia pela cabeça, porque o braço não suspendia. Ela me deu algumas blusas dela pra vestir. Ela me levou diretamente pro médico. E aí o médico falou assim: “Pro bem da artesã, você leva ela num especialista”. Me deu uma injeção para tomar, que a dor era muito forte no braço. Aí eu estava hospedada na casa dela, aí fui lá pra Betim, pra casa do Frei depois, pra falar com ele o quê que estava acontecendo. Aí ele virou pra mim e falou assim, pra desenhar. Aí os dias que eu não ficava na casa de Cláudia, eu ia pra casa dele. E eu estava com a exposição no Sesi Minas e com mais peças pra ir pra outra exposição. Assim que terminasse essa do Sesi Minas, eu ia viajar pro Rio, pra expor a cerâmica lá, que era uma outra exposição que a Lélia Coelho Frota estava organizando. Aí ele falou pra mim pra desenhar. Aí os dias que eu ficava lá, eu ficava mexendo com os desenhos, eu ia desenhando. Aí eu comecei a coletar terra. Porque eles estavam duplicando a Fernão Dias e eu ia lá no coisa e pegava as terras, aquelas terras coloridas que a máquina ia levantando. Era terra vermelha, várias tonalidades de vermelho, de terra amarela, várias tonalidades de terra branca, roxa. Ia coletando tudo. Ele me levava lá com o carro e eu ia colocando dentro do saco plástico. Chegava lá na casa dele eu colocava nos vidros brancos e fiz aquela coleção, porque aqui em Araçuaí também eu já estava fazendo. Aí eu não estava perdendo as terras de vista. Já tem anos que eu não estou perdendo estas terras de vista, né? Aí eu fui coletando. Aí o quê que é? Eu comecei a desenhar com nanquim, que eu gosto muito. Depois ele me deu a tinta Suvinil. Eu experimentei a Suvinil e fui experimentar as terras coloridas. E ia pintando, ele vinha, deixava o computador lá, ele vinha e olhava e falava pra mim: “Lira, os desenhos estão ótimos”. Eu tinha dúvida, só não falava com ele. “É?”, eu falei. “Tá muito bonito. Você guarda esses desenhos pra você mostrar lá…” (pausa) Aí então eu fui pro Rio de Janeiro e lá aconteceu a exposição, e por sinal foi muito boa. Tanto eu vendia cerâmica como as pedras pintadas como os desenhos. E daí pra frente eu estou dando é continuidade, tanto na cerâmica, nos desenhos. E já fiz, sem ser essa primeira que eu fiz no Rio de Janeiro, já fiz acho que umas duas ou três lá, e que tem dado certo.

P/1 – Eu queria perguntar pra você, Lira, como que é o processo de trabalhar com a cerâmica, desde buscar a argila até o momento final?

R – Oh, mexer com argila é um pouco trabalhoso. Eu, ultimamente eu não estou dando mais conta pra eu mesmo pegar o barro, porque eu é que ia pegar essa terra, que é uma distância assim mais longa. O barro pesa, né, você trazer aqueles torrões. Eu mesmo cavoucava, eu mesmo trazia carregando uma banca pesada, que é ferro puro, pra chegar até aqui em casa com esse barro. Aí vem o processo de você colocar no pilão, socar essa terra, peneirar pra tirar as impurezas do barro. Aí você molha, depois você vai bater o barro como se fosse assim amassar pra fazer um biscoito. Tem que ficar a terra homogênea, tudo igualzinho. E aí você sova bastante e aí começa. Depois de tudo pronto, do barro todo preparado, aí você começa o processo de se inspirar e começar a trabalhar. Aí você faz a peça. Ela tem que secar não diretamente no sol. A gente coloca, como eu aprendi, na sombra pra poder ir secando aos poucos. Quando ela está um pouco mais seca, aí você coloca no sol pra secar mesmo, bem sequinho, pra depois você arrumar no forno pra poder queimar. E hoje eu não estou dando conta por conta do problema de saúde. Então eu pago uma pessoa pra pegar a terra pra mim. Ele prepara e me dá no ponto de trabalhar. Mas porque eu não estou aguentando, por causa da pressão que é muito alta, a coluna, eu não estou aguentando fazer isso. E depois, também, pra queimar... Eu operei os dois olhos. A fumaça, eles já falaram comigo que não é bom. Então eu ganhei um forninho, que eu tenho o forno primitivo, aquele ali é o meu primeiro forninho. É aquele lá embaixo. Mas tem esse aqui que é a gás, que a Mão de Minas [Associação dos Artesãos] me deu. Também pra mim obter também alguns resultados esse à gás é bom, que naquele forno mais primitivo a gente não adquire às vezes alguns resultados que eu pretender fazer. Mas estou aí dando continuidade no meu trabalho. Aparece alguém que quer aprender, a gente ensina, vai passando pra frente. Estou aí com o sobrinho passando. Tem uma que faz os desenhos com terra, a outra está na cerâmica, a Marta, e outras pessoas de fora que vêm aqui pra aprender. Daí eu ensinei pros meninos o CPCD [Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento].

