Museu da Pessoa

Um pianista pelo mundo

autoria: Museu da Pessoa personagem: Fábio Luiz Caramuru

Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Fábio Luis Caramuru
Entrevistado por Eduardo Barros e Leandro Cusin
São Paulo, 11/05/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV278
Revisado por Gustavo Kazuo

P/1 – Fábio, a gente começa as nossas entrevistas aqui no Museu sempre com três perguntas padrão: nome completo, local de nascimento e a data de nascimento.

R – Fábio Luis Caramuru, São Paulo, 14 de setembro de 1956.

P/1 – E o nome dos seus pais, Fábio?

R – Ronald José Caramuru e Neide Belo Caramuru.

P/1 – Eles são vivos?

R – Minha mãe faleceu quando eu tinha cinco anos. Meu pai está vivo.

P/1 – Você sabe como eles se encontraram?

R – Os dois eram bancários, trabalhavam na mesma agência no Banco Noroeste, no final da década de 1940. E se casaram em 1950.

P/1 – Então eles se conheceram no ambiente de trabalho.

R – No ambiente de trabalho.

P/1 – E você tem irmãos?

R – Tenho, meu pai se casou duas vezes. Eu tenho um irmão do primeiro casamento e tenho mais três do segundo.

P/1 – Quais são os nomes deles?

R – O Frank, que é o meu irmão inteiro, e os outros são Paulo, Lúcia e João.

P/1 – E como foi sua primeira casa aqui em São Paulo? Onde foi sua primeira infância?

R – A primeira infância se deu no Jardim Paulista. A gente morava numa casa na Rua Cravinhos, que é uma rua bem pequenininha, uma travessa da Avenida Nove de Julho. Ela começa na Avenida Nove de Julho e acaba na Alameda Casa Branca. E eram duas famílias que moravam na mesma casa, duas irmãs – minha mãe e minha tia com as respectivas famílias.

P/1 – Qual é a lembrança mais remota que você tem dessa casa?

R – Eu lembro – eu devia ter uns três anos mais ou menos – daquela agitação, aquela coisa de primos, primas; eu era filho único na época. Eu lembro dos almoços, das refeições, essa é a coisa que mais me marca.

P/1 – E o seu primeiro irmão? Quando ele nasceu como era a sua relação com ele?

R – O meu irmão tem cinco anos a menos que eu. Quando ele nasceu minha mãe faleceu; ela teve um problema, houve uma cirurgia e ela faleceu no parto. Então foi um início de vida muito difícil pra ele, muito difícil pra mim porque tinha perdido a minha mãe. Não são memórias muito agradáveis: uma criança recém-nascida; meu pai em casa meio desnorteado. Infelizmente, é uma memória um pouquinho difícil essa, desse comecinho de convivência com ele.

P/1 – Você lembra de ter relação com o bairro nessa época?

R – Ah, sim. Era muito bom porque era uma rua pequena então todo mundo se conhecia; era uma rua de pouquíssimo movimento, tinha brincadeiras na rua; aquela coisa bem característica.

P/1 – E que brincadeiras eram essas?

R – Eram brincadeiras de queimada; brincadeiras de pega-pega; ia todo mundo na casa de um, depois ia na casa de outro; tinha as festas de aniversário; esse tipo de coisa.

P/1 – Tem algum episódio especialmente marcante nessa sua primeira infância, nessa relação com os vizinhos?

R – Olha, eu lembro de uma coisa interessante que era: quando vinha, por exemplo, aqueles caminhõezinhos antigos, dos anos 50, bem redondinhos, era o padeiro. Então ele chegava daí todo mundo ia lá pra escolher aqueles pães doces, era uma festa; e a criançada toda ia lá, pegava , escolhia e ele anotava. Aí ele ia cobrar das mães, das avós. Era uma coisa muito assim. As famílias tinham sempre mães, avós, tias, era tudo muito junto. E esse caminhãozinho era uma festa quando chegava na rua. Todo mundo ia lá e comprava e fazia uma festa.

P/1 – E escola? Você estudou onde a primeira escola?

R – O Jardim e o Pré-Primário foram numa escola que não existe mais, que ficava naquele quarteirão na esquina da Alameda Lorena com a Rua Pamplona, chamava Santa Margarida. Eu estava lembrando disso ontem até: era um casarão muito legal, cercado por uma floresta, assim, árvores do tipo da Mata Atlântica, era um negócio lindo, lindo. Eu lembrei muito disso ontem, quando eu estava fazendo um esforço pra lembrar umas coisas mais antigas. Chamava-se Santa Margarida; eu tinha três ou quatro anos de idade.

P/1 – E você gostava de ir pra escola?

R – Gostava, porque você ficava muito ao ar livre. São Paulo, nessa fase, tinha uma coisa muito mais bucólica, muito mais interessante do que é hoje. Quer dizer, faz algum tempo, mas na minha memória está aqui perto, não está tão longe o negócio.

P/1 – E as professoras? Teve alguma professora ou professor...

R – Eu lembro que depois, na segunda escola, em que eu fiquei de 1963 a 1966, era uma escola – que não existe mais também – chamada Externato Teixeira Branco, super tradicional. Era muito requisitada na época pelas famílias que queriam pôr os filhos em escolas tradicionais; e ali tinha um rigor muito grande com disciplina, com uniforme, com a formalidade das coisas. Eu lembro de um grande temor que a gente tinha das figuras da diretora, de algumas professoras. A diretora principal da escola, a dona Rute Pires Ferraz, está viva até hoje, deve ter uns 95 anos; de vez em quando eu ouço falar dela. Muito, muito brava, muito rígida. E a gente era criado naquele clima de respeito; de ter medo mesmo; uma coisa muito diferente do que é hoje. O interessante disso é que quando eu encontrei a dona Rute uns sete ou oito anos atrás num concerto (porque ela é minha fã, ela me assiste – assistia, acho que agora ela não está podendo mais sair muito) mudou totalmente, porque ela é uma criatura frágil, uma criatura afetiva. É interessante a visão como muda quando você é criança e depois quando você reencontra 40 anos depois: a mesma figura que eu temia, de repente, é uma figura super frágil.

P/1 – Fábio, e as amizades da escola? Você fez algum amigo que ficou?

R – Nessa fase não. Depois, no Ginásio, eu fiz algumas amizades que ficaram depois pra vida toda. Até hoje eu encontro gente da época de quando eu tinha dez anos de idade; dez, onze, doze.

P/1 – E quem são essas pessoas, como começou essa amizade, vocês faziam o quê?

R – Olha, eu vou falar do Ginásio, que foi o Vocacional Oswaldo Aranha, que foi uma experiência inovadora aqui no Brasil, no Estado de São Paulo. Eles tinham colégios aqui em São Paulo e em algumas cidades do interior, não lembro exatamente quais – Americana, Batatais, Rio Claro. Foi uma coisa muito inovadora; uma experiência na qual os alunos eram estimulados a se desenvolver, a questionar as coisas; o sistema de avaliação era um sistema diferente, não tinham notas, tinham conceitos; os alunos trabalhavam em equipes e as equipes se auto-avaliavam; o aluno se auto-avaliava e discutia com o resto do grupo. Então a gente teve essa fase de formação muito importante e muito diferente do que era o usual dos anos 1960, então isso criou um vínculo muito grande; essas pessoas até hoje se encontram mensalmente, no primeiro sábado do mês – eu não tenho ido, mas eu sei que tem esses encontros – e tem aquela cumplicidade, porque criou-se um vínculo ali muito fora do padrão, porque era dentro de um clima muito diferente de liberdade, de questionamento. Então as pessoas ficaram formadas realmente de uma maneira muito peculiar. Criou essa cumplicidade, esse vínculo. E hoje eu posso dizer que eu encontro pelo menos cinco, seis, sete pessoas com alguma frequência. Tenho uma grande amiga que ficou mais presente, que é a Lis, que a gente se encontra muito, a gente faz yoga juntos; mas eu encontro outros eventualmente. É muito interessante esse vínculo.

P/1 – Na primeira escola, ali na Alameda Lorena, você ia a pé da sua casa pra lá?

R – É, me levavam – minha avó, minha mãe.

P/1 – Você lembra desse trajeto que você fazia?

R – Era interessante, porque eu morava lá perto da Avenida Nove de Julho. E a Nove de Julho sempre foi uma avenida movimentada; ali era difícil de atravessar e tal. Eu lembro de alguns detalhes interessantes: a primeira coisa que me vem na cabeça é esse Colégio Assunção que ficava também na Avenida Nove de Julho com a Alameda Lorena, que era

em frente a onde eu estudava – existe até hoje o Assunção, tem aquela capelinha e tal – e onde é um supermercado hoje fazia parte do terreno e tinha uma floresta, uma coisa impressionante. Não sei se eram eucaliptos – eu tenho quase certeza de que eram – tinha ficus, tinha uma série de árvores; e aquilo ficava em frente, pegava toda aquela fachada da Avenida Nove de Julho aquela massa de árvores. Você passa hoje lá você não diz, porque tem aquilo tudo construído. E eu lembro que no final da tarde uma coisa que me chamava muito a atenção era aquele canto dos passarinhos se recolhendo, aqueles pardais, aquela algazarra, aquele barulho. Era uma coisa muito bucólica pra São Paulo: uma floresta em plena Avenida Nove de Julho. Eu lembro desse trajeto e lembro de ouvir isso nesse final de tarde, quando vai escurecendo, aquela coisa... Lembro também que no trajeto quando a gente passava da Alameda Lorena e chegava na Rua Pamplona, a Rua Pamplona era toda de paralelepípedos e ela tinha bonde: bonde subindo, bonde descendo; então era uma coisa muito legal, né. Muito legal; eu lembro muito bem disso.

P/1 – E a sua relação com o seu pai na infância e um pouco mais já próximo já dos dez anos? Como era o trato com o seu pai?

R – Meu pai sempre foi um grande cúmplice meu. Ele perdeu a minha mãe muito cedo, ele tinha 33 anos, então a gente era muito companheiro. Meu pai foi piloto da Real Aviação, sempre teve essa paixão por aviões; me levava muito pra aeroportos; me dava os nomes dos aviões, eu aprendi tudo, aprendi detalhes sobre aviação; Aeroporto de Congonhas; Campo de Marte; então

tinha muito essa história com avião, que ele me colocou isso. A gente saía muito, ia passear muito; ele sempre foi muito companheiro nessa fase.

P/1 – Você lembra especificamente de um desses passeios da infância?

