Museu da Pessoa

Um poeta oculto

autoria: Museu da Pessoa personagem: Carlos Henrique Rivaben Marotti

Projeto Conte Sua História
Depoimento de Carlos Henrique Rivabem Marotti
Entrevistada por Carol Margiotte e Ligia Furlan
São Paulo, 12/07/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH/HV691
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar

P/1 – Seu Carlos, boa tarde.

R – Boa tarde.



P/1 – Obrigada por ter vindo aqui hoje. Pra começar, seu nome completo.

R – Meu nome é Carlos Henrique Rivabem Marotti.

P/1 – O local e data de nascimento?

R – Eu nasci no interior de São Paulo, na cidade de Rio Claro, em 14 de setembro de 1956.

P/1 – E o senhor sabe por que foi batizado de Carlos Henrique?

R – Eu sei que foi ideia de uma tia minha, irmã do meu pai, mas eu não sei maiores detalhes. Eu, pessoalmente, gosto muito do nome. Sempre atual.

P/1 – E seus pais contavam história de como foi o dia do seu nascimento?

R – Hum, deixe-me lembrar. Eu não tenho muita história a respeito do dia do meu nascimento, não. Eu apenas sei que a minha avó paterna esteve muito presente, que naquela época era muito comum isso. Ela auxiliou em todos os partos, isso dentro da própria Santa Casa, da maternidade, mas ela estava ali como uma pessoa pra orientar mesmo a minha mãe, que é o primeiro filho dela, né? Então, a minha avó, como teve vários filhos, ela se achava conhecedora de todos os procedimentos de mãe de primeira viagem.

P/1 – E, falando nos seus pais, qual o nome deles?

R – Então, meu pai é Oscar Marotti e a minha mãe, Ivone Rivabem Marotti.

P/1 – Fala um pouco sobre eles, como eles eram, o que faziam?

R – Então, os meus pais. Minha mãe era mulher de casa, dona de casa, como era naquela época. O meu pai, uma pessoa que sempre trabalhou muito e em vários tipos de emprego. Ele trabalhou durante muito anos no Sesc [Serviço Social do Comércio], aqui de São Paulo, como arquivista. Ele trabalhou 18 anos e ele tinha um lado muito sociável, era uma pessoa que falava muito, gostava de falar. E ele largou esse emprego e acabou partindo pra essa parte de vendas. Ele trabalhou o resto da vida dele como vendedor, para empresas de Rio Claro, metalúrgicas de Rio Claro. Ele era o representante comercial, aqui em São Paulo, dessas empresas, e trabalhava no ramo, atendendo açougues, comércios que vendem peças relacionadas com essa parte de açougue, linguiça, frangos. E ele trabalhou muitos anos com isso e acabou se dando bem. Eu achei até que ele fez bem em sair do Sesc. Ele partiu pra uma coisa que tinha mais a ver com ele e ele acabou se dando bem em todos os aspectos, eu acho.

P/1 – O trabalho dele exigia viagens?

R – Viajava para o interior e para a Baixada Santista. Ele viajava de vez em quando, o grande público dele estava na capital mesmo, em toda a cidade de São Paulo. E ele saía todos os dias pra atender a freguesia dele. E tinha dias que ele acaba, num período do dia, atendendo todo mundo e nem precisando trabalhar o restante do dia. E era uma pessoa muito esforçada, muito mesmo.

P/1 – O senhor chegou a acompanhar ele em alguma dessas visitas?

R – Sim, cheguei a trabalhar com ele um tempo, na década de 80. E eu ia mais de curioso mesmo, porque não tenho o mínimo jeito pra isso. Mas me esforçava porque ele queria me ver fazendo alguma coisa, queria me ver trabalhando. E eu falei: “Não, tudo bem, vamos lá, vamos ver como é”. Aí, eu percebi que a própria freguesia dele estava muito acostumada com ele, e não comigo, né? Então, comigo já ficava meio assim. Eu tinha uma certa dificuldade em conquistar a freguesia dele, eram pessoas mais velhas. E, pra ser sincero, não era muito o que eu queria fazer mesmo, mas eu me esforcei durante um tempo.

P/1 – E o senhor sabe como seus pais se conheceram?

R – Então, eles se conheceram no interior de São Paulo, numa cidadezinha próxima a Rio Claro, onde eles se casaram, uma cidade bem pequena chamada Corumbataí. É onde eles estão enterrados hoje. Eles se conheceram lá e foi na década de 50. Naquela época, era muito diferente de hoje, eles namoraram durante um tempo, noivaram durante um tempo, eles se casaram lá mesmo. E eu nasci um ano depois do casamento. E depois se mudaram pra São Paulo, pra viverem a vida aqui, né? Junto comigo. E foi assim. As famílias eram muito próximas, se conheciam muito as famílias, na época.

P/1 – Mas eles se casaram em Corumbataí e foram morar onde?

R – Em São Paulo, aqui na capital, vieram pra cá.

P/1 – Logo depois do casamento?

R – Logo depois do casamento.

P/1 – E, além do senhor, eles tiveram mais filhos?

R – Então, seis anos depois, nasceu meu irmão, meu irmão nasceu lá em Rio Claro também. E depois nasceu lá e veio morar aqui em São Paulo, como a gente morou uma boa parte de tempo aqui mesmo.

P/1 – E o senhor teve contato com seus avós?

R – Muito, muito. Com exceção do meu avô paterno, que, quando eu nasci ele já havia falecido, faleceu muito novo. Agora, os outros, sim, um contato intenso com ele, muito próximo.

P/1 – O senhor pode falar o nome deles?

R – Então, do lado do meu pai, a minha avó Clélia, ela era, as famílias eram descendentes de italianos. Então, elas tinham o jeito dos italianos, e minha avó era tipo de uma matriarca. Ela era considerada a poderosa da família, todos os filhos se aconselhavam com ela, ela orientava todo mundo, tinha uma personalidade muito forte. E era uma pessoa muito atenciosa com a família, mas não era muito carinhosa. Naquela época, tinham muitas pessoas assim, que tinham dificuldade pra demonstrar carinho. E, do lado da minha mãe, eu tive o meu avô, que é chamado Afonso Rivabem, italiano que veio para o Brasil com 18 anos. E a mulher dele, que é a minha avó Otília, Otília Canin Rivabem, que era o oposto dele. Ele era muito fechado, uma pessoa que também trabalhou muito, uma pessoa que a gente quase não se conversou. Só no final da vida, que ele contou a vida dele pra mim. E a minha avó não. A minha avó, muito carinhosa, muito boazinha, muito religiosa, muito família, e tenho lembranças muito boas dela.

P/1 – Em que momentos você ia na casa deles?

R – Nas férias, todas as férias, sem exceção. Aquela época não tinha, como tem hoje, a coisa de viajar muito. Então, férias? Vamos pra casa dos avós. E era assim,

e muitas vezes eu queria algum lugar diferente, porque era uma repetição, todas as férias. E a gente tinha que se adequar ao ritmo da família, que eles dormiam muito cedo, eu não tinha amigos lá, era eu e meu irmão, né? Mas aquela época era assim, a gente tinha que acompanhar e pronto. Então, nós íamos em todas as férias.

P/1 – Onde que era a casa deles?

R – Então, era assim. A família do meu pai está meio dividida, tem uma parte que estava, na época, em Corumbataí, perto de Rio Claro, e a outra parte em Rio Claro. A da minha mãe ficou um tempo em Corumbataí e depois se mudou mais para o interior de São Paulo, numa cidadezinha bem pequena, chamada Lucianópolis. É uma cidade de dois mil e 200 habitantes, que está do mesmo jeito até hoje. E meu avô, ele trabalhou a vida toda dele com fiação de seda, ele tinha uma tecelagem, onde ele fazia a fiação da seda tirada do casulo do bicho-da-seda e exportava para o Japão. Meu avô trabalhou primeiramente em Corumbataí, ele tinha a fiação dele lá, a tecelagem dele lá, que era enorme! Era a principal indústria da cidade. E depois, ele se mudou de lá para Lucianópolis, ele também instalou uma tecelagem lá. Era a principal fábrica da cidade, onde todo mundo se empregava. E eu era, quando ia pra lá nas férias, era chamado de “neto do dono” e andava lá por dentro. Era enorme, pegava um quarteirão inteiro. E era uma coisa muito rica pra mim, muito boa. Algo que jamais vou esquecer, mesmo distante do meu avô, esse avô materno. Mesmo assim, ele não tinha tempo pra conversar comigo, quase não falava, se encontrava na hora do jantar ou do almoço só. Mas, mesmo assim, muito bom, foi muito bom mesmo.

P/1 – O senhor consegue descrever essa... Chama fábrica?

R – É, acho que tecelagem é o nome certo.

P/1 – O senhor consegue descrever como era esse espaço? Na sua cabeça de criança mesmo?

R – Isso, é, eu consigo. Tinha o chão de fábrica, onde ficavam as funcionárias, eram todas mulheres. Eles pegavam muitas mulheres pra trabalhar, e elas ficavam manuseando os fios da seda, já extraídos dos casulos dos bichos-da-seda. Eu não acompanhava muito de perto. Esses casulos ficavam em tanques com água quente pra amolecer e depois de eles extraírem a seda daquilo – e nunca vi extraindo, eu via depois de pronto, já a seda sendo enrolada na própria tecelagem. E eu lembro que tinha também junto uma marcenaria, que eles precisavam muito daquela marcenaria, não sei exatamente pra quê, mas eu brincava muito dentro daquela marcenaria. E era assim: pegava um quarteirão inteiro essa tecelagem, era muito grande. E eu lembro como se fosse hoje de depositário de folhas de amora, que era o que alimentava o bicho-da-seda. Então, eram vários depositários, inúmeros, acredito que mais de 20, todos cheios de bicho-da-seda. Era uma coisa que dava uma certa aflição ver aquilo. Mas esses bichos, depois, eles acabavam fornecendo o casulo depois, de onde eles extraíam a seda. Você pegava o casulo e puxava e saía seda do casulo. E eu tinha total liberdade lá. Eu podia circular por todo o local. E eu fazia muito isso sozinho, eu tinha pouca idade, não lembro agora, sei lá, dez, 12 anos. E foi assim, principalmente na primeira tecelagem, em Corumbataí. Já na de Lucianópolis, eu já era bem mais velho e eu ia muito pouco, uma ou outra vez só.

P/1 – E, nesse período de férias, quando não ia pra tecelagem, o que o senhor fazia?

R – Então, eu ficava na casa do meu avô, que era uma casa enorme! Era uma casa que pegava meio quarteirão. Ele construiu uma casa do jeito que ele queria, que ficava bem no alto. Era uma casa com um jardim muito bem feito e tudo. E a gente ficava na parte da frente da casa, onde tinham cadeiras, era tipo de uma varanda. A gente ficava sentado ali e olhando a cidade. A única praça da cidade dava de frente pra casa, e ficávamos ali. Uma vida em família, não tinha muito o que fazer na cidade. Era uma coisa assim. Eu ficava lendo gibi, ficava fazendo palavra cruzada. Eu lembro que o meu pai, na época, presenteou a gente com um estilingue, com espingarda de chumbo, a gente saía matando os passarinhos! Que hoje em dia é um absurdo, mas eu matei muito passarinho. Muito, muito. E meu irmão era pequeno, tem uma diferença de seis anos, né? Mas ele me acompanhava nisso aí.

P/1 – E vocês tinham um ritual de caçada? Como é que era?

R – Ah, então, a caçada era no quintal ou no jardim. No jardim, a gente já evitava sair com a espingarda. A espingarda era mais pra dentro de casa, ia mais com o estilingue mesmo pra matar os passarinhos, acertar os passarinhos. Eu lembro até hoje, não me esqueço, matei 36 passarinhos (risos). Você acredita? Eu guardo até hoje esse número: 36. Me arrependo, hoje eu me arrependo, mas naquela época não. Naquela época, não tinha arrependimento.

P/1 – E quando acertava o passarinho...

R – Então, era pelo prazer de acertar. Matava passarinho e enterrava, fazia um buraquinho no chão e enterrava. Passarinho pardal, esses passarinhos, não tinha nenhum passarinho especial. E era isso.

P/1 – E das comidas que sua avó fazia?

R – Então, eu não gostava. Porque minha avó nunca foi uma grande cozinheira. A minha avó fazia aquele trivial do dia a dia, que era aquele arroz, feijão, um frango, uma carne, uma salada. E era aquilo que a gente tinha que comer. Tinha à vontade, mas não é como hoje. Hoje, as coisas são muito mais gostosas. E eu lembro que eu não era uma criança que comia muito bem, eu era meio cheio de coisa com comida, não era fácil, não. Mas eu tinha que comer alguma coisa. Eu não me esqueço do leite. O leite era leite de vaca mesmo, que vinha do sítio. Era intomável, não dava pra tomar, ele era muito forte. O gosto do leite era muito forte. Estou acostumado com leite pasteurizado, aquele leite eu não conseguia tomar. Eu lembro que a minha mãe misturava chocolate e mesmo assim era difícil. Muita nata! Eu lembro que era um sofrimento pra tomar aquilo, mas eu tinha que tomar porque naquela época era assim. Os pais obrigavam! Tem que comer, tem que tomar e ponto final! A gente não tinha voz ativa, então, dava um jeito de comer alguma coisa. Mas não era um grande prazer, não, de jeito nenhum. Mas nesse aspecto, não.

P/1 – E onde vocês dormiam nesse tempo de férias na casa dos avós?

R – Então, lá mesmo, na casa. Tinham vários quartos, e eu lembro que tinha um quarto em que eu dormia com meu irmão, tinham duas camas. Era um dos quartos, né? E eu lembro como se fosse hoje, naquela época, eram colchões de mola e colchões forrados com palha. Então, eu lembro que eles eram irregulares, lembro até hoje. Eu era acostumado aqui em São Paulo com aquele colchão bonitinho de mola, certinho. E, lá, eu sentia, nossa, esse colchão faz mal pras costas. Mas era o que tinha, e a gente tinha um quarto só para mim e para o meu irmão.

P/1 – E fim de férias, como era voltar pra casa?

R – Então, voltar era bom. Era bom porque, quando estava voltando, já estava enjoado daquilo, que era uma coisa que se repetia. Voltar era bom. Naquela época, apesar de ser década de 60, o meu pai tinha carro. Voltava dirigindo, nós dentro do carro. Naquela época, o carro que mais existia era o Volkswagen, era o Fusca, né? Eu lembro que meu pai teve um Fusca 62, azul, nunca me esqueço. E a gente voltava sim. As estradas eram horríveis, a própria estrada que saía da cidadezinha do meu avô era de terra. Quando chovia, era uma coisa terrível. E depois pegava asfalto, mas, mesmo assim, não existiam pedágios naquela época. Então, muitos buracos na estrada. Mas, como nós tínhamos poucos carros naquela época, no Brasil, então, a gente chegava a vários quilômetros sem ver um carro, andar pela estrada. Mas era a nossa volta. E eu vinha para o lado urbano, né? Pra capital, que tinham outras coisas interessantes. E era assim.

P/1 – E a casa da sua infância foi onde em São Paulo?

R – Várias, né? Muitas. Nós nos mudamos muito pela cidade de São Paulo, muito, muito, muito mesmo. Então, moramos na Zona Norte, na Zona Leste, moramos no interior de São Paulo, moramos na Zona Oeste também, em vários lugares. Tive várias casas de infância, todas muito importantes pra mim.

P/1 – O que motivava essas mudanças?

R – Então, meu pai era uma pessoa muito irrequieta, uma pessoa muito nervosa, tinha um gênio fortíssimo. E era uma pessoa que, enquanto ele não teve uma casa própria, ele ficava se mudando, talvez até pra ficar mais próximo da clientela dele, pra facilitar isso. Então, ele tinha esse hábito, que minha mãe não gostava muito não, mas a gente tinha que acompanhar.

P/1 – E como era receber a notícia de que vocês iam mudar de novo?

R – Então, era sempre um transtorno, era uma coisa que a gente não gostava, mas aquela época existia empresa de mudança. Então, chamava-se o caminhão, eles carregavam tudo e levavam. A gente não mexia em nada. Mas tinha que colocar em caixa de papelão, empacotar, fechar tudo, né? Isso aí a gente fazia. E, aí, ocorria mudança. Era um local novo e tinha que se enturmar por ali. Nova escola e tudo. E era assim, tinha que transferir de uma escola pra outra, desse jeito.

P/1 – Na hora da mudança, você era responsável por alguma coisa?

R – Ah, não! Talvez ajudasse a empacotar as minhas coisas, a colocar em caixas as minhas coisas, brinquedos, livros, coisas de escola, coisa assim, não muita coisa.

P/1 – Perdeu-se alguma coisa nessas mudanças?

R – Não, não.

P/1 –Alguma coisa especial?

R – Não, não perdeu nada não. Fizeram direitinho.

P/1 – Queria que você falasse de alguma casa que tenha sido importante, pensando ainda na infância, ou, se forem todas, pode falar brevemente sobre elas também? Como era a escolha também da próxima casa?

R – Então, eu acho assim... Nossa, eu tive tantas importantes! Tive uma, um pouquinho mais, que foi quando meu pai finalmente comprou uma casa. Naquela época, era muito mais fácil comprar um imóvel, nem se compara com hoje. Foi no bairro do Jaçanã. Era uma vila, dentro de uma vila, e minha vivência ali foi muito rica, foi muito boa. E, nessa vila, ele comprou uma das casas dentro da vila, a gente morou lá. E eu devia ter uns 14, 15 anos. Convivi com várias pessoas que moravam dentro dessa vila. Crianças, né? E a gente tinha um hábito assim, muito bom, de jogar bola na rua. E era assim. Quem jogava bola na rua eram os moradores da vila, era fechado pra nós aquilo, e a gente jogou muita bola na rua, joguei muito. Fizemos campeonatos, chegamos a construir trave com rede, andamos de bicicleta, muito de bicicleta, de patinete, carrinho de rolimã! Fizemos tudo o que uma criança saudável podia fazer na época. Empinar pipa, jogar taco, brincar de queimada, vôlei, tudo, tudo, tudo. Amizades muito boas.

P/1 – Qual era o nome do time de futebol?

R – Não, não tinha nome. Era assim: quando a gente fazia campeonato, como a vila era um “u”, fazia um “u”. Entrava por um lado, descia e saía pelo outro. Então, a gente fazia assim: rua de cima contra rua do meio e rua de baixo. Quem morasse ali naqueles locais formava um time, jogava contra os outros. E tinha até torcida uniformizada, organizada, que gritava por nós e tudo. E a gente fazia um torneio e tudo. Não existia computador, mas era tudo anotado à caneta, quem era o artilheiro e tudo! Então, era uma coisa muito boa, muito interessante.

P/1 – O seu time chegou a ganhar algum campeonato?

R – Ah, ganhou, ganhou sim! Eu lembro que eu fazia uma dupla de ataque com um colega meu, que morava de frente pra mim e dava muito certo. A gente se entrosava muito. Fizemos muitos gols, muitos, muitos. Eu lembro que eu tinha muita facilidade de cobrar falta e eu fiz muitos gols de falta também. Jogava, na época, era ponta esquerda, que eu sou canhoto, e foi muito interessante. A gente, de vez em quando, fazia um jogo contra, por exemplo, um jogo contra outra rua, de vez em quando. Mas normalmente era todo dia futebol, sem exceção. Minha mãe ficava doida, tinha que me buscar lá pra entrar.

P/1 – E em casa tinha alguma divisão de tarefas, Seu Carlos?

R – Não. Divisão de tarefas entre quem? Entre meu pai e minha mãe?

P/1 – E entre os filhos?

R – Não, não. Era uma coisa muito antiquada. Na época, era assim: a mãe cuidava de tudo que eram coisas da casa, fazia comida, limpava a casa, ia às compras e tal. E a gente não ajudava, não. Os filhos ficavam lá, iam pra escola e tal, e o pai trabalhava, trabalhava fora. Então, era uma coisa pesada pra minha mãe mesmo. Mas, na época, era assim, era como se fosse uma sina, você tem que ser assim, fazer isso e ponto final. Não se questionava isso, diferente de hoje, né? Felizmente mudou, mas na época era assim.

P/1 – E o que esse jovem queria ser quando crescesse?

R – Então, a gente não pensava nisso. A gente vivia o momento presente, que era muito intenso. Ninguém pensava: “Ah, eu vou ser um dia tal coisa”. Nunca pensei isso. Eu lembro que fazia o ginásio, que tinha que estudar mesmo, né? Era tudo público, não era particular, e que era perto de casa, ia a pé pra escola. E eu não pensava em nada, não pensava em nada, nada, nada, por enquanto. Isso é uma coisa que tem muito hoje em dia, mas, na época, não. Na época, eu pensava em brincar. Em brincar, e estudava também. Era um aluno até bom, era um bom aluno até, ficava entre os primeiros da classe. Ganhava presente lá da professora e tudo, mas eu fui um menino muito doente também, né? Às vezes, tinha que faltar da escola por causa disso, pelo menos até 14 anos. Depois, eu melhorei.

P/1 – Mas o que...

R – Era problema das vias respiratórias, amidalite, laringite, faringite, gripe, resfriado. Eu tinha isso com grande frequência. É uma coisa provavelmente genética. Eu mesmo passei isso pra minha filha, minha filha foi a mesma coisa até 14 anos, depois melhorou. Então, eu lembro que, entre uma brincadeira e outra, eu ficava com problemas assim, tinha que tomar antibiótico, tinha que ir a médico. Até melhorar, muita febre! Mas mesmo assim deu pra brincar bastante.

P/1 – E que cuidados exigia?

R – Então, aqueles cuidados. Tudo era tratado em casa, nada de internação, nada, ia a médico. E, naquela época, não existia convênio médico. Ia lá e pagava a consulta, e a consulta era muito longa, examinava. E o médico era bacana, conversava e tal. Diferente de hoje, né? E os cuidados eram em casa. Tomava antibiótico, que o único antibiótico que existia era penicilina, tomava penicilina, tomava remédio pra tosse, remédio pra febre. Ficava meio de molho em casa, a mãe cuidava, né? Só a mãe, o pai não.

P/1 – E sua mãe tentou, em alguma época, procurar alguma coisa alternativa, algum remédio natural?

R – Não, não existia remédio natural. Isso talvez existisse, sei lá, no sertão do Nordeste, para o interior de São Paulo, mas na capital não tinha. Tinha farmácia, ia até a farmácia e tomava injeção, comprava o remédio. O farmacêutico era farmacêutico mesmo, e ele era meio médico. Entendia um pouco do assunto, se preocupava com a gente. Esse aspecto humano era muito mais interessante que hoje em dia. E era assim e passava. Passava e voltava.

P/1 – E, pensando nessa juventude, nessa adolescência, os seus pais conversavam com o senhor sobre essas modificações que o corpo ia sofrendo?

R – Não, não, não havia diálogo. Não havia diálogo. Era assim: os pais mandavam e os filhos obedeciam, e não tinha explicação, porque quem tinha que saber das coisas era o pai. E o pai e a mãe sempre sabiam o que era melhor para os filhos, e os filhos tinham que acatar. O máximo que fazia era: “Ah, esse remédio é muito ruim, não quero agora!”. Falava isso, mas era prescrição médica, e tinha que tomar. Então, a gente não tinha voz ativa, pelo contrário, naquela época, era muito comum, se a gente desobedece, ficar de castigo e apanhar, levar surras. Levei muitas surras.

P/1 – Pode contar alguma que tenha sido bem marcante?

R – Hum, não tem nenhuma marcante, eram todas muito parecidas!

P/1 – (risos)

R – Porque era assim: eu era meio levado, porque era menino de rua, né? Levado, no sentido de esquecer da vida na rua. E, aí, a minha mãe falava: “Olha, vou contar para o seu pai quando ele chegar em casa”. E ela contava mesmo, quase todas as vezes ela contou. E, aí, meu pai chegava em casa, sabia da história e, para não perder a autoridade, ele tinha que me bater. Ele, estando bem ou não, nervoso ou calmo, ele tinha que me bater. Então, a diferença das surras estava aí, em como ele estava no momento. Se ele estivesse muito nervoso, ele descontava em mim. Se ele estivesse mais calmo, era uma surra de leve. E raramente não tinha surra, ele só dava uma bronca. Eu e meu irmão assim. E era assim, muitos amigos meus passaram por isso.

P/1 – E como você processava esses momentos? Doía?

R – Horrível, horrível! Era uma coisa horrível, era uma violência, né? Não tem como falar. “É assim mesmo, está tudo certo!” Não é. Era uma coisa horrível. Sabia que era uma coisa comum na época, mas nem por isso eu gostava daquilo. Era uma coisa que doía, era uma coisa assim, aquela tensão de saber que vai passar por isso daqui uma hora, duas horas. E depois você até torcer pra não acontecer ou, se acontecer, que aconteça logo pra encerrar o assunto, porque encerrava o assunto depois e pronto, né? Então, era uma coisa lamentável, eu acho, isso aí. Eu não faria nunca com uma filha ou filho meu. Hoje em dia, é até absurdo, embora eu saiba que aconteça pelo Brasilzão afora. Então, era assim.

P/1 – E, pensando já nessa juventude, como isso foi mudando no dia a dia? Essa entrada da vida adulta, o que vocês faziam pra se divertir?

R – Sim, sim. Então, aí, isso passa. Depois de um tempo, os pais param de dar surra nos filhos porque os filhos estão crescendo. E eu lembro que, quando entrei na adolescência, depois dos 18, isso parou, isso acabou por completo. Como se tivessem seguindo um script assim: “Oh, até tal idade tem que bater, depois disso, não, porque aí eles já estão ficando mocinhos!”. E eu lembro que, aí, a gente entrou na adolescência, já morando em outro lugar, e eu achei interessante que uma atitude dos meus pais foi a seguinte: “Toma aqui a chave da casa, pra você. Uma cópia pra você poder entrar e sair”. Então, teve como se fosse um tipo de ritual de passagem, interessante isso. Mas isso não quer dizer que eles não ficassem preocupados comigo, muito preocupados. Não dormiam me esperando, e não era uma coisa assim. Quando chegava, levava uma bronca, uma coisa raivosa. Não era assim: “Ah, meu amor, por onde você estava até essa hora?”. Não era assim, era uma coisa bem pesada mesmo. E essa parte mais de adolescência eu vivenciei muito na Zona Norte, num bairro chamado Água Fria, perto da Serra da Cantareira. Também foi muito bom. Muito bom, muito interessante. Foi lá que conheci muitos amigos, tenho alguns poucos até hoje vivos ainda. E foi lá que comecei a conhecer a cidade de São Paulo, o centro de São Paulo, comecei aos poucos. Não tinha metrô, pegar ônibus e vir até o centro. E comecei e descobrir a cidade e também comecei a me preocupar com emprego também, aos poucos.

P/1 – Antes de entrar nessa parte, eu queria saber, quando você chegava depois do horário, que seus pais ficavam preocupados, onde você estava?

R – Não, então, isso de chegar depois do horário era na adolescência, já era adolescente pra fase adulta. Antes disso, não. Antes disso, era brincar na rua, a mãe saía na porta e me via lá jogando bola. Não saía daquilo, eu não sumia, estava ali. A única coisa é que demorava pra entrar em casa.