P/1 – O CPCD é o quê?

R – Você já ouviu falar no Tião Rocha? Não tem os meninos, os que cantam com o Milton Nascimento, Os Meninos de Araçuaí? Então eu me esqueci do CPCD. É Centro de Cultura Popular. Tem a sede lá na cidade de Curvelo. Então os pequenininhos são aqueles que cantam com o Milton Nascimento e os maiores, pra não saírem fora do projeto, eles me pediram pra dar oficina aqui pra eles, de cerâmica e dos desenhos. E por sinal eles estão trabalhando muito bem, que depois vocês podem também conhecer eles. E outros que aparecem aí.

P/1 – E quanto sai uma peça do seu trabalho?

R – Oh, os preços são bastante variados. Eu nunca fui assim aquela pessoa. Eu sei perfeitamente o que eu posso cobrar mais caro, o que eu posso cobrar mais barato. Mas sempre eu fui aquela pessoa que não tem assim aquela vista alta. Eu sei que a gente tem que valorizar o trabalho e sei o que eu posso cobrar um pouco mais e um pouco menos, né? As máscaras estão saindo a 50, 60, 70, 80.

P/1 – As esculturas?

R – As esculturas são um pouco mais, a 250, 300, 400.

P/1 – Você falou, no começo, de um lugar aí que chama Xique-xique...

R – É o lugar onde nós ensaiamos, que o coral ensaia.

P/1 – Quantas pessoas são no coral agora?

R – Oh, sempre foi assim, de no máximo até 40 pessoas. Lá sempre esta com 30, 35. Sempre está mudando porque às vezes alguma sai pra procurar emprego fora. Agora mesmo, esses tempos, saiu um bocado de menina, foi pra fora estudar e trabalhar. Sempre está variando.

P/1 – E onde foi o último lugar que vocês se apresentaram?

R – Deixa eu ver. Em novembro do ano passado nós cantamos em Belo Horizonte. Esse ano a gente ia cantar no festival mas aí não deu certo, eu não sei se foi problema de ônibus. O certo é que a gente não viajou pra lá, que seria no domingo.

P/1 – Canta uma musiquinha pra gente, do coral.

R – Do coral eu até já cantei, que foi aqueles cantos de beira mar, de tropeiro. Aqueles cantos eram da própria pesquisa que a gente fez e que leva pro coral. Então, eu acho que eu não expliquei essa parte, eu comecei a fazer o trabalho, eu ingressei no coral. Vi o que cantava lá, logo eu deduzi. Que minha mãe cantava canto de roda, eu comecei a pesquisar, levar lá pro Frei. Ele logo viu que eu tinha gosto pela coisa, ele me convidou pra trabalhar e o trabalho foi rendendo. Eu posso olhar... Ah, eu não posso levantar daqui. Eu sei que foi, nós gravamos 250 fitas cassete, mais ou menos um metro de papel, que aquilo tudo eu ia escutando da fita e transcrevendo. E aí a gente escolheu o que tinha de mais bonito nessa pesquisa pro repertório do coral, que é uma daquelas músicas que eu cantei, o canto beira mar, o canto do tropeiro. Quer dizer, eu posso cantar mais alguma música de trabalho, que é de boiadeiro pra levar o gado. Eu vou cantar uma. Eu vou começar com aboio. “Este boi que não tem medo, não conhece o meu ferrão. Eu tiro o boi do carrasco sem perneira e sem gibão. Oh, oh, oh, oh, oh vaca da guia, oh. As estrelas do céu correm, eu também quero correr. Uma corre atrás da outra e eu atrás do bem querer. Oh, oh, oh, oh, oh vaca da guia, oh. Bóia boiadeiro, bóia e vai embora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Candeeiro de um bico só não lumeia dois salão. Nunca vi num peito só colocar dois coração. Bóia boiadeiro, bóia e vai embora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Alegria eu não tenho, tristeza comigo mora. Se alegria eu tivesse, tristeza mandava embora. Bóia boiadeiro, bóia e vai embora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Sem ter fogo e sem ter lenha, cozinhei sem ter panela. Encurtei o meu juízo por um rostinho cor de canela. Bóia boiadeiro, bóia e vai embora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora. Se eu contar a minha vida o boiadeiro chora”. É um canto de aboio, pra levar o gado quando está viajando de um lugar para o outro. Então toda essa pesquisa, todos esses cantos que a gente recolheu, eu junto com o frei, depois todas essas fitas foram escutadas. Eu ia escutando e procurava transcrever da mesma maneira que a pessoa deu pra mim, tanto que o coral canta do mesmo jeito que as pessoas deram. Agora, os artistas, por exemplo, o canto de beira mar já virou um hino, o beira mar novo. Tavinho Moura canta, Tadeu Pereira, Pena Branca e Xavantinho, Almir Sater, Dércio Marques e mais outros cantores que eu não dou conta de falar gostam desse canto de beira mar e eles cantam, mas aí eles colocam os arranjos que eles querem colocar, e o coral mantém firme, cantando da maneira como foi gravado. Então esse trabalho que a gente fez, então o Frei Chico escolheu, vamos escolher o que for mais bonito para o coral cantar. Então a gente não canta nada nosso não, tudo é colhido da boca das pessoas mais velhas.

P/1 – Fala pra mim, o Vale do Jequitinhonha é um lugar que tem muitos artistas, músicos.

R – O vale todinho, que você anda no Vale, você vai encontrar artesãos, músicos, os poetas, escritores, o Vale todinho. Às vezes nuns lugares sobressai mais a música, noutros mais é o artesanato, mas com tudo você vai encontrar esses elementos, a música, a cerâmica.

P/1 – E ao longo de toda a sua trajetória, Lira, o que você acha hoje sobre a arte, sobre _____? Você falou que tem gente que olha e fala que: “Ah, não, isso aqui não é arte”?