R – Olha, eu lembro que a gente uma vez foi pra Piracicaba – meu pai adora pescar, até hoje – e ele foi pescar lá naquele rio onde tinha uma cachoeira, eu não lembro exatamente onde era; e o interessante foi que ele acabou pescando uma tartaruga e trouxe pra São Paulo; não sei por quê que ele trouxe, deveria ter deixado lá. E aí quando ele trouxe aquela tartaruguinha não sabia o que fazer, teve todo um ritual e levar pro lago do Parque do Ibirapuera. Então ela foi solta lá, me lembro direitinho. Me veio agora essa memória.

P1 – E como você entrou na adolescência, Fábio? Como foi essa passagem da infância pra adolescência?

R – Bom, meu pai já estava no segundo casamento; já tinha os outros irmãos. Logo que a gente se mudou pra um outro bairro quando meu pai se casou, que foi o Campo Belo, que era um bairro também muito rústico na época, as ruas todas de terra, parecia que eu estava em outra cidade. Era tudo de terra, só tinha uma avenida asfaltada, que era a Vieira de Moraes, o resto era tudo de terra. Tinha essas brincadeiras de rua também, tinha essas coisas todas. E foi a fase em que eu entrei na história do piano: eu sou músico profissional. Eu acabei estudando com duas professoras do bairro, muito legais; a segunda delas era uma professora russa, dona Lydia Efremova e ela então me descortinou o que seria a vida musical. Então essa passagem foi junto com a descoberta do que seria me jogar de corpo e alma na história da música.

P/1 – Vocês mudaram dos Jardins pro Campo Belo quando você tinha quantos anos?

R – Eu tinha seis anos. Eu era bem novo, meu pai se casou logo. Um ano e meio depois que perdeu a minha mãe.

P/1 – E qual era a rua em que vocês moravam?

R – Rua Piracicaba. Hoje ela tem outro nome.

P/1 – E como foi essa história da música? Você disse que teve duas professoras; mas como foi a primeira...

R – Então, desde cedo eu lembro da minha mãe comigo no piano me ensinando umas coisinhas. Isso eu tinha uns três anos de idade, porque eu tenho essa memória antiga também: do primeiro piano que meu pai comprou pra ele. Eu lembro desse piano subindo a escada – a gente morava num prédio ali na Avenida Nove de Julho, um predinho baixo – e entrando no apartamento. É uma memória muito antiga; isso aí foi no final de 1958, eu tinha dois anos de idade, e tenho essa memória clara na minha cabeça. Acho que a memória mais antiga que eu tenho é essa: desse piano subindo a escadaria e entrando no apartamento. Era um piano amarelo. A minha mãe começou a me colocar no piano, a me ensinar umas coisinhas; eu tinha esse interesse; meu pai tocava de ouvido, não toca mais, mas tocava; a minha avó paterna também tocava de ouvido. Então tinha esse ambiente em que eu ia fuçando muito no piano. Aí quando mudamos lá pro Campo Belo logo me puseram em aulas de piano, que era aquela coisa meio chata, meio rígida, mas eu gostava. Eu fui tomando mais gosto na passagem da infância pra adolescência. Antes era meio empurrado, era meio obrigado; eu gostava de brincar no piano, mas não gostava muito de estudar, fazer aquela coisa formal.

P/1 – Então desde os seis anos você já estava na aula de piano?

R – Um pouquinho depois, acho que com uns oito anos. Com professora mesmo eu comecei com oito anos.

P/1 – Você tem algum marco do aprendizado da música nessa sua infância e adolescência? Um dia em que você descobriu tal música, tal compositor, ou que saiu de uma aula especial que te fez pensar “Eu quero continuar fazendo isso na minha vida”?

R – Olha, eu gostava de alguns temas, de algumas músicas que hoje a gente chama de muito óbvias, por exemplo: o Noturno, de Chopin, que é super manjado, aquela melodia que todo mundo conhece. Eu gostava muito daquilo, eu falava: “Nossa, eu tenho o sonho de tocar esse negócio” então o dia que eu consegui tocar esse negócio foi uma realização impressionante. Daí eu comprava discos, LPs, pra ouvir os grandes pianistas pra ver como eles faziam; aí eu ia lá e não acreditava que eu estava conseguindo tocar uma coisa que se via em filmes. Principalmente esse noturno de Chopin. Quando eu consegui tocar eu falei: “Nossa, eu conquistei uma coisa... Eu gosto disso. Eu quero fazer isso” E isso desde cedo, eu tinha uns dez anos de idade quando consegui fazer essa obra, que não é fácil, mas é bem manjada, todo mundo conhece a melodia, né.

P/1 – E em casa existia algum ritual pra você tocar em casa fora das aulas? Um horário em que você costumava tocar?

R – Não, eu não era muito disciplinado não. Eu não lembro disso, dessa coisa de horário; ia quando dava vontade.

R – E à medida em que você foi chegando na adolescência eu tenho a impressão de que você deve ter começado a viver mais a cidade de São Paulo, a conhecer mais a cidade de São Paulo. Você tem essas primeiras lembranças de começar a entrar em contato com a grandiosidade da cidade, de enfim, extrapolar o bairro?

R – É gozado... Eu sempre fui uma criança muito solitária, e eu fuçava muito as coisas. Eu gostava de pegar às vezes um ônibus e eu queria saber onde ia parar o ônibus. Eu pegava até o ponto final desse ônibus. Eu tinha dez anos de idade e eu lembro que uma vez eu peguei um ônibus que saía de perto de onde eu morava e fui até o ponto final, que era na região lá do Ipiranga, não sei onde é que era. Eu ia sozinho pra fuçar; ia até o ponto final, voltava. Às vezes, por exemplo, tinha que comprar alguma coisa que só tinha no Centro – partituras, por exemplo – eu pegava e ia sozinho, pegava o ônibus. Eu adorava fuçar. Com dez anos eu saía pela cidade; às vezes eu andava à pé pelo bairro.

P/1 – E descreve pra gente essas suas incursões ao Centro pra comprar partituras. Como é que era o Centro?

R – Então, o Centro eu ficava observando, assim, sabe? Eu sempre fui muito observador. Eu era uma criança meio estranha, não tinha nada de padrão. E eu lembro que eu curtia observar os detalhes, ver como é que eram as ruas, como é que eram os prédios, eu tinha uma mania também, com outro amigo meu do Ginásio, o Nelson: a gente sonhava muito em fazer viagens, em conhecer partes do mundo, então o quê é que a gente pegava? A gente ia na Avenida São Luís, onde tinham as agências de turismo, e ficava pegando folheto promocional. Colecionava folhetos, tinha uma pancada de folhetos guardados em casa, das companhias aéreas, das companhias de turismo, e ficava vendo os lugares, imaginando que um dia iria conhecer. Era uma coisa interessante isso também. A Avenida São Luís era repleta de agências.

P/1 – E o quê que você tinha como hobbie na adolescência, além da música, dos passeios por São Paulo tinha outra ocupação?

R – Olha, eu tinha um – não sei nem te dizer se era uma ocupação ou se era mais uma obrigação – mas nós éramos sócios do Clube Pinheiros e eu tinha aula de basquete; era todo sábado à tarde e domingo de manhã. Então a família toda ia sempre pro Clube. Então eu ia pra aulas, meu pai ia fazer não sei o quê, ia jogar outra coisa, era esse o lazer de final de semana. Tinha também uma coisa que todo mundo ficava grudado na televisão. Era muito comum assistir aqueles programas básicos de domingo: tinha a Jovem Guarda, tinha Perdidos no Espaço – nessa fase, dez, onze anos de idade – televisão era uma coisa muito presente na família paulistana de modo geral: ficava sempre na sala. O quê mais que tinha? Bicicleta, andava-se muito de bicicleta.

P/1 – E a sua relação com a mulher do seu pai? Ela era presente, como era?

R – Ela era muito presente, ela era uma pessoa que cuidava dos assuntos práticos e tal. E eu tinha muito conflito, porque eu tive uma convivência com a minha mãe, de cinco anos, e eu era muito melancólico com relação a isso e não consegui recuperar isso no segundo casamento do meu pai. Então tinha muito conflito; e ela é uma pessoa muito autoritária, então ficou um contraste muito grande entre o antes e o depois. E eu sempre ficava muito saudoso do tempo em que eu tinha mãe, em que eu tinha uma coisa que era mais acolhedora, que era mais afetiva.

P/1 – E os seus outros irmãos? Como foi se desenrolando sua relação com eles, vocês se relacionavam, faziam alguma coisa juntos?

R – Como eu sou muito mais velho que eles – eu tenho doze anos de diferença pro mais novo – então eu era quase um tio, então não houve um relacionamento muito próximo. Sempre era eu e os outros. Eu, meu irmão de cinco anos depois, e os outros até doze anos de diferença; então eu não tinha uma intimidade muito grande, de troca, pela diferença de idade mesmo. Mas a gente sempre se deu muito bem. Não havia muita diferença entre a gente ser irmão ou meio-irmão.

P/1 – Tem alguma passagem da sua vida, ou mais de uma, que ficou pra você como uma ilustração de uma vida em família? Uma viagem ou um episódio?

R – Sim, tem uma que foi muito especial. Em 1973 o meu pai resolveu pôr a família inteira num carro e nós fomos até Fortaleza de carro e voltamos, conhecendo o Nordeste todo de carro. Foi muito legal isso. Era uma Veraneio imensa; os dois menores eram muito pequenos, então eles tinham uma caminha lá atrás, onde é o porta-malas, eles iam dormindo e foi uma coragem, porque meu pai foi dirigindo sozinho na ida e na volta. Foi acho que um mês de viagem; foi algo muito legal.

P/1 – E vocês passaram por onde?

R – Eu lembro muito do interior de Minas Gerais, do interior da Bahia, que era uma coisa muito árida; Salvador, que foi legal, descortinou todo aquele mar, aquela coisa bonita; daí passou por mais sertão da Bahia; daí teve a Paraíba, tinha acabado de inaugurar aquele Hotel Tambaú que era super bonito, ainda é hoje; Recife, etecetera; aí chegou em Fortaleza, quem hospedou a gente lá foram uns amigos da família, aí tinha mais criança, gente da idade da gente. Foi uma coisa muito legal essa experiência. Até hoje eu admiro a coragem do meu pai de fazer um negócio desse, de mostrar pra família. Meu pai gostava muito dessa coisa de fazer todo mundo conviver, de fazer as refeições todo mundo junto, no horário certo. Então a gente teve bem essa coisa familiar.

P/1 – E nessa viagem foi uma aventura, né?

R – Foi, total.

P/1 – Teve algum imprevisto? Algum aperto que vocês passaram?

R – Não estou lembrado exatamente de algum imprevisto. O que eu lembro muito é do calor escaldante, porque naquela época os carros não tinham ar condicionado. Era um absurdo, mas no Brasil não tinha isso. Aquela coisa daquelas estradas intermináveis do sertão da Bahia, por exemplo, aquela coisa seca, aquele calor; era uma coisa muito difícil essa experiência. E não chegava nunca, era uma viagem muito longa, as estradas precárias.

P/1 – Mas em 1973 você já estava...

R – Eu já estava adolescente, eu já era o mais velhão lá.

P/1 – A adolescência é essa fase da vida dos sentimentos exagerados, né. Você lembra de uma passagem especialmente feliz que você tenha dito: “Esse é o dia mais feliz da minha vida” ou o contrário?

R – Mas de que fase?

P/1 – Na adolescência.

R – Olha eu nunca fui muito feliz não, pra falar a verdade. Eu sempre fui uma pessoa muito melancólica; se eu fosse definir eu diria isso: sempre muito melancólico. Eu não consigo lembrar de uma passagem assim especial. Eu lembro que essa fase de transição da escolha profissional pra mim foi uma coisa muito difícil. E acabei indo pra arquitetura, porque não sabia direito o que fazer também. Embora eu fizesse música eu falei: “Vou fazer uma faculdade que um dia me dê uma segurança” – uma pseudo-segurança, né? E eu sempre tive dificuldade com essas matérias mais técnicas: Matemática, Física. E eu falei: “Eu vou fazer Arquitetura e eu vou enfrentar essa coisa e vou aprender.” Eu não consegui aprender direito na época que tinha, aí eu fiz um cursinho e me dediquei pra esse negócio – assim, foi começar do zero. E eu lembro muito do sabor dessa conquista, de eu acabar entrando na faculdade numa colocação – eu tirei o oitavo lugar, eu acho; fui super bem – e vencer essa coisa que eu tinha com as coisas muito técnicas. Eu lembro que eu fiquei muito feliz com essa conquista; Eu falei: “Vou sair do zero, vou aprender e vou entrar.” e consegui. Então eu era movido muito a essas conquistas, sabe?

P/1 – E a música era a sua prioridade, sua paixão, imagino eu.

R – Sempre foi, mas eu nunca tinha muita segurança disso. Eu ficava com um pouco de medo de me jogar de cabeça nessa história.

P/1 – Mas e a Arquitetura? Por mais que ela devesse ser um pouco coadjuvante em relação à Música tem alguma razão pra você ter escolhido Arquitetura.

R – Eu achava legal Arquitetura; eu não sei, tinha uma espécie de status: o arquiteto é aquela pessoa que tem uma formação global, que atua e que tinha uma coisa meio assim na época, não sei se tem hoje, mas na época os descolados iam fazer arquitetura. Tanto que você vê hoje muita gente que não é arquiteto, da área de Artes, que fez Arquitetura. O Tom Jobim queria fazer, Chico Buarque fez, o Arrigo. Aliás eu conheci o Arrigo – foi uma coisa muito doida – eu estava fazendo cursinho pra Arquitetura no Equipe e ele saindo da Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) pra fazer cursinho pra música. Ele fez o caminho inverso. Ele foi pra Escola de Comunicações e Artes (ECA).

P/1 – E você entrou na faculdade com quantos anos?

R – Eu entrei com 18.

P/1 – Você estudou onde?

R – Eu fiz no Mackenzie.

P/1 – Como é que foi a entrada na Universidade? Porque isso é marcante.

R – Foi.

P/1 – Você lembra do primeiro dia, por exemplo?

R – Ah, eu lembro assim que eu acabei ficando um pouco frustrado porque eu não entrei na FAU. Eu queria entrar na FAU, mas acabei não conseguindo porque lá tinha um exame de Linguagem Arquitetônica em que eu não fui bem, em que tinha que desenhar uma telha. Daí eu não sabia o que fazer com aquilo, quis fazer uma coisa super especial e acabei não indo bem. Não entrei. Eu lembro que eu fiquei muito frustrado de não entrar e daí fiquei vendo as pessoas que entraram lá e tentava ver: “Poxa vida, quem são essas pessoas? Será que são o refugo do pessoal que não entrou na FAU?” Mas no fim eu fui tirando um pouco desse complexo de inferioridade de não ter entrado na FAU e fui conhecendo pessoas interessantes. E foi legal. São pessoas que ainda hoje se encontram também e foi a fase exatamente em que você começa a desabrochar pra voos mais altos na vida; e tinha as viagens de grupo. Tinha coisa mesmo da fase, né?

P/1 – Quem foram essas pessoas?

R – Eu tinha uma amiga muito especial, que era a Sylvia Eckman – eu não tenho mais contato hoje com ela – que logo no primeiro ano a gente foi fazer um Festival de Ouro Preto. Ela tocava flauta (o vínculo foi esse: ela tocava flauta) e a gente foi pra esse Festival de Ouro Preto. Isso foi em 1975, no primeiro ano. Tinha uma outra amiga também, a Cleide Takada, que mais tarde a gente foi se reencontrar porque os filhos dela estudaram na mesma escola que os meus filhos, na Escola da Vila, que também é uma pessoa muito legal, muito generosa; o Timur Klink, irmão do Amir Klink; fiz muita amizade com ele. A gente ia – eu e minha namorada, que foi minha esposa depois – a gente sempre ia pra Paraty, passava lá finais de semana com ele e com a namorada dele; passeava de barco, ia pras cachoeiras, sabe? Eu tenho menos vínculo com a turma de Faculdade do que com a de Ginásio.

P/1 – E quais eram os ambientes de encontros sociais nessa época universitária? Onde vocês iam, como era essa convivência?

R – Olha, tinha muitas festas nas casas das pessoas. Tinha uma festa na FAU também, que eu lembro muito bem que um dos nossos colegas lá, o Simão Sahaf, a especialidade dele era imitar a Hebe Camargo. Então ele se transformava em Hebe Camargo: ia lá, se travestia de Hebe Camargo, entrevistava todo mundo. Todo mundo bebendo e dançando. Eu lembro muito dessa cena na FAU; dele de Hebe Camargo, de mestre de cerimônias; isso aí era legal. Tinha umas festas em sítios também; sítio de um, sítio de outro. Teve uma viagem pra um sítio lá em Rancharia que foi um monte de gente também, aquela bagunça. A gente ia esquiar na água.

P/1 – E o envolvimento político? Havia já alguma consciência política?

R – Tinha muito isso. Muito.

P/1 – Como você viveu isso?

R – Olha, eu vivi desde o Ginásio, porque no Vocacional isso era tratado diariamente. Era um assunto que estava na pauta o tempo todo. Então todo mundo que fez esse vocacional saiu politizado, saiu consciente das coisas. Quando teve o Ato Institucional Número 05 (AI-5) a gente presenciou tudo e isso foi muito conversado, muito falado. Imagina, isso foi em 1968: eu tinha doze anos. Todo mundo consciente do que estava acontecendo. Os assuntos da Ditadura, as torturas, a gente sabia de tudo. Quer dizer, era uma coisa muito legal. E quando eu peguei esses anos aí de Faculdade teve também muito movimento de repressão estudantil – em 1977 ou 1978 uma coisa da PUC, que eu não lembro exatamente o quê que foi – então a gente se envolvia. E era legal também você se envolver, você ser politizado; a gente se envolvia. Eu cheguei a ir em manifestação. Eu não lembro exatamente o que aconteceu na PUC em 1977, mas teve uma coisa que eu fui lá. Todo mundo ia e eu ia junto.

P/1 – Quais são as imagens da Ditadura que ficaram pra você? Os seus testemunhos?

R – Eu lembro da coisa mais irritante, que era aquela história da Copa de 1970, por exemplo. Era uma coisa ufanista de que o Brasil venceu a Copa; o “Brasil pra frente”; todo mundo indo pras ruas e comemorava a Copa justamente num ano em que a coisa estava... E a gente já tinha consciência disso por causa da escola, do que acontecia nos bastidores. Agora, isso não era falado em família, isso não era falado na imprensa nunca. Tinha uma censura absurda. E a gente sabia que aquilo tudo era falso, era armação. Quando teve o advento também da TV Globo, que foi uma coisa que foi a favor de mascarar tudo, de colocar o Brasil como uma coisa que não era. Era impressionante como a gente tinha consciência dessas coisas e pouquíssima gente tinha; tanto que o nosso colégio foi fechado por causa disso, chegou uma hora em que acabaram com tudo – no meio da Ditadura.

P/1 – E algum testemunho de repressão ou de violência?

R – Não, eu nunca tive contato com esse tipo de coisa.

P/1 – E nessa época você disse que já tinha ido se apresentar no Festival de Ouro Preto. Então você já estava se apresentando musicalmente?

R – Já, eu já estava bem. Eu já tinha dezoito anos; eu fazia muitos concursos. O Brasil é um país de pianistas, tem uma tradição – tinha muito mais na época, agora abriu um pouco mais pros outros instrumentos – mas quando você queria fazer uma coisa séria você tinha que cumprir um certo roteiro de participar de concursos. Então eu já me preparava pra concursos no Brasil inteiro. Ia pra Bahia, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro; e eu estudava. Eu ficava mais dedicado ao piano do que à faculdade. Por isso eu não tive uma vida universitária muito intensa, porque eu não via a hora de acabar as obrigações de faculdade pra ir pra casa estudar, me preparar. E eu esqueci qual foi sua pergunta.

P/1 – Das primeiras apresentações que você estava fazendo. Como é que, por exemplo, esses concursos entraram na sua vida? Foi seu pai que te apresentou a isso ou você já estava...

R – Não. Foi assim: quando eu estudava com a professora russa, a dona Lydia, um dia noticiou-se no jornal que a pianista Magda Tagliaferro estava fazendo Master Class em São Paulo e tinha seleção pra alunos. Eu tinha 14 anos, foi em 1971 isso. Daí eu falei: “Nossa, que legal. Eu gostaria muito de conhecer, de ver.” Daí fui lá, preparei uma coisa com a minha professora e fui fazer a seleção, pra ver se apresentava – era uma aula pública que era no Museu de Arte de São Paulo (MASP) na época. Daí eu fui lá, toquei uma coisa de Schumman que preparei com a minha professora e tal. E aí veio o resultado: eu não passei. Eu fiquei super decepcionado. “Ah, por quê que eu não passei?” e tal. Daí veio conversar comigo uma das assistentes da Magda Tagliaferro, que era a Zulmira (que depois virou minha professora) e falou: “Olha, a Dona Magdalena gostou muito da sua musicalidade, mas você não tem técnica suficiente pra se apresentar em público no curso dela. E ela quer te oferecer uma bolsa pra estudar na escola dela, pra você aprimorar essa coisa técnica.” Daí eu conversei com a minha professora russa, ela ficou super chateada, mas eu acabei indo estudar na escola como bolsista. Aí que eu comecei a ter contato. Essas aulas públicas da Tagliaferro aconteciam sempre em espaços legais: foi alguns anos no MASP; teve na União Cultural Brasil-Estados Unidos. Os pianistas adolescentes e já entrando na vida adulta se apresentavam, tocavam, e ela ia e comentava, tocava do jeito dela; mandava o pianista repetir isso, fazer aquilo. Era uma performance, porque ela era uma figura excepcional: toda maquiada; impecavelmente vestida; ruiva; já tinha uma certa idade. E ela era teatral; ia com umas luvas e aí ela tirava as luvas, ia e tocava. Tinha uma aura de uma coisa muito importante. E todo mundo que queria ter uma projeção ia pra essas aulas públicas – turminha assim de quatorze a vinte e poucos anos de idade, essa fase em que os pianistas estão se formando. Aí que eu comecei a tomar gosto pelo negócio, porque eu via um, via outro; via como que um tocava; ficava impressionado com um, com aquele. Aí que eu comecei. Comecei a estudar na escola como bolsista e esses concursos eu entrava porque a professora falava: “Vamos fazer aquele. Vamos fazer aquele que é na Bahia. Vamos fazer esse que é em Ribeirão Preto.” Daí eu comecei a ir a me aprimorar. Estudava muitas horas por dia. Era muito legal.

P/1 – Você se lembra dessa sua primeira viagem pra tocar?

R – A primeira eu acho que foi justamente pra Bahia. Não. Eu fiz esse Festival de Ouro Preto, no inverno. Acho que essa foi a primeira viagem mesmo; eu fui de concurso, mas foi um Festival. Eu passei um mês inteiro tendo aulas lá com um professor suíço chamado Pierre Klose e lá então eu conheci um monte de gente; gente que tocava outros instrumentos; gente de outras áreas. Era uma festa, né? Era um festival muito legal. Conhecia gente de dança; gente de teatro; tinha concerto toda noite; tinha as repúblicas, que era legal, a gente se hospedava em repúblicas. Eu fiquei em uma república, mas não gostei e mudei pra outra. Conheci gente aqui, gente ali. Foi muito legal. E houve essa coisa de ventilar ideias; da música contemporânea, por exemplo, da música que era composta naquela época. Foi aí que eu tomei gosto também por criar uma linguagem musical – eu achava que eu tinha que criar uma linguagem musical – criar não: desenvolver uma linguagem musical própria, não ficar simplesmente repetindo aquela coisa tradicional. Eu tomei um gosto muito grande pela música contemporânea já de início. Esse foi em julho, em Ouro Preto e foi muito legal. Daí teve em outubro do mesmo ano teve um concurso na Bahia, que foi muito legal. Fui também com uma amiga que eu era meio apaixonado por ela. A gente foi pra lá e no fim a gente não estudava nada, só ficava passeando. Aluguei um carro e fomos passear em não sei onde em Itapuã, em Arembepe. Daí eu lembro que a gente passou o dia inteiro na praia tomando sol e chegamos pra prova do concurso meia hora antes, queimados de sol – porque na época era legal tomar sol, precisava queimar; você passava bronzeador pra ficar moreno; hoje ninguém toma sol – uma irresponsabilidade danada, né, ir tocar vindo da praia, praticamente (eu tomei um banho e fui tocar). Mas era uma coisa legal essa irresponsabilidade de quando você tem 18, 19 anos.

(TROCA DE FITA)

P/1 – Você estava descrevendo esses primeiros concursos, primeiras viagens já na época da faculdade, com 18, 19 anos. E como foram, nessa época também, os relacionamentos amorosos, a vida sentimental?

R – Você sabe que é gozado, eu tive mais paixões na infância. Paixões mesmo, uma coisa impressionante. E nessa fase eu fiquei meio amorfo, eu fiquei meio estranho porque eu me dedicava tanto ao negócio da música que eu fiquei meio assim, eu guardei um pouco. Foi estranho. Eu não exerci muito sexualidade, nada dessas coisas. Isso foi acontecer um pouco depois, dos 20 em diante, 21. Eu casei super cedo, com 23 anos.

P/1 – Como foi essa história, como você conheceu a sua esposa?

R – Foi assim: eu era apaixonado por uma menina, que é pianista hoje, ela não mora aqui no Brasil. Era muito amigo, era vizinho dela e tal, viva frequentando e tal. Mas a coisa da parte dela não correspondia muito. E um dia ela me convidou pra ir pra Campos do Jordão, porque ela estava no Festival de Campos do Jordão, a família estava lá e tal, e eu fui; peguei o carro, fui lá e daí ela

me apresentou uma amiga dela que era bolsista do Festival. Daí foi essa; essa foi a paixão da minha vida, a Yara. Eu casei com ela. Dois anos depois eu estava casado com ela – super cedo. Eu em apaixonei pela menina, achei ela bárbara porque ela era diferente, do interior, também não era nada padrão. Ela tinha um cabelão tipo Sônia Braga, era filha de poloneses. Eu fiquei encantando com ela. Tocava piano também, tinha umas ideias bem firmes; então foi de cara: começamos a namorar, daí dois anos depois eu ganhei uma bolsa pra França, casei com ela e fomos pra França.

P/1 – Então você casou com 23 anos?

R – Com 23 anos e praticamente com a primeira namorada séria que eu tive. Foi uma coisa muito fulminante.

P/1 – Antes de ir pra França você se formou?

R – Quando eu estava me formando a Magda Tagliaferro me ofereceu essa bolsa. Ela foi comigo pro Consulado da França, que era lá no Conjunto Nacional; ela falou: “Fábio, vem aqui e me pega. Eu estou aqui com uma cartinha.” Eu fui, peguei ela de carro, fomos até o Consulado – ela foi super bem vestida – e deixou lá uma cartinha assinada de próprio punho pedindo uma bolsa pra mim. Isso foi no último ano da faculdade. Aí eu acabei o quinto ano da Arquitetura e logo em seguida veio a confirmação de que o governo tinha

aceito a bolsa. Então eu fiquei três meses aqui depois que acabou a faculdade e já fui pra França estudar com ela. Fiquei um ano e meio na França estudando com ela.

P/1 – E seu pai e seus irmãos, onde eles estavam no meio dessa história toda?

R – Morávamos todos juntos – meus irmãos bem menores – e eu tinha muito conflito em casa, não via a hora de sair de casa, e serviu como uma luva. Ganhei a bolsa, fui e não voltei mais. Eu voltei casado. Cheguei aqui e a gente foi morar num apartamento.

P/1 – Mas quando você foi pra França você casou antes e ela foi com você?

R – Não, a gente se casou lá. Eu tive que ir meio rápido. Eu fui e a Yara foi seis meses depois e a gente se casou lá na Embaixada do Brasil. Foi uma coisa muito rápida.

P/1 – E como é que foi essa chegada na França, os estudos?

R – O meu sonho era ir pra França; era um sonho de muitos anos: ir pra França estudar piano. Foi um momento muito importante na minha vida. Os momentos em que eu vibrei mais eu acho que foram esse e o nascimento do meu filho. A hora que o avião pousou no aeroporto eu não acreditava. “Nossa, é outro sonho que estou realizando.” Era um sonho realizado mesmo – se bem que eu me decepcionei depois, mas foi um sonho realizado. Daí eu cheguei e tive que ficar dois meses num estágio pra melhorar a parte de idioma. Então eu fui pra Bordeaux, no Sul, e fiquei dois meses lá tendo oito horas de atividades por dia pra melhorar o francês, numa universidade lá. Foi legal porque eu conheci muita gente do mundo inteiro, principalmente gente do mundo árabe, do mundo africano. Os bolsistas que iam pra lá eram muito dessa região: árabes, africanos, alguns asiáticos; foi legal, uma coisa muito inesperada; eu não imaginei. Foi legal por isso, mas por outro lado eu comecei a me sentir meio num gueto, uma coisa meio isolada, sabe? Comecei a sentir muita falta daqui, comecei a ficar meio melancólico. Fiquei esses dois meses lá. Daí quando fui pra Paris melhorou, porque Paris é mais movimentado, daí eu já tinha as aulas de música, eu comecei a me animar. A cidade era muito convidativa, eu saía muito, ia pra rua, conheci pessoas legais e logo a Yara chegou – uns meses depois ela chegou. Foi bárbaro; foi muito legal. Uma fase muito boa.

P/1 – Descreve pra gente como era o seu cotidiano lá em Paris estudando.

R – Eu vivia num lugar que se chamava Foyer Maurice Ravel, era um predinho todo moderno, todo irregular, com blocos. Era só de músicos. Então você se candidatava a esse negócio, aí eles viam o seu currículo e se você fosse aprovado você conseguia um apartamento super transado, grandinho, duplex – eram muito legais. E tinha não sei quantos, acho que eram sessenta apartamentos, e cada um era com um músico. Então era muito legal porque você ouvia nos corredores – era tudo meio aberto, não era fechado; eram passarelas externas – então você ia andando pelo conjunto você ouvia um violino ali, uma cantora ali, outro pianista, encontrava com as pessoas; aí tinha o auditório onde tinham as apresentações. Então era um convívio muito legal com músicos, todos jovens, na faixa dos vinte anos, que estavam em Paris pra se especializar; foi muito legal. Então o meu cotidiano era assim: acordava cedo, já ia pro piano e fazia tudo o que tinha que fazer; no inverno era mais difícil porque demora pra clarear o dia, então eu achava estranho aquele negócio de só às nove da manhã que começava a ficar claro, aí que começava o meu dia. E estudava: tinha duas aulas semanais, uma com a Magda e uma com uma assistente. Então eu me preparava para essas aulas; esse era o meu cotidiano de estudos. Agora o mais legal era o que estava fora disso, que eram os passeios. Nossa, era muito legal; muita coisa pra ver. Muita coisa que aqui era muito distante. Naquela época como você não tinha fax, não tinha e-mail, não tinha nada disso, realmente você descortinava um outro mundo de repente. Então era muito diferente; era muito distante daqui. Então era uma experiência intensa; de descobertas; de ver coisas novas; de ver concertos que eu jamais veria aqui. Hoje tem essas sociedades todas que promovem, mas na época não tinha. O Brasil não tinha grandes estrelas e grandes orquestras se apresentando. Então era muito intenso o negócio muito legal. Fora as viagens que a gente fazia: tinha feriado ia pra Holanda; tinha não sei o que ia pra Suécia. Eu conhecia Europa inteira no período em que eu morei lá.

P/1 – O quê que você mais gostou de conhecer lá?

R – Olha, acho que o mais legal foi a volta. Quando acabou o período de bolsa, era junho, e a gente resolveu fazer uma viagem longa antes de voltar para o Brasil. Então de junho a setembro a gente comprou um passe – aquele passe de trem – e viajou. Pegamos o roteiro Áustria, Alemanha, Iugoslávia, Itália, Espanha e Grécia. Pra Grécia foram dedicados quarenta dias nas ilhas. Foi uma coisa paradisíaca. Antes de voltar. Então você ia de ilha em ilha; pegava um barco – tinha aqueles barcos regulares – e ia pra uma ilha e ficava lá quatro dias; “E agora? Vamos pra outra?”, “Vamos pra outra.”. Tudo sem roteiro. Foram quarenta dias nas ilhas gregas numa época de verão, uma época bonita. Antes de voltar para o Brasil. Isso eu acho que foi o que mais me marcou mesmo.

P/1 – Qual foi a coisa mais linda que você viu nas ilhas gregas? Você lembra de alguma paisagem ou de uma ilha específica?

R – O que mais me impressionou foi a sensação da água: aquela água morna e transparente em que você ficava. Não lembro de um lugar específico, mas o prazer que era você ficar na água numa temperatura ideal – ficar por horas naquela água – e você tinha uma sensação de “Nossa, a vida vale a pena por esses momentos.” Esses momentos de prazer mesmo, corpóreo. E era aquela paisagem árida das ilhas com aquelas casinhas brancas – isso me marcou muito, eu lembro muito disso – e depois da fartura de alimentação também. Você tinha frutas muito suculentas, muito grandes; pêssegos; uvas; e figos. Ficou muito essa memória de uma fartura e de prazer mesmo, físico, de estar naquele lugar. Sol. Isso foi muito legal. É uma memória muito boa.

P/1 – E antes disso, em Paris, o quê que você gostava de fazer? Fora a parte musical, os estudos, onde você frequentava?

R – Eu ficava andando. Eu era um andarilho. Às vezes eu ficava horas, horas, horas andando. Andava, entrava numa rua, ficava observando. Como eu sempre fui aqui eu era lá também, só que lá era tudo novo. E tudo muito bonito. Eu gostava muito de ficar naquele Parque que fica no Quartier Latin, o Jardin de Luxembourg. Eu ia muito lá porque eu gostava muito da vegetação. Eu tenho uma coisa com vegetação, de observar vegetação – que é um hobbie meu que eu esqueci de falar – eu gosto muito de planta, de mexer com terra. Então eu ficava observando todo tipo de vegetação que tem. Eu ficava observando a mudança das estações; quando vai mudando a cor; é muito rápida a mudança que vai do amarelo, depois pro marrom, pro vermelho e depois cai tudo. Eu gostava disso, de ver essa diferença que no Brasil não é comum – de ver cair folha, de ver mudança de clima, de vento. Eu observo muito essas coisas, então eu ficava muito ligado nessas coisas. Então o principal passatempo em Paris era simplesmente andar. Flanar – às vezes sem roteiro – e descobrir coisas.

P/1 – E você retorna já quase na década de 1980?

R – Já era 1980. Eu fui em 1980 e voltei em 1982.

P/1 – Como é que foi esse retorno ao Brasil?

R – Foi muito difícil. Foi muito difícil porque eu não me encontrava mais aqui. Foi uma coisa muito difícil. Daí a gente estava com problemas de grana e eu não sabia o que fazer; acabei arrumando um trabalho em arquitetura – pus na cabeça que eu tinha que fazer arquitetura. A concorrência na França, aquela coisa competitiva, me deixou um pouco desanimado com a carreira musical na época; aquela coisa rigorosa. Eu desanimei um pouco e falei: “Quando eu voltar para o Brasil quero mexer um pouco com Arquitetura.” Daí eu fui entrando em uns empregos por aí que... [pausa] eu acabei me decepcionando também; não gostei – tanto que eu voltei pra música. Mas foi difícil; a gente tinha dificuldades financeiras; eu estava arrependido de voltar, porque achei que não devia ter voltado. Eu queria voltar, mas quando voltei já tinha me arrependido; então fiquei numa situação de muita instabilidade. Acabei entrando como pianista do Teatro Municipal; um amigo meu que era regente do Coral me chamou pra ser pianista do Coral e eu fiquei lá um tempo; só que eu trabalhava o dia inteiro como arquiteto e à noite ia lá ensaiar, ficava arrebentado. Não foi uma fase fácil. Eu fiquei muito hesitante: se ficava na Arquitetura, se voltava pra Música; foi muito desgastante essa fase inicial.

P/1 – E você foi morar onde quando você voltou pra cá?

R – A gente ficou uns dias na casa dos meus pais, daí alugamos um apartamento no Paraíso, na Rua Manoel da Nóbrega.

P/1 – E você foi trabalhar onde com arquitetura? Você fazia exatamente o quê?

R – Primeiro eu peguei uma espécie de um estágio mesmo, no Escritório Edson Musa. Fiquei muito pouco tempo. Daí eu consegui um outro lugar que era uma imobiliária, que chamava Julio Bogoricin, nessa imobiliária eu fazia projetos de paisagismo pros prédios da imobiliária. E até gostava de fazer paisagismo, ou arquitetura de interiores; ou fazia também uns estudos bem técnicos de viabilização de obras, de implantação de obras. Fiquei três anos nesse emprego. Daí o quê que aconteceu? Eu e uma menina que trabalhava lá nós saímos e abrimos um escritório de Arquitetura. Ficamos uns dois anos. Mas aí começou a me dar uma inquietação, eu não estava feliz. E aí fui voltando pra música de alguma forma; fui trabalhar com uns amigos que trabalhavam com produção – a Interarte – isso foi em 1986; e logo em 1988 eu abri a minha empresa de produção.

P/1 – Mas um pouquinho antes disso nasce o seu filho.

R – Meu filho nasceu em 1985.

P/1 – E como foi essa história?

R – Nossa, eu curti pra caramba. Foi como eu te falei: os momentos felizes da minha vida foram a chegada na França e o nascimento do Pedro em 1985, em janeiro. Foi muito legal. Era uma coisa que eu queria muito na vida, ter um filho, e quando ele nasceu eu presenciei tudo, acompanhei tudo, o parto, aquela coisa toda. Daí quando ele foi crescendo eu tive uma participação muito importante na criação dele, fui sempre muito presente.

P/1 – Quais foram os espaços da infância dele, onde vocês frequentavam? O que vocês faziam juntos?

R – A gente morava perto do Parque do Ibirapuera, então frequentávamos muito o Parque. Íamos passear muito lá e eu organizava uns concertos ao ar livre na Universidade de São Paulo (USP) e ele sempre ia junto, fazia companhia – ele era pequenininho – ia junto, curtia. Eu levava ele ao Parque e ele aprendeu a andar de bicicleta antes de falar, super pequenininho já andava sem a rodinha. Ele sempre teve um desenvolvimento motor muito avançado pra idade. E eu lembro basicamente disso, de frequentar muito o Parque do Ibirapuera; de brincar com ele em casa também, a gente morava numa casinha que tinha um quintalzinho gostoso; a rua era pequena, estreita, então tinha os amiguinhos lá, frequentava a casa de um, a casa de outro. Foi muito bom. Uma fase ótima.

P/1 – Você lembra de surpresas que ele te proporcionou na infância, de coisas que aprendeu, coisas que perguntou ou alguma arte que fez?

R – Eu acho gozado que ele sempre foi uma criança hiperativa e era uma tarefa fazer ele dormir, porque ele não queria, era muito difícil dormir. E era a minha tarefa. Basicamente, chegava a hora de dormir, eu levava ele pro quarto e aí começou uma história de contar histórias – ele gostava de ouvir histórias – só que as histórias que eu conhecia se esgotavam e eu não tinha mais temas. Aí um dia eu falei: “Vamos inventar”. Então cada dia começava uma história diferente. Começava do nada: “Um velhinho que vem da montanha...” e tal. E ia, ia, a coisa ia se desenvolvendo. E ele ficava tão ligado naquilo que ele entrava: “Pai, posso entrar na história?” e ele virava um personagem da história, começava a dialogar na história. A coisa ia ficando muito rica, muito rica, ele ia ficando entusiasmado. Só que o objetivo qual era? Era fazer ele dormir. Só que ele não dormia. O que eu lembro é que com mais frequência é que, de repente, eu estava no meio da história e quem dormia era eu, não era ele – eu parava de falar e dormia. Daí eu acordava com ele me cutucando: “Pai, e daí? E depois? E depois?” Eu falava: “O quê? Eu não lembro.” Eu não sabia mais onde eu estava porque ele me acordava de tão entusiasmado que ele ficava e dessa criatividade dele de ser um personagem. Então ele ficava mais entusiasmado porque ele entrava. E essa coisa rica de você criar a cada noite uma história que vinha do nada, de improviso, né? Era muito legal.

P/1 – Nessa época então você está com o escritório de Arquitetura?

R – Estava com o escritório de arquitetura e começando a estagiar lá na produção dos meus amigos, em 1986.

P/1 – Como foi essa fase?

R – Foi uma fase difícil da minha vida porque eu não sabia pra que lado eu ia. Eu estava muito inseguro. Eu tinha família, então: “Como é que eu vou fazer com a questão da grana?” Eu não conseguia nem identificar, por exemplo – como eu sei hoje muito bem – que a música pra mim é prioritário; eu não sabia na época. Eu estava assim: “O quê que eu faço? Eu preciso de grana; eu preciso daquilo...” Uma instabilidade emocional muito grande. Então não foi fácil isso pro casamento também; começou a desgastar o casamento, porque eu tinha cobranças de bancar isso, bancar aquilo e às vezes eu não conseguia, às vezes ficava difícil. E eu fui pra essa história de produção porque de alguma forma eu intuía que precisava voltar pra música, mas não sabia muito bem como. Só que depois, com o tempo, com um dois anos de produção, começou a me encher a paciência porque eu falei: “Poxa vida, eu estou ajudando todo mundo a ir pro palco, mas eu estou com um vazio aqui muito grande, interno.” Um vazio, porque eu me afastei do piano. Me deu um bode do piano e eu acabei ficando muitos anos afastado. Eu fiquei de 1983, quando eu comecei a trabalhar com arquitetura, até 1993 muito afastado. Eu só ficava em casa brincando um pouquinho, porque eu achava que estava de bode. E estava mesmo; eu não sabia o quê que era direito. E quando eu voltei pra produção começou a me dar um negócio assim: “Poxa vida, eu estou vendo tantas pessoas bem nessa coisa da música. E por que que eu não estou nessa?” Eu demorei anos pra voltar porque eu não me sentia seguro; era uma questão assim: se joga de cabeça ou não se joga de cabeça? A questão da insegurança de estar casado e de não conseguir ganhar uma grana suficiente com a música. Então eu vou dizer que essa fase, por melhor que tenha sido por eu ter um filho, ela foi uma fase que me desgastou muito emocionalmente porque eu fiquei inseguro e eu não sabia pra que lado ir. Então foram alguns anos de muita insegurança.

P/1 – E qual foi a gota d’água, o marco, o episódio ou o momento em que você falou “Eu vou investir”?

R – Então, em 1993 foi o Centenário da Magda Tagliaferro. Como eu sempre prestei serviços pra Fundação Magda Tagliaferro como produtor, por ter sido aluno dela, elas me convidaram: “Vamos fazer um projeto de Centenário para comemorar o centenário dela”. Daí a gente fez uma programação de concertos com a Orquestra sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) lá no Memorial da América Latina, com vários ex-alunos: com Caio Pagana, Cristina Ortiz, Gilberto Tinetti, Flávio Varani, Vânia Elias – os grandes nomes que estudaram com ela – daí me deu um clique: eu estudei com ela. Eu estudei com a Magda. Me deu uma vontade de tocar inesperada, veio não sei de onde. Eu falei: “Eu vou me preparar e vou tocar nesse negócio” foi em 1993. Eu me coloquei na programação, estudei uma obra complexa, o Concerto de Poulanque para dois pianos e orquestra. Fui e me apresentei. Começou a voltar o gosto do negócio. Foi aí, esse foi o marco.

P/1 – Como é que foi o dia da apresentação?

R – Nossa, eu estava muito nervoso. Estava há dez anos sem me apresentar em público, pra você ter uma ideia. E uma coisa que eu achei que ia me afastar e acabei voltando; então foi um desafio do tamanho de um bonde; e ainda teve a TV Cultura filmando; com a OSESP, no Memorial lotado dos dois lados. E eu fui muito nervoso, mas a hora que eu fui para o palco me deu uma calma, uma tranquilidade, que eu falei: “É a isso que eu vim.” Acho que eu precisei daqueles dez anos de muita dúvida, de muita incerteza, pra depois ter a certeza de que aquilo era uma insegurança minha pessoal, não era um bode da música e simplesmente um medo de entrar no negócio. A partir daí foi só conquista dentro dessa área da música.

P/1 – E quais foram as primeiras consequências disso?

R – Eu falei: “Isso é prioridade pra mim. Eu vou ter que pôr isso como meta.” Eu vi que era importante, que eu não podia ficar sem aquilo e eu tive a participação de uma pessoa muito importante nessa história, que me ajudou a enxergar, que foi uma amigona, a Beth Bento, uma pessoa muito sensível da área de Artes, Artes Gráficas. A gente alugava a mesma casa; eu tinha o meu escritorinho de Produção e ela tinha o negócio dela de Artes Plásticas. E ela me via infeliz e ela tinha uma sensibilidade assim, ela falava: “Fábio, você precisa tocar piano. Volta pro piano.” Ela ficou falando isso pra mim, sabe? E eu tinha o piano lá, eu ia dedilhava. E ela via que a hora que eu ia pro piano eu ficava bem; e a hora em que eu ia pra mesa ficar fazendo as coisas lá eu ficava meio de bode. Ela foi me dando esse toque pra essa coisa de voltar e eu fui cada vez mais solidificando isso na cabeça e vendo que era importante. E daí o quê que aconteceu? Os primeiros passos, como você falou: eu sempre tive uma necessidade muito grande de mostrar o que eu sou de uma forma muito própria, muito pessoal. Eu não queria ser um pianista padrão, pianista clichê, como muitos são e que ficam felizes com isso; que fazem o repertório tradicional e que se satisfazem com isso. Eu acho que eu tinha uma outra missão dentro da música. E eu achava que isso tinha a ver com uma coisa de soltura, de me sentir livre, e que eu não conseguia no repertório erudito; porque no erudito você tem que seguir o roteiro, que é uma coisa bem na coleira. E aquilo me deixava na coleira. Eu queria às vezes fazer uma sonoridade diferente e não podia porque não estava na partitura. Na verdade esse foi um dos motivos pelos quais eu me afastei, porque eu não conseguia expressar a minha linguagem. Então eu fiquei em busca de qual é a minha linguagem dentro da música. Tudo bem, isso me dá prazer, mas a hora que eu estou lá na partitura, só na partitura, eu perco o prazer, porque eu tenho que obedecer. Isso era um conflito muito sério que eu tinha. Aí eu comecei a pegar um repertório mais flexível; comecei a pegar um monte de chorinhos; de música brasileira que nem era escrita para piano, era escrita para violão, porque o violão tem aquela coisa mais improvisada; então pegava do violão e punha pro piano. Aquilo começou a me dar um prazer! Eu comecei a resgatar aquilo que eu tinha na infância, aquilo que eu tinha perdido. O erudito – o jeito como eu entrei no erudito – me tirou o prazer na música. Foi por isso que me deu todo aquele bode. Então voltando pra esse repertório mais popular e brasileiro eu comecei a sentir prazer outra vez; eu comecei a sentir um “Nossa! É isso; é por aí que eu tenho que ir!” e então fiquei uns três anos brincando com chorinho, com música mais folclórica, brincava e tal. Até chegar no grande pulo do gato, que foi pegar a obra de Tom Jobim. A hora que eu entrei na obra de Tom Jobim abriu, descortinou o mundo pra mim. Foi impressionante.

P/1 – Mas antes disso você tinha o seu piano lá na produtora, você ainda estava trabalhando como produtor musical? Como é que foi essa coisa de fazer em paralelo?

R – Sim, sim. Como é até hoje. Até hoje a minha vida é isso: eu sou antes um músico, e um produtor. Então eu divido o meu dia entre essas duas coisas. Eu trabalho em casa; eu não tenho estrutura física nenhuma; as pessoas que me auxiliam estão cada uma em seus locais de trabalho. Eu consegui fazer uma coisa em que eu trabalho com pessoas de altíssima confiança, com parceiros mesmo; sem custo nenhum de estrutura; e me organizo pra dividir o meu dia entre a minha arte e a minha empresa, que é uma empresa virtual, na verdade, ela não tem espaço físico. Eu trabalho na minha sala: tem ali o microcomputador, com a mesinha; e tenho meus dois pianos no mesmo ambiente. Então, por exemplo, se eu estou fazendo uma prestação de contas de Lei Rouanet, tenho que fazer, tenho que entregar amanhã. Faço e tal; acabou aquilo? O resto do dia é piano.

P/1 – Mas ainda na década de 1990...

R – Naquele momento não. Eu estava muito perdido, naquele momento era assim: eu era um produtor e um músico que eu já fui, não sou mais. Então tinha o piano que eu ia lá, me satisfazia um pouquinho e tal. Mas eu não tinha coragem de atacar aquilo com firmeza. Eu não me sentia ainda firme pra dizer “Sou um músico profissional”; naquela época eu era um produtor que tinha um piano na produtora, mas era um detalhe, era um passatempo meu.

P/1 – Mas aí depois desse episódio do Centenário da Magda Tagliaferro você começou a descobrir essa música mais contemporânea. E o que aconteceu nesse período além das suas incursões no piano da Produtora? Você voltou a se apresentar em público ou não?

R – Voltei a me apresentar feito um louco. Comecei a marcar coisas. Comecei a fazer o repertório de Tom Jobim, por exemplo, e isso me levou pro mundo inteiro. Eu fui tocar na Sibéria, pra você ter uma ideia.

P/1 – Mas antes disso você teve esse período de redescoberta da música. E aí você começou a se apresentar aqui em São Paulo? Como é que você foi voltando pra ativa?

R – Então, eu fui voltando assim: eu criei, por exemplo, um programa de um recital. O primeiro tinha basicamente chorinhos, Heitor Villa-Lobos, algumas coisas brasileiras; era só repertório brasileiro. Tinha desde o mais popular até o mais erudito, que era o Mozart Camargo Guarnieri. Então montei esse programa que durava 50 minutos e comecei a mandar pra essas séries: tinha séries da Prefeitura, tinha coisas do Sesc, tinha a série da Hebraica, a série do Masp. Eu comecei a entrar nessas séries; e foi uma coisa gradativa; isso aí demorou uns dois anos pra esquentar, porque como eu tinha ficado muito tempo sem tocar e fiz de cara aquele concertão no Memorial, que foi de cara um rebatismo na coisa, eu precisei de uns três anos pra me sentir novamente seguro pra ter uma carreira mais constante. Foi assim; foram uns três anos mais ou menos de apresentações. Tinha um festivalzinho lá em Mariana, eu ia. Eu comecei a ir devagar e a tomar coragem outra vez. Foi assim.

P/1 – E o Tom Jobim? Como é que houve esse casamento?

R – O Tom Jobim é uma coisa muito interessante, porque a obra do Tom Jobim eu ouvia desde criança o meu pai tocar. Meu pai tocava; meu pai nos anos 1960 saía lá “Meditação” e ele tocava – tanto que ficou no meu imaginário. Eu sempre gostei muito, mas eu nunca tinha me dado conta de como aquilo podia se transformar em coisa pianística. Um dia eu peguei um álbum dele, dentro dessa coisa de chorinho, e comecei a dedilhar e falei: “Nossa, mas como isso é bonito. Mas que harmonia bonita!” Eu comecei a me encantar com o negócio e comecei a brincar com aquele negócio, sem grandes planos. Só que aquilo foi virando, foi tomando uma forma; foi tomando uma forma e aí de repente eu tinha uma, duas, três, quatro, cinco, doze. E um dia eu tinha 14 músicas do Jobim e comecei a falar: “Nossa, estou fazendo isso e está bonito! Que sonoridade bonita!” e tal. Daí eu conversei com um amigo meu que era produtor de discos na época, o Denis Molitzsas, e falei: “Denis, vem aqui em casa; vem ouvir um negócio.” Aí toquei tudo pra ele e ele quis fazer um disco. Isso foi em 1996. Aí ficou com o plano do disco; gravamos esse disco e isso me levou a querer aprofundar a obra do Jobim. Aí eu entrei no Mestrado na ECA pra estudar a obra dele. Fiz o Mestrado, completei o Mestrado. Daí eu comecei a tocar isso também; o meu programa de Recital não era mais os chorinhos e o Villa-Lobos; era Jobim. Era um Recital Jobim. Aquilo me dava um prazer impressionante, porque eu consegui colocar no Jobim a minha linguagem, respeitando tudo, não criando muito em cima, mas dando uma sonoridade bonita, dando uma delicadeza. E aquilo foi me dando um upgrade interno. Comecei a tocar aqui, tocar ali; me chamaram pra tocar em universidades nos Estados Unidos, na França.

P/1 – E essa aproximação à obra do Jobim aconteceu mais ou menos quando ele morre, né? Como é que foi esse episódio?

R – Foi. Como eu sou uma pessoa melancólica, eu já falei isso aqui algumas vezes, quando ele morreu eu fiquei meio assim “Puxa vida, perdi. Não conheci essa pessoa.” Eu não conheci, podia ter conhecido pessoalmente. E daí eu acho que foi esse lado saudosista que me levou pra obra dele, de ficar com saudade de uma presença que não tem mais aí.

P/1 – Então essa sua reaproximação, em termos de trazer o Jobim pro seu trabalho, aconteceu logo depois da morte dele? Bem próximo?

R – Dois anos depois; nem isso, um ano e meio depois.

P/1 – E aí você gravou o disco.

R – Gravei esse disco que fez o maior sucesso. E isso me deu consequências importantíssimas. Eu fiquei muitos anos só tocando Jobim em tudo quanto é lugar.

P/1 – E aí começaram essas viagens internacionais. Fala um pouco desse tour.

R – Em 1996 já teve um negócio na Embaixada da França, que eu fui lá tocar só Jobim; aí em 1998, na Alemanha, eu fui tocar também na Escola Superior de Música, num castelo lindo, o Recital Jobim, pra uma turma super seleta – foi gravado em rádio, foi lindo, um negócio lindo também, na Alemanha; aí teve um festival na Rússia de música de Natal, aí um amigo meu, que é regente russo, me levou dentro desse festival pra tocar Jobim – toquei pra plateias imensas, assim, duas mil pessoas – daí vinha um monte de gente, adolescente, que já conhecia a obra e queria saber coisas, com tradutor, foi muito legal; fui tocar na Universidade do Arizona duas vezes. Toquei muito no Brasil inteiro. Até hoje eu toco muito Jobim; às vezes eu faço programas só de Jobim, porque as pessoas gostam de ouvir.

P/1 – E dessas apresentações mundo afora teve alguma especial?

R – Me marcou muito a da Rússia; a da Rússia me marcou. Uma delas, a que tinha essa criançada, esse monte de adolescentes. Você via milhares de pessoas num teatro imenso lá em Novosibirsk, que é a capital da Sibéria. Aquele silêncio, aquele respeito pela obra; você toca, é super aplaudido; vêm lá e te dão flores, sempre. Daí vem aquele monte de adolescentes do meu lado querendo saber, fazendo perguntas sobre como é que é isso, como é que é essa obra. Perguntas técnicas mesmo, porque eles são muito musicais na Rússia, eles têm uma formação musical. Me marcou muito essa possibilidade de eu exercer a minha linguagem dentro de uma obra bonita, de um Jobim, que é uma figura que me emociona muito. Ele me emociona muito; eu acho que a música dele tem uma empatia muito grande com o meu jeito de ser, com o meu jeito de agir. Aí eu descobri mesmo que esse era o meu viés; essa era a minha linguagem: entrar dentro de uma coisa que eu pudesse me expressar com mais liberdade, com mais flexibilidade.

P/1 – E nesse meio tempo o seu filho já estava virando gente grande, né?

R – Ah, sim.

P/1 – E como é que foi essa convivência?

R – Meu filho é roqueiro, né. Ele achava que piano era coisa de menininha e tal. Nunca quis ir pro piano. Ele começou um pouco, mas aí quis ir pro violão, pra guitarra e tal; e ele era super bom guitarrista, tinha as bandas dele com 12, 13, 14 anos; depois 16 também. E daí ele acabou viajando também, ele foi modelo fotográfico, ele ficou na Ásia dois anos em Singapura. Daí acabei me separando e minha vida mudou um pouco.

P/1 – Até então você ainda estava lá no Paraíso?

R – Não. Eu fui mudando.

P/1 – Por onde você passou em São Paulo?

R – Paraíso; depois Alameda Lorena; depois perto do Ibirapuera, onde o Pedro nasceu; depois fomos pra Vila Mariana. Lá eu me separei e voltei pro Ibirapuera. Estou morando lá no Ibirapuera outra vez.

P/1 – E o seu filho hoje mora em São Paulo?

R – Ele mora em São Paulo e ele trabalha com marketing.

P/1 – E atualmente? Você foi descrevendo essas suas viagens trabalhando com a música do Jobim. A gente já está chegando próximo aos anos 2000, não é?

R – Sim, sim. Está entrando, já entrou.

[PAUSA / INÍCIO DO SEGUNDO ÁUDIO]

P/1 – Bom Fábio, e aí a gente entra nos anos 2000; você já envolvido com a obra do Jobim, já completamente mergulhado na vida musical novamente; o filho crescido; você se separou. Como é que era a sua vida em 2000?

R – Bom, no início de 2000 eu estava em busca de mais desafios. Eu fiz um outro trabalho musical que foi um trabalho ligado à música infantil. Eu peguei 27 cantigas brasileiras e fiz um trabalho de uma leitura própria minha no piano, em parceria com a Beth Bento, que é essa artista gráfica, que fez toda uma coisa de sound design. Ela fez sons junto: sons de natureza, criava algumas coisas junto. Então são pequenas faixas com temas infantis, com esses sonzinhos e com imagens – jogo da memória. Cada música tem um ícone em pares e vira um jogo da memória. Então foi um trabalho que, não sei... Deu vontade de fazer alguma coisa pra criança e a gente fez; e é um negócio muito bonito também.

P/1 – Mas como é? Você gravou as 27 músicas...

R – Que vem um CD e vem junto um jogo da memória. E vêm as letras das músicas. Então é um jeito de fazer uma coisa didática pra criança aprender, cantar e brincar com as imagens, sabe? Uma coisa muito legal. Foi uma espécie de retrocesso, numa coisa de, talvez porque o meu filho estivesse já crescendo, eu quisesse dar uma volta, uma lembrada nessa coisa infantil.

P/1 – E a sua vida de produtor musical, independente da sua própria obra musical, das suas próprias apresentações? Quem você produziu nessa época, como era o seu trabalho de produtor?

R – O meu vínculo muito grande sempre foi com a Fundação Magda Tagliaferro, que é uma instituição sem fins lucrativos, que mantém uma escola de música e cuida da memória da pianista Magda Tagliaferro. Então muitos eventos ligados à memória dela, como séries musicais com o nome dela, como apresentações em que a gente traz um monte de gente de fora do Brasil, ex-alunos ou não; publicações; remasterizações da obra dela; programa de bolsas de estudo. Sempre cuidei muito disso, sempre foi a maior parcela das coisas como produtor. Isso começou no início dos anos 1990. Coisas avulsas também: terceiros que me chamavam pra fazer um espetáculo, uma gravação. Então isso é muito variado, não tem um padrão.

P/1 – E a cidade de São Paulo, Fábio? Como você vive a cidade de São Paulo nesse momento mais presente, como você enxerga a cidade, os lugares que você frequenta?

R – Tem um lugar muito especial da cidade que está muito ligado à minha história inteira, que é o Parque do Ibirapuera; é uma coisa impressionante. Até trouxe fotos aí, pro registro, de eu desde os dois, três anos de idade já no Parque do Ibirapuera. Meus pais me levavam pra passear; nós morávamos relativamente perto – não tão perto quanto eu moro hoje. Hoje eu moro a 500 metros ali do portão da Quarto Centenário. E a minha ligação com esse Parque, por uma coincidência de vida, sempre aconteceu; a minha vida inteira. Eu já morei perto do Parque duas vezes – uma agora e uma quando o Pedro nasceu – e desde a infância frequentando. É uma coisa impressionante. Eu passo quase diariamente em frente; vou correr; fiz grupo de corrida lá, não corro mais com o grupo, mas eu vou quase que diariamente pra lá; e tenho uma ligação afetiva muito grande com esse espaço em especial. Então eu presenciei toda a evolução desse negócio. Quer dizer, aquilo foi criado em 1954, eu não tinha nascido, mas desde criança eu frequento. Faz parte da minha vida. E outro ícone importante é o Aeroporto de Congonhas, que também está documentado em fotos aí, em que meu pai me levava muito. E o Aeroporto de Congonhas quando eu era pequeno era um passeio; ele era todo aberto, não era como é hoje, todo envidraçado; todo formal. Era um passeio, era como ir num parque ver as decolagens, as chegadas. Então você ficava muito próximo da pista; os passageiros desciam na pista; tinha apenas uma gradezinha que separava o público dos passageiros. Era uma coisa muito diferente do que é hoje. E eu sempre frequentei e morei também perto do Aeroporto de Congonhas, no Campo Belo, na fase de adolescência, né. Esses espaços têm uma importância grande na minha vida: o Aeroporto de Congonhas e o Parque do Ibirapuera. Embora eu ache que hoje o Aeroporto de Congonhas seja uma coisa absurdamente deslocada, né? Aquilo é um perigo pra cidade; é um risco muito grande onde ele está hoje, com o crescimento da cidade.

P/1 – Você lembra de algum dia da sua infância lá no Aeroporto de Congonhas, especificamente? A primeira vez, ou algum...

R – Olha, foram tantas vezes que eu não consigo ter memória de um dia especial. Eu lembro de outra coisa que me dava um prazer imenso que era fazer as viagens de avião, que era um empreendimento na época. Então toda vez que tinha uma viagem pra fazer, pra mim era uma aventura – e era mesmo.

Eram aqueles aviões DC-3, aqueles Curtiss Comando, que eram aviões inclinados, com a rodinha aqui e com a janelinha pequenininha. As aeromoças serviam Mentex – como a pressurização não era uma coisa desenvolvida você tinha que ficar mascando Mentex para desobstruir. Eu lembro muito bem disso: o cheiro de Mentex ficava dentro dos aviões. Eu tinha cinco, seis anos e lembro disso até hoje: o cheiro das pastilhas de hortelã que ficava dentro do avião. E era uma coisa muito barulhenta: as hélices; fumaça; era muito precário. Eu lembro disso muito bem.

P/1 – E de um modo geral a cidade da sua infância pra cidade de hoje obviamente se transformou. O que você sente mais falta e o que você acha que melhorou, que foi um avanço?

R – Melhorou essa sensação de que você está num lugar em que tudo tem. O que você imaginar você encontra; isso é muito legal. Sensação de que você está num lugar cosmopolita, de que você está bem servido do que você precisar. Isso é muito legal; eu gosto disso. É a sensação que você tem em Nova York. É a mesma sensação de que é uma coisa central no mundo – e São Paulo é uma coisa central no Brasil – e é um lugar top no Brasil: o que você precisar você encontra; isso dá um certo conforto interno. Agora eu lamento muito não ter mais determinadas paisagens que você tinha, como a Avenida Paulista. Eu ainda lembro dos casarões que tinham. Era lindo aquilo: aquele monte de casarões com aqueles jardins – ainda mais eu que gosto de plantas. Eu vejo a quantidade de arquitetura bonita que foi derrubada; quando eu passo em frente ao Parque do Trianon, que eu vejo que era aquela Mata Atlântica característica da cidade e que devia estar presente em tudo quanto é canto se a coisa estivesse preservada. Aquilo lá era natural da região; só ficou praticamente aquele quarteirão ali da região. E essa coisa de você derrubar a memória fisicamente, você derruba um edifício... Isso me deixa um pouco deprimido; eu não gosto de pensar muito nisso. E outra coisa: você tem isso que eles chamam aí de Rio Tietê e Rio Pinheiros. Eu acho um absurdo isso; poderiam ser rios mesmo, navegáveis; poderiam ser paisagens pra São Paulo. E eu vejo que aqui, embora você tenha o melhor, você também tem o pior, que é essa voracidade que vai derrubando as coisas e que tudo – tudo – vai pelo lucro. O prioritário é o lucro, sempre. Isso aí é uma mentalidade que tinha que mudar. Por outro lado eu vejo que tem coisas que estão se recuperando: eu lembro de nos anos 1970 sentir que o ar era pior; a poluição era pior; o ar era irrespirável nos anos 1970. O ar era irrespirável nos anos 1970 e hoje você consegue respirar, melhorou. Essa coisa dos outdoors que foram tirados melhorou muito o visual da cidade. Eu acho que tem uma boa vontade. Eu adorei essa história do Minhocão, que estão querendo derrubar. Isso seria muito bom, porque o minhocão é uma idiotice; aquilo acabou com uma região inteira que era nobre, que era bonita; quer dizer: todo mundo que mora naquele entorno perdeu tudo de repente; perdeu privacidade; perdeu. Então seria muito simbólico pra São Paulo pôr aquilo abaixo. Eu sou muito a favor, porque seria como resgatar uma coisa que foi perdida e que foi dominada na cidade.

P/1 – E profissionalmente quais são os projetos em que você está envolvido hoje em dia?

R – Bom, hoje em dia... Vamos falar da parte musical. Eu estou envolvido principalmente com um trabalho meu autoral. Depois do Jobim – que a coisa do Jobim deu o seu recado – eu senti necessidade de ir além; eu senti necessidade de, de fato, colocar a minha linguagem pra fora. E isso eu consegui em 2003; de 2003 para 2004. Eu falei: “Pra eu me sentir pleno na música eu tenho que realmente me soltar. Fazer aquilo que vem, que me dá vontade. Me desvincular de qualquer texto, de qualquer partitura, de qualquer regra.” E eu consegui começar isso no final de 2003, quando eu gravei meu primeiro CD totalmente improvisado. Eu fiquei alguns meses estudando em casa no meu piano estruturas de improvisação – mas livre, totalmente livre, sem nenhum tipo de rédea. E depois desses três meses eu me senti apto a ir pro teatro e gravar. Peguei, fiquei duas horas e meia só improvisando. E deu um resultado muito interessante, porque eu consegui me liberar mesmo; expressar uma linguagem própria; ficar à vontade; ficar flexível; sentir um prazer total naquilo que eu estava fazendo. Então a minha busca hoje é essa. Então depois desse disco eu fiz mais um em parceria com o Pedro Baldanza, que é contra-baixista, que é um disco que foi lançado nos Estados Unidos, chama “Bossa in The Shadows”. E eu trabalho estruturas de ícones brasileiros; então em cada faixa eu trabalho um ícone, seja um gênero, seja um tema, seja um compositor. Então tem uma coisa lá que é Bossa Nova; tem uma coisa que é Tom Jobim; tem uma que é Baião. Enfim, são ícones ligados à nossa linguagem, mas de uma forma livre. Nos dois improvisamos juntos; então o prazer de improvisar junto é maior ainda. Eu tenho uma identidade muito grande com ele. E isso pra mim é prioritário, desenvolver esse trabalho, embora eu continue fazendo essa parte também: tenho tocado com orquestra, tenho tocado outros repertório. O ano passado eu fiz três concertos com orquestra; estou com uma agenda legal pra isso. Então estou transitando no erudito, no popular, no autoral e dando prioridade pro desenvolvimento autoral. Então essa é minha meta: solidificar isso, deixar isso forte. Inclusive a gente está com planos de fazer coisas nos Estados Unidos, porque o disco foi lançado lá mas ninguém conhece a gente lá ainda; então a gente tem que começar a fazer espetáculos lá. Estamos tratando disso com alguns produtores. Isso me realiza profundamente. E a gente junta Jobim; então nos nossos espetáculos a gente põe. Como é uma linguagem um pouco hermética, a gente não põe só o nosso porque às vezes o público não é muito preparado; então a gente põe 30% do nosso e o resto é Jobim; ou Jobim e Baden Powell. Então fica muito gostoso, a gente vai intercalando. É um trabalho bem interessante.

P/1 – Já que nós chegamos ao presente agora, nós vamos nos aproximando do final da entrevista e o final da entrevista tem uma parte que é uma reflexão sobre o passado, sobre tudo isso que a gente tem falado nessa uma hora e meia, mas também é um pouco do futuro. Nesse momento da sua vida, quais são os sonhos que você tem, os projetos de vida? Seja no campo musical, mas também no campo pessoal.

R – Olha, eu falo até brincando, mas tem uma coisa assim: primeira coisa, eu procuro levar o meu dia a dia me contrariando o mínimo possível. Quanto menos eu for contrariado melhor eu estou. Parece uma coisa de criança mimada, mas não é. É uma máxima que se você conseguir incorporar isso: saber dizer não para aquilo que você realmente não está a fim; saber selecionar o que você quer, aquilo que te faz bem. Isso o que é? É exercer a sua liberdade. Essa é minha meta de vida: sentir prazer na vida, com liberdade. Isso é uma coisa muito genérica, que independe da atividade que eu esteja fazendo. Eu acho que é importante você poder dizer: “Olha, eu optei por isso na minha vida; eu assumo que eu optei por isso; assumo as consequências boas e ruins.” Essa é minha máxima; fazer o que eu quero, do jeito que eu quero, quando eu quero e com quem eu quero. Mais ou menos por aí. E procurar ser sincero: “Não. Isso não me serve; eu não quero fazer isso neste momento.” Porque é difícil a pessoa conseguir ter esse padrão de vida constante. Às vezes você se amarra em “Tenho que fazer isso.” “Tenho que fazer aquilo.” E não sabe nem por quê. Eu consegui ter essa visão a partir do momento em que eu me separei, em que eu fiquei eu por mim mesmo; que eu comecei a pôr na minha cabeça “O quê que é importante pra mim?” “O quê que me dá prazer?” “O quê que me traz retorno de conforto interno?” e é isso aí, é tentar viver de acordo com a quê que eu venho: eu vim ao mundo pra fazer isso, eu vou exercer isso.

P/1 – E profissionalmente? Você está com esse projeto de ir para os Estados Unidos...

R – Profissionalmente é isso; é desenvolver a minha linguagem o máximo possível e procurar fazer do meu dia a dia musical uma experiência renovadora. Não ficar repetindo coisa. Quando eu começo a perceber que eu estou repetindo aquilo esgota. Eu gosto sempre de sentir que eu estou musicalmente vivenciando aquele momento musical, e não que eu estou reproduzindo uma coisa que eu já fiz. Esse é o meu desafio; que é a coisa do erudito. O erudito tem esse perigo: como está tudo escrito, de repente você põe no automático e reproduz; de repente você não está interagindo com aquele momento. Então musicalmente eu me sinto pleno quando eu estou presente inteiro naquele momento; que eu não estou refazendo uma coisa que eu já fiz.

P/1 – E, pra gente terminar, como é que foi pra você esse processo de olhar pra trás e falar das suas memórias e de revisitar seu passado?

R – Olha eu acho que é importante. As idades da gente, cada idade tem sua vantagem e sua desvantagem. Hoje eu estou com 53 anos. Às vezes eu assusto e falo: “53 é muita idade. É muita.” Eu não acredito. Eu olho para o passado e parece que está aqui do lado. Parece que internamente não existe cronologia. Você tem sentimentos de infância presentes hoje. A cronologia existe no seu corpo, no seu físico, na realidade, nas datas que estão aí. Mas você, na verdade, você se revisitando você se conhece melhor. Olhei hoje pros anos 1950 – imagina: nós estamos hoje nos anos 10 do século XXI – ao olhar pros anos 50 você se revisita e você tem um autoconhecimento melhor e você é capaz de balizar as coisas e de, talvez, olhar para o futuro de uma forma mais positiva. De ver aquilo que eu estava falando: o quê que me interessa nesse momento? Você não tem tanto tempo mais pela frente quanto você tinha antes. Então no quê que eu vou me envolver? Minha vida vai ter que sentido daqui pra frente? Você tem que, de tempos em tempos, se pôr essa pergunta porque não dá pra viver no automático. Não dá pra tocar no automático e não dá pra viver no automático; você tem que se reavaliar constantemente. E olhar pro passado faz parte.

P/1 – Teve algum episódio, alguma passagem da sua vida, alguma pessoa que passou pela sua vida que a gente por algum acaso acabou não abordando aqui e que você gostaria de lembrar?

R – Olha, eu vou falar uma coisa que é muito séria: eu perdi minha mãe eu não tinha cinco anos de idade, mas ela está presente todos os dias da minha vida. É uma coisa impressionante um marmanjão com 53 anos falar isso, mas é verdade. Eu acho que a perda de uma mãe na infância é uma coisa muito marcante. Isso marcou a minha vida, determinou minha vida. Inclusive essa coisa de melancolia, de saudosismo tem a ver com a perda de uma figura fundamental na infância. Então eu vejo hoje que isso mudou a minha vida. A figura materna é, assim, inestimável.

P/1 – Tá bom, então assim a gente encerra. Eu queria agradecer muito a sua disposição de vir aqui, foi um prazer ouvir a sua história.

R – Legal, eu agradeço essa oportunidade e espero que esses registros sejam divulgados e que as pessoas curtam. Eu curti muito, obrigado.