Museu da Pessoa

Um letrado na rua

autoria: Museu da Pessoa personagem: Sebastião Nicomedes de Oliveira

Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Sebastião Nicomedes de Oliveira
Entrevistado por: Márcia Ruiz e Ricardo Pedroni
São Paulo, 22/11/2007
Realização Museu da Pessoa.net
Entrevista PC_MA_HV085
Transcrito por Tereza Ruiz
Revisado por Gustavo Kazuo

Faltando transcrição da primeira parte

R – Normal. Aí deram a ficha “Quem quer ser o companheiro?” “Sou só eu mesmo!” “Tem que assinar aqui a autorização pra cirurgia”. Aí eu peguei, fiquei assim, assino, não assino, eles deram a volta, conversaram entre os médicos e falaram “Olha Sebastião, é você que tem que decidir, não podemos decidir não, se você não assinar, nós não vamos operar né”. Aí eu fiquei pensando, eu tinha certeza que eu ia morrer, eu pensei na minha mãe, nesse intuito falei ó, se eu morrer eu encontro minha mãe, encontro meu pai, não tenho muito a perder não. E se eu viver, é, eu vivi né, aí eu peguei “Ah me dá isso aqui vai” fiz a rubrica ele falou “O que que é isso?” eu falei não essa é a assinatura do meu RG mesmo. Aí olharam assim, é do RG mesmo a rubrica, aí então tudo bem. Aí eu fui fazer a anestesia, eu nem percebi a hora que ele aplicou. Ele falou quando você sentir que chegar na mão, o senhor vai tomar um choquezinho, você avisa. E eu “Ah ta bom, to esperando” que choquezinho é um choque 220[volts] mesmo, pulou aí daí a pouco, e eu achando que o meu braço tava aqui enfiando no meu peito eu já “Cadê meu braço?” aí ia com a outra mão daí a pouco “Cadê meu...” nunca sabia onde tava meu braço mais né, ficava muito pesado. Aí entrei pra cirurgia o Dr. Samuel estava com uma equipe grande, bastante estagiários também, enfermeiros, mas aí eu gostei, eles tavam me chamando de Tião, né, Sebastião, falei opa, aqui ninguém ta me chamando de bebê acho que aqui eu vou escapar. Aí começou a operar, colocou um pano assim né, que eu não via o outro lado, eu to conversando com a enfermeira aqui, tal, não sei o que, não sei o que, e aí ouvindo um barulho de furadeira, olhei assim escutando furadeira “Isso é furadeira” furadeira mesmo né. Ele colocou pino, colocou platina, reconstituiu, demorou pra caramba a minha cirurgia, eu acho que deu a hora do almoço eu tava lá operando ainda né. Mas eu não tava sentindo não, aí depende dum tempão falo assim pro, pro, conversando com o enfermeiro “Pô, mas que hora que vai começar a operar? Vai perder o efeito dessa anestesia”. Mas já tinha operado e aí eu não tinha percebido e aí daí a pouco me deram alta e tal. O médico ainda brincou comigo falou “Pô eu vou recomendar pros meus pacientes comer rodízio viu cara, você tá esperando a cirurgia ainda, esse negócio é bom. Tu não tomou uma não, quê que foi, pô muito, ficou muito ”. Falei não, não tomei nada, eu só comi... “Eu vou recomendar a receita, vai se internar, primeiro passa no rodízio, porque, que tranquilidade”. Conversei, fiz amizade com eles, aí voltei pro quarto lá e fiquei, no outro dia já podia ter alta. Não precisei nem ficar internado que lá eles precisam muito das vagas, né, e eu também já não gostava muito de hospital, desde o outro lá. Nunca gostei, aí piorou, aí quando veio a vaga eu peguei, a Edmaia “Quem que vai te buscar?” falei “não, eu vou só, a hora que estiver saindo, avisa lá pro assistente profissional que eu to indo”, só pra, que lá tem horário pra entrar né, você entra no fim da tarde, depois a rotina do albergue é uma outra situação. Tem hora pra sair e hora pra entrar, aí “Só avisa que eu to indo” aí avisaram, eu cheguei lá e entrei profissional. E aí comecei a então morar no albergue daí pra frente.

P/1 – Depoimento de Sebastião Oliveira 085. Aí Sebastião você saiu do hospital e aí você foi pro albergue, você ficou quanto tempo mais no albergue?

R – Aí foi longo, eu saí esse ano.

P/1 – Ah, você saiu esse ano. E essa cirurgia você fez em 2003, é isso?

R – Eu fiquei no Arsenal, que é o que eu tava, fiquei dezoito meses, embora seis meses fosse o prazo, fiquei dezoito, eles foram bem tolerantes, aí eu tinha que tentar fisioterapia e eu não consegui. Depois eu saí de lá, fiquei mais quinze meses no outro, doze meses no outro albergue, fiquei mais dezoito meses na moradia provisória até o ano passado e agora em janeiro eu saí definitivamente disso.

P/1 – E durante esse tempo todo você ficou fazendo fisioterapia, tentando arranjar profissionais de fisioterapia pra você? Como é que foi um pouquinho isso? Você arranjou um emprego? Como é que ficou?