R – É cheio de gente. Eu sei por causa, eles não são obrigados a gostar, a achar bonito, é claro. Mas eu acho que tem que respeitar aquilo que o outro faz, não precisa estar desmerecendo tanto. Se não compra, não vai desmerecer, dizer bobeira. Pra mim, eu como nunca... É claro que eu não vou dizer que a gente não fica sentido. Eu sou humana, a gente sente. Mas eu luto pra frente, vou lutando pra frente. E quem não gosta, não gosta. Eles vão viver como quer viver, gostar do que quer gostar. Eu acho que a gente tem que lutar. Eu amo a arte. Eu já falei, é herança da minha mãe, quero levar pra frente. Quem quiser aprender eu não vou esconder. Eu dou dicas. Pra dar na mão é que não dá porque o meu trabalho é um trabalho mais de inspiração. Quer dizer, eu posso falar pra quem eu estou ensinando, como eu já falei, que eu já dei oficina, eu falo pra eles: “Bom, as máscaras são inspiradas nas minhas próprias raízes, que eu sou descendente de negro, de índio, tenho branco também no meio”. Eu falo pra eles. Então eu gosto de fazer expressão de rosto. Se é outro tipo de trabalho que está falando da realidade que não é só do Vale, eu falo com eles: “Vai presenciar uma fila de banco onde vocês vêem lá os velhos, as pessoas simples lá pra pegar o seu dinheirinho pra vocês verem como elas estão ali, sentadinhas com a mão no queixo. Volta, tenta reproduzir isso, procura sentir isso. Vai num mercado, na feira, ver o pessoal vender, que são lugares que inspiram tanto o pessoal que lida com a arte em todo sentido, a cerâmica, teatro”. Então a gente dá essas dicas: “Vê o quê que está acontecendo no mundo, nesse mundão de Deus. Tanta coisa acontecendo. Não precisa só fazer coisa ruim que está acontecendo, guerra que está acontecendo. Faça outras coisas também”. De vez em quando também eu faço flores, faço na cerâmica, faço no desenho. É a minha maneira, como eu sei fazer, como eu sinto inspirada. Aí eu dou essas dicas pra eles, mostro às vezes algum livro de arte que a gente tem, não pra eles copiarem, mas pra poderem se inspirar. Vou dando essas dicas. Aí se a pessoa, ele é um bom artista mesmo, se ele tem... Que o importante disso tudo é a criatividade. Se ele tem criatividade ele vai longe, não é? Então eu faço, quando eu vou aí dar alguma oficina eu falo pra eles. Eu tenho aí uns três livros também de pessoas negras, retrato mesmo, que depois eu posso mostrar pra vocês, que eu de vez em quando folheio, eu vou olhando. São retratos de pessoas africanas de várias regiões da África. É o negro na música, o negro na religião, o negro no trabalho. Então sempre eu estou olhando os rostos e aquilo vai te inspirando. E mesmo os próprios negros daqui, a gente anda aí na rua, às vezes você encontra um que tem a expressão bastante negro mesmo, que a gente não sabe de qual raça, se é da raça crioula, se é, pessoas às vezes com traços indígenas. A gente vê muito andando aí. Eu sempre, toda vida fui uma pessoa assim curiosa, que gostei de ler e de observar a natureza.

P/1 – E essas trancinhas, Lira?

R – As tranças, todo mundo aqui em casa usava trança. A minha mãe já morreu com 70 e tantos anos, já usava trança. Todo mundo usa trança. Às vezes, o dia que eu quero fazer diferente eu faço uma só. Às vezes ela fazia um tanto de trancinha, os meninos ficavam puxando uma por uma. A professora já me punha pra sentar, às vezes, atrás, que eles ficavam puxando. E o certo é que as meninas, minhas sobrinhas, agora é que elas deixaram de usar trança, sentem vergonha às vezes de usar trança, não quer mais trança, às vezes querem alisar o cabelo, fazer isso, fazer aquilo. Eu continuo com as minhas tranças, mesmo algumas pessoas achando que trança é pra criança, mas não é. A gente quando tem certeza, consciência de uma coisa, você não importa, você passa por cima daquilo. Eu uso elas porque eu gosto, minha mãe usava. Ela não tinha tempo de estar penteando o cabelo, fazendo penteados, e o cabelo da gente não é o cabelo que quando solta fica aí direitinho. Então o quê que ela fazia? Ela fazia muito as trancinhas, prendia. A gente dormia com um pano amarrado na cabeça porque ela não tinha tempo de pentear. Então a gente ia pra escola a semana inteirinha com o cabelo trançadinho e não ficava despenteado nem nada, e com isso eu acostumei. Eu gosto delas. E ela já morreu com essa idade que eu estou te falando, ela usava era trança no cabelo. E a gente tendo consciência de uma coisa, você não vai importar, eu não importo. Por todo lado que eu vou, pode ser a festa que for, eu vou com as tranças. Às vezes eu faço uma só, às vezes, uma vez ou outra a gente tenta fazer diferente, um rabo, mas é muito raro. Sempre eu estou com as duas tranças.

P/1 – Só uma última pergunta. O quê que a senhora achou de contar um pouco da sua história pra gente?

R – Não, bem, eu gostei de contar. Fica registrado tudo aquilo que a gente passou. E a minha vida foi isso mesmo, né? É interessante porque fica uma coisa registrada. Hoje ou amanhã a gente morre e o registro está aí.