P/1 – E, nessa adolescência pra vida adulta, que o senhor já tinha sua chave, onde estava que não chegava a tempo em casa?

R – Como eu estava por volta de 18 anos, 19, estava descobrindo a cidade de São Paulo. Então, no final de semana, a gente saía muito. Eu e os amigos, a gente combinava e se reunia pra sair no final de semana. Lembro que alguns tinham carros. A gente se juntava e combinava a ida a alguns lugares, e nós íamos mesmo. Era muito interessante, nós íamos a cinemas, a gente ia pra casas noturnas. Eu lembro que a gente ia muito, na época, em forró, casa de samba, indo mesmo atrás das meninas, das paqueras, era uma coisa assim. Ia muito também em casa de rock, a gente gostava muito de rock’n’roll, e tudo isso acabava tarde, tudo isso acabava tarde. E eu lembro que eu chegava tarde por isso. A gente ficava no sábado à noite até duas, três horas fora, da manhã. E não tinha perigo como tem hoje. Naquela época, não tinha, era tranquilo. E é por isso que eles ficavam: “Nossa, onde você estava até agora, o que aconteceu?”. Porque não tinha telefone aquela época, não tinha como avisar, a gente só falava: “Estou saindo, não sei que horas chego, que horas volto”. Só que eles ficavam esperando, principalmente minha mãe. E era assim.

P/1 – E, aí, eu cortei o senhor quando você falou da preocupação em procurar um emprego, um trabalho. Como você decidiu ir em busca de um trabalho, de uma profissão?

R – Então, esse é um caso à parte, porque, na época e até hoje é assim, o primeiro emprego no Brasil sempre muito difícil, muito. Isso é uma coisa que infelizmente não muda e ninguém se preocupa com o primeiro emprego do jovem. E eu lembro que eu, ao mesmo tempo que procurava emprego, estudava. Meu pai falava assim: “Olha, você quer fazer uma faculdade? Pode fazer. Eu banco essa faculdade pra você, você escolha aí”. E eu, completamente perdido, não sabia o que estudar, eu não sabia o que eu queria. Sabia o que eu não queria, e eu achava sempre o trabalho uma coisa muito ligada à obrigação e não ao prazer. E eu falava: “Quero fazer uma coisa que eu gosto, senão, não vou fazer”. E, ao mesmo tempo, a pressão da família. Eu lembro que eu prestei vários vestibulares na década de 70, final da década de 70, e entrei em várias faculdades, pois eu não fazia a matrícula. Teve uma que eu fiz, foi a Universidade Mackenzie, eu entrei em Direito lá. Não que eu quisesse Direito, é porque não tinha matemática direito. Eu ia me inscrever em quê? Falei: “Vou fazer Direito que não tem matemática”. Depois, eu me enganei, eu vi que tinha! E eu passei na primeira lista, na parte da manhã era. Nossa, eu passei! Meu pai adorou, meu tio! “Que maravilha, advogado, que bacana!” E eu: “Nem sei o que é isso. Bom, vou começar pra ver o que eu acho”. Comecei. Não gostei nada, achei horrível aquilo. Primeiro ano é básico. Então, é muita conversa mole, aqueles professores muito idosos contando a vida deles. Professores muito ruins, alguns até meio estranhos, e eu não me enturmei no Mackenzie, não gostei da universidade, não gostei dos estudantes. Eu achei eles muito diferentes, não eram muito sociáveis, não tinham aquela coisa de formar uma turma, nada, nada. Fiquei muito deslocado e comecei a ter uma ideia de que a universidade era boa, era bem conceituada, embora eu achasse as aulas muito ruins, achava muito ruins. Aí, tive aula de contabilidade, acabei encontrando a matemática, né? Aquilo começou a me incomodar, incomodava muito. Falei: “Não é o que eu quero e não vou fazer o que não quero”. Eu saí, eu larguei o curso, fiquei dois meses e meio, cheguei para o meu pai e falei: “Olha, você não vai precisar pagar mais porque eu estou saindo, não gostei daquilo. Não gostei das pessoas, não gostei dos professores, nada! Vou fazer outra coisa”.

P/1 – E ele?

R – Ele ficou arrasado. Ele, o meu tio... Ficou. “Pois você vai fazer e vai pagar com o seu dinheiro, eu não vou pagar! O que você vai fazer?” Eu falei: “Olha, vou fazer propaganda e marketing”. E foi aí que eu entrei na Escola Superior de Propaganda e Marketing, que na época era na Bela Vista, porque eu pensava assim: “Tem a ver comigo, tem a ver com criatividade, tem a ver com anúncios, tem a ver com cinema, tem a ver com muita coisa bacana, com coisas que eu gosto, com escrever também. É isso que eu quero”. Fui lá, prestei vestibular e entrei de cara. E meu pai continuou irredutível. Aí, o que aconteceu? Eu entrei, eu lembro que consegui emprego na área, com muito sacrifício. Cheguei a trabalhar em duas agências de propaganda, trabalhei um ano e meio, juntando as duas, e com isso consegui pagar a faculdade por um ano e meio. Aí, fiquei desempregado, foi na década de 80, foi no governo Sarney, foi a pior crise econômica que nós enfrentamos, muito pior que essa. Que eu fiquei cinco anos desempregado. E eu, me vendo desempregado, o que aconteceu? Eu tive que trancar matrícula. Tranquei matrícula. Fiz amizades ótimas lá dentro, pessoal muito bacana, professores bacanas, só que não tinha como pagar, não tinha crédito educativo na época, não lembro disso. Aí, o que aconteceu? Ao mesmo tempo, os meus pais estavam se mudando de novo, meus pais estavam indo para o interior de São Paulo, para Rio Claro, e eles falaram assim pra mim: “Olha, essa casa aqui na Zona Norte vai ficar aqui, alugada”, que meu pai iria se mudar pra lá, mas viria de vez em quando pra São Paulo a trabalho. Mesmo depois de aposentado, ele continuou trabalhando um tempo. “Se você quiser ficar aqui em São Paulo, você fica, se você quiser ir pra Rio Claro com a gente, você vai, só que você vai ter que arrumar um jeito de se manter aqui em São Paulo. Você pode até ficar aqui na casa.” Eu não tinha como me manter e acabei indo pra Rio Claro, a contragosto. Fui! Outra experiência pra mim, né? Fui pra lá, não tinha emprego e não estudava. Ficava lá, vinha no fim de semana pra São Paulo pra curtir a parte cultural, que eu sempre gostei em São Paulo. Aproveitei muito, muito essa parte. Muita coisa de graça! E voltava durante a semana pra Rio Claro e ficava lá. Aí, o que aconteceu? Lá, eu comecei a conhecer pessoas, e essa parte de propaganda lá estava começando, tinha uma coisa ou outra, tinha umas agências, uma aqui e outra ali. Tudo muito ingênuo ainda, com pessoas bacanas a fim de alguma coisa, ganhar algum dinheiro. E, aí, eu conheci um pessoal, e a gente montou uma pequena agência lá na cidade. Não conseguia cliente, o pessoal não estava acostumado com isso. Eles não acreditavam na gente, os comerciantes, né? A gente não arrumava cliente, não conseguia levar adiante aquilo. Eu lembro que não ganhava nada, não ganhava dinheiro com aquilo. Aí, surgiu, em 86, foi a primeira eleição democrática no Brasil, foi quando vários candidatos surgiram e queriam fazer propaganda deles. E foi aí que a gente começou a ganhar algum dinheirinho, a fazer santinho, veicular propaganda do pessoal na rádio, TV, mas, mesmo assim, não ganhava muito dinheiro, porque os políticos não pagavam. Eu lembro até hoje, não me esqueço disso. Era muito divertido, que a gente tomava muita cerveja e toda noite ia para o barzinho, conversar sobre propaganda. E eu lembro que a gente conseguiu, com muito custo, comprar um jipe. E a gente queria o jipe pra curtir, a gente ficava andando pela cidade de jipe. Um jipe velho, barulhento e tal. E era tudo curtição, mas emprego mesmo, dinheiro, nada disso deu certo, né? Tanto é que chegou uma hora que acabou. A gente teve que fechar tudo, e cada um cuidou da sua vida. Alguns passaram a trabalhar em casa e tal.



P/1 – Tinha um nome essa agência?

R – Então, chamava Numa, Numa Publicidade. Um colega que criou, o desenhista, aliás, muito bom desenhista. É um cara assim, que eu tive uma amizade por ele, uma pessoa muito interessante, uma pessoa muito simples que nunca saiu do interior, mas que desenhava muito bem e trabalhou com propaganda em Ribeirão Preto. E ele passou a trabalhar com a gente lá de Rio Claro, que ele era de Rio Claro, né? E eu lembro que era um cara que não tinha nem documentos. Ele não tinha. Não tinha nem RG, não tinha nada. Era um cara assim bem descolado e tal, mas não tinha malandragem. Naquela época, não existia essa coisa de malandragem. Era uma coisa meio romântica, aquele cara ligado às artes e tal. Então, quando a gente se conheceu, deu tudo a ver. A gente se entrosou muito, um frequentava a casa do outro. E foi muito rico isso aí. Talvez mais pra ele do que pra mim até. E hoje esse colega ainda está lá. Não tenho mais contato com ele, está em outra situação hoje. Então, eu tive que voltar pra São Paulo depois disso. E eu lembro que foi em 85. Não lembro, por aí. Foi na década de 80 que eu acabei, até por dificuldade em arrumar emprego, prestando um concurso publico no Ministério da Fazenda. Foi, e eu passei. Passei porque, naquela época, não era tão complicado como é hoje passar num concurso público. Eu lembro que nem estudei, fui lá, prestei e passei. E eu falei: “Pô, passei”, me chamaram e eu: “Vou trabalhar! Nem acredito nisso! Vou trabalhar, coisa boa!”. E eu continuei indo pra Rio Claro, até encontrando esse pessoal, mas trabalhando aqui. E era um concurso público que eu lembro que, na época, não existia o que tem hoje de terceirizados. Que hoje você vai numa repartição pública e você tem os terceirizados, são contratados pra trabalhar ali. Naquela época, era um concurso público temporário, para dois anos. E eu fiquei dois anos trabalhando ali na Prestes Maia, no Ministério da Fazenda, muito bom, gostei muito. Muito embora seja algo burocrático, mas eu já estava me desligando da publicidade, já não estava mais gostando tanto. Eu passei a ter um senso crítico maior por causa do marketing e tal, que era uma coisa que me parecia muito nociva. Eu passei a não gostar muito, comecei a me desligar disso. E eu me envolvi lá com o serviço. Era um serviço ligado à parte alfandegária do Ministério da Fazenda, apreensão de contrabandos. E fiz amizade com um pessoal muito bacana, muito legal, que eu gostei muito, muito, muito, me envolvi. Conheci pessoas legais –

hoje já não tenho mais contato com eles, né? E, aí, quando eu estava assim, meu contrato estava pra terminar, eu prestei outro concurso. Prestei vários concursos, né? E eu prestei e entrei. Lembro que era um concurso pra previdência, pra trabalhar na previdência. Eu passei, e eles me chamaram, não pra trabalhar na previdência, mas sim no Ministério do Trabalho. Fui deslocado pra lá, até levei um susto: “Mas não era aqui que eu pretendia!”. Fiquei meio assim, mas, de qualquer forma, não posso recusar porque era minha chance de continuar empregado. E eu aceitei, entrei lá e estou até hoje lá no Ministério do Trabalho. O começo foi muito difícil e tudo, mas hoje eu estou muito satisfeito. Faço o que eu gosto, descobri uma outra profissão, que muito técnica, e que eu me encontrei também. E hoje eu trabalho nessa área lá, dentro do próprio ministério, uma área bem técnica e espero me aposentar nisso.

P/1 – Qual o nome da área, Seu Carlos?

R – Então, é com segurança do trabalho, segurança e medicina do trabalho. Eu entrei nesse setor lá dentro e trabalho com médicos e engenheiros, todos dessa área de segurança do trabalho. E eles são auditores fiscais, fiscalizam empresas. E eu lembro que entrei lá e não conhecia nada. Eu não conhecia nada e eu falei: “Pô, preciso saber o que estou fazendo aqui, eu quero saber o que é isso”. Tinham várias siglas, vários termos técnicos, tem toda uma legislação. Aí, na época, tinha um delegado regional do trabalho. Hoje, já chama superintendente. Eu conversei com ele e pedi uma bolsa de estudos pra fazer o curso de técnico em segurança no Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial], e ele me deu uma bolsa de estudos de 100 por cento. Eu fiz toda a formalidade, tudo direitinho, e eu consegui. E fiz esse curso lá no Senac do Tatuapé. Foi muito bom, fui melhor aluno da classe e tudo. Eu nunca me esqueço. Até hoje, lembro que tive sete médias dez, que eu fechei o curso e eu era muito bem tratado lá por ser do Ministério do Trabalho. Eu era uma autoridade ali dentro. Então, eu tinha essa responsabilidade de passar uma imagem boa, porque o serviço público tem uma imagem tão ruim por aí. E eu queria passar essa imagem boa. E acho que passei. E eu lembro que eu fiz esse curso e, aí sim, passei a entender do assunto, passei a trabalhar com mais prazer.

P/1 – E como era esse dia a dia no trabalho? Você tinha contato com quê?

R – Então, eu tinha contato com público que ia lá tirar duvidas, prestar queixas e entregar documentação. Eu tinha contato com os colegas lá, os servidores, os auditores. Com o administrativo. Eu era administrativo lá, sou até hoje. E era uma coisa muito rica, porque ao mesmo tempo eu aprendia mais ainda com eles, que eram pessoas muito, muito gabaritadas, muito boas, pessoas referências no Brasil, que lançaram livros. E eles fizeram as normas técnicas, os que estão lá comigo. Eles que criaram as normas. Escreveram as normas, não só eles, tem mais pessoas no Brasil todo. Mas eles que fizeram e, muitas vezes, antes de sair publicado, mostraram pra mim: “Vê o que você achou!”. E era muito legal, sabe? Sempre fui tratado de igual pra igual. E eram pessoas de nível muito bom. Eles recebem até hoje um salário muito bom também e são pessoas simples, bacanas, muitos já aposentaram, alguns estão comigo ainda. Então, era um dia a dia muito dinâmico, e eu sempre fui uma pessoa muito dedicada, sempre fui. Se o governo não oferece uma infraestrutura, eu vou ter que criar uma infraestrutura pra isso aqui funcionar. Então, eu, em conjunto com um médico lá, nós criamos vários arquivos, criamos vários procedimentos próprios, entre nós. Nós tínhamos, a partir do ano 2000, informatização, computadores. Antes disso não, antes disso era máquina de escrever. E, com o computador chegando, tudo ficou mais fácil. A gente conseguia contratar empresas pra criar um programinha pra cadastrar processos, pra gente ter ideia pra onde está indo o processo, com quem está aquilo. Porque tudo ali é através de processo, né? O meio de comunicação lá dentro é esse. Entra um processo, um protocolo, e ele faz um caminho, e a gente precisa ter isso tudo sob controle. E, então, eu fazia essa parte de cadastrar as coisas no computador.

P/1 – E como foi esse primeiro contato com o computador?
R – Então, o computador antigamente era diferente. Era uma coisa muito mais simples, era uma tela preta e você basicamente inseria dados, nada a mais do que isso. Então, eu lembro que o programa era um programa de cadastro, onde você inseria dados de determinados locais e pronto, estava cadastrado. Era repetitivo e muito simples. E a única coisa é que tinha muita coisa pra cadastrar, pilhas e pilhas de coisas. E eu ficava lá, cheguei quase a ficar com LER/Dort [Lesão por Esforço Repetitivo/ Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho] até, de tanto digitar. Eu, por muito pouco, lembro que chegava a doer o braço, tal, mas nunca tive que parar por causa disso. E, hoje, não, hoje já modificou muito, pra melhor.

P/1 – E nesse caso vocês tinham algum procedimento pensando no funcionário?

R – Então, não tinha, não existia isso. Eu lembro que

o procedimento seria não digitar tanto, dê um intervalo, tal, fazer pausa. Era o que eu fazia, mas ao mesmo tempo tinha coisa pra fazer, então, não dava pra ficar parado muito tempo. Mas eu consegui contornar bem isso. Segundo os especialistas, o meu perfil favorece a não pegar a LER/Dort. Eles falavam: “Ah, você é uma pessoa calma, você é uma pessoa que não é tensa, é uma pessoa que não é ansiosa, nada, talvez por isso você não tenha ficado com maiores problemas e tal”. Que bom, né? Isso foi na época, hoje modificou mais pra melhor.

P/1 – Seu Carlos, nessa época que o senhor voltou pra São Paulo e prestou concurso, o senhor morava onde?

R – Eu morava ainda na Zona Norte, no bairro da Água Fria.

P/1 – Mas seus pais não deixaram...

R – Aquela casa, uma casa alugada, numa área residencial da Zona Norte, ficou alugada por 17 anos essa casa, a mesma casa. Então, aquela casa era o local onde a gente morava em São Paulo. Aí, chegou uma hora, meu pai fica indo e vindo pra São Paulo, do interior pra São Paulo, de São Paulo para o interior. Chegou uma hora que ele deixou de vir, ficou mais pra lá no interior e eu passei a ficar nessa casa. Eu pagava o aluguel, pagava luz, água, tudo. Ficava lá, então, a partir de lá que eu ia trabalhar, era assim, desse jeito.

P/1 – E como foi parar de morar com a família e assumir a vida sozinho? Teve alguma dificuldade?

R – Então, a única dificuldade foi quando meu irmão saiu de casa, que eu morava com ele. Porque meu irmão, ele se casou, conheceu uma pessoa, se casou e foi pra Santos. E eu sempre fui muito ligado a ele e ele a mim. É uma coisa muito forte entre nós, uma amizade muito forte, uma coisa muito legal de nós termos os mesmos amigos, saía pra mesma coisa, fazia a mesma coisa e, às vezes, nós usávamos até a mesma roupa! Porque o corpo era o mesmo e tudo, um emprestava para o outro e tudo. Então, quando ele saiu, eu lembro que senti muito, senti muito, porque a gente estava muito apegado um ao outro. Por um lado, foi até bom, mas, por outro, foi muito sofrido, porque ele, eu acho que percebeu: “Preciso ter minha vida própria, eu conheci alguém, gostei, essa é a chance que vou ter de seguir um outro caminho”, e ele fez isso. Eu achei que iria ficar tudo bem, mas não. Eu comecei a ficar muito mal, senti muito, fiquei deprimido, fiquei muito deprimido e comecei a ter a ideia que era por isso, que era pela ausência dele que eu estava deprimido. E no começo eu ia muito pra Santos, ficava com ele lá no apartamento, ia muito pra lá. Mas chegou uma hora que ele falou: “Olha, eu tenho minha vida aqui, não dá pra você vir todo fim de semana pra cá. Acaba interferindo”. Ele tinha até razão. E eu lembro que isso foi muito duro pra mim, muito duro, foi muito difícil pra mim isso aí. Eu tive que também tomar uma providência, seguir o meu caminho. Foi aí que Deus acho que sabe o que faz, né? Foi aí que eu conheci a Sônia, com quem eu tive essa filha, tivemos um relacionamento e a partir daí nós estamos juntos. Foi graças a isso que eu descobri, que nasci pra vida de novo, pra uma outra vida. Como se tivesse virado uma página. E foi aí que minha vida mudou. Claro, tem sempre seus problemas, nada é 100 por cento bom, claro. Mas eu tenho mais coisas boas pra falar que ruins dessa vivência.

P/1 –

E como o senhor a conheceu?

R – Então, na época, foi numa escola de ioga. A gente se conheceu lá. E a partir daí, aos pouquinhos, a gente foi se entrosando. Ela era separada há alguns anos e tinha uma filha do casamento anterior e estava também procurando alguém. Aí, deu certo. Ao mesmo tempo, eu estava muito carente, extremamente carente, e aquilo, aquele acolhimento dela foi muito bom, foi muito bom. E aquilo me fez muito bem, muito bem. Eu tive que aprender a viver em família ali, né? Que eu não tinha ideia como era, sempre fui muito sozinho, sempre fui muito na minha. Tive que crescer como pessoa ali, virar adulto mesmo, ainda mais com a nossa filha nascendo, tive que aprender a ser pai, procurando sempre, querendo sempre aprender, porque era um mundo novo pra mim aquilo e foi muito interessante. Foi muito bom.

P/1 – Posso voltar?

R – Pode.

P/1 – Foi numa escola de ioga?

R – Foi.

P/1 – Desde quando o senhor pratica? Como foi essa decisão de começar?

R – Então, eu pratiquei 13 anos de ioga, seguidos, até que chegou uma hora que resolvi parar, mas sempre estive muito ligado nessa parte de filosofia oriental. Fiz cursos de filosofia oriental, de metafísica, sempre gostei muito disso, sempre li muito a respeito disso. E também cheguei a participar do movimento Rosa Cruz também. E a ioga veio junto com tudo isso, por ser algo também que tem a ver comigo, é uma coisa mais tranquila, tem o lado espiritual que eu gosto. Então, aquilo caiu como uma luva pra mim. E eu fazia e era sempre um prazer fazer aquilo. Então, por isso até hoje estou ligado, fiz muita meditação zen-budista num templo da Liberdade, num templo japonês lá, muitos anos eu fiz lá, quatro anos. E hoje eu faço numa academia de ioga perto de casa essa mesma meditação. Eu faço.

P/1 – O senhor consegue descrever pra mim as sensações de realizar uma meditação ou até antes talvez, desde o preparo do corpo e o momento da meditação?

R – Então, isso é o tipo da coisa... A meditação zen-budista é o tipo da coisa que você não tem que focar nas sensações, você tem que apenas praticar. Porque é assim: você vai praticar a meditação, que eles chamam de meditação zen-budista, você faz essa meditação normalmente em conjunto com outras pessoas, você faz sentado, geralmente numa almofada, que eles chamam de zafu, e voltado pra uma parede branca. E, quando você faz a meditação, fica todo mundo em silêncio e você tem que aquietar a mente. Não tem que prestar atenção em sensações. As sensações vêm e você deixa passar e você tem que buscar o vazio. E você, olhando pra parede, aquela parede até facilita pra você focar no vazio. E aí o que acontece? A mente tende a encher de pensamentos e você não tem que lutar com esses pensamentos, tem que deixar eles virem e eles naturalmente vão embora. Até que chega uma hora que sua mente aquieta. Sua mente fica calma, quieta, e, aí, você sente. Se tiver que sentir alguma coisa, seria uma paz muito profunda. É como se você fosse uma pessoa neutra ali, sentada. Eu lembro que eu praticava uma hora e meia de meditação, fazia meditação andando também, que tem meditação andando, que eles chamam de kinhin, os japoneses. Mas hoje em dia eu pratico mais a sentada. Hoje, já colocam música e tal, mas no templo japonês não tem música. Você tem o monge, que ele anda por detrás da gente, verificando como você está, que tem pessoas que dormem, que caem de lado, e ele vai pra corrigir as posturas. E a comunicação do monge com a gente, se é através de sinos, eles tocam sinos, mostrando quando inicia e quando termina. E depois, quando termina, você tem uma sensação de plenitude. É uma coisa... Principalmente quando você faz durante anos, a impressão que dá é que a sua mente está, como se diz, aquietada, como se você tivesse a mente no devido lugar. Ela não está rebelde, ela não está fora de controle, você não tem aquele monte de pensamentos descontrolados. Isso não existe mais e ao mesmo tempo você não somatiza mais, seu organismo não sente tantas coisas devido ao emocional. Isso corta, é muito interessante. É um prazer muito bom, eu lembro com isso aí.

P/1 – O senhor se lembra das primeiras vezes que tentou fazer meditação?

R – Lembro, lembro. Foi uma época difícil pra mim, que foi naquela época que meu irmão saiu, eu me sentia muito só, e a meditação me ajudou demais, me ajudou demais mesmo. Eu lembro que eu ia lá praticar e achava muito bom porque tinha tudo a ver comigo. Eu não me sentia assim: “Nossa, o que estou fazendo aqui?”. Muitos japoneses em volta, monges e tal e algumas pessoas assim como eu, num casarão muito antigo que hoje já não existe mais. Hoje é um templo muito bonito lá. Então, eu aguardava ansiosamente pra fazer a meditação, que eu lembro que eu fazia a meditação no sábado e tinha, na terça-feira à noite, a conversa com o monge que eu ia lá. E o monge sentava numa mesa, ao redor de uma mesa, e a gente podia fazer perguntas pra ele e ele respondia. E praticava em casa também, todos os dias antes de sair de casa.

P/1 – O senhor lembra de alguma resposta que recebeu do monge e que tenha sido...

R – Não lembro, eu não lembro. Também não perguntava muito, eu mais ouvia as perguntas dos outros, eu deixava os outros perguntarem e tal. Mas sempre tinha muita resposta interessante, sempre.

P/1 – Seu Carlos, como foi feito esse primeiro convite? Como o senhor chegou na meditação?

R – Então, eu sempre fui uma pessoa que procurei descobrir as coisas e eu sempre estava ligado ao esoterismo, a essa parte mais mística, religiosa, espiritual. Então, isso veio junto, eu ia atrás desses lugares. Eu visitei vários templos budistas, porque eu tinha curiosidade e, aí, eu descobri esse templo na Liberdade. E eu fui lá e vi que ele era aberto à população, até hoje é. Logo depois, foi a Monja Cohen lá, que eu pratiquei muito com ela, durante anos. Depois ela saiu de lá, mas eu pratiquei e a conversa com o monge era com ela. Cheguei a participar de várias conversas com ela. E foi assim.

P/1 – E o senhor lembra do primeiro dia que conheceu ou que viu a sua esposa?

R – Lembro.

P/1 – Consegue contar essa cena como foi?

R – Então, uma cena que eu lembro mais era quando eu ia no emprego dela. Que era na Paulista, no emprego dela. E eu ia esperar por ela. Eu lembro que ela saía do emprego, e nós íamos juntos pra casa, porque, depois de um tempo, nós passamos a morar juntos. E morar junto era na casa dela na Zona Leste. Eu lembro que a gente tinha muito disso, de se encontrar no trabalho dela e de lá irmos juntos, à noite, pra casa. E eu lembro até que, depois de um tempo, eu saí da Zona Norte e passei a morar lá. Entreguei a casa depois de 17 anos. Entreguei aquela casa, devolvi a casa pra imobiliária.

P/1 – O senhor se lembra da última noite nessa casa?

R – Não, não lembro. Não lembro, não. Lembro que tinha uns móveis velhos, que a gente teve que doar tudo, uns móveis muito antigos lá, que eram dos meus pais ainda. Os meus pais moraram lá, a família toda morou nessa casa. Depois eles saíram, então, ficaram alguns móveis. Cama, guarda-roupa, lembro que tinha mesa, tinha algumas coisas que, como a gente ia entregar a casa, tinha que doar aquilo, não podia deixar lá dentro. E eu lembro que arrumei uma pessoa e que a pessoa ficou com aquilo.

P/1 – E como foi o começo da sua vida de casal?

R – É, então, foi muito bom, né? Foi muito bom, eu estava aprendendo muito. Pra mim, tudo era novo e aprendendo com quem já conhecia, porque a Sônia saiu de um casamento e tudo. E ela me acolheu muito bem e me entendeu muito. E percebeu a situação que eu estava vivendo, tudo que eu passei. Então, foi muito rico, foi muita informação, muita coisa acontecendo. E foi tão bom pra mim, pra você ter uma ideia, que, depois desse encontro, desse companheirismo, eu engordei 26 quilos. Eu era muito magro, eu lembro que, quando eu conheci a Sônia, eu tinha 57 quilos. Eu cheguei a 80 e poucos, no decorrer de alguns anos. A impressão que eu tive é que aquilo estava me fazendo bem, que por isso que eu melhorei tanto, em todos os sentidos. Então, foi bom, foi muito bom!

P/1 – Tem algum momento ao lado dela, alguma vivência, alguma viagem que o senhor queira contar?

R – Eu acho que todas as vivências foram boas, todas, todas. Todas foram boas. Nada demais, nada de espetacular, tudo dentro de uma normalidade que muita gente vive, que pra mim era novidade aquilo. Eu nunca fui uma pessoa de ter várias namoradas e ter vários casos, nunca fui.

P/1 – E como foi apresentar a Sônia para os seus pais?

R – Então, eu não lembro direito como que foi isso, faz muito tempo isso. Mas meus pais acho que gostaram, acho eu que gostaram dela. Porque ela é uma pessoa muito ativa, muito de ajudar todo mundo, muito prestativa, de fazer as coisas, de tomar a iniciativa. Vê algo errado e não deixa como está, vai lá, acerta. É uma pessoa assim até hoje. E lembro que meus pais eram doentes, muito doentes, e eles tinham grandes dificuldades entre eles mesmos, brigavam muito. Meus pais brigavam muito, tinham muito desentendimento entre eles. Então, tudo isso atrapalhou um pouco de perceber o resto. Mas, com certeza, devem ter gostado porque ela ajudou, fez muita coisa lá pra eles, no interior, na época.

P/1 – E vocês chegaram a celebrar de alguma forma essa união?

R – A única coisa que a gente fez foi ir num cartório fazer um tipo de um termo de compromisso que existe entre nós, registrado num cartório, que a gente está junto e tal. Eu lembro disso, que a gente fez esse tipo de coisa, mas nada além disso.

P/1 – E o senhor mostrou pra gente fotos da Andreia. O senhor pode contar como foi esse início de relacionamento? Como foi se aproximar da Sônia, e a Sônia ter uma filha?

R – Então, Andreia era uma menina muito doente quando eu a conheci. Ela tinha 12 anos, tinha problemas de saúde até devido à separação dos pais. Ela era uma menina tristonha, uma menina muito carente e, mesmo assim, muito sensível. E eu lembro que ela ficou meio assim, foi uma coisa muito nova pra ela esse tipo de coisa. E a gente procurou se aproximar, a gente até se aproximou, acabou se entendendo. Nós saíamos todos juntos, viajávamos juntos. E foi uma coisa boa. Não chegou a ser uma coisa muito próxima, muito carinhosa, mas foi uma coisa que tinha um lado de amizade, tinha um lado de conversa, de procurar um ouvir o outro, mas eu respeitando muito o momento dela, respeitando muito o que ela acha, sem forçar nada, procurando não bancar nenhum pai pra ela, nada disso. Sabendo que ela tinha um pai vivo, tem até hoje, que é o verdadeiro pai dela e tudo, respeitando muito isso. Então, foi uma coisa que eu tenho, hoje em dia, uma ideia melhor do que ocorreu na época, depois de muitos anos, que hoje a gente se relaciona ainda e ela me apresenta para as pessoas como padrasto dela. Embora ela tenha o pai dela vivo, então, é interessante isso. E é uma pessoa que hoje em dia é muito bem sucedida na vida, e a impressão que dá é que está muito bem resolvida. Eu fiquei feliz, porque não esperava que ela fosse se dar tão bem na vida, porque ela sofria muito, ela passou por momentos tão difíceis, eu achei, que eu fiquei torcendo pra que desse certo. E, graças a Deus, deu certo. Tá dando certo.

P/1 – E como foi descobrir que o senhor seria pai?

R – Ah, foi uma alegria muito grande. Uma surpresa, uma alegria, eu fiquei... Eu queria isso, era uma coisa que eu queria muito. Porque fazia parte de todo o pacote ali, eu nunca fui uma pessoa irresponsável: “Ah, estou aqui só momentaneamente!”. Embarquei de cabeça naquilo, então, foi muita felicidade. Eu lembro que me preparei pra isso! Eu nunca me esqueço que comprei 24 pacotes de fraldas, punha tudo em cima do guarda-roupa já esperando a chegada. Além das roupinhas de criança, essas coisas.

P/1 – O senhor lembra quando a Sônia contou que estava grávida?

R – Lembro.

P/1 – Como foi?

R – Que ela contou, ela contou, eu nunca me esqueço. Foi na sala, ela toda preocupada porque ela passou por momentos difíceis no parto da Andreia. Parece que não foi cesariana, não, ela sofreu muito. Então, estava com medo de sofrer de novo. No final, foi tudo bem, foi tudo bem. Foi cesariana numa maternidade muito boa e tudo, com a médica que ela escolheu.

P/1 – E como ela contou, Carlos?

R – Ela falou que eu ia ser pai, mas, assim, nervosa. Não foi alegre. Toda nervosa, com medo! Quem ficou alegre fui eu, fiquei sozinho alegre ali!

P/1 – (risos)

R – Não sei se ela queria que eu compartilhasse o medo dela, mas eu fiquei muito feliz com aquilo. Foi muito bem-vindo, sem dúvida.

P/1 – E como vocês escolheram o nome?

R – Então, foi uma amiga da família, uma amiga listou vários nomes, e a gente na hora escolheu esse. Porque eu pensei: “Eu tenho a cidadania italiana, sou italiano e brasileiro”. Eu falei: “Vou passar pra Giulia isso no futuro, e eu já vou colocar um nome em italiano pra facilitar. Se um dia ela quiser ir embora pra Europa, pra Itália, pra onde ela quiser ir, ela pode ir”. Então, um nome curtinho, fácil de falar e tudo, a gente na hora concordou com isso. Ah, e o pai da Sônia também é italiano, inclusive, vivo ainda, tem quase 100 anos já. Mora em Manaus, também italiano. Então, tudo facilitou.

P/1 – Muito bem, a gente está caminhando para o final, Carlos. Você tem alguma história que queira contar pra gente, que eu não perguntei?

R – Tenho.

P/1 – Por gentileza, então...

R – Eu tenho uma história minha que é ligada à literatura. Eu sempre gostei muito de escrever e eu fiz várias oficinas literárias, fiz quatro oficinas literárias e participei de vários grupos literários, que se reuniam pra escrever. Ganhei vários concursos literários também. E eu escrevia pra colunas literárias de vários jornais do Brasil. Isso lá no passado, né? E também fui sócio da União Brasileira dos Escritores, a seção de São Paulo, frequentava toda terça-feira a ala dos escritores independentes. Era uma turma que frequentava a União Brasileira de Escritores, assim como muitos escritores velhinhos, conservadores e tal. E a gente ia lá pra quebrar um pouco isso, e era muito bom, muito bom isso. Eu lembro que eu participava de diversos encontros, junto com amigos meus que escreviam muito bem, de saraus literários eu participei, fui selecionado em oficinas literárias como um dos escolhidos pra fazer. Quem coordenava eram escritores, e eu era muito elogiado pelos colegas e ficava muito contente de ver que eles gostavam do que eu escrevia. Eles falavam: “Você é um escritor pronto já, você tinha que ser publicado. Você tem todo um futuro pela frente”. E eu gostava muito disso, eu fazia mais a ala poética, da poesia. Poesia em prosa! E também conheci muita gente boa, que não tem nome aí, que escreve muito bem também.

P/1 – Quando o senhor se descobriu escritor?

R – Então, eu me descobri sozinho, em casa, começando a escrever. Aquilo funcionou no início pra mim como uma terapia. Era uma maneira de pôr pra fora tudo aquilo que eu estava vivendo e sentindo. E era um desabafo. E eu comecei a escrever e gostar do que escrevia, eu passei a... “Pô, vou ter que me informar mais a respeito.” Comecei a ler livros de semântica, livros de literatura, de como aperfeiçoar a escrita e tal. E depois eu passei a frequentar oficinas literárias. Frequentei a Casa de Cultura Oswald de Andrade, o Museu Lasar Segall, o Senac teve uma também, Centro Cultural também teve, Biblioteca Mário de Andrade. Teve até uma que iniciei pouco tempo atrás e acabei não continuando, que eu não estou conseguindo escrever mais, estou com um certo bloqueio, mas tenho tudo escrito e guardado.

P/1 – E tem um tema que o senhor goste ou que te inspire mais a escrever?