R – Os primeiros dias eu fiquei dentro do albergue com licença pra ficar lá dentro né. E aí a dificuldade era me habilitar a tomar banho com esse braço né, botar o plástico, tomar banho, de comer, porque não aguentava segurar nem um copo né. Essas coisas todas e de acostumar com os pinos né, às vezes um dia tava dum lado, outro dia tava do outro. Um dia parecia que tava inflamado, outro dia tava infeccionado e fazer os curativos que, que não queria fechar aquilo de jeito nenhum e então foi, eu fui me habituando a isso, os remédios, essas coisas todas né. E depois eu passei a fazer parte de um coral que tem lá dentro né, pra me distrair, também passeava com o coral, essas coisas todas. E no mais eu via o pessoal jogando futebol. E aí teve um festival caça talento lá dentro do albergue e que eu me lembrei de um detalhe que me impulsionou a escrever, desse tempo que eu tava dormindo ali perto do Parque Dom Pedro né, perto do, naquele parque da prefeitura, que um dia daqueles lá, eu escrevo né, eu gosto muito de escrever até hoje em recibo. Folhas em branco, assim nova eu não gosto, então eu pego recibo e escrevo no contrário dele né, e aí eu escrevia poesia, essas coisas assim e jogava fora, e sempre assim. Aí um dia chegou, teve um senhor lá que chegou pra mim, né, e ele falando comigo pediu pra eu escrever uma carta pra ele, um termo que era novo pra mim, que eu sou letrado “Você é letrado”. Ele queria escrever uma carta pra mãe dele. Eu olhei praquele cara, né, putz grilo, esse o pessoal não chama nem de mendigo mais, e o cara quer escrever uma carta pra mãe dele. Falei não, não vou duvidar, né, ele tá, eu também não to perdendo pra ele nada, ele tá acreditando que eu escrevo, não posso duvidar que ele vá mandar carta pra mãe dele pra algum lugar. Daí foi ditando lá, escrevi uma carta tal, aí ele virou pra mim assim e foi assim do nada assim, foi meio que uma luz ali que ele me deu falou “Sebastião você podia...”, o nome dele eu não me lembro não, que a gente se apresentou e tudo. Ele falou “Sebastião você podia é, fazer alguma coisa melhor do que ficar aí fazendo, você escreve esses negócio, joga fora. Faz alguma coisa pra gente aí né, escreve sobre a gente, o senhor podia escrever a nossa história. Escreve aí e manda pro prefeito, manda pro presidente, faz alguma coisa aí, quem sabe muda a situação pra gente aqui. Eu quero voltar pra casa da minha mãe e ninguém me leva, aí se tu escreve umas história dessas aí, faz alguma coisa pra gente aí”. Aí eu fiquei assim né, comecei, “gente será que esse cara tem razão, eu podia começar a escrever né”. E eu tinha o hábito, as pessoas me olhavam muito porque eu andava com essa bandeira do Brasil, que foi da época que eu saí do salão lá, foi a coisa que restou né, era da copa do mundo de 2002. Foi 2002, né? E ela tava na parede lá e eles não levaram embora, aí quando eu saí, eu levei ela comigo, né, e então no começo eu usava ela como lençol, cobertor, era tudo. Tinha dias que a camisa tava detonada, sem camisa, eu usava cobertor, usava a bandeira e eu notei que de alguma forma os próprios moradores de rua meio que marcavam referencial em mim ali, não sei se pela bandeira, eu acreditei que sim. Foi tipo, né, meu, tá todo mundo descalço, aquele tá com sapato, foi mais ou menos isso. E aí eu passei a, falei puxa, eu vou fazer isso mesmo, cara, vou escrever sobre nós quem sabe a gente consegue mudar um pouco essa situação. Que eu conversava muito com ele que a gente faz parte de uma outra cidade, não adianta teimar que a cidade que tem aqui em São Paulo pra essas pessoas não é a mesma, nossa, a gente ta num outro mundo né, e a gente é uma cidade sem voz e sem vez né. A gente não tem vez nessa cidade, você pode chegar ali você vai pedir, ou espernear, pode xingar, pode gritar no meio do asfalto que você vai passar por louco, você pode conversar com a árvore, pode fazer o que você quiser que pras pessoas isso não vai fazer diferença. Você vai pedir um lanche pra alguém ali, pra pagar um churrasco grego ou um espeto pra você, o cara nem vai se dar ao trabalho de dizer não pra você que primeiro que ele nem vai te ouvir. Então já tinha muito esse conceito, conversava com eles disso né, e ele falou assim “Você tem razão cara, o negócio é estranho mesmo, né”. E passa vaga de albergue tem cara que quer ir e não pode ir, tem cara que não quer ir e eles querem levar, falei então a gente não manda nem no próprio nariz, não tem, é uma outra cidade, é um outro mundo, somos outros tipos de pessoas nesse mundo aqui. Eu passei a escrever, aí no Arsenal, quando eu entrei, com pouco tempo tinha um festival caça-talentos que ia ter lá, e aquilo me chamou a atenção porque o pessoal começou a ensaiar, pra cantar né, música solo, de dupla, de banda. Gente pra dançar capoeira, dançar axé, dançar de tudo, e eu falei “Pô, eu quero participar desse negócio”. E aí foi que eu falei agora é hora, eu vou escrever uma peça pra participar do festival. E eu escrevi um peça que me lembro chama “Bonifácio Preguiça” é uma comédia de lascar né, de um cara muito sossegado que não ta nem aí, só fica no banco da praça dormindo, não quer nada com nada, foi um modo que eu brinquei com esse negócio, já que não tem jeito mesmo né. E aí eu coloquei só que foi gerando na história, no total deu doze personagens, aqueles outros que eu colocava como sendo outras fases deles na verdade se tornaram outros personagens, com outros nomes, com outras situações. Então eu tinha personagem que venceu, tinha personagem que foi pra escola aprender a ler, tinha personagem que conseguiu entregar folheto e subiu num emprego. E tem um outro personagem que era um nóia, um moleque de rua que só queria saber de cheirar cola né. E aí tinha um outro pastor maluco que tirou barato desse pastor que prega na praça, chamava Pirajú e esse pastor pregava tudo misturando as coisas, as bolas né, então Corinthians pra ele era futebol, São Paulo era futebol, juiz era futebol, trave era, tudo pra ele pregava falando de futebol. Falava de gol e ele, então a função dele era, ele nessa pregação maluca, o Bonifácio achava ele muito engraçado e, ele nessa brincadeira ele tira o nóia da droga porque ele oferece lanche pro moleque, suco, leite. O menino, já que ele prometeu, traz todo dia, então ele trocava o saquinho por aquilo e na peça contava isso né. E o Bonifácio, a única coisa que deixava o Bonifácio irritado é quando alguém mandava ele ir trabalhar, que ele já ficava “Vai jogar praga na tua mãe, não sei o quê” brincava. E ele conversava com uma árvore na praça, que é um personagem, o Joel, um outro morador de rua. Todos, pra fazer os personagens, como eram muitos, a assistente social viu meu texto, tudo, falou “Oh Sebastião..” a Sílvia, a Andréia “Vamos aproveitar então todo mundo que ta querendo vir cantar que esses músicos já são metidos a profissional, então eles tão desclassificando gente aqui por conta própria, então quem vier que não for... a gente quem sabe não vai fazer um desses papéis”. Falei “Oh, ta aí!” e aí vieram oito, sete, comigo oito, que toparam fazer o Bonifácio, então nós só revezávamos que eram doze personagens, tinha uns que faziam uns a mais e tal. Tinha oficial de justiça, contava despesa de sem-teto e essa árvore era a consciência do Bonifácio na verdade, que ele conversava com ela e ela dizendo que ia transformar ele numa estátua porque ele não tava servindo pra mais nada né. E no final ele vira até uma estátua mesmo né. Essa brincadeira toda. Mas ele dá os mil recados, de mil formas de um morador de rua nesses outros personagens todos e nele. Ele é um dos que, que não teve jeito e, que eu costumo dizer hoje, que a gente fala em políticas públicas e conseguir frentes de trabalho, moradia, habitação, saúde, mas eu digo que isso é pra algumas pessoas que tem muitas pessoas que a gente já perdeu né. Eu falo assim que a gente, comparando com um barco, estamos num barco furado, não tem jeito de consertar esse barco e tem que tentar salvar as pessoas, então tem bote salva-vidas e tem algumas pessoas que se atiram na água e sabem nadar e as outras vão morrer afogadas. Então eu vejo morador de rua, tem muita gente que a gente perdeu e que não tem recuperação mais, recuperação não digo recuperação de estima, mas até mesmo como pessoa humana, né. Tem gente que perdeu além da identidade, ficou sem documento e também não sabe mais quem é mais, não tem mais essa consciência de quem ela é, de nome, das outras pessoas. Tem morador de rua, por exemplo, que passa, ele não enxerga ninguém, ele não fala com ninguém, ou ele xinga, ou ele corre de quem vai falar com ele e, tem uns que se isola, mora sozinho encolhido, deixam comida pra ele, talvez ele come ou não. Então eu digo são pessoas que a gente perdeu, e esse lance de comida é outro negócio engraçado que eu também não gostava de comer comida que o pessoal colocava pra mim quando eu tava dormindo de noite eu acordava com aquilo, eu ficava muito revoltado, que falava que parece que eu to dentro de um chiqueiro aqui né. E eu comia quando alguém ia entregar alguma coisa e olhava pra mim, conversava comigo e tal e, aí eu acabava comendo aquilo, aquela comida, no instante eu não comia não, era um meio que orgulho e ao mesmo tempo era um modo de me sentir gente, eu não achava que aquilo era humano não. E aí nessa peça quando a gente fez, apresentou o caça-talentos, tinha uma faculdade do lado, foi muita gente assistir e, baixou o ator em todo mundo lá, tava um interpretando melhor que o outro né. Então, foi uma coisa, parecia que, eu olhei, gente, mas tava dando tudo tão certo que quando a gente errava virava uma piada a mais, que no improviso, esse jogo, e a peça foi muito, muito destacada, foi muito aplaudida pelos músicos, por todo mundo. E aí nos passamos a receber convite pra apresentar em outros albergues, em congressos. Chegamos a ir numa escola pública no Boturussu, e aí eu me animei com o teatro. Nesse meio tempo tinha um grupo que ensaiava lá dentro do Arsenal e dava oficina de teatro pro pessoal da rua né, que era um pessoal do CAAC [Centro de Artes Alternativas e Cidadania]. E aí um dentista voluntário de lá que assistiu a peça me apresentou ao diretor desse grupo que era o Max, Max Moratório. Aí ele falou “Pô”, então tem meu grupo aí ele falou “Pô, ensaia com a gente tal lá, a gente tem oficina lá na Mooca, é integrado, não é só o pessoal do albergue, vocês vão lá aí o pessoal vem...”. Aí comecei a levar meu grupo pra lá pra ensaiar e, nós gostávamos que falamos “Nossa, quanta menina bonita né” de faculdade é, e meu grupo tinha uns cara também que não gostava de menina também. Os albergues tem uma fusão de tudo, você tem no albergue as pessoas que tão desempregadas, pessoas que tão sem rumo, pessoas que tiveram problemas sentimentais e saíram de casa, às vezes não é falta de dinheiro. Como eu conheci um, ainda tem no Arsenal advogado não, eu conheci um médico, em Guarulhos tem um médico que mora na rua por desilusão amorosa com a esposa dele, por traição. Mas tem muitos caras lá, mais novos que, que são homossexuais, tanto homem e mulher também, e que foram expulsos de casa né, que não tão nem na cidade deles mais, eles tão por aí e acabam morando na rua, não é porque é pobre ou é sem dinheiro, ou o pai ou a mãe, alguém expulsou de casa, padrasto, madrasta. Que é o caso das crianças né, que a maioria é padrasto ou é madrasta que faz ir embora de casa, não é porque não tem aonde ir. Então nós achamos um outro mundo ali, com aquele meio artístico, as pessoas faziam cursos, a gente foi se integrando de novo e eu, depois eu falei com o Max “Eu tô pensando, Max, em escrever uma história sobre os catadores” que eu chamo de carroceiro, né. Eu quando morei perto do mercado, de vez em quando ganhava uns troco ajudando o cara a empurrar a carroça. Com as latinhas, o albergue que eu morava, tudo que a gente conseguia lá tinha uma moeda social interna, que chama Ars, não é o dinheiro normal, real nada. Então pra lavar roupa a gente adquiria Ars, pra comprar roupa no bazar, Ars, pra almoçar, quem é da casa pode pagar com Ars. E a gente conseguiu Ars com a latinha, então eu sempre caçava latinha na rua pra ter Ars, e tinha um cara lá que não gosta de catar, então a gente fazia um câmbio né, a gente vendia os Ars pelo preço que quisesse. Supondo se cinco Ars valia cinquenta centavos, cinco centavos no cinema valia, cinco Ars era pra ver o filme. A gente vendia por um, dois real, o preço que quisesse. Então eu tinha muitos contatos com a coleta né, mas essa coisa do meu pai que sempre foi ferro velho, aí eu falei pro cara escrever sobre catadores né, que o povo vê esses cara puxando carroça aí no meio trânsito, uma coisa louca essas coisas, né. Ele falou “Olha, escreve, quando tiver pronto você me mostra, a gente mostra pra alguém” eu falei “Aí, eu to tranquilo que eu vou escrever, eu tenho meu grupo” só que o grupo desmanchou, que como era um albergue e o prazo de todo mundo foi vencendo, foi todo mundo sendo desligado, um foi pra um albergue, outro foi pra outro albergue, outro voltou pra rua, outro foi pra, acabou o grupo, não tinha como ensaiar mais. Então a turma, a gente chamava a turma do Bonifácio, abrimos um e-mail, tudo, turma do Bonifácio. Então nóis nunca mais apresentamos o “Bonifácio Preguiça” né, por conta que o grupo acabou. E aí eu pensando em escrever o diário de um carroceiro eu pensei ”puxa, um grupo é muito difícil, é muito caro e se desmancha” e eu pensei então em fazer um monólogo, um monólogo se eles gostarem do texto, bem, se não gostarem eu interpreto, né, pensei em tudo por essa possibilidade. Só que eu não tinha um nome pra esse, mas aí como eu já tinha feito teatro, voltei a frequentar bibliotecas, no parque da Mooca que é interessante, que o pessoal fica dormindo ali no parque inteiro e uns outros que tão dentro de albergue jogam futebol e eu ia pra biblioteca pra ler. Comecei a ler sobre teatro, sobre essas coisas, então eu lia a respeito de pesquisa, então tinha grupo pra fazer uma peça que pesquisou, levou tantos anos. Falei então vou fazer o carroceiro, vou pesquisar um pouco a respeito. E aí eu fiz a junção do Boracéia que era um albergue que os catadores moravam lá, que tinha carroça, tinha cachorro, juntei com esses carroceiro que eu via muito na praça da Sé, que morava embaixo da carroça. Então falei, bom, o meu personagem não é de cooperativa, ele sonha ser um catador organizado na própria coleta seletiva, mas ele é um cara que mora e trabalha na carroça como esses carroceiro aí. Por isso que eu chamei ele de carroceiro e não catador né, que catador é muito utilizado na coleta seletiva pras cooperativas e tal. Até brinco com isso na peça, disse que antes a gente era chamado de lixeiro, agora não, agora é catador né. Agora até os classe média diz que é catador né, aí eu coloco tem muito ativista, pacifista, tem muito nazista, vigarista, tudo quando é ista agora ta de olho na riqueza da coleta do lixo. Aí eu coloquei isso nesse personagem, vários questionamentos, sobre sem-teto. Ele questiona que se não fosse as ocupações, uma frase lá, que se não fosse assim, “é tanta gente morando na rua que, se não fosse os sem-teto fazendo ocupação ia faltar rua pra tanta gente morar”. Então vamos questionando tudo isso, fala sobre a reforma do centro né, que eu brinco com a, com os despejos né, insultando lá, é, as autoridades, então que ele fala né que “Devagarinho tudo, tudo vai sendo tomado por habitação, a velha barbearia da esquina, ah, o pobre morador de rua, os moradores de cortiço, a prostituta. Tudo, tudo, tudo vai sendo jogado pra longe, bem longe. Ah, o terreno vai ganhando outro valor à medida que o vizinho pobre vai se mudando pra longe né”. E tira esse barato assim, e aí insulta um pouquinho a igreja né, que ele faz a pergunta assim “Onde morarão os pobres?” meio em canto gregoriano aí outro já responde “Na puta que o pariu”. E ele questiona em alguns momentos, pensou em pobre pensou em albergue como se isso resolvesse, então ele tem um misto com todas essas etapas de uma pessoa que tá tentando se encontrar. Só que na peça ele vai se degradando, ele tem desilusão amorosa, ele lembra da namorada que foi embora pra outro país e deixou ele, não escreve. Ele lembra que a família não, ele né, essa coisa da casa que ele não pode voltar, que virou um campo de batalha, isso eu brinco, né. Então esse personagem tem muito de mim nele, mas ele chama Quim não propositalmente e “Diário de um carroceiro” também porque nisso que eu tava escrevendo a peça não tinha um título pra peça e eu não tava conseguindo costurar o monólogo, eu tinha muitas histórias de coisas minhas, de coisas que eu vi, de coisas que eu vivi, mas não tava conseguindo costurar. E aconteceu de eu chegar na Sé, que tava um cara lendo lá né, e eu pensei que ele tava lendo uma Bíblia, cheguei “Pô cara, que legal, ta lendo a Bíblia aí tal”, de repente “Tá certo tem que se apegar a alguma coisa, tá se apegando em Deus” aí ele virou pra mim “Que Bíblia rapaz, isso aqui não é Bíblia não” falei “Não?” mas que que é isso aí, deixa eu ver. Ele não deixou “Não, rapaz, isso aqui é a minha vida, isso aqui é meu diário”. Aí eu falei “Diário...” aí eu falei pro cara “Pô, como é que você chama?” “Chamo Joaquim.” Falei “Putz, Joaquim, você acabou de resolver a minha peça. Eu to escrevendo uma peça aí eu vou chamar Diário de um carroceiro”. “Diário da puta que o pariu, faz o diário que você quiser”. Aí eu peguei e saí, ele bravo, mas putz, eu saí dali na hora, cacei um papel né, no chão, que eu ando sempre, andava com caneta com coisa, cacei um papel no chão e escrevi lá “Diário de um carroceiro” e o meu personagem é Quim, meio que misturando isso aí né. Eu não sei por onde anda, eu não vejo também a gente não, algumas pessoas a gente consegue relembrar, hoje as pessoas me conhecem, eu não conheço todo mundo mais. E, não é mais, eu nunca conheci todo mundo né, quem morava comigo no albergue eu sabia quem são, mas tem tanta gente, só no albergue que eu tava tinha 1200 pessoas. Então tem gente que a gente vê que melhorou, tem gente que a gente vê que caiu de vez, tem gente que a gente vê que desanimou, tem gente que foi pra frente. E aí eu fiz “O diário de um carroceiro” passei pro Max, ele passou pra namorada dele, que ela vivia cobrando “Cadê esse texto?”, ele falou “Não, o cara vai...” “Que não tem, não existe Tião, nem comédia, não existe diário de um carroceiro”. E ela com vários textos bons que ela queria montar um espetáculo de autores consagrados ela tinha, né, mas o Max enchia o saco dela que tem um “Diário de um carroceiro”, aí ela falou “Ó, Max, eu não quero conhecer esse Tião. Você me traz o texto quanto estiver pronto. Aí agora tem que dar pra ele um prazo, que tem pouco tempo, poucos dias. Se eu gostar aí eu vou querer conhecê-lo. Se eu não gostar, eu não, não vou ofendê-lo porque eu não, porque a gente não se conhece, não preciso dizer nada”. Aí passou um dia o Max veio, desesperado, cheio de contrato pra mim assinar e tal, autorização, se eu já tinha registrado a peça. Tinha registrado, desde o Bonifácio, que a assistente me orientou “vai lá na FUNARTE, registra sua peça”, então quando eu escrevi o Bonifácio eu, a hora que eu passei pro disquete eu imprimi uma cópia pra dar pra eles e já passei na FUNARTE e registrei. Aí ele veio “Não, porque a Iara Brasil adorou seu texto e nós vamos colocar em cartaz e agora ela quer te conhecer” falei é, bom, aí marcamos um encontro lá no Teatro Ruth Escobar. Foi uma emoção pra mim, a primeira vez que eu pisei naquele teatro né. Eu fui conversar com ela pensei “Putz, ela vai ensaiar minha peça pro albergue, mas é uma honra pra mim” aí fui lá, conversei com ela, nós conversamos, aí me apresentou atores pro papel, o André Cecatto da turma do Carandiru, o Eduardo Silva que é do Castelo Rá-Tim-Bum e, ela tem um bom currículo, o Max e, quando a peça estreou, acabou estreando com Antônio Carlos de Niggro que era da Turma do Gueto. Era tudo turma que eu via na TV assim, quando falou “Olha, quem vai fazer tua peça é o AC”, eu olhei “O quê!?, Ele vai fazer?” “É o Tião nos palcos, Tião”. Falei “Mas, mas cara vai fazer no albergue...” “Não, não é no albergue é no teatro profissional”. Aí eu não acreditava quando a gente ia nos teatros fazer o ensaio, quando ia estrear no Fábrica, fui lá ver no ensaio, falei gente. E aí eu comecei a, me metia na direção e foi mais ou menos por essa linha né, acabou depois de um tempo que a peça estreou e eu tinha um encontro com o presidente Lula e os catadores no Glicério, aí me falaram que o presidente tá vindo, ele quer ver a sua peça. Falei “Presidente?” aí ia ter uma cena, duas cenas da peça que não dava pra ser inteira que é uma cerimônia grande. E aí eu sentei do lado do presidente pra assistir a peça né, eu já o conhecia, já tinha visto em outras ocasiões, inclusive os próprios catadores. Mas essa foi inédita pra mim né, falei “Pô, escrevi uma peça que era pra eu apresentar no albergue, no fim não sou eu que faço, ela tá no circuito profissional, a sociedade tá vendo, o presidente tá vendo, tá todo mundo vendo” falei, aí eu me lembrei muito daquele senhor, falei gente, ele tinha razão. Putz, de eu falar pra essas autoridades, falei não foi nem o prefeito, chegou no presidente da república. Isso pra mim foi uma coisa assim, caramba, eu tenho pra mim que esse cara é algum anjo que apareceu aí, que tava ali e conversou comigo porque não, não vejo ele muito como humano muito normal não, pela situação que foi e pelo que, que veio acontecendo desde então. Né. E eu passei a me dedicar muito ao fórum da população de rua, eu acabei participando da fundação do Movimento Nacional da População de Rua, dos moradores de rua né, porque eu comecei, falei “gente, to me dando bem, as pessoas que eu conhecia tão se dando bem”, eles criaram a casa do estudante lá no, os moradores de rua, criaram a casa do estudante lá no Brás, que hoje tem uma irmã que cuida. Deles, alguns foram pra faculdade, por incrível que pareça, os caras que moraram, que comeram na rua, no albergue, o cara conseguiu faculdade, outro conseguiu SENAI, outro entrou na Metalúrgica e tem um outro que virou agente de saúde. Tem um que foi pra Cuba agora estudar Medicina. Tem o Joel que fazia árvore na minha peça, ele começou a trabalhar como vendedor de cartucho na Santa Ifigênia, ele virou gerente, ele tem a loja dele agora, ele tem o carro, ele tem as coisas dele. O Carlos Henrique, é um outro que atua comigo, ele montou, inventou o campeonato de futebol dos moradores de rua que tem todo ano. Nós tamos agora lá hoje na segunda-feira solidária dos moradores de rua. Então fui me envolvendo, falei putz, dá pra gente sair junto e se unir pra tentar mudar. E aí teve o massacre dos moradores de rua em 2004, aquilo me deixou muito indignado, eu já tava no conselho de assistente social, por conta dessa atuação com o teatro, eu fiquei conhecido quando o pessoal tinha aquele de representante de usuários, eu fui um dos indicados do meu serviço, fui pra região, fui eleito na região e fui pro municipal, acabei saindo como titular. E participei 2004, 2006, eu tô no segundo mandato como conselho. Então quando aconteceu aquilo lá eu tava no conselho já e tentei fazer alguma coisa. Acabei conhecendo o padre Júlio, que eu tava num sepultamento de quatro deles lá, foi tudo num dia só, foi outra coisa que, muito pesado aquilo lá, de ver as quatro pessoas no caixão e outra vez com o nome de desconhecido, a plaquinha no caixão né, que ele não tinha sido identificado. E eu me lembrei do pessoal que morria no lá hospital, um tava com um número, falei gente, e aí eu tava no sepultamento, falei pro padre Júlio, precisava de carona pra voltar pro centro da cidade, né. Aí ele, nesse tempo eu fui pro albergue de São Francisco e depois eu fui, de lá me encaminharam pra moradia provisória, que é um outro processo, moradia provisória diferencia do albergue que a gente paga, daqui a pouco falo disso, a gente dá uma contribuição pra morar, não é como o albergue. E aí eu falei com o padre Júlio, ele me ofereceu carona, viemos conversando e eu falando “Pô, padre Júlio a gente tem que fazer alguma coisa aí, esses caras mataram aí, vai ficar desse jeito”. E ele já estava organizando atos e aí conversando ele falou “Você é uma liderança né Sebastião? Você é uma liderança, você tá falando porque você é do conselho de assistência, já tinha ouvido falar desse negócio de teatro” eu falei “Qual é, eu almoço muito na São Martins, mas não conhecia o senhor não, mas eu não sei o que é essa coisa de liderança não, mas é, eu tenho muitos amigos e a gente tá sempre junto e a gente consegue juntar mais pessoas e vamos participar dos atos, vamos cobrar”. E aí em 2005 acabei fundando lá, participando da fundação do Movimento da População de Rua no Festival de Cidadania de Belo Horizonte. Foi outra coincidência eu com a peça, pronto pra concluir ela, foi num festival de catadores, então tinha catadores do Brasil inteiro, do mundo. Tinha catadores da Índia, da Argentina, os “cartoneiros” de outros lugares e pessoas que moravam na rua de quinze estados nesse ano eu encontrei lá. Falei ô gente, tem um movimento nacional dos catadores, vamos criar um movimento da população de rua assim quem sabe a gente consegue se defender, nas cidades, se ajudar, tentar ajudar as essoas que passaram pela situação e não se levantaram igual a gente tá se erguendo ainda. E fui feliz na hora da, fui anunciar a fundação no movimento lá, aí me escolheram pra proclamar a declaração do movimento nacional né. Que eu não lembro direito, mas foi mais ou menos que eu disse assim, as palavras que saíram lá, né, “Fica sabendo a sociedade do mais rico, da mais alta autoridade ao mais simples morador de rua que mora embaixo do viaduto, está fundada a partir de agora o Movimento Nacional de Luta e Defesa dos Direitos da População de Rua e a partir de hoje nós não vamos aceitar mais esse tipo de humilhação e violência.” E nós, chega, foi um basta de ver e, de lá pra cá o movimento vem, a gente vem tentando acontecer. Não é fácil porque tudo nesse país é, no mundo, no país, é política, ou é religião, ou é ONG, você não tem como fazer as coisas enquanto cidadão, de modificar as coisas, você tem que passar por algum desses processos. E nós somos um movimento que, diferente de todos os outros, que ninguém tem nem dinheiro pra nada né e só tem vontade de fazer alguma coisa. Então a gente enfrenta algumas dificuldades pra se organizar nacionalmente, mas, estamos conseguindo porque a gente viaja muito, quem é do movimento viaja porque pagam a viagem, mas também tem os “trecheiros”, tem os moradores de rua que hoje tá aqui, outro dia tá lá, outro dia tá não sei aonde. Tanto que eu fui pra Porto Alegre há dois meses atrás, eu propositalmente fui dormir na rua lá, a hora que eu cheguei todo mundo me conhecia de lá de São Paulo. “Nossa, vocês tão aqui?”, “Ó tamo falando do movimento aqui.” Fui em Belo Horizonte, tem um movimento, então a gente tá conseguindo se organizar de alguma forma e a peça abriu um pouco dessa discussão. Depois, nesse dia do encontro com o presidente tava lá uma senhora, uma moça chamada Lúcia, e essa senhora falou pra mim “Olha Sebastião, eu sou do projeto do Dulcinéia Catadora e a gente queria lançar um livro com um texto seu, livro de poesia. Você não cede uns textos pra gente, a gente conversa como é que faz? Tentamos te ajudar, você nos ajuda. Mas tem que ser uns textos com conteúdo, a gente vai olhar se interessa ou não”. Aí eu entrei com ela pra ver, eles estavam preparando lá pra dar um presente pro presidente né, que no fim não deu tempo de ele passar lá, mas mandaram entregar. Aí eu fui lá ver, falei bom, a homenagem que era pro presidente acabou que quem desfrutou fui eu. Visitei o espaço todo e eu vi aqueles livros feito a capa papelão a mão, os caras fazendo, a molecada fazendo, a rapaziada ali, os filhos de catador. Eu olhei, olhei assim “Nossa, eu quero escrever pra esse projeto sim” aí, ao invés de ela estar me convidando eu que já tava querendo escrever. Então foi uma maravilha. Aí eu falei com ela, só que eu não sei como é que eu vou fazer, mas eu tenho várias poesias, desde que eu entrei no albergue ao final, lá tinha acesso à internet gratuito. Então aquelas poesias que eu escrevia no papel, comecei a botar no e-mail e tem algumas coisas que eu escrevi, se você tiver pressa te mando essas pra você ver, senão eu vou escrever. Ela falou “Me manda, vou analisar, se interessar a gente coloca, senão você escreve alguma coisa” aí mandei pra ela logo perto do Natal, aí eu já tinha um telefone, o grupo de teatro me deu um celular porque eles estavam cansados de não me encontrar, às vezes tinha compromisso alguma coisa, não me encontrava e eu pensava que o ator, o outro que tinha que dar entrevista. De repente eu tava me vendo tendo mais espaço do que eles e eu falei uai, mais uma vez a gente ta, aquela história da voz a gente tamo tendo, vamos utilizar esse espaço. Aí ela me ligou e ela tinha adorado tudo, falou “Nossa num escreve nada, eu quero trabalhar isso aqui. Depois a gente pensa em outra coisa pra você escrever, mas eu quero colocar esses textos”. E aí foi que surgiu “Kátia, Simone e outras marvadas” tá vendo. Eu chamo de poesias e ela entende como poesias mas sei lá o que que é aquilo, eu chamo de crônica, de pensamento mas tem alguma rima mas, eu to contando uma história em cada uma delas. Cada uma tem alguma coisa a ver, do cara que tá na praça, do cara que tá na rua, dos sem-teto, da desocupação, das famílias, enfim, eu faço. E Kátia, Simone são alguns nomes de algumas ex-namoradas que aparecem aí, de pessoas que eu gostei, eu gosto e aí brinco “e outras marvadas” que é uma versão entre essa Kátia também, entre o nome de uma mulher e também a cachaça, que chama de Kátia. E marvadas tá entre essas marvadas, são as mulheres, mas também é todo esse monte de problema de bebida, de tudo, de droga, tudo isso que existe e as dificuldades. Ficou uma brincadeira com isso né e aparece tanto nesse livro como na peça a Rose que eu chamo de uma licença poética porque todo mundo insiste que eu sou apaixonado pela Rose né, ou que eu fui. Mas eu, a Rose é uma grande amiga que, quando eu tava concluindo “Diário de um carroceiro” eu falava assim, por que que esse filha da mãe bebe tanto? Só porque ele ficou desempregado, ele ta trabalhando, ele não começa bebendo, ele não pode ser bêbado o tempo todo, ele vai ter algum motivo que ele vai. Aí o que é que eu faço, e aí a Rose é uma pessoa que criou um fórum de debate, que é um fórum de estudantes aqui, que discutiu, população de rua, moradores de rua e nós tínhamos o fórum dos moradores de rua. Então nós sempre tínhamos atividades juntos, fizemos o primeiro Natal solidário junto. Eu acho interessante que foi uma coisa que surgiu assim, uma ideia na cabeça, falei: “Gente vamos fazer um Natal solidário, pra comemorar o Natal com os moradores de rua que é muito triste isso. Eu passei o Natal e o ano novo na rua e isso é muito ruim, todo mundo fecha e eles continuam.” E aí, falei assim no fórum de debate, todo mundo apoiou, nós vamos esse ano pro quarto, 2004, 2005, 2006. Quarto Natal Solidário. As feiras solidárias, a segunda, então eu me visto de Papai Noel, faço uma brincadeira com as crianças lá e tudo e, o ano passado foi até engraçado que consegui dar presente de verdade pra Favela do Moinho, pra muita gente. Que eu fiz muitos amigos nesse meio tempo, sem-teto eu entro em qualquer ocupação, conheço qualquer grupo de sem-teto. Favelas né, tipo o Moinho, é uma família praticamente inteira e aí nesse, nesse meio tempo eu fui pensando assim, a gente tem que, que ver um jeito de, com ou sem dinheiro, isso tudo que eu to passando de experiência com ele, a gente tem que fazer acontecer. E a nossa, e aí com essa carta, teve uma, a Rose então começou a me apresentar pras amigas, pras amizades dela, eu ia em outros ambientes e quando ela conseguiu uma bolsa de estudos pra ir pra Portugal. E aí ela fez um, aqui no Itaim Bibi, um coquetel de despedida lá num bar, que ela ia embora e tal, eu escrevia nesse tempo, é outro ponto, no jornal “Trecheiro”. Que nesse cavar espaços eu, existe um jornal que chama “Trecheiro: Jornal de notícias do povo da rua”, e que eu conversei com o coordenador lá e estreei um espaço chamado “Direto da rua” que eu parei de escrever agora em agosto, dei um tempo e eu vou voltar agora com uma outra coluna com um outro nome que eu to estudando, que eu quero passar a escrever dessa visão que eu tenho agora de outras óticas né, de outras experiências. Que lá eu escrevia sempre com a ótica da rua, e sempre com aqueles questionamentos, agora quero misturar esses lados todos. O lado do profissional que trabalha com a gente, o lado dessa questão da política, do que a gente quer, do que a gente precisa, mas o lado de contrapartida vou estrear esse espaço. E aí nessa despedida da Rose, a Rose “Tião, você não vai beber não?”, “Tô tomando soda.”. Aí tinha um japonesinho do lado tomando whisky, e a gente com copo igual né e o japonesinho do mesmo lado, passa a soda, toma o whisky. Aí brincava ela falou “Você ta bebendo não?” “Tô tomando whisky” “Ah, você ta tomando o que?” “É soda!”. Aí o japonês “É whisky, é soda...” dai a pouco ele bêbado começou a misturar que ele tava tomando soda e me entregou também e aí eu criei coragem e falei “Rose, você me deu uma ideia que salvou a minha peça.” Ela falou “Ih, já ta bêbado né Tião?” falei “Não. Achei um gancho pro Quim!”. Por quê que esse cara bebe tanto? É a namorada dele que foi embora pra outro país estudar e esqueceu dele. Vou aproveitar você pra zoar todos esses universitários, esses estudantes de TCC que eu, estudante de TCC, eu adoro estudante, mas eles são militantes. Ficam sendo oportunistas e temporários, talvez não por maldade, mas eles se formam e eles somem né. Ele trabalhou com a comunidade, ou com uma ocupação, ou com a casa de convivência, com a casa de acolhida.

(troca de fita)

P/1 – Continuando o depoimento de Sebastião de Oliveira, HV085.

R – Perdi o fio.

P/1 – Peraí. Você tava falando do dia em que você entendeu porque que o Quim...

R – Ah sim, sim, eu tava falando do TCC. Então eu falando com a Rose, porque aí eles se formam, aí eles somem eles começam trabalhos lindos, às vezes cativa a comunidade, mas eles somem e não dão um retorno pra aquelas pessoas. E eu falei vou aproveitar Rose, porque como você muita gente se forma e some do Brasil. Com bolsa ou sem bolsa vai pra lá e não dá nem um retorno pra cá né. E foi trabalhando com as pessoas daqui que conseguiram a bolsa, eu chamo isso às vezes como deter conhecimentos, aprendem e não repassam então os outros continuam não sabendo, que não era o caso dela, no caso. Deixa eu puxar o saco dela um pouquinho né, porque se ela escutar isso daqui. Aí eu falei, mas você me deu o gancho, o Quim apaixonado por você, você deixou o cara morando na rua, foi fazer tua faculdade por causa de um bendito canudo e, eu vou zoar os estudantes. E a Rose riu e falou “Faz Sebastião, faz a tua peça, coloca lá o... Não bota Quim não, o Tião ama Rose, vai, o Tião bota lá, zoa. Você ta é movido a whisky.”. E ela não botou fé não, depois de um tempo que ela tava em Portugal que ela pegou pela, pelo Fantástico, pela televisão aí da vida “Diário de um carroceiro” aí mandaram, a filha-da-mãe da prima dela foi assistir a peça. Quando a prima dela assistiu falou “A Rose!” aí, não sei o quê que mandaram pra lá, sei que a faculdade dela liberou e ela veio inclusive assistir a peça né e, até aí tudo bem que tem as partes que ela é super elogiada, mas tem umas horas que ela é xingada de tudo quanto é nome, de tudo quanto é jeito, que ele zoa também essa questão de faculdades. Então alguns momentos ele diz que ela não tá fazendo faculdade, ela tá é dando pra ganhar dólar. Imagina a faculdade que essas moçadas tão fazendo, brincando assim né. E o momento do cara bêbado machista, que eu trabalho todos esses pontos na peça, né, aproveitei pra brincar, que ele questiona também a evolução da mulher, com autonomia. Então eu coloco que tem mulher que dirige caminhão, dirige ônibus, é pedreiro, mestre de obra a mulher, então ele brinca muito com isso como se isso fosse um gerador de desemprego. Seria uma competitividade né e, ao mesmo tempo ele tá frustrado porque além de ele falar de tudo que a mulher quer ser, ele tá falando que ela se forma e ela fica mil vezes superior e melhor né. Mas ela questiona e nisso ele vai desse gancho pro diploma de faculdade pra todos, então ele sai da mulher e vai pros homens, então ele tem esses boyzinhos que se forma né, agora, e quer entender mais do que mestre de obra. Esses engenheiros recém-formados, engenheiro recém-formado sai por aí botando banca de doutor, querem saber mais do que mestre de obras, uma lástima. Então ele brinca com isso, da desqualificação profissional que eu coloco como hoje pra pessoa conseguir um emprego ela, tem a profissão, mas ela não tem a escola, ela não consegue a vaga né, pra ser gari ela faz prova de segundo grau. E pra tudo, ser segurança, vigilante, porteiro, tudo ela tem que ter escola e eu coloquei um personagem ali que não tem essas coisas e ele, e aí a prima dela assistiu, mandou pra ela, ela veio, quando ela veio assistir falei “Meu Deus do céu, hoje eu to lenhado”. Foi um colega meu com a criança dele de colo e, a peça pra maiores de doze falou “É, deixa a menina comigo” eu falei pra ela não ter o trabalho de assistir com a Rose a peça né. E essa menina dele inclusive me adora desde que nasceu, ele, a minha esposa, a criança. Aí alias é outra estrela né, tudo quanto é lugar que eu estive ela teve também, jornais, rádio, uma vez a polícia vinha me pegar numa passeata, ela veio no meu colo, pequeninha, pegou e acabou saindo no jornal, foi uma loucura aquilo. Eu ainda assim pra ela “Oh minha segurança, tá vindo a polícia, vem pro colo do vovô” eu falo com ela. Ela veio assistir né, depois eu pensei “Nossa, agora ela me processa, ta tudo lenhado” aí ela foi embora e falou “Amanhã eu vou te ligar, eu quero conversar com você, a gente vai almoçar”. Viemos aqui na Vila Madalena, no Fran’s Café lá. Falei ei, pronto eu vou lá, eu tenho que encarar a fera “E me leva uma cópia do texto” vou levar, falei essa peça tá fazendo um sucesso danado, essa menina vai encrespar, vou ter que mudar a personagem, o nome, alguma coisa. Aí foi lá, aí ela tava super contente, parabenizou, se sentiu lisonjeada, super homenageada “Aquelas partes que você me xinga, eu perdoei porque o personagem lá está bêbado, então bêbado não sabe o que fala” eu falei “Ai, que maravilha” e ela já levou isso pra faculdade de Coimbra também deu expansão. Juntou a peça com o livro, e no livro por incrível que pareça eu pensava, eu não pensava que ele fosse impactar tanto, por ser capa de papelão, que eu adorei tudo, e pela forma que eu escrevi. Mas eu percebo, as pessoas têm lido e têm refletido com ele né, tá em outros países, o pessoal pega, em outras cidades. Lá na Bahia, em Vitória da Conquista o pessoal tá fazendo uma peça que chama “Confissões de Tião” sei lá que sala que vai virar isso, mas é com o livro e com uma moçada que trabalha lá com os moradores de rua. Então eu fui percebendo pela arte uma facilidade de achar as soluções melhor do que a minha dentro do conselho de assistência e, melhor do que a minha no fórum da população de rua quando a gente tava irado, indignado, e melhor do que na passeata dos moradores de rua quando a gente só pensava o quê que a gente faz porque, nem todo mundo é padre, não vamos partir pra ignorância com esse povo, com essa sociedade né. E eu vejo o que acontece, o que o PCC fez em São Paulo, o que o crime faz no Rio, o que o Esquadrão da Morte faz, o que a FARC faz aí no outro país, o que o Hugo Chaves faz. Ainda falei isso aí não é forma de revolução mais, mandado por ditadura, a mão armada pra você declarar uma guerra que, quem não tá do lado de cá é inimigo, você mata inocente, você não sabe quem que tá matando. E eu vi na arte uma forma melhor de trabalhar essa injustiça e essas revoltas e até brincar com isso, eu pude sentir no teatro Maria De La Costa, eu levei 390 moradores de rua pra assistir a peça. E como eles se viram naquela peça né, e como que isso chegou pra gente que não nos ouviria normalmente no meio da rua, enquanto eu morava na rua, quantas vezes a pessoa pulava por cima de mim pra passar, não pede nem licença. Quantas vezes você vai perguntar a hora e a pessoa sai correndo, você vai querer ir almoçar em restaurante e mesmo com dinheiro não pode, nem no restaurante popular de um real você não pode. O morador de rua muitas vezes não pode porque não tá muito bem arrumado, ou embriagado, ou cheirando, sei lá como é, os próprios albergues fazem uma seleção de quem eles vão dar a vaga né, então é complicado isso. Aí eu vi que não, com a arte to conseguindo falar com eles, to escrevendo um romance, já tenho desde 2003, essa porcaria não fica pronta, que começa a mudar, mexer de novo. Mas nele eu quero ser mais amplo, completo, mas esse livro de poesia ele me tirou um pouco dessa ansiedade, me deu mais tranquilidade. To escrevendo uma outra peça pra um outro grupo de teatro, que eu quero trabalhar a vida no centro, falar dos conflitos humanos em geral. O “Diário de um carroceiro” acho que atinge isso também, ele não fica restrito a quem é catador de papelão que entende essa história, ele vale pra pensar a vida pra, de repente pra pessoas que nunca souberam o que é ter dificuldade na vida porque sempre teve abastância, teve coisa demais não encontrou talvez prazer ou gosto na vida. Ele passa muito disso né e, recentemente, é um outro processo, eu tinha um cara que eu queria conhecer de todo jeito que ele sempre faz filme, cineasta, e eu encontrei ele no aeroporto, eu tava indo pra Brasília, pra uma reunião com moradores de rua e catadores de papel, sobre política de resíduos sólidos que estão lançando agora, lançou uma lei federal, os municípios estão aplicando. É complicado né, um lado acha que é bom, outro lado acha que é ruim, uma hora favorece empresa, outra hora favorece, é muito complicado esse lado. Onde tem dinheiro, não é mais lixo né, como disse aquela hora, quando era lixo a gente era lixeiro, não é mais lixo, agora é uma coisa que agregou e tem valor. Então tem interesses muito grandes por trás né, e aí encontrei o cineasta, entreguei o livro pra ele, falei da minha peça, pedi pra ele ir assistir, e ele foi assistir a peça, quando acabou ele foi, foi conversar falou “Olha eu vim aqui por um outro motivo, você sabe que eu já fiz um filme sobre moradores de rua, sobre movimentos de moradia, sobre ocupação”. Ele fez “A margem da imagem” que é os moradores de rua, “A margem do concreto” que é sobre o, as ocupações, sobre as moradias. E ele ta fazendo “A margem do lixo”. “Eu vim te chamar pra participar desse filme, mas eu não quero que você faça papel de catador e, eu quero que você participe sim, de maneira, você vai escrever uma cena pro filme, e essa cena você faz do jeito que você quiser. Eu vi pela sua peça, faz do jeito que você quiser. Manda o recado que você gostaria de mandar e que o carroceiro Tião, que os catadores gostariam de dizer. Você vai dizer pelos catadores do Brasil inteiro. De movimentos, de cooperativas, organizado, desorganizado, do jeito que você entender”. Ele tá fazendo um documentário que ele tá registrando as cooperativas, e as formas de organização das cooperativas daqui e de outros estados e, quando ele me deu a cena pra escrever eu escrevi, só que eu escrevi não pensando nas cooperativas, eu escrevi por essa relação que eu tenho com a favela do Moinho, comunidade lá do Moinho e lá, curiosamente quase todo mundo tem uma carroça. Os barracos são de madeira, de alvenaria têm dois ou três, em mais de 560 barracos, eles têm a carroça, então eles vivem de catar papel. E eles não têm um espaço deles de cooperativa e tal, mas eles catam e vendem e vivem disso. Então eu escrevi a cena pra favela do Moinho, falei pô, tudo quanto é favela que fazem em filme é tráfico de droga, é polícia e é bandido. Vai ter um tiroteio e vai ter fuzil, vai ter olheiro, vai ter não sei o quê. Falei mas aquela favela ali o pessoal trabalha pra caramba então, já que ele tá dando uma oportunidade ou contar o que tem numa favela daqui de São Paulo, do Brasil, e já pensando que esse filme vai pro mundo inteiro né. Eu gosto de pensar alto. Então mostrar uma favela que as pessoas têm trabalho, mas agora eles não têm esgoto, eles não têm água, não têm luz, não têm porra nenhuma e nem por isso tão saindo matando ninguém. E aí escrevi, mandei o texto pro Evaldo [Mocarzel], falei agora preciso te levar pra conhecer a favela do Moinho, peguei “Mas pô você não ia fazer pra cooperativa?” “Vamos lá pra você ver primeiro depois você fala.”. Quando nós chegamos lá que ele foi vendo os arredores de fora tantas carroças, o lugar ele olhou tudo, o prédio onde acontece a cena principal, que ele chama de locação né, que eu não sabia, que ele ficou “Gente, é tudo que a gente queria” ele, o pessoal diretor de fotografia, de imagens. E aí quando eu escrevi o Evaldo falou “Olha Tião, eu não vou dirigir essa cena, e nós não vamos dirigir essa cena, toda equipe ta aí, você manda em todo mundo, faz o que você quiser. No câmera, tem um diretor pra você mandar nesse diretor, tem aquele, tem aquele, tem aquele... Você vai dirigir do jeito que você quiser.” Aí eu fui lá, ensaiei o pessoal mais de um mês pra depois fazer a cena, quando eles vieram acabei, foi satisfatório aquela direção ali, até porque

eles criam tão habituado que quando eles recebiam uma outra ordem lá e ação ou ensaiando eles não faziam, eles ficavam esperando falar. E às vezes de olhar, de um algum gesto ele sabia qual que, que um dele tinha muita fala. Eu achei o momento fantástico porque além do carroceiro, agora deu pra falar de uma comunidade inteira e algumas coisas que eu gostaria de falar, que obviamente eu não vou falar nunca num ato, que se eu to com a igreja me apoiando eu não vou sentar a borracha na igreja. Se eu to com um partido político me apoiando, ou os políticos, eu não sou partidário, mas eu tenho que ter limite né, entre eu virar, vou lá dentro do congresso dizer “Vocês são uma corja de ladrão” já prende de cara por desacato. Então tem mil coisas que eu não posso, mas no filme eu soltei tudo num personagem que é um catador, que é um carroceiro e que magicamente ele foi um personagem ali e foi, eu não sei a proporção que vai ser isso tudo pra frente, mas eu acho que ainda vem muito mais coisa por aí.

P/1 – Sebastião, pra gente ir encerrando que tá maravilhoso, mas, eu queria que você me falasse qual é sonho hoje?

R – Bom, vamos começar das bobagens. Eu tenho uma vontade vai, de fazer um cruzeiro, eu tenho que fazer um bendito dum cruzeiro. Eu quero falar com a ONU, tenho muita vontade de falar com esses governantes mundiais, bendito do _______ que acha que manda no mundo, faz o que quer. Tenho muita vontade de falar pra eles, falar com eles, de ver essa, agora um sonho é ver justiça né. Eu tenho muito sonho de ver, de imaginar que as pessoas tenham casa, possam viver do jeito que elas quiserem, não passar fome, poder estudar, poder se vestir, que é outra coisa tão ruim, coisa boba demais, mas a gente não consegue nem comprar roupa pra vestir, um sapato. Isso é tão ruim, tão indigno, você outro passeando, não sei quanto mil pra voar de helicóptero, então acho que o meu sonho hoje é que as pessoas não percam a capacidade de sonhar, que eu acho que a diferença de quem sai da rua, você se torna repetitivo, mas eu digo sempre, quem vai sair da rua o que nunca vai sair é a capacidade de sonhar. Isso vale pra todo mundo, pra sem-teto, pra classe média que acha que a classe média tá endividada até o pescoço, cheio de carro na garagem, cheio de coisa, cheio de dívida, loucos aí com os cartões. Pra eles, pra muitos ricos, pra esses presidentes, eu não sei qual que é a do Bush, qual que é a do Chavez, qual que é a do Lula, ou qual que é a de um líder, de um, de repente um mané que nem eu que resolve virar vereador ou deputado e não faz bosta nenhuma a não ser melhorar a própria vida né. Então o meu sonho é isso, que as pessoas se respeitem e vivam bem, não tenho ilusões de que o mundo vai durar muito tempo e acho até justo, que a natureza é tão justa que não vai permitir isso também, senão, se a natureza não fosse justa só morria pobre, só adoecia pobre, como com essa, aquecimento global, aí a África que fica com sede, é não sei aonde que a AIDS que não tem cura, é não sei lá que as pessoas tão só em pele e osso. Então como a natureza é justa, melhor do que a morte ela é justa, o meu sonho é que com essas lições a gente aprenda alguma coisa e talvez melhore algum dia.

P/1 – Outra pergunta. O que significa essa bandeira pra você?

R – Olha, essa bendita dessa bandeira, se eu pudesse eu fazia uma camisa dela e usava por debaixo disso daqui, mas ela é meio pele pra mim. Ela tem muito a ver com essa, esse outro Brasil que ninguém conhecia, que eu faço parte dele e que eu acho que tamo trazendo agora essa cidade, trazendo voz e trazendo vez. E que é um Brasil ainda de pessoas honestas né, não é honesta porque é coitadinha, porque não tem coragem de roubar, porque não tem coragem... É honesta porque enfrenta a, eu digo pra mim quem fala “Ah, porque morador de rua é perigoso” Não é perigoso, se ele fosse perigoso ele não morava na rua, uai, metia um revólver na cabeça de um e todo dia ele dormia num hotel cinco estrelas né, comia aí bacalhau, contra filé, mas ele não ia pedir um real pra comer um churrasco grego. Então são todos uns coitados e vítimas né, eu acho que essa bandeira é de um Brasil que eu já conheci na infância. Do meu período de escola, quando eu entrei na escola, que a gente parava pra cantar o hino nacional ainda, todo mundo cantava, depois é que ia pra sala de aula e aquelas pessoas tinham uma vontade danada de, de servir a pátria, fosse pelas forças armadas, fosse pelo bombeiro, como hoje é pelo futebol, é pelo esporte, um monte de coisas. Eu penso isso, ela talvez signifique isso, esse Brasil que ao mesmo tempo que é festeiro ele é responsável, mas é justo, e simplicidade também, significa isso. Eu já tentei me livrar dela, mas vira e mexe ela tá no bolso, quando eu vou fazer algum, participar de alguma entrevista como essa assim, às vezes eu levo, não uso, mas ela tá comigo. Em atos, é uma coisa engraçada se você ver hoje sem-teto sair numa marcha aí eles podem ta com lideranças deles ou não, ou se tiver tudo desorientado, eu apareço lá “Oi Tião”, mas eu apareço lá com a bandeira, se organiza. Coisa engraçada, sobe no caminhão, pega o microfone, ou então “Vamos por aqui” ou “Vamos por ali” ou “Vamos praquela secretaria” e eu não sei o quê que isso representa pras pessoas né, isso eu não sei dizer.

P/1 – Pra terminar eu queria que você falasse o que você achou de ter dado esse depoimento, dessa entrevista pro Museu da Pessoa?

R – Olha, tirando pela experiência de um programa que a gente participou na semana passada, curiosamente eu tinha um blog há mais de um ano com pouquíssimos acessos. Ele passava de mil, quase dois mil, e ele foi pra dez mil acessos e com mensagens de todos os lados, de pessoas mudando de pensamento, pessoas tomando alguma posição, como veio mensagem de pessoas que nem sabe que pobre existe, nem sabe quê que é dificuldade. Recebi mensagem de criança de dez anos, de quinze anos, dezessete. Eu acho que essa participação aqui faz parte desse processo lá de trás dessa conversa com esse senhor mesmo, leva, faz alguma coisa né, por nós, faz com que as pessoas ouçam, a sociedade, pra mudar alguma coisa pra gente. E eu acredito que vai mudar alguma coisa, como tá tendo a feira lá agora, como tá tendo cidades repensando a rua, como tá tendo censo de população, como tá tendo mil coisas. Eu quero na medida do possível que eu acho que, a mídia e a imprensa todo mundo critica, mas ela tem um lado positivo né, hoje eu chego numa prefeitura ou num polícia, quando algum ato, alguma coisa, vou falar com ele e ele respeita, ele procura saber qual que é a nossa reivindicação. Ele não sai detonando, eu acho que isso é por conta desse espaço da imprensa que, pelo menos comigo fui feliz, fui tratado com seriedade. Eu não sei se amanhã vão fazer comigo o que fazem com muitos, como fizeram com o José Rainha, com outros aí, eu não sei se eles são culpados de tudo que colocaram pra eles. Como aconteceu com o padre Júlio recentemente, mas eu me sinto orgulhoso de participar, me sinto honrado e mais do que tudo eu acho que eu to cumprindo o meu papel. Que eu acho que, daquele acidente foi muita coincidência dizer que eu morri, mas pra mim nasceu uma outra pessoa mesmo e, é essa função que eu to desempenhando. Se fosse pra eu morrer lá seria do nada e se eu morrer hoje eu acho que, que vai ficar uma mensagem e principalmente eu faço parte de um time que luta pra que não seja banal toda essa coisa de hoje. Hoje tinha um morando na rua aqui, mas agora tem dez, ou tem mais de cem, tem vinte, é comum, eu fico pelo inconformismo, eu não vou me conformar nunca com isso achar que isso seja normal e natural. A minha satisfação de participar da entrevista é por isso, e depois eu vi o nome Museu da Imagem da Pessoa, falei putz, tem museu pra dinossauro, tem museu pra múmia e faraó tem museu pra... Mas um museu pra imagem e som, isso é bom demais e, a gente fica preocupado em manter contato com os ET igual estranho, não, tem que manter contato com a gente e fazer o mínimo pra, pra gente viver melhor, viver todo mundo junto, viver em paz.

P/1 – Sebastião, eu queria agradecer a sua participação. Obrigada.

R – Eu que agradeço a paciência.

Fim da entrevista