P/1 – Quer falar mais alguma coisa?

R – A gente não fica pra semente mesmo e a gente não tem nada a esconder. Eu acho que a gente tem é que falar, dizer tudo aquilo como você viveu. Faz parte da vida da gente. Isso que eu falei faz parte da minha vida, é uma coisa que não pode ser negada e nem escondida.

P/1 – Eu queria agradecer muito pelo Museu.

R – Eu que agradeço vocês virem até a minha casa, chegarem até Araçuaí, não só Araçuaí, Vale do Jequitinhonha, no Vale pra conhecer os artesãos, conhecer Lira, Zefa, Dona Isabel, Marcinha, Dona Elisa e outros mais que a gente não dá conta de falar, que são muitos. A gente é que fica agradecido, porque eu acho que pra vocês também é uma lição também de vida, de não trabalhar, de formar, ficar dentro da capital, mas sair fora pra poder ter esse conhecimento da vida da gente, que é totalmente diferente da vida de uma capital. É claro que lá também tem pessoas que vão daqui pra lá procurar emprego. Uns sobressaem, têm sorte de sobressair, achar emprego, mas outros não têm essa sorte, vai pra debaixo das pontes e fica lá no sofrimento, que não pode, às vezes, nem voltar na sua terra natal porque fica tudo muito complicado de juntar pessoas. Lá em São Paulo mesmo, uma vez que a gente foi cantar lá em Guariba, eles falaram: “Nós vamos cantar pros imigrantes”. Nós cantamos em Guariba, Jaboticabal e uma outra cidade que eu sempre esqueço o nome dela, que foi dentro de uma universidade, eu me esqueci do nome dela agora. Então o quê que eles falaram pra gente? Que quando começa a chegar gente pobre por lá, que o prefeito dá dinheiro logo pra ir embora, pra não criar mais pobreza lá. Numa outra cidade que eu fui, sem ser Viçosa, como que chama? É uma cidade no Sul de Minas, muito desenvolvida, que o coral foi pra cantar.

P/1 – Juiz de Fora?

R – Não, sem ser Juiz de Fora. A gente já cantou em Juiz de Fora também. Não, ela é perto de Varginha.

P/1 – Caxambu?

R – Não. Oh, gente, como que chama essa cidade? Ela é linda. Eu não vi assim uma, eu até falei assim: “Puxa, eu não estou vendo aqui casa de pobre”. Eles falaram assim: “Não, você não vai ver em periferia”. Que a gente ficou também no centro, andou muito lá, mas você não vê. Falaram também que lá se chega, eles tratam logo de dar dinheiro pra vir embora. Eu me esqueci. Eu sei que a gente passa em Varginha pra chegar até lá.

P/1 – São Tomé, não?

R – Não, não é São Tomé.

P/1 – ______, Varginha?

R – Eu esqueci o nome dessa cidade.

P/1 – Lavras?

R – Não.

P/1 – Barbacena?

R – Também não.

P/1 – Oh, gente, como é que ela chama? Tem aqueles bondinhos lá e tem essas águas também que você toma banho pra pele. Eu me esqueci o nome da cidade.

P/1 – São muitas lá no Sul de Minas.

R - É, são muitas, então não dá. Ah, deixa pra lá, porque eu esqueci. Então eles falaram que o prefeito dá dinheiro pra essas pessoas procurar, pra não procurar mais... Uma que enche de favela, eles não querem favela. E outra, pra essas pessoas não ficarem lá sofrendo. Que na terra da gente, por muito ruim que seja, que não tenha emprego, mas você consegue, mesmo passando sofrimento, porque as pessoas, um conhece

o outro, dá uma xícara de café, dá um prato de comida. E nessa cidade grande a gente vê. Quando eu olho, em cidade grande, aqueles prédios de 20, 30 andares, é uma barreira que a gente sente de você não poder ir até a pessoa, não é? Então eu agradeço a vocês de poder vir até aqui pra conhecer os artesãos e o Vale do Jequitinhonha.