R – Então, é a realidade em que eu vivo. É a minha realidade, as coisas do meu dia a dia, do Brasil, que o Brasil passa, as pessoas, amigos meus, colegas de trabalho. No serviço público, não tanto hoje em dia, mas antigamente tinham pessoas muito interessantes trabalhando lá, pessoas muito diferentes da iniciativa privada. Aquilo eram personagens pra mim, eu escrevia sobre eles. Fazia crônicas sobre eles e eu mesmo hoje trouxe umas duas ou três poesias. Se quiser que eu leia... Está na minha blusa.

P/1 – Com certeza, o senhor vai ler pra gente!

R – É, então, pra ilustrar isso. Eu peguei aleatoriamente, umas que eu escrevi muito tempo atrás. Tem uma aqui que eu escrevi na época que morei em Rio Claro e eu procurava vivenciar muito o dia a dia da cidade. E eu tinha muito relacionamento com os estudantes da Unesp [Universidade Estadual Paulista], porque o pessoal mais interessante da cidade era esse pessoal. Eu frequentava repúblicas mesmo não sendo estudante, assistia aulas na Unesp e tudo. E eles faziam muita festa junina e eu lembro que escrevi uma poesia chamada “Fogueiras de Rio Claro” dessa época. Então, desse jeito:

Acender fogueiras de Rio Claro
com o vinho das madrugadas de lua cheia de gritos.
Crianças dentro de homens,
gatos dento de leões,
cães dentro de lobos.
Pegávamos o mundo nas mãos e jogávamos.
Jogávamos rua abaixo
e com a alma em fogos
dançávamos.

Esta é uma dessa época, da festa junina. Uma outra poesia, essa deve ser daqui de São Paulo, chamada “Solidão”:

A noite era um frio metal,
toda ela cheia de alfinetes de chuva
a umedecer as luzes dos postes da rua,
e onde o tempo não passava,
de um cachorro seguindo o seu bêbado.
Um farol de carro luzia bem ao longe,
feito uma vela para a noite.
Vindo, vindo, vindo, mas nunca, nunca chegando.

Tem mais, se quiser que eu leia!

P/1 – Por favor! “Cachorro seguindo seu bêbado” é sensacional! Muito bom.

R – Tem uma aqui que chama “O Tempo”:

É a poeira cobrindo o que já fomos,
feito dias caindo sobre os móveis.
Feito horas amarelando papéis,
feito segundos dos nossos sorrisos.
São esses anos todos tirando-nos os nossos pais.
São fotografias revelando que já fomos noite e hoje somos dia.
É esse tempo que nos cobre.

E tem mais uma só, esta chama “Você”:

Lembranças de um rio que um dia me existiu
e que hoje é uma estrada que não me leva mais ao mar.
Lembranças de um céu com pássaros e que hoje me é chumbo.
Lembranças de você que me escorreram pela mãos e voaram pelo ar.

Acho que são essas poesias aí.

P/1 – E

o concurso que o senhor ganhou foi de contos?

R – De poesias, concurso de poesias, na época. Eu lembro que participava de muitos concursos, e era tudo datilografado, tinha que datilografar. Eu lembro que comprei minha máquina de datilografia, e ia datilografando e mandando. E também me correspondia com alguns colegas que escreviam também. E foi muito bom, muito interessante.

P/1 – E tinha prêmios para o vencedor?

R – Ah, o prêmio era assim: mandavam um diploma com o nome que ganhou! Mandava uma coletânea de poesias, a sua poesia junto. Não era nada assim, não tinha prêmio em dinheiro, nada disso. Na época, muito tempo atrás, mas mesmo assim foi muito bom.

P/1 – Queria que o senhor falasse sobre esse bloqueio que o senhor passa hoje na escrita.

R – É, então, esse bloqueio está muito ligado por eu não conseguir escrever assim, automaticamente. Eu preciso estar inspirado pra escrever, preciso ter um motivo muito forte, alguma coisa precisa me tocar pra poder escrever. Não dá! Você vai numa oficina literária e fala: “Vamos escrever sobre isso”. Eu não consigo! Aquilo não me tocou. Eu sei que tem gente que consegue escrever, mas eu não consigo, preciso de algo que me toque. Por exemplo, se eu estou andando pela rua e percebo uma cena interessante e aquilo mexe comigo, pode ser que eu venha a escrever sobre isso. As coisas começam a brotar, as palavras, as frases, né? E aí eu preciso escrever em algum lugar e, a partir daí, eu consigo desenvolver.

P/1 – Teve alguma situação que aconteceu isso?

R – Ah, várias!

P/1 – O senhor pode contar uma pra gente que gerou essa produção literária?

R – Então, foi muito tempo atrás, não consigo lembrar.

P/1 – Pode ser de uma dessas que o senhor leu!

R – Então, essas, eu não consigo lembrar o que me inspirou. Eu peguei em casa antes de vir. Eu lembro de amigos meus que me inspiraram, do tipo de vida que estavam levando, que me inspiraram. Em geral, pessoas que não são muito adaptadas à sociedade, pessoas que têm dificuldade, pessoas que estão meio à margem da sociedade, essas pessoas me inspiram. Aquela pessoa certinha, quadradinha, bonitinha, isso já não. Então, alguns amigos meus que eram assim um pouco inadequados à vida, eu tenho até hoje um ou outro que tenho contato, eles me inspiraram muito, sem dúvida.

P/1 – O senhor falou da questão da inspiração, eu sei, mas na hora de escrever tem um ritual?

R – Ah, eu preciso estar sozinho com um papel e uma caneta, eu não escrevo no computador, nada. Eu preciso escrever, justamente por ser um hábito antigo, depois de escrito, sim, eu posso digitar, mas geralmente é assim. Tem que estar num lugar quieto, sozinho, ninguém por perto, ninguém falando, nada, e aí eu escrevo. Eu escrevo, escrevo, escrevo e eu tenho ideia de quando eu terminei. Agora esgotou, é isso aí.

P/1 – E como o senhor compartilha esses escritos?

R – Ah, eu não compartilho, eu guardo. Porque já tentei mostrar pra minha filha, não se interessou muito. Eu até cheguei a ler uma coisa ou outra: “Ah, bacana, legal”. Muito embora ela seja uma pessoa que gosta muito de ler, é muito ligada nessa parte de humanas também, mas não é muito de escrever. Ela escreve bem, escreve muito bem, está fazendo faculdade também e, sem dúvida, ela escreve muito bem. Eu até me vejo um pouco nela, ela escrevendo ali: “Será que ela herdou de mim?”. Tem uma facilidade muito grande com a escrita. Então, eu guardo, quem sabe um dia isso será mostrado. Eu já falei pra ela: “Tá tudo guardado aqui, se um dia você se interessar e quiser publicar, fique à vontade”.

P/1 – Muito bem, tenho algumas perguntas finais, mas se tiver mais alguma história...

R – Não, acho que é isso, eu falei tudo, eu acho. Não deixei escapar nada, é isso.

P/1 – Como foi para o senhor contar sua história pra gente?

R – Então, foi muito bom. A única coisa é que eu tive que organizar tudo aqui dentro, né? Tive que voltar lá atrás, tem que tomar cuidado pra não falar alguma coisa errada. Mas eu acho que foi um exercício de memória e foi muito interessante, como se a gente tivesse catalogando uma história de vida. Acho muito interessante esse tipo de coisa, porque a gente não vive por viver, né? A gente não está aqui a passeio só, está aqui pra construir alguma coisa. Então, eu acho que construí algumas coisas que são importantes pra mim. Não tive histórias tão grandiosas, mas foram histórias que me levaram de um ponto ao outro. E eu percebi evolução do começo até hoje, percebo isso ainda hoje. E isso me dá satisfação, eu gosto muito. Então, essa chance de me expor aqui pra vocês está muito ligado a isso, de deixar registrado isso, como se diz, eu passei pela vida e esse fui eu. Então, gostei muito.

P/1 – Que título o senhor daria pra sua história?

R – (suspiro) Eu acho que uma palavra resume bem isso: “Transformações”. Essa coisa de você perceber que a vida vai se transformando, de acordo com o lugar, as pessoas, as situações, que você, ao mesmo tempo, tem que perceber esse tipo de coisa pra se ajudar, procurar um autoconhecimento também. Não é uma coisa fácil, mas eu acho que essa palavra diz muito.

P/1 – E, pra encerrar, quais são os seus sonhos?

R – Então, eu não tenho sonhos mais tão grandiosos assim, não. Eu estou tão satisfeito com o que já fiz, que agora minha vontade é aposentar, porque, depois de tanto aperto que eu passei, eu finalmente vou poder falar: “Aposentei!”. Eu consegui trabalhar 35 anos nesse país e vou conseguir aposentar, que isso é uma coisa que dá impressão que, daqui pra frente, vai ficar cada vez mais difícil para os jovens. E eu consegui afirmar isso, que eu aposentei. E, ao mesmo tempo, ver minha filha formada. Ela se forma na faculdade, e eu posso falar: “Olha, quem diria, tive uma filha, criei e formei”. Eu, um cara que nem pensou, um dia, em ter um filho. Isso surgiu porque é uma coisa que eu conquistei, né? E é isso.

P/1 – Ah, Seu Carlos, muito obrigada por ter vindo aqui hoje!

R – Eu que agradeço.

P/1 – Contar sua história foi muito especial.

R – Que bom ser especial, obrigado, obrigado.