Museu da Pessoa

Um hino de alegria

autoria: Museu da Pessoa personagem: João Jorge Trinta

Projeto CVRD
Depoimento de João Jorge Trinta (Joãosinho Trinta)
Entrevistado por Rosana Mesiari
Rio de Janeiro, 04/12/2002
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: CVRD_HV137
Transcrito por Marlon Alves Garcia
Revisado por Luiza Gallo Favareto


P/1 - Qual é seu nome, local e data de nascimento?



R - Só que para te dar meu nome, data de nascimento e local de nascimento, eu preferiria começar antes.



P/1 - Eba!



R - Eu queria começar com a minha mãe. No ano de 1933, em São Luís do Maranhão. Havia uma mulher viúva com três filhas de uma média de treze, quatorze, quinze anos, operária, pobre, vinda de pais meio nebulosos, porque me parece que rejeitaram minha mãe. Nesse período, tudo me parece, eu não tenho nunca certezas, pois essa mulher, viúva em São Luís do Maranhão - que dizem que uma ilha é um bocado de terra cercado de águas por todos os lados, que me desculpe São Luís, que é uma ilha, que é minha terra, que eu amo e que vou falar - agora dizendo que são Luís é uma ilha cercada de água por todos os lados, mas era um bocado de terras também cercadas de muitas fofocas por todos os lados (risos). Claro, uma cidade pequena e maravilhosa, e maravilhosa que fosse assim, porque a fofoca também faz parte da vida. Quem não fofoca não tem saúde mental. E o povo de São Luís é muito inteligente, é onde se fala o melhor português no Brasil, mas a fofoca dominava. Imagina uma viúva já a dois anos que de repente, eu não sei se de repente, eu não sei se ela já estivesse acostumada, a minha mãe vai brincar no fabuloso, fabuloso mesmo, carnaval de São Luís, e em pleno carnaval aquela viúva deve ter dado uma belíssima trepada, deve ter gozado com todo ardor do sangue árabe, e eu me lembro, e estou falando disso porque eu me lembro não sei como, não sei explicar desta vivência da minha mãe no carnaval, e eu fui concebido exatamente no carnaval de 1933, porque eu tenho lembranças de trombetas, de luzes, de cores, de perfumes, que é o lança-perfume, aquela maravilha do carnaval passado. Eu tenho lembrança visual, auditiva dessa grande festa, dessa apoteose. É como se eu tivesse baixado na terra nesse momento solene, fantástico de pompas e circunstâncias. É como eu me lembro do meu nascimento. E hoje eu reverencio essa mulher tão pequenininha, tão tímida, mas tão corajosa, tão cheia de sabedoria, que foi minha mãe, chamada Júlia Jorge Trinta. Eu só vim a tirar essa conclusão 65 anos mais tarde, no hospital, quando eu tive a isquemia. Eu tinha um grande problema desde a infância, eu rejeitava minha mãe. Vou dizer mais, eu tinha asco da minha mãe. A minha mãe, aquela mulher tão carinhosa, tão meiga, tão cuidadosa comigo, no entanto eu repudiava, repudiava mesmo, e aquilo me causava um grande conflito: “Por que eu não gosto da minha mãe?” Eu vim a saber mais tarde que eu recusei até amamentar, eu recusei os seios da minha mãe, e isso foi uma tragédia para mim que eu carreguei até ter a isquemia, pois foi na cama do hospital que de repente eu pensei: “Eu nasci em 23 de novembro.” - Aí estou respondendo a sua pergunta inicial. Eu nasci no dia 23 de novembro de 1933. 33, quantas décadas, como o mundo se modificou, como as pessoas se modificaram, como o mundo, a ciência, a tecnologia, a sociedade, tudo, houve uma modificação, afinal de contas são setenta anos, quase um século. Pois bem, eu fazendo as contas, quem nasce em novembro, é o mês onze, tira nove meses de gestação, vai dar a concepção exatamente no carnaval. Foi na cama do hospital, Hospital do Coração de Laranjeiras, Doutor Carlos Escher, que de repente eu acordei para a minha concepção, eu fui concebido no dia de carnaval, o mês dois, para nascer em novembro. Aí veio o ano de 1933, minha mãe viúva, corajosa por brincar o carnaval, por dar uma solene trepada, mas acontece o seguinte: eu me questionando o por quê tendo o nascimento, uma concepção tão radiosa, porque eu tenho a lembrança de que eu vim para a terra cercado de luzes de cores, dessa euforia, e que responde também o por quê a energia, a alegria pulsa dentro de mim. Eu entendo a alegria como a energia primordial da vida, eu vejo a alegria todos os dias, no nascer do Sol, no cantar dos passarinhos, na vida, eu vejo a vida como um hino de alegria. É tanta coisa maravilhosa e radiante, plena, completa, que é uma alegria você observar as mínimas coisas. Minhas brincadeiras de criança eram observar as formigas. Então a alegria foi a energia básica do meu nascimento. E por que uma criatura tão bem criada, tão bem concebida, porque eu fui concebido numa festa, na festa que é minha vida, que é o carnaval, por que eu tinha aquele nojo, aquele asco, aquele repudio por minha mãe? Então minha intuição me deu resposta, não foi psicólogo, não foi psiquiatra. Eu fui concebido em fevereiro, passados três meses, quando a minha mãe percebe que estava grávida, eu me perguntei na cama do hospital, qual teria sido a reação daquela mulher, operária de uma fábrica de tecidos, sozinha, com três filhas, qual teria sido a reação dela? Claro, me abortar. E o que é um aborto? É um assassinato, uma condenação à morte, e eu como feto já tinha três meses, eu posso garantir que um feto de três meses já tem muita consciência. Pode não ter uma consciência clara, mas ele já tem um inconsciente, ele já está formado na sua sensibilidade, nas sua capacidade de absorver tudo o que a mãe transmite. E o que a minha mãe transmitia? Me transmitia medo, insegurança, morte. Portanto ficou registrado e eu fiz exames, estudei, fiz um tratamento mais tarde que está registrado na minha musculatura um trauma justamente aos três meses de idade. Quando na cama do hospital eu tive isso que eu considero uma revelação, quando me foi revelado o por quê dessa angústia, dessa minha tristeza profunda em relação a minha mãe, isso foi um choque, um choque benigno, porque naquele momento eu reconheci na minha mãe mais do que uma heroína, eu reconheci um ser de luz, porque essa mulher envolvida com tantos dramas, envolvida com tantos preconceitos, mas ela teve coragem de me segurar, de deixar que eu vivesse, ela não cometeu aquilo que tantas mulheres pressionadas como ela cometem, o aborto. A minha mãe me deixou viver e hoje eu estou falando aqui, fazendo um depoimento para contar os setenta anos, que foi uma vida que a minha mãe botou na terra, e que eu aproveito esse momento para prestar uma grande homenagem à Jùlia Jorge Trinta, minha mãe. Não sei dizer o nome de meu pai. Foi um homem que em pleno carnaval acrescentou prazeres da carne, do gozo, do sexo àquela mulher tão maltratada pela vida, que foi a minha mãe. Fica aqui registrada a minha homenagem à Júlia Jorge Trinta, porque ela que iniciou a minha vida, a minha história, e ela está viva, ela não está morta, está morta fisicamente, ela está viva, presente na minha vida como um raio de luz, como uma estrela maior. Agora eu posso começar a dizer. Meu nome é João Jorge Trinta, nasci em 23 do onze de 1933, em São Luís do Maranhão.



P/1 - Joãosinho, como era São Luís do Maranhão, que lembranças você tem de infância de São Luís?



R - A lembrança que e tenho da minha infância de São Luís, de minha família é tudo uma magia, coisas estranhas, coisas fascinantes. Eu admirava cada rua, admirava minha casa, meu quarto, o quarto onde nós dormíamos em redes, porque naquela época lá em São Luís não se dormia em cama, ou pelo menos nós que éramos pobres e que morávamos com outras famílias, família da minha tia. São Luís era fascinante, cada corrida que eu dava depois que eu voltava do colégio, porque aí há um fato muito importante. Apesar de ser operária, de ganhar pouco, com cinco filhos, a minha mãe nunca descuidou dos nossos estudos, tanto que cinco filhos criados com muito sacrifício, todos se formaram. Uma das minhas irmãs faleceu já com 25 anos, as outras duas, a mais velha, Eleuzina Trinta, que casou muito bem com um português que era dono de mercearia, tem filhos maravilhosos, talentosos, um deles fala sete línguas, estão muito bem colocados.

Enfim, a partir do sacrifício da nossa mãe, todos foram bem criados, mas sobretudo na educação, no estudo foi que a minha mãe se revelou batalhadora. Com toda aquela pobreza, com todo sacrifício em que nós vivíamos, ela nunca descuidou, ela nunca nos deixou sem o estudo. Eu estudei até o que chamam o Clássico, não sei hoje mais como é nomeado esse curso. Meu irmão mais novo, o Silvio Jorge Trinta se diplomou nos Estados Unidos, é professor de radar, hoje tem família, ganhou o prêmio da loteria federal. E a segunda irmã chama-se Aldenora Trinta, também casou, viúva hoje, com filhos, uma batalhadora. Essa é a minha família. Eleuzina Trinta Allen, do marido, a mais velha, a minha companheira, vou usar essa palavra que não explica muito, mas minha companheira intelectual. Eu sempre tive uma afinidade muito grande com Eleuzina, que desde cedo se revelou uma privilegiada.

Os professores de São Luís davam aula de graça, como o professor Rubens, justamente pela inteligência de Eleuzina. Sempre se destacou e tem um fato muito marcante na vida dela, ela não gosta que se fale sobre ela, mas eu estou falando, é um depoimento. Eleuzina durante a guerra estava com quatorze anos e trabalhando numa firma alemã. Pois bem, por causa da guerra os alemães tiveram que fugir do Brasil, e a firma, que era uma firma importante, ficou sob a gerência de Eleuzina, com quatorze anos, uma menina. Quatorze anos, hoje, já é mulher, naquela época, durante a guerra, em quarenta e poucos, realmente fazia diferença. Eleuzina sempre foi muito bem dotada. Lá em São Luís com bordados, nenhuma roupa do pessoal da sociedade, nenhum vestido era mostrado ou era vestido sem antes ter aprovação de Eleuzina. Ela realmente tem um talento para bordado que foi requisitada por Dener, os grandes costureiros. Tímida, nunca quis se expor, é o mal da minha querida Eleuzina. Aldenora teve uma vida mais simples, mas lutadora também, como toda a família. O Silvio também tem uma vida. Começou meio aventureiro na marinha, fez o curso de radar nos Estados Unidos. Enquanto eu -

aí vamos dar um pulinho - depois de passar a minha infância toda em São Luís... Aí você estava me perguntando como era São Luís. São Luís era um fascínio, porque eu descobria a cada dia um recanto novo, uma praça, uma casa, eu fazia descobertas incessantes. Eu tenho lembranças de uma pedra que me parecia enorme, mas uma pedra imensa, que eu era levado naquela pedra, uma pedra retângular, preta, imensa e eu me aproximava da borda e sentia que era um precipício, de tão alta. Eu era levado nesse local por uma preta velha, uma das pretas que existem em todas as partes, já não me lembro o nome dela. Ela me levava lá para pescar. Quando eu voltei muitos anos mais tarde lá em São Luís, era uma pedra que se amarrava cordas dos barcos e não era maior do que esse retângulo daqui até ali. Era uma pedra pequena que só cabia duas pessoas, mas que para mim tinha quilômetros de tamanho. Então o que me admira muito hoje em dia é ver a relação de tamanhos das coisas de São Luís da minha infância para a realidade. Por exemplo, eu morei mais tarde, já com onze anos, num sobrado que para mim parecia um castelo imenso, castelo mesmo. Eu não sabia quantas janelas aquele castelo teria, quantos quartos, porque essa casa era um sobrado na Praia Grande. Nesse sobrado moravam várias famílias em quartos, me parecia que havia uns duzentos quartos, sem exagerar, era essa a noção que eu tinha. Eu me lembro que quando eu tinha que ir de um quarto para outro, tinha que andar corredores imensos. Da mesma maneira como as ruas de São Luís são todas com nomes muito interessantes, não nomes de personagens que a gente nem conhece, mas nomes sugestivos como Rua Grande, Rua do Sol, Rua da Alegria, Rua do Alecrim, Rua da Paz, Praça da Alegria, Beco do Quebra-Costa, aí tem outras coisas, Beco da Bosta, tem coisas mais escalógicas, mais interessantes. Os nomes das ruas de São Luís, eu não sei se tem algum trabalho feito sobre elas, mas dariam um livro muito interessante. Por exemplo, a Rua Grande me parecia uma avenida interminável. Quando eu tinha que sair da minha casa, que numa época eu morei na Rua da Paz, até o João Paulo que já era tido como subúrbio, aquela distância me parecia uma viagem de passar um dia até chegar no João Paulo. Quando eu voltei a alguns anos atrás a surpresa maior foi ver que São Luís é pequena, é uma ilha pequena onde todas aquelas distâncias que me apavoravam eram pequenas ruas. Quando eu cheguei defronte do sobrado que me parecia um grande castelo, primeiro eu sofri um impacto grande porque ele pegou fogo e só tem as paredes externas e eu não acreditei que aquele era o meu sobrado, o meu palácio, e tão pequeno. Em São Luís houve o Projeto Renascer, que foi a recuperação de todos aqueles sobradões na parte antiga de São Luís, o que tornou São Luís patrimônio de cultura da humanidade. Todo brasileiro, todas as pessoas que vivem em qualquer parte do mundo têm a obrigação de conhecer São Luís, a Terra da Magia, uma cidade com uma vibração fortíssima, espiritual, mesmo porque para São Luís do Maranhão, os africanos da nação do (Daumbé?), uma nação fortíssima em espiritualidade, em magias, trazendo conhecimento desde o Egito e que foram levados para São Luís do Maranhão. Se pode dizer do Egito à São Luís. Para se começar a entender a vibração fortíssima que existe naquela ilha e que foram guardadas principalmente pelas mulheres, as mulheres é que guardaram todo segredo da mente e do espírito que ainda se preserva em São Luís do Maranhão. Enquanto na Bahia houve uma certa dispersão, aqui no Rio, em São Luís esses segredos, essas magias foram guardadas a sete chaves. Infelizmente todo esse acervo foi conservado pelas mulheres e não houve uma passagem. As pretas velhas estão morrendo e com elas essa coisa fantástica que é a história do espírito que está presente em São Luís... É um enigma para mim, como resgatar toda essa herança, uma herança mental, espiritual que está em São Luís do Maranhão. É uma pergunta que eu faço, deixo aqui para que outros estudiosos completem, por favor.



P/1 - Joãosinho, na sua casa a sua mãe dava algum tipo de educação religiosa para vocês?



R - A clássica religião católica, eu adorava quando a minha mãe me levava para as igrejas porque as igrejas para mim era um local de encantamento, eu sabia que eu estava indo para um local sagrado. Aliás, essa palavra sempre repercutiu no meu interior de uma maneira muito forte. O sagrado, o solene. Eu absorvia aquele instante das missas. Uma vez eu entrei sozinho na Igreja dos Remédios, é uma igreja que fica distante na Praça Gonçalves Dias, e eu fui surpreendido por um ritual que estava sendo feito dentro da igreja a portas fechadas… E que se movimentavam dentro da igreja. Eu sei que eu devo estar falando alguma coisa que eu não deveria estar falando para a igreja, mas que aquilo me impressionou bastante, eu ver o ritual que não era público, porque os públicos eu participava de tudo. A minha mãe era muito festeira e São Luís era um palco. Festas de São João, festas do Bumba-Meu-Boi, o carnaval, a festa de São José de Ribamar, que é maior festa, e eu preciso dizer que a festa do Bumba-Meu-Boi é mais importante lá em São Luís do que o próprio carnaval, e o carnaval que eu me lembro era grandioso, todas as famílias levavam cadeiras para a avenida, para as praças e o que mais eu tenho guardado em mim eram os bailes, as vesperais infantis. A minha irmã Eleuzina já estava casada com o Carlos, que era português de origem inglesa, tanto que ele se chamava Carlos Allen, a família dele é Trinta Allen, e ele era sócio do Grêmio Recreativo Português, que era um dos mais importantes, e os bailes de carnaval tinha o dos adultos e as vesperais infantis. Ah, eu não posso jamais esquecer, porque aqueles bailes eram fascinantes, primeiro porque sempre se tinha uma fantasia, apesar das dificuldades a minha mãe fazia uma fantasia para mim, mas aí nessa época eu já estava morando com a Eleuzina, nós já tínhamos nos mudado daquele sobradão que morávamos com outras famílias, e eu estava morando na casa da minha irmã, da Eleuzina, que já estava casada com o Carlos, e que tinha pela situação financeira dele, tinha uma boa casa na Rua Dos Afogados. Não tinha nada de afogados, não sei por que esse nome. Pois bem, e o baile infantil era deslumbrante, fascinante, porque além da fantasia, da música, havia um cheiro, o cheiro do lança-perfume, e com o lança-perfume a gente conquistava as garotas, a gente namorava, aquilo era um momento inesquecível. As festas de São Luís, muito coloridas, muito alegres, agora, de noite... Isso até os oito anos de idade eu morei na rua de São Pantaleão, que é onde ficam as sedes das casas das minas dos centros de conservação das tradições mais fortes do Maranhão, e eu escutava de noite os tambores de São Luís, eu fui criado e dormia ouvindo os tambores de São Luís que até hoje repercutem na minha alma e no meu coração evocando toda essa magia ancestral, milenar que foi levada para São Luís, que veio do (Daumbé?) e por isso meu grande interesse por esses segredos, eu ainda vou estudar mais profundamente. Lá em São Luís tem grandes mestres que eu, nesse último carnaval que fiz para a Grande Rio, mestres de São Luís do Maranhão, eu tive a oportunidade...



P/1 - Você colocou matraca na avenida?



R - Coloquei matraca e tive contato com mestres, com muitos mestres do Maranhão. Mas aí eu gostaria, talvez em uma outra ocasião, fazer uma gravação para falar sobre esse aspecto da magia do Maranhão.



P/1- Ah, pode falar mais um pouco se você quiser, é maravilhoso.



R - É, mas eu estou falando que eu pretendo me dedicar, porque agora que eu completei setenta anos, completei na semana passada, no dia 23 de novembro, eu pedi licença aos meus amigos que fizeram o meu aniversário para que eu comemorasse não somente os 69 anos que eu completei, mas que me dessem licença para comemorar a entrada dos setenta anos, que eu recebo essa dádiva. Estou dizendo agora, gravando esse momento. No dia 23 de novembro quando eu completei 69 e comecei a etapa para os novos setenta anos, e eu recebi um grande presente, eu fui presenteado com a segunda etapa da minha vida. É claro que fazendo um retrospecto eu vejo que setenta anos que se passaram, passaram tão rápido que eu tenho certeza, os próximos setenta anos vão passar até mais rapidamente, e porque não ousar pensar nos setenta anos se eu passei tão bem, com muito sacrifício, com muita luta, mas com muita alegria, com muitas surpresas. A vida para mim foi uma grande surpresa, porque e tive alegrias, tive conhecimentos, eu posso resumir minha vida com essa palavra: surpresa. Alegrias, tristezas, mas tudo fazendo parte de um grande momento de uma vida e que foi pouco. Eu estou com garra para viver outros setenta e outros setenta. A ciência está aí para me ajudar, a ciência já me ajudou, eu tive uma isquemia, sobrevivi, fiz duas operações de coração, não, uma mamária e duas safenas e sobrevivi e estou com mais saúde. Hoje, depois dessa isquemia e dessas pontes eu digo que eu sou dos Unidos da Ponte (risos). Muita gente também já fez, somos dos Unidos da Ponte e vamos nos entender muito bem, porque depois da operação todos os que fazem ficam muito bem, porque renova o coração. Pois bem, essa experiência da isquemia me renovou completamente. A Organização Mundial da Saúde diz que de sete em sete anos todas as moléculas do homem se renovam, tanto que eu vou completar setenta anos com o número dez, a minha vela vai ter dez. Por quê? São dez etapas de sete anos, porque a Organização fala cientificamente, está comprovado que de sete em sete anos o homem é completamente novo, as moléculas se renovam completamente e é surpreendente que a pele se renova diariamente, olha que maravilha, diariamente nossa pele se renova. Eu já conversei com um médico que me disse que as hemáceas do sangue se renovam de noventa em noventa dias. Então se de sete em sete anos nós somos completamente novos, aí cabe uma pergunta: “Por que envelhecemos? Por que temos doenças?” Aí uma pesquisadora americana, Louise Hay, que responde. A Louise diz o seguinte: “O homem é feito de puros pensamentos, não puro, de pensamentos.” Pensamentos que ele trás do nascimento, da família, da sociedade, pensamentos que ele elabora durante a sua vida. Então nós somos puros pensamentos, daí ela ter se dedicado à medicina psicossomática, porque é novamente a Organização Mundial de Saúde que diz que não existem doenças, que existe é o doente, e a Louise com o grupo de pesquisadores, ela chegou a escrever um Best-Seller, um livro pequeno que me foi presenteado a quinze anos atrás pela Pinah, a vedete negra ou o destaque negro que eu cantei no meu enredo, a Pinah me deu aquele livro pequeno, onde a Louise analisava, fazia a listagem de doenças, colocava numa outra coluna as causas prováveis das doenças e numa terceira coluna ela fazia um novo modelo de pensamento, porque ela diz que todas as doenças provém da nossa mente, que a nossa mente é criadora, a nossa mente é plástica, a nossa mente remói o passado, o presente, o futuro, a mente é maliciosa, é benigna, é confusa, ela é esclarecedora, a mente é a grande perturbada, ou melhor, a mente é um gigante que tem mil tentáculos, a mente humana é de uma criatividade imensa, ela vive sempre se renovando, sempre criando, tirando do nada novas concepções, ela é irrequieta. E eu só vim a entender isso a pouco tempo quando li o livro “Orange”, do Osho, que explica que meditação não é concentrar o pensamento, que meditação é limpar a mente, é não deixar que a mente atue, é neutralizar a mente, meditar é voltar ao estado de pureza de uma criança, que nos olhos límpidos de uma criança está uma alegria cósmica, está uma tranquilidade divina. E o homem vai perdendo essa tranquilidade com o acúmulo dos pensamentos, com a formação de uma mente cheia de preconceitos, cheio de regras. Portanto, eu aprendi uma grande lição, que a meditação é um estado de tranquilidade, é não deixar a mente atuando de jeito nenhum, é anular a mente, os pensamentos, os conceitos, as lembranças, o presente, o passado. É dizer “não” a tudo e deixar a vida escorrer naturalmente, porque todos os dias a grama cresce, as flores desabrocham, o Sol está aí ainda por vir bilhões de anos. Todo o universo trabalha para nós, não nos cobra nada, então por que fazer cobranças. Então meditação é esse estado de tranquilidade, é o que eu estou começando a fazer agora no início dos meus setenta anos, e eu garanto para você, eu garanto para quem ainda não conseguiu entender, porque só é preciso entender o que é a palavra meditação para se começar a sentir que um novo caminho, uma nova estrada, um novo diapasão de vida está se apresentando, e com a ajuda da Louise Hay, que ela analisa as doenças, as mínimas doenças, e eu tive uma prova disso há quinze anos atrás quando eu recebi de presente esse livro da Pinah.

Eu estava de viagem marcada para a Europa, então eu ia de primeira classe e cheguei no avião a primeira coisa que eu fiz depois de me sentar numa boa poltrona foi fazer aquilo que naquela época eu fazia constantemente: tirar os sapatos. Porque eu tinha um calo, uma calosidade no dedo que me atazanava dia e noite. Mesmo tirando o sapato aquele dedo latejava, e dor de pé é tão terrível quanto dor de dente, porque ela é chata, porque ela é intermitente.

Eu peguei aquele livro pequeno, vi umas relações de doenças, aí tiro os sapatos, a dor presente e vou ver se nesse livro tem calos (risos). Claro, é uma coisa que me incomodava, era uma doença para mim. Abri o livrinho que se chama “Cure o Seu Corpo”, da Louise L. Hay., e tinha calo, causas prováveis, medos petrificados. Quando eu li aquilo eu fiz o que você fez agora, inconscientemente, só depois de alguns minutos eu me dei conta, eu me relaxei. Quando eu li “Medos petrificados”, eu senti que minha perna esticou, eu me relaxei. Pois acreditem se quiserem, eu não estou aqui aos setenta anos para contar balela. Eu senti que o meu dedo afrouxou, fiz uma rápida análise de “Medos petrificados”. Claro que eu tinha medos petrificados, medos de infância, medos daquele aborto, medos enormes, medos do problema que eu tive mais tarde, eu tinha medo de entrar no cinema, eu só entrava no cinema depois que a luz apagava, porque eu tinha medo de gente. Quando eu senti meu pé relaxar e a dor aliviar, aí eu passei a acreditar naquele livro e até hoje esse livro eu leio diariamente, já são quinze anos. A maior parte do livro eu já decorei, mas acontece que todos os dias sempre a gente descobre coisa nova e eu estou descobrindo. Então a perspectiva que eu tenho daqui por diante de viver mais setenta anos é tranquila, eu tenho ajudas, a minha mente acalmou, porque eu agora estou domesticando... Ela e ela não me domina. Eu agora durmo tranquilo, eu acordo bem cedo, porque é um dos exercícios do Osho, de levantar com o dia amanhecendo. Esse dia amanhecer é uma carga energética trazida pelo Sol. Quanta energia vocês imaginam quando nasce o Sol, quanta beleza, todos os passarinhos cantando. Isso é um instante de pura vibração que a maior parte das pessoas perdem, não aproveitam ou porque elas estão dormindo ou porque levantam apressadas com as obrigações, do trânsito, de trabalhar, e perdem esse momento de pura beleza, de pura saúde, de puro relacionamento com a vida, que é o nascer do dia. Aproveitem, porque eu tenho aproveitado e é uma maravilha.



P/1 - Joãosinho, com quantos anos você entrou na escola?



R - Qual escola?



P/1 - Na escola, no Ginásio, antes do Clássico, na Primeira Série lá de São Luís.



R - Eu entrei no Primário, tenho a lembrança perfeita porque eu tenho memória de elefante.



P/1 - Você lembra dos três meses, incrível.



R - Lembro, mas eu invejo quem tem a memória auditiva, tenho uma santa inveja de músicos, de maestros que sabem trabalhar com o ouvido. Eu tenho uma admiração e a santa inveja, porque é bom ter a santa inveja de quem tem inteligência auditiva, tenho uma admiração enorme. Eu tenho uma inteligência visual, eu não esqueço as imagens lá de São Luís, da minha infância, dos meus carnavais, da dança, do ballet. Você imagina, mas aí eu estou pulando para te responder. Colégio. A lembrança que eu tenho do colégio, eu me lembro do primeiro dia que minha irmã Leni me levou ao colégio, me lembro de uma frasqueira pequena onde tinha um sabonete que até hoje eu lembro, eu sou muito ligado a perfumes. Onde tinha o sabonete, onde tinha a merenda, os cadernos e sobretudo o cheiro daquilo tudo eu guardo até hoje e em lembro que eu relutei de entrar na sala, chorei, a minha irmã me forçou a entrar, eu lutei alguns dias para me adaptar, mas depois amei o colégio. Amei principalmente uma professora que tinha, magra, que eu me lembro ela me dava meio escondido dos outros, me dava chocolate, e chocolate na minha época era um néctar dos deuses. Era chocolate, ameixa, tanto que quando conseguia comer em São Luís um sorvete de ameixa, estava comendo a coisa mais rara, a ameixa. Então o meu Primário foi muito marcado pelas professoras. Essa professora eu tinha prazer de estudar, de ter as lições e fui um bom aluno, não fui em Matemática. Depois passei para a Segunda Série e fiz até o Clássico que eu não sei a que corresponde hoje, houve muitas mudanças. No Primário eu estudei em duas escolas, Escola Modelo, Escola Barbosa de Godoi, e no colégio eu me destacava mesmo porque eu lia muito bem, a melhor matéria minha era Gramática, Português, e tinha, às quintas-feiras, tinha uma reunião de pais onde os alunos recitavam e cantavam e eu era sempre escolhido para recitar versos, para falar, e foi numa dessas reuniões, nessa de quinta-feira que eu tive a grande experiência da minha vida de me apaixonar pela filha do professor Silvestre Fernandes. Mas foi paixão. Eu posso dizer que eu sei o que é uma paixão de homem para mulher porque eu tive minha paixão nessa idade de onze anos, mas era uma paixão fortíssima e no colégio. Então o colégio foi marcado pelo estudo e por essa paixão. Já os cursos mais tarde já fiz no Colégio São Luís, mas aí nessa época eu já estava trabalhando na casa comercial do meu cunhado.



P/1 - Esse português que casou com sua irmã?



R - Português.



P/1 - Filho de inglês?



R - Filho de inglês. A minha entrada nessa casa comercial foi também um Rap.



P/1 - Quantos anos você tinha?



R - Onze para doze anos.



P/1 - Seu primeiro trabalho?



R - Meu primeiro trabalho, o primeiro que e vesti uma calça comprida. Aquela mercearia para mim foi um encanto, eu comecei a arrumar as prateleiras e transformei a mercearia toda, isso para encanto do meu cunhado que de repente viu as prateleiras de vinho todas com os rótulos, eu fazia concordância de cores.



P/1 - Aí o cunhado não acreditou que aquele menino [estava] fazendo uma cenografia.



R - Não acreditou. A seção de cosméticos, que lá na mercearia vendia sabonete, óleo Glostora, aquilo eu arrumei esteticamente muito bem, todas as repartições eu dei um novo visual. Visual, não existia essa palavra no tempo, pois eu dei um novo visual à mercearia inteira, e eu fazia aquilo com tanta satisfação. Como fui adquirindo dotes dentro da mercearia, por exemplo, tinha os compartimentos de farinha, de arroz, de feijão, pois eu adquiri uma habilidade tão grande que com, eu não sei como é que chama, um aparelho, eu metia no compartimento de arroz.



P/1 - Aquele negócio que você segura aqui, parece uma pá?



R - Uma pá, exatamente. Eu adquiri uma tal habilidade que eu tirava para espanto dos fregueses a medida certa. Se era meio quilo eu tirava meio quilo, se era um quilo eu tirava, pela prática. E aquilo tudo foi muito gostoso para mim no começo, mas aí eu fui chegando nos treze, quatorze anos, comecei a fazer teatro amador, comecei a fazer teatro de bonecos, comecei a me enturmar com um grupo de intelectuais que tinham o nome de Ferreira Gullar, José Sarney, Lago Burnett, e outros nomes que hoje todos se tornaram famosos, muitos deles não se lembram de mim, porque eu era o menor deles, a não ser Ferreira Gullar, mas o Sarney não se lembra muito. Eu vi que todas as pessoas que eram mais velhas do que eu, três anos, eles tinham dezessete, dezoito anos, estavam indo para o Rio de Janeiro e o Rio de Janeiro, naquela época, era a Capital Federal e cultural do Brasil. No Rio de Janeiro acontecia tudo, teatros, revistas, carnaval, uma vida social enorme, era a capital da República. Então todo mundo sonhava, lá em São Luís, com o Rio de Janeiro, era uma obsessão. Aí eu comecei a ver o Ferreira Gullar, o Sarney, todo mundo vir para o Rio, aí pronto, começou uma angústia, eu socado naquela mercearia vendo que meu cunhado me preparava para ser comerciante, para tomar conta daquela casa, foi me enchendo de ódio, de revolta, eu criei mil problemas, tanto para o meu cunhado como para minha irmã. A minha irmã era muito cuidadosa dentro de casa, ela sabia que meu cunhado, o Carlos, gostava muito de bacalhau à portuguesa. No começo eu também adorava bacalhau à portuguesa, mas quando comecei a ficar revoltado com a mercearia, a primeira coisa que eu inventei é que eu odiava comer bacalhau à portuguesa e cheguei ao requinte de quando se sentava na mesa, essa palavra eu acho perfeita, engulhava. Engulhar quer dizer vomitar. Eu tinha ânsia de vômito. Ora, não existe maior agressão do que você sentar numa mesa em que a comida preferida era bacalhau à portuguesa e eu ter que levantar porque estava engulhando, eu acho isso uma artimanha de criança, mas fabulosa (risos). Porque a minha irmã ficava furiosa, meu cunhado furioso e era isso que eu queria, que eles ficassem furiosos comigo, que me mandassem embora para o Rio de Janeiro. Eu fui muito determinado, isso eu sou, sagitariano determinado sou eu, meu signo eu represento muito bem. O signo de Sagitário é as quatro patas do cavalo bem assentada na terra, a cabeça de homem para pensar e o arco e flecha para atirar no alvo. Eu sou o meu signo, eu sou determinado, quando eu quero eu vou lá e consigo. Pois tanto fiz que consegui me empregar numa firma chamada Cosmos Capitalização lá em São Luís, de menor idade e eu era tão bom lá no serviço que o gerente conseguiu minha transferência para o Rio, eu consegui comprar uma passagem de último lugar no Ita.



P/1 - Navio?



R - Navio. E embarquei.



P/1 - Você estava com quê, quinze anos?



R - Não, dezessete. Eu estava com dezessete anos, me lembro muito bem do dia do embarque, primeiro porque aquilo me parecia um sonho, alguma coisa inacreditável que ia acontecer, eu vir para o Rio.



P/1 - E sua irmã, como ficou, o cunhado?



R - Todos abalados, eu encontrei apoio muito velado da minha mãe. Ela foi a minha companheira, eu senti o apoio calado dela, sofrida, era um apoio sentido, mas era apoio. Eu embarco no navio, o último lugar lá em baixo no porão, eu com uma maletinha. Quando eu cheguei lá no fundo do navio eu já estava tonto, já estava mareado. Aquele cheiro de maresia, o balanço do navio, já estava naquele estado. Quando eu coloquei a minha maleta lá no compartimento tocou um apito, eu digo: “Vai partir!” Tocou o segundo apito, aí nesse momento chega um oficial perguntando pelo João Trinta, eu digo: “Sou eu!” Ele diz: “O senhor...” O senhor não, você ou tu, lá no Maranhão é tu: “Onde está a sua maleta?” Eu digo: “Tá lá.” Ele mesmo pegou e pediu que eu o seguisse. Aí eu comecei a subir, tinha acabado de descer as escadas e comecei a subir, e subi, e subi, e subi o primeiro, o segundo tombadilho, acabei lá no camarote, no último camarote lá em cima, do comandante, tremendo de medo porque eu tinha certeza de que eu ia sair do navio.



P/1- Por que você era menor?



R - Não, eu não sabia por quê, mas que a minha viagem ia acabar ali, quando o comandante diz: “Você é de menor idade e está aqui um documento que você viaja sob minha responsabilidade, por isso você vai viajar aqui ao meu lado nesse camarote.” Abriu a porta, era um dos melhores camarotes, ao lado do comandante. Eu quase não acreditei. Aí se iniciou alguma coisa que é muito marcante na minha vida, que já começou desde a minha concepção de vida. Eu, como contei aqui, nasci debaixo de uma apoteose de luzes, de perfumes, de alegria, de beleza, de cores, que foi a festa da minha mãe, a minha concepção em pleno carnaval, e três meses depois eu fui ameaçado de morte quando a minha mãe se descobriu grávida, e uma viúva em São Luís do Maranhão só tinha um caminho, só tinha uma atitude, que era me abortar, me matar. Então, essa experiência do apogeu, da apoteose, da luz para as trevas foi o início da minha vida e essa lei de polaridade, essa constante entre luz e trevas, alegria e tristeza, continuou a se repetir durante toda a minha vida. Isso ficou presente nessa viagem. Eu ia fazer a viagem mais terrível porque estava no fundo do navio, pois subi e fiz a viagem mais maravilhosa que foi lá no alto do navio, bem instalado, guardado por todos os marujos porque eu era menor, eu fui recomendado, comendo da melhor comida e vendo o mundo se abrir, porque dentro do navio você vê a imensidão do mar, vê peixes, aqueles botos enormes correndo na frente do navio e você partindo para uma aventura, porque o Rio de Janeiro era uma aventura, era um sonho, e chegar no Rio... Olha outra coincidência. Cheguei no Rio de Janeiro em pleno dia de carnaval do ano de 1951. Eu ia morar na Rua São Clemente, em Botafogo.



P/1 - Quando você saiu de lá para vir pra cá você tinha algum contato?



R - Ah sim, tinha, claro, eu fazia tudo.



P/1 - Você já sabia onde ia ficar?



R - Já, eu ia morar lá em Botafogo. E cheguei eram mais ou menos umas três horas da tarde, que também foi a hora de meu nascimento. Eu botei a maleta lá na pensão da Dona Zizi e fui para a rua, para a Avenida Rio Branco, defronte da Galeria Cruzeiro na Cinelândia, que ali era o centro da cidade, ela era a gema do ovo. Aquele carnaval maravilhoso, colorido, o grande carnaval de rua, que é indescritível. Hoje em dia eu não consigo descrever o que era o carnaval de rua do Rio de Janeiro. E eu, olha só o que aconteceu, quando esse navio passou por Recife, trouxe o primeiro bloco de frevo, “Os Vassourinhas”, ora, e eu aprendi a dançar o frevo. Porque eu não contei para você que o que me movia, meu desejo de vir para o Rio era para fazer uma coisa que eu não sei explicar de onde surgiu. Eu tinha o desejo de dançar, de ser bailarino, quando lá no Maranhão não havia escola de dança, não havia ballet. Eu me lembro que na companhia do Procópio Ferreira, a companhia de teatro, eu que era rato de teatro desde pequeno eu vi a Marília Pêra, criança, ela tinha ido com os pais na companhia do Procópio fazer uns exercícios de dança, eu tenho certeza que foi a Marília Pêra que me abriu a coisa de dança. Ela não sabe disso. Porque a minha fixação, a minha obsessão pela dança era muito forte, tanto que nessa época eu já tinha uma outra namorada. A Lígia foi a primeira, era a Cristina, que era a filha da costureira da minha irmã e eu amava a Cristina com paixão também, já tinha transferido a paixão, mas continuava paixão, e eu dizia para ela: “Nós vamos para o Rio para dançar juntos!” E a presença da dança era muito forte em mim e quando eu cheguei no Rio em pleno carnaval eu tinha aprendido a dançar o frevo. O frevo é uma dança do Nordeste, de Pernambuco, aquele que dança com a sombrinha, e eu já dançava o frevo e na Avenida Rio Branco e tive a minha primeira platéia, porque eu comecei a dançar frevo, que o Rio não conhecia, aí me cercaram e eu dançando frevo. Foi minha primeira platéia. Então eu tinha chegado no Rio. Quinta-feira depois do carnaval, ou quarta-feira, eu já estava procurando uma academia de dança clássica, de ballet, e encontrei um curso, o curso do professor Eduardo Sena, em Copacabana. Já tinha ido no meu emprego, que era na Companhia Cosmos de Capitalização.



P/1 - Você fazia o quê?



R - Funcionário, trabalhava no escritório. Saía do escritório e corria para Copacabana para a coisa mais deslumbrante da minha vida que foi estudar ballet. Gente, o estudo da dança clássica é uma coisa fascinante, é um outro mundo e eu vivia feliz da vida, amando a dança clássica, eu dançava pelas ruas, não me incomodava que as outras pessoas estivessem me vendo porque eu estava pleno de felicidade, eu estava estudando dança, coisa que eu tanto desejei lá em São Luís. Eu vou dizer outra coisa, me dei crédito, eu acredito que essa fixação pela dança seja coisa de outras vidas. Eu vou tocar nesse ponto de outras vidas. Não, talvez seja agora.

Eu, desde criança, pequeno mesmo, tinha uma experiência de estar, por exemplo, numa rua qualquer e de repente, como um flash, eu me sentia num local que tinha uma parede no lado esquerdo, tinha outra parede em frente e aqui do lado direito não havia parede, eu via somente luzes, e do meu lado direito eu não via o chão, não sentia o chão, eu sentia a presença de alguma coisa redonda que eu não sabia se era uma mesa ou se era um poço, eu sei que era redondo, redondo ou redonda. Esse flash podia acontecer até aqui agora, eu de repente me sentia naquele ambiente, era um ambiente muito solene, mas era rápido. Me acompanhou essa experiência até aqui no Rio de Janeiro. Pois bem, no ano de 1989 eu já estava fazendo escola de samba e fui convidado a fazer um show em Londres, na Inglaterra. Esse show foi realizado no clube mais fechado de Londres, que chama Annabel's. Um clube fechadíssimo onde só entra a aristocracia, a nobreza, os reis, ricaços, assim mesmo são poucos os ricaços que entram no Annabel's, é o clube mais fechado do mundo. E eu fui convidado para fazer um show lá no Annabel's, depois eu soube o por quê. Porque o Annabel's foi fundado no Rio de Janeiro quando o Mister Barry esteve aqui no Rio e pensou em abrir um clube, e realmente foi aqui no Rio que ele imaginou, e como estava se completando, em 1989, 25 anos que o Annabel's já tinha sido inaugurado, ele quis comemorar esses 25 anos com um show brasileiro. Em 1989 eu estava em pleno apogeu do carnaval. 1989 foi o ano em que eu fiz, talvez, o meu melhor carnaval, que foi “Ratos e Urubus larguem a minha fantasia.” Aquele carnaval sobre os mendigos, sobre o lixo, sobre a pobreza. E eu fui lá em Londres. Foi uma temporada de 45 dias onde eu conheci um homem muito rico, o herdeiro de uma das maiores empresas mundiais, que e não me lembro bem o nome. Esse homem assistiu o show que eu fiz lá em Londres, e foi um sucesso, e ele me convidou para comemorar, para fazer o show dos quarenta anos que ele ia completar no fim do ano, que seria na cidade de, o nome de uma espingarda, Winchester. Essa cidade, Winchester, fica no sul da Inglaterra. Pois bem, no fim do ano eu fui em Winchester fazer esse aniversário desse herdeiro. Era uma cidade pequena e aconteceu uma festa maravilhosa, ele ficou na maior satisfação e eu mais ainda. A festa aconteceu no sábado, nós íamos viajar domingo à noite, então eu acordei mais cedo porque eu tenho a mania de toda a viagem sempre procurar igrejas. Na Europa eu procuro catedrais, eu tenho paixão, mas lá em Winchester eu sabia que eu não ia ver catedrais, mas assim mesmo eu procurei uma igreja. Fui andando, andei o primeiro quarteirão, quando eu cheguei no segundo quarteirão eu vi umas ruínas. Ruínas, sabe o que é? Ruínas, explica para ela. Ruínas, uma edificação antiga.



P/1 - Old building, old houses, old places.



R - Onde estava uma plaqueta dizendo: “As ruínas do Castelo do Rei Arthur.” Eu parei e me questionei, mas o Rei Arthur não é lenda, mas as ruínas estavam ali e tinha uma escadaria e lá em cima tinha uma espécie de abadia de monastério. Eu subi a escadaria, meti a mão na porta, abri e entrei. Quando eu entrei eu levei aquele impacto, foi um impacto mesmo, porque eu estava exatamente no local que me acompanhou desde a infância, eu estava naquele local que tinha uma parede do lado esquerdo, tinha uma parede do lado da frente e do lado direito, que era onde eu via luzes, eram os vitrais coloridos, e aquilo que eu sentia como uma coisa redonda, que eu não sabia o que era eu vi defronte, na parede em frente de mim, uma mesa redonda enorme presa na parede, no Castelo do Rei Arthur. Eu fui contar essa história uma vez para uma jornalista e ela publicou que eu tinha dito que eu em vidas passadas fui o Rei Arthur, mentira dela, porque eu não contei nada disso, eu só lembro, só vivenciei o local, não tenho lembrança de mais nada, nem do que eu fui, nem de gente, nem de nada, mas que desde criança eu via o local que mais tarde estive presente e isso aconteceu comigo. O que me leva a ter certeza de uma vida passada que eu nunca tinha ido, nunca lido, não sabia, pensava que era história e no entanto me aconteceu. Eu estive no Castelo do Rei Arthur. Então a minha convicção de vida passadas vem dessa experiência. Da mesma maneira, como eu posso explicar minha paixão pela dança, se eu nunca tinha visto uma companhia de dança, se lá em São Luís não havia escola de dança? Então eu acredito em vidas passadas e em vidas futuras, tanto que estou me preparando.



P/1 - Para os setenta anos?



R - Não, para depois.



P/1 - As outras encarnações.



R - As outras encarnações. Isso é muito bom, a gente dispor do tempo, como diz a Louise Hay: “A vida tem um longo contrato com a eternidade, eu tenho muito tempo.”



P/1 - Joãosinho, aí você chegou e procurou essa academia no Rio, que academia que era?



R - Do professor Eduardo Sena. Aí fiz, comecei a estudar dança, apaixonado, alegre, feliz.



P/1 - Clássico?



R - Dança clássica. Em 1956...



P/1 - Tinha preconceito, você sofreu algum preconceito?



R - Terríveis. Eu depois passei a estudar na UNE, União Nacional dos Estudantes, que antes da revolução funcionava como sede dos estudantes, na Praia do Flamengo, e lá chegavam estudantes de todo Brasil, claro que chegavam do Maranhão, e uma vez meu cunhado veio, não o Carlos, o marido da Aldenora, e ele disse sem rodeios para mim, isso foi no período de 1951 a 1956, eu ainda não tinha entrado para o teatro, eu estava estudando na UNE. Ele disse para mim: “Você é tido como a vergonha do Maranhão!” Porque eu estudava dança. Não era 1951, talvez fosse 1954. Mas eu era bailarino, eu estudava dança, eu era a vergonha do Maranhão. Gente, vocês podem imaginar o que foi o choque que eu senti, amando a dança, feliz com o dançar, eu recebi esse soco na cara. “Você é a vergonha do Maranhão!” Aquilo foi terrível, aquilo me acabrunhou muito, eu passei a ser mais tímido do que eu era, medroso, porque começou a se levantar uma dúvida em mim: “Quem eu sou?” Aí foi outra experiência de saber quem eu era. Eu era um anormal por quê? Por que estudava dança? “Quem era eu?” Isso foi terrível, virou a minha cabeça, mas eu continuei o meu curso e felizmente em 1956 eu fiz um concurso para o Teatro Municipal, passei para o Corpo de Baile, aí se iniciou outra fase da minha vida.

Sem antes, eu não prosseguir sem contar o que me aconteceu, porque esses acontecimentos é que marcam a vida da gente. Eu não poderia deixar de contar o que me aconteceu antes de entrar para o teatro. Quando eu fiz o concurso e passei eu imaginei que iria começar dançar logo em seguida. Estava com meu emprego, morava numa pensão na Praia do Flamengo, mas quando eu fiz no concurso eu pedi demissão no trabalho pensando que fosse começar logo no Teatro Municipal. Pois bem, passou o primeiro mês, como eu tinha recebido o dinheiro do trabalho eu me aguentei, paguei a pensão, me alimentei. Entrou o segundo mês, eu já não tinha dinheiro, a mulher me expulsou da pensão, eu passei a dormir no bonde, no bonde onze que ia do Tabuleiro da Baiana, que hoje não existe mais, até o Leblon. Ia, vinha e eu dormindo no último banco. E com toda aquela carga de medo, de timidez que eu estava carregando, eu não tinha coragem de pedir um copo d’água, quanto mais pedir um prato de comida e comecei a comer as amêndoas da Praça Paris, mas depois de dois meses eu já não aguentava comer. Eu me lembro que na Rua Marquês de Abrantes, na esquina com a Praia de Botafogo eu vi uma lata de lixo e tinha um resto de mamão, eu fiquei cercando aquela lata de lixo morrendo de fome que já não comia a meses, mas eu via maranhenses por todos os lados e eu não consegui comer aquele pedaço de mamão, mas fui andando novamente pela Praça Paris e fui pela Praia do Flamengo e desci as escadarias que têm defronte ao Hotel Glória. Naquela época, em 1956, o Aterro do Flamengo ainda não tinha sido feito, só haviam duas pistas na Praia do Flamengo, de ida para a Zona Sul e de volta. Eu desci as escadas do Hotel Glória e me sentei no banco, mas já com dois meses e quase fazendo três sem me alimentar, vocês podem imaginar como eu estava enfraquecido, passando fome o tempo todo, e eu estava já sem forças. Eu me lembro que estava nessa posição quando eu pedi a Deus, mas eu já não tinha forças na voz. Eu me lembro daquela voz interior dizendo: “Deus, me ajude!” E eu vi a roda de ônibus chegando e naquela roda veio uma poeira de lixo e eu notei que um papel voou até meus pés. Eu que já estava agachado só fiz isso, segurei aquele papel e era uma nota de cinquenta cruzeiros, aquela notinha roxa da Princesa Isabel. Eu levei uma convulsão e confesso para vocês, não me lembro o que aconteceu depois, claro que eu devo ter ido comer, deve ter sido a primeira coisa que eu fiz, e hoje eu estou contando a história para vocês. É um acontecimento que marcou profundamente a minha vida, que explicação eu tenho senão dizer: “É um milagre”, senão dizer: “Deus existe!” Ele me ajudou numa hora que eu pedi a ele. Isso aconteceu comigo. Eu posso contar essa experiência verdadeira.

Portanto, como é que eu posso ousar duvidar de Deus, seja que nome ele tenha, como é que eu posso duvidar que Deus não seja mais organizado do que nós imaginemos e que ele não cerque de anjos, de arcanjos, de querubins, de santos, de mágicos, de filósofos, de artistas para fazer a sua grande obra. O supremo arquiteto do universo está presente em cada criação do universo e para mim está mais do que presente, ainda porque foi num momento de fome, num momento terrível de minha vida que eu tive a presença viva de Deus através daquela nota de cinquenta cruzeiros. Portanto, eu sou um homem aberto a toda especulação, a todas as magias, a todas as dimensões. Eu creio em Deus-Pai poderoso, criador da terra e do céus. E prestem atenção, tanto que eu era pequeno no colégio e os meus colegas me atazanavam o ouvido me chamando: “Olha o Trinta, olha o Trinta!” Eu cheguei em casa e perguntei para minha mãe: “Mamãe, por que todo mundo tem nome e eu tenho um número, por que me chamam de Trinta?” A minha mãe que é de origem árabe e é uma mulher sábia me disse: “Um dia você há de saber o valor de seu nome!”.

Quando eu descobri, com onze anos de idade, a Biblioteca Pública lá de São Luís, minha vida mudou. Primeiro eu comecei a ler os gibis que tinham numa mesa na entrada da biblioteca, depois passei para Tesouro da Juventude, para os livros de Monteiro Lobato e aí fui devorando todos os livros, a literatura brasileira, internacional, li Goethe, Shakespeare, li a obra de Gonçalves Dias inteira, e eu lia compulsivamente. É claro que eu não podia assimilar tudo mas eu tinha o gosto da leitura, porque a minha irmã, a Eleuzina, tinha desde cedo, apesar da pobreza que nós vivíamos, ela tinha um biblioteca onde ela me mostrava os livro com os versos de Camões, todo sublinhado com lápis colorido. O azul era objeto direto, vermelho, indireto, e assim eu aprendi desde muito cedo através de Eleuzina a ler. Quando eu descobri a biblioteca aí foi uma descoberta ampla, eu me sentia naquele silêncio, naquela calma da biblioteca, eu sentia nos livros o palpitar de tantas histórias, de tantas invenções, eu sentia um mundo maravilhoso em volta de mim, vivo, presente, passado, futuro, e eu levava horas e horas. Enquanto meu irmão empinava pipas, jogava futebol, tinha uma vida de moleque, também gostosa, eu não tive, eu estava dentro da biblioteca com onze anos de idade. Aí me aconteceu uma coisa. Nessa leitura geral que eu fazia eu peguei um livro de Pitágoras. Ora, eu estava com onze para doze anos de idade, claro que eu não podia entender Pitágoras, no entanto eu peguei um livro chamado “Os versos dourados de Pitágoras”, e uma frase do livro, uma frase saltou do livro, uma frase eu entendi racionalmente, foi o meu lado esquerdo do cérebro, que é dedutivo, que é racional, que é pragmático, que me fez entender aquela frase. A frase dizia o seguinte: “Até onde a mente humana alcançar, ela vai encontrar sempre os números um, três e sete.” E eu vi esses números desenhados na minha frente, um, três e sete, e vieram na minha mente dois exemplos. Por exemplo, na música o número um é o todo da unidade, é a música completa; o número três é a primeira divisão que se faz na música, é melodia, ritmo e harmonia; e o sete são as sete notas na qual se faz a música. Nas cores, o número um nas cores é o branco, que é a síntese de todas as cores, segundo a experiência de Newton. A cor branca se divide em três cores chamadas primárias, amarelo, azul e vermelho, a mistura destas três cores entre si vão dar as sete cores do arco-íris. Novamente a frase repercutiu em mim: “Onde a mente humana alcançar, ela encontrará sempre os números um, três e sete!” Essa chave eu entendi racionalmente com onze para doze anos, e até hoje eu procuro em tudo e em todos essa lei, por quê, procure escrever aí num papel. O número um, três e sete virado de cabeça para baixo, no espelho, vocês vão ler em baixo o quê? Reparem, um, três, sete, invertam no sentido do (oito?) do infinito, você vai ver exatamente a palavra LEI. O sete vira e se transforma no L, o três vira e se transforma no E, o um vira e se transforma no I, então eu entendi que um, três e sete é LEI, e uma lei está presente em tudo e em todos, até onde a mente humana alcançar. Isso é uma chave que abre muitas portas de percepção. Um dia eu fui falar isso para um repórter e ele me disse: “E no governo?” Eu avisei a ele: “Rapaz, eu não inventei isso, foi Pitágoras, mas eu vou te ajudar. No governo democrático do Brasil quem representa o número um? O Presidente da República; o número três? Poder Legislativo, Judiciário e Executivo; e onde está o número sete, sem ser aqueles famigerados sete anões, quem são os sete? Senador, ministro, governadores, deputado federal, deputado estadual, prefeito e vereadores.” Então lembre de Pitágoras: “Onde a mente humana alcançar, ela vai encontrar sempre os números um, três e sete!” E tem sido essa lei que eu procuro empregar em todo o meu trabalho. Eu divido o carnaval, divido, enfim, faço meu ofício através dessa lei. Ainda tenho que descobrir muito, mas eu tenho muito tempo. Então essa experiência, principalmente a da fome, que antecedeu minha entrada no Theatro Municipal, me preparou bastante para a vida, porque eu passei a enfrentar a vida sabendo que eu tinha aliados, que eu tinha um pai, que eu tinha uma mente cósmica que se eu conseguisse entendê-la um pouquinho eu podia abrir universos de vida e é o que e procuro fazer, e procuro empregar naquilo que depois do ballet, que eu vivi anos e anos no Theatro Municipal, em companhia das maiores celebridades do mundo.



P/1 - Espera só um pouquinho. Como foi essa sua chegada no Municipal?



R - Você imagina, quem tinha sonhado, quem tinha se preparado para realizar um sonho e ver aquele sonho se realizar. Eu era a pessoa mais feliz da vida, porque tanto o Rio de Janeiro era uma cidade maravilhosa, de paz, de alegria, de acontecimento. Não esqueçam que o Rio de Janeiro daquela época era a capital federal e a capital espiritual, cultural e também a capital federal, era o Distrito Federal. O Rio de Janeiro era uma efervescência de acontecimentos culturais, e o Theatro Municipal era o teatro onde aconteciam as temporadas nacionais de ópera, ópera internacional com a presença das grandes companhias, do Convengard, da Ópera de Paris, do Bolshoi de Moscou, óperas alemãs, as Companhias de Ballet também, o ballet americano, todos os ballets, o Marquês de Cuevas, que hoje não existe mais, o Ballet de Monte Carlo, e ainda havia as temporadas de ópera e ballet nacional, que nós também participávamos. Então o teatro era um templo de arte com temporadas, com atividades o ano inteiro, e eu vivi aquele mundo maravilhoso vendo grandes estrelas. Donovan, Margot Fontaine, as bailarinas russas. Gente, eu vivi um mundo maravilhoso, no Theatro Municipal eu enchi minha alma de todas as maravilhas da arte, da dança, do canto, porque a ópera é o espetáculo completo que reúne todas as artes, a literatura, a pintura, o canto, a dança. E durante anos e anos eu participei desse mundo fantástico que hoje não existe mais.



P/1 - Porque daí você começou a trabalhar no teatro?



R - Eu comecei a trabalhar no teatro em 1956, dancei até princípio de setenta, mas aí eu comecei a me interessar pela montagem da ópera, eu já tinha dançado, não fui um grande bailarino clássico porque eu não tinha físico, mas atuei em dança de caráter e comecei a me voltar para a montagem da ópera. Encontrei dois grandes amigos cenotécnicos, que foi Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues. Comecei a trabalhar do guarda-roupa, a trabalhar na contra-regra e comecei a montar óperas. Ora, montar uma ópera precisa de se ter qualidade, porque a ópera é um espetáculo completo que reúne música, dança, cenografia. E foi lá no Theatro Municipal, montando óperas do porte de “Aida”, “O Guarani”, “Tosca”, que eu adquiri conhecimentos que futuramente me serviram muito, porque também lá no Theatro Municipal, junto com Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues eu comecei a participar da decoração da cidade, que era feita para o carnaval, da mesma maneira como eu comecei a trabalhar na decoração dos bailes do próprio Theatro Municipal, como do Hotel Copacabana Palace. Em 1963 foi o primeiro ano que eu participei da escola de samba junto com Arlindo Rodrigues que estava montando, isso em 1962, estava aprontando para o carnaval de 1963, Chica da Silva, o grande enredo, o grande desfile que realmente iniciou uma nova etapa do carnaval carioca. Eu comecei com Arlindo e permaneci no Salgueiro junto com Fernando Pamplona também, permaneci na escola de samba.



P/1 - Como foi esse convite? Você pode voltar só um pouquinho essa passagem para você ir pro Salgueiro?



R - Eu era amigo, trabalhava com Arlindo.



P/1 - Trabalhava no Municipal?



R - No Municipal.

Conheci o Arlindo, e o Arlindo e o Pamplona já faziam escola de samba, então em companhia deles...



P/1 - Você tinha esse desejo de fazer escola de samba?



R - Total. Comecei a ajudar o Arlindo e fiquei ajudando eles dois nas alegorias, nas fantasias até 1973, portanto eu fiquei aprendendo com aqueles mestres que eles são, durante dez anos, trabalhando, mas sobretudo aprendendo. Em 1974 e assumi a responsabilidade de fazer meu primeiro enredo que foi “O Rei de França na Ilha da Assombração.” As histórias sobre a minha terra, as histórias sobre o Maranhão, e naquele ano de 1974 o Salgueiro ganha o Carnaval. Campeão. Foi a minha primeira vitória no mundo do samba. No ano seguinte, também no Salgueiro, outra vitória, agora com o enredo “As minas do Rei Salomão”, que causou muita polêmica mas que foi esplendorosa vitória. Mas já naquela época o Salgueiro, o Morro do Salgueiro, como o Rio de Janeiro, tinham mudado. O Rio de Janeiro já não era aquela cidade maravilhosa que eu encontrei quando cheguei no carnaval de 1951. O Morro do Salgueiro, quando eu subi o morro em 1963 era um local de paz, de tranquilidade onde moravam famílias e mais famílias, onde a quadra do Salgueiro era lá em cima do morro, mas pouco a pouco eu fui vendo a modificação social que todo o Rio passava e que se manifestava lá no morro. Eu vi a chegada do tóxico, eu vi a chegada da violência, eu vi a chegada da miséria, e estava lá no morro presente. Um fato que me chocou muito foi ver um garoto de onze para doze anos que tinha o apelido de Pedro Marreco. Eu sempre conto essa história como exemplo, porque foi o exemplo mais marcante. Esse garoto em menos de três anos se transformou no maior bandido do Morro do Salgueiro, aquilo foi terrível para mim porque eu me lembrava que com onze, doze, treze, quatorze anos eu era uma criança inocente, que brincava, que lia, e eu estava vendo um garoto se tornar um bandido, aquilo foi terrível, foi traumático para mim. Então eu decidi, porque eu estava vivenciando o problema do morro. Eu fazia as alegorias numa escola primária, eu via os alunos como se interessavam pelas alegorias, pelo carnaval, enquanto pelos estudos não havia muito interesse. Pela falta de habilidade das professoras, os alunos preferiam muito mais assistir a confecção do carnaval do que as aulas. Eu então quis começar a fazer um trabalho social lá no morro, proteger as crianças, dar ocupação, ensinar ofícios. Tentei com a diretoria do Salgueiro, mas naquela época a diretoria não alcançou, eles não enxergavam o perigo que estava se aproximando, tanto lá do morro quanto do Rio como da Baixada. Eu então, infelizmente, tive já na década de sessenta uma premonição, eu tive uma visão do que seria o Rio de Janeiro dali alguns anos se não começasse a fazer algum trabalho. Eu quis, naquela década, trabalhar com o Salgueiro mas não pude.



P/1 - Fazer um trabalho social?



R - Não pude.



P/1 - Você procurou o Arlindo, falou?



R - Não havia clima.



P/1 - Não tinha essa concepção.



R - Não tinha essa concepção, apenas eu tive a intuição, eu sabia que precisava fazer alguma coisa. Então naquela época só quatro escolas ganhavam o carnaval, eram as quatro grandes. Salgueiro, Mangueira, Portela e Império. Não se cogitava, naquela época, de nenhuma escola pequena ganhar carnaval, nem se pensava, no entanto eu decidi sair do Salgueiro. Eu me lembro do Arlindo que já tinha ido para outra escola, quando ele soube que e ia sair do Salgueiro ele disse: “Joãosinho, você é louco?” Porque eu já tinha contado para ele o meu próximo enredo. Ele disse: “Você com esse enredo sair do Salgueiro? Você é o bi-campeão, com esse enredo você vai se tri-campeão!” Eu respondi para ele: “Arlindo, eu estou vendo o problema que está crescendo no morro, a quadra do Salgueiro já saiu lá do morro, as famílias estão saindo, o tóxico está chegando, a violência está se instalando. Se nós não fizermos alguma coisa pela comunidade, isso daqui vai virar um inferno!” Isso em 1975. “Não, eu não vou ficar no Salgueiro, eu vou fazer carnaval numa escola pequena onde eu tenha espaço também para fazer o trabalho com a comunidade. Eu quero ir para um escola bem pequena, eu não quero levar glória de ganhar carnaval, de fazer festa em cima de escombros humanos, em cima de carências humanas, eu não quero fazer festa em cima de crianças abandonadas, em cima da miséria humana. Não, eu quero fazer a menor das escolas, onde eu possa fazer aquilo que a minha mente e meu coração estão mandando. Eu quero fazer festa, mas uma festa também da comunidade, eu quero fazer um carnaval de 365 dias, onde as crianças tenham orientação, educação, onde o povo possa viver mais humanamente”.

Procurei e felizmente encontrei o Anísio, o presidente da Beija Flor, e propus à ele, disse para ele: “Eu só vou fazer o carnaval da Beija Flor se eu puder fazer o trabalho com a comunidade.” E o Anísio me disse: “Mas é exatamente isso que nós queremos.” Eu fui para a Beija Flor, comecei a trabalhar tanto no carnaval como na comunidade, e para surpresa geral a Beija Flor, a menor das escolas, a que tirava sempre o último lugar, ganhou o carnaval de 1976. E eu tive forças para fazer o trabalho de comunidade, claro que com o apoio do Anísio, do irmão dele, o Nelson, do Jacó, do Farid e da diretoria da Beija Flor. Eu saí dezessete anos depois.



P/1 - Esse projeto Flor do Amanhã começou aí?



R - Não, eu estou falando de escola de samba Beija Flor, que eu me transferi do Salgueiro e fui para a Beija Flor e lá eu saí dezessete anos depois, deixando, ajudado pela diretoria, eu não fiz o trabalho sozinho, também o Simão Sessim e toda a diretoria da Beija Flor, eu saí de lá deixando uma creche para quatrocentas crianças, um educandário para outras quinhentas crianças, um centro comunitário de orientação profissional instalado na antiga sede, na antiga quadra da Beija Flor, porque também nós conseguimos fazer uma sede nova, que é a quadra da Beija Flor, uma das melhores do Rio de Janeiro. E lá em Nilópolis, que é uma cidade, um município com maior índice de criminalidade, nós conseguimos reverter esse quadro ajudando a comunidade, plantando árvores nas ruas, onde não havia antes uma árvore, nós fizemos projetos de hortas comunitárias e hortas particulares. Aí fui ajudado por muita gente. Eu me lembro que o presidente do Ponto Frio me ajudou com maquinários, ele dava presentes bons, geladeiras, fogões, para serem leiloados entre o povo, entre as ruas que melhor tivessem cuidado da rua, que melhor tivessem plantado uma horta. Assim Nilópolis progrediu e muito, a escola de samba cresceu, se tornou uma das grandes e assim eu pude sair da Beija Flor e ir para uma outra escola de samba, levando uma grande alegria da Beija Flor, dando para a Beija Flor muitas vitórias, de muitos carnavais. Quando eu fui, em 1994, para a Viradouro de Nilópolis, também lá eu incentivei outras obras sociais já iniciadas pelo presidente Monassa, através da Fundação Pedro Monassa, que era seu filho. A Viradouro tinha um grande problema de odontologia, ganhou dois prêmios internacionais, começou a fazer um programa esportivo e cresceu como escola, ganhou o carnaval.

E agora, atualmente, eu estou na Grande Rio. É uma escola de Caxias, é a mais nova escola do Rio de Janeiro, que vem crescendo de ano para ano. E eu já adianto para vocês, esse ano com o apoio da Vale do Rio Doce a gente vai fazer um carnaval surpreendente. Primeiro porque o enredo é maravilhoso, o enredo é sobre o Reino Mineral, é a história da mineração no Brasil, é a própria história do Brasil. Claro que o Reino Mineral nos transmite, nos remete à Mitologia Grega. Por quê? Nós podemos ver o velho e sábio tempo, chamado de Chronos, durante milhões e milhões de anos elaborar esse belíssimo Reino Mineral, faiscante de ouro, prata, pedras preciosas, metais raros, e o enredo vai mostrar esse velho e sábio tempo, mas vai mostrar a história da mineração no Brasil, que começa com os Bandeirantes, desbravadores, aventureiros, que com o sonho do Eldorado, a lenda do Eldorado, essa lenda que contava que no interior do Brasil existia uma cidade feita de ouro e pedras preciosas. Os Bandeirantes, em busca dessas riquezas minerais, entraram pelas matas virgens, as famosas Bandeiras, as primeiras entradas e entraram também pelo Vale do Rio Doce, nas Minas Gerais, foram descobrindo minérios, mas sobretudo foram abrindo caminhos, construindo ou povoando vilas. Estas vilas, mais tarde, com a descoberta do ouro, com o círculo do ouro, essas cidades das Minas Gerais se tornaram as grandes cidades coloniais, plenas de riqueza do ouro, mas também plenas de uma bela arquitetura, de majestosas igrejas, onde se plasmou a arte barroca, onde o Barroco se plasmou tanto no sacro como no profano. Belas cidades foram construídas, casarios que até hoje perduram, que atraem mil turistas e que é um grande acervo da cultura brasileira. Isso se deve aos Bandeirantes. Até que no começo do século passado, ainda nas Minas Gerais foram descobertas montanhas de minério de ferro. Isso já com a Revolução Industrial em pleno andamento e no período de guerra, onde o minério se fazia necessário. As descoberta das montanhas de ferro atraiu a atenção de todo o mundo. Japão, Estados Unidos, Inglaterra, toda a Europa vieram para cá e iniciaram a mineração no Brasil. Felizmente, e isso deve-se a Getúlio Vargas, a mineração passou para a mão de brasileiros, brasileiros patriotas, brasileiros conscientes do que estavam fazendo. Houve uma mudança completa, porque havia o espírito humanitário de não trabalhar na terra dando prejuízos para a terra, o espírito da ecologia já estava presente e a mineração no Brasil passou a dar um exemplo de como se trabalhar com a mineração. Por exemplo, grandes projetos foram feitos para preservar as comunidades onde a mineração se assentava. Projetos de ecologia foram criados, a Mata Atlântica foi preservada, projetos de reflorestamento foram feitos. Quando a mineração chegou até a reserva indígena dos Carajás, no Pará, um grande projeto de respeito aos índios foi feito. Respeitou-se a cultura dos índios Xikrins e de todas as outras tribos. Esse projeto indígena é exemplo para o mundo. E muitos outros benefícios aconteceram com a mineração. A mineração deixou de ser aquela calamidade que destruía a terra, que destruía a ecologia e passou a ser um instrumento de progresso e de riqueza para o Brasil, projetos de melhorias de estradas, de criação de portos, açudes. A água, a grande riqueza mineral foi protegida. Então é com orgulho que o Brasil se tornou o maior exportador de minério de ferro do mundo… Mas mais importante do que isso é o trabalho da Vale do Rio Doce de ajuda, de ajuda cultural, de ajuda artística, de ajuda profissional, de respeito pelo homem, pelas populações, então é com orgulho que a Grande Rio está fazendo esse enredo. E nós temos certeza que o empenho da nossa diretoria, o meu empenho particular, como brasileiro, como patriota, eu tenho certeza que o nosso carnaval será marcante, porque com uma história tão bonita e verdadeira como essa, da Vale do Rio Doce, tem que dar certo. É o nosso Brasil que vale e o enredo conta, depois de mostrar essa saga do minério no Brasil, o enredo termina dizendo que quando o futuro chegar, esse futuro que já chegou, as crianças irão avaliar o quanto vale o saber e o estudo. Isso é para dizer que nós vemos as crianças de hoje como os Bandeirantes do futuro, e que elas convidem os povos do mundo inteiro para virem neste carnaval, participar como todos nós, tanto da alegria como do orgulho que nós temos em contar esse enredo que se chama “O nosso Brasil que Vale”.



P/1 - Joãosinho, como foi esse encontro com a Vale, foi a Vale que te procurou, como surge, um pouco, esse tema das riquezas do Brasil mineral?



R - Com certeza, eu não sei (risos). Mas me parece que houveram alguns entendimentos do Ênio, de uma promoter, (Eliégio?) Monteiro e de outras pessoas, e também do interesse da Vale de mudar a sua postura, porque a Vale que se tornou talvez a maior empresa brasileira, ela permanecia desconhecida para o povo, então essa aproximação com o carnaval é a ponte de identificação da Vale com o Brasil. Porque uma obra como a Vale do Rio Doce é um exemplo do espírito trabalhador, empreendedor, criativo do povo brasileiro, é um exemplo que não pode ficar escondido. A Vale do Rio Doce tem que se mostrar, ela tem que dizer: “Eu sou Brasil!” É o nosso Brasil que Vale.



P/1 - Joãosinho, fala uma coisa, você já tinha contato com a Vale, sabia da Vale do Rio Doce, o que você sabia da Vale antes desse trabalho?



R - A Vale do Rio Doce eu só conhecia através de uma imaginação, uma imaginação de minas de ouro a mil metros de profundidade que eu ainda vou visitar, de uma grande empresa de nível internacional, mas uma empresa muito distante da história do Brasil, ou melhor, da realidade brasileira. A minha surpresa em fazer esse enredo é porque hoje eu enxergo como muitos, como milhares de brasileiros vão ter a oportunidade de ver uma empresa cuidar e cuidar muito bem da sua tarefa, que é a mineração. Mas também... E isso para mim é muito mais importante, a colaboração que a Vale do Rio Doce fez para as comunidades, para os lugares que ela trabalha, que são benefícios fantásticos. Educação, pesquisas, arte. Em São Luís do Maranhão aquele belíssimo teatro Artur Azevedo, que faz parte da minha vida, eu era rato de teatro em São Luís, foi todo remodelado pela Vale do Rio Doce. O teatro de Belém do Pará, a mesma coisa. E óperas, e movimentos artísticos. No dia do meu aniversário estava lá uma bailarina do Theatro Municipal agradecendo a diretoria da Vale pela excursão de um grupo de bailarinos do Theatro Municipal pelo interior do Brasil. Gente, ninguém sabe como isso é benéfico para a nossa cultura. Além disso, quando o Brasil tomar conhecimento da obras do Vale do Rio Doce vai haver o respeito porque ali está o exemplo de como se trabalha bem, de como se está atento tanto ao objetivo que é a mineração como os cuidados e os projetos altamente elogiáveis que a Vale do Rio Doce tem.



P/1 - Joãosinho, você fez essa viagem da Vale pelo Sistema Sul e Sistema Norte?



R - Só fui a Itabira.



P/1 - Andou de trem?



R - Não andei, vi o trem, que vai ser uma das alegorias da Grande Rio, vi o processo da mineração, mas vou continuar.



P/1 - Foi para Vitória?



R - Vou agora. Vou agora para Vitória, vou à Carajás, quero ir a uma mina de ouro. Enfim, eu quero conhecer agora profundamente a Vale do Rio Doce. Porque de repente eu tenho essa felicidade, cada enredo me proporciona mergulhar profundamente em assuntos brasileiros, e pela quantidade de enredos que eu já fiz eu já acumulei muitas experiências e vou acumular mais essa.



P/1 - Você já tinha visto uma mina… Quando você chegou em Itabira e olhou qual foi a sua sensação quando você viu a cratera?



R - Eu desconhecia totalmente a mineração no Brasil, não fazia, não tinha ideia da potência, da maravilha que é. Eu chorei, posso confessar isso? chorei ao ver aquela montanha já cavada, que é o monte Cauê.



P/1 - Que já não é mais pico, ele está para baixo, inverso.



R - Inverso. Mas vi quanto benefício aquele monte trouxe para o Brasil, quanto trabalho, tanta riqueza, e continuo a mergulhar, a tomar conhecimento, a ficar maravilhado com as equipes, com o trabalho, com a dimensão da Vale do Rio Doce, e estou agradecendo a Deus por ter tido essa sorte dessa aproximação com a Vale do Rio Doce, tanto que eu já assumi sem cobranças um papel, eu sou garoto propaganda da Vale do Rio Doce gratuitamente. Sou pelo horizonte maravilhoso que de repente esse enredo me mostrou, e sinto orgulho, principalmente isso. O trabalho da Rio Doce, eu vou procurar trabalhar para levantarmos o orgulho nosso de sermos brasileiros, de poder ter motivação para fazer um enredo com o título: “O nosso Brasil que Vale!”



P/1 - Qual é o nosso “Brasil que Vale”, para além desse da mineração?



R - Só o começo da história com essa mineração já vale todo “o Brasil que Vale”, e todas as obras, e todos os cuidados com os índios, e todo o trabalho de educação, de arte, isso é o Brasil que vale. E nós vamos terminar também prestando uma homenagem a nossa seleção, porque é o Brasil que vale.



P/1 - Você tem milhares de prêmios, milhares de trabalho no exterior que você foi convidado, então a gente está aqui e acho que a gente tem que marcar umas três voltas com você, assim, o dia inteiro.



R - É verdade.



P/1 - É muito, e agora eu pilhei em fazer a sua história de vida, então eu sei que vai dar mais umas trinta horas de gravação, você vai ter que me aguentar agora porque eu vou ficar te ligando sempre.



R - É, a escola de samba...



P/1 - Essa parte a gente deu uma...



R - É, eu sei, mas eu digo que a escola de samba, a Beija Flor, pelo apogeu, pela repercussão das vitórias me proporcionou dar duas viagens em torno do mundo. Eu fiz espetáculos com a Beija Flor, com a Viradouro em toda a Europa e várias partes do mundo, no Oriente. Durante doze anos eu realizei o Réveillon do Rei Hassan no Marrocos. Uma maravilha, porque o Marrocos e posso dizer o seguinte: o Marrocos é dividido em dois, o Marrocos de fora das muralhas e o Marrocos de dentro das muralhas dos palácios reais. São quatro cidades imperiais. Marrakech, Casablanca, Rabat e Fes. Cada cidade dessa tem um palácio mais fantástico do que o outro, que muita gente conhece e que eu tive o privilégio de durante doze anos realizar a única festa que o Rei Hassan, aquele homem maravilhoso, aquele rei que eu consegui botá-lo de pé na primeira noite quando fui abrir o espetáculo, que eu falei em português porque ele entendia português, quando eu tinha acertado com o embaixador que eu faria a apresentação em francês, que é a língua que todo Marrocos fala, mas quando eu descobri que o rei falava português, eu na hora, para espanto geral do embaixador, eu falei português, porque sabia que o Rei Hassan falava, entendia português. Então eu disse para ele: “Majestade, esse grupo que vai se apresentar vem do Brasil, um país cujo a geografia tem a forma de um coração, esse coração que começou a bater quando aqui se encontraram três sangues, o sangue do índio, o dono das terras, o sangue do europeu, do português e o fortíssimo sangue africano, e a mistura desses sangues criou a raça brasileira envolvida de muitas heranças, mas principalmente de uma energia muito forte chamada alegria, e nesse momento nós agradecemos a Sua Majestade o Rei do Marrocos, Hassan Segundo, sangue vivo de Maomé.” Quando eu falei isso: “Sangue vivo de Maomé”, o rei se colocou de pé e a platéia que não estava entendo que eu estava falando...



P/1 - Ficou de pé junto.



R - Claro, tem que ficar, o rei fica de pé todo mundo fica. Porque o Rei Hassan é o rei que nós aqui no Brasil não podemos avaliar, porque aqui no Brasil nós só temos o Rei Pelé, o Rei Momo e outros reis, enquanto o Rei Hassan tem o sangue do Profeta Maomé, que é a encarnação de Deus, é como se Jesus Cristo tivesse tido uma descendência, e o Hassan, como tem uma descendência com Maomé, ele é venerado como um deus. Então é muito diferente a nossa visão e a visão dos árabes. O Rei Hassan é um personagem que trás o sangue do Profeta Maomé. Então é um respeito, é uma veneração que nós não conseguimos alcançar. Felizmente, durante doze anos, eu fiz seguidamente a festa do Réveillon para a alegria do rei, que me abraçava, que conversava comigo e que me deixou uma experiência muito marcante, principalmente por isso, pela primeira noite quando eu disse: “Nós agradecemos ao Rei Hassan Segundo, sangue vivo de Maomé”, e que ele se colocou em pé junto com toda a corte, nós agradecemos por nos dar a oportunidade de voltarmos aos nossos ancestrais e devolver as nossas heranças em formas de cantos e danças e envolvido por aquela alegria maior que acontece numa festa chamada carnaval. Quando eu acabei de falar ele subiu ao palco, me deu um abraço e pego o surdo que estava ao lado da orquestra e ficou com o surdo preparado aqui, aí eu dei a ordem para orquestra, a orquestra começou a tocar. Eu tinha levado uma orquestra, assim como ele tinha levado bateria de escola de samba: “Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos!” Quando tocou o tamborim para entrar o samba, ele deu a batida exata, quando ele bateu e a orquestra começou, bem brasileiro o samba, eu disse: “Sou amigo do rei!” E fui. Durante doze anos e fiz a festa do Rei Hassan. Ele faleceu a uns quatro, cinco anos atrás, e no ano dois mil eu fui chamado novamente para fazer a festa do Maomé, Mohamed Six, que é o novo rei, que eu conheci garoto, mas aí a festa já não era a mesma coisa. Mas é uma das emoções, uma das lembranças mais lindas que eu tenho na minha vida, porque eu fui amigo do Rei Hassan, um verdadeiro rei, um grande estadista, um homem maravilhoso. E viajei muito, fiz aquela temporada em Londres, fiz dois anos seguidos um grande desfile em Paris. Em 1977, quando o Jacques Chirac fazia plano do governo dele de levar alegria para Paris. Ele queria humanizar os metrôs, ele queria fazer de Paris aquela cidade de luz como na Belle Époque, e mandou vários delegados dele percorrer o mundo para saber que festas estavam acontecendo. Ele mandou um delegado para o Brasil para assistir escolas de samba, esse delegado que me contou e a recomendação era filmar um pouco cada escola porque eram muitas escolas. Ele estava filmando pouco a pouco quando eu cheguei com a Beija Flor. Ele ficou tão entusiasmado que gastou o filme todo com a Beija Flor e estava certo que se fosse escolhido o carnaval do Brasil era a Beija Flor que ia, e Jacques Chirac escolheu exatamente fazer o evento que se chamou “O Carnaval dos Carnavais.” Ele convidou os países do mundo inteiro que faziam carnaval para fazer esse “Carnaval dos Carnavais”. Mas quem aconteceu mesmo foi o Brasil, nós é que encerrávamos o desfile com mulatas, com destaques, a bateria endoidecia os franceses que amam a nossa música e nós encerrávamos esse carnaval e tinha quinze países. Quem devia encerrar deveria ser a França, mas nós é que encerrávamos porque depois de nós não tinha mais nada.



P/1 - Ficava sem graça.



R - Foram dois desfiles, um durante o dia bem do lado do Trocadero até o Hotel Deville, que é a prefeitura. Sete quilômetros de distância, mas era tanta empolgação. Foi calculado dois milhões de pessoas nas ruas. De noite era no Sena, em Peniche, embarcações enormes, bem sonorizadas, e tanto a Rive Gauche como a River Troas, repleto de gente. Imagine, os dois milhões voltaram, nem foram para casa, os pré-metrôs pararam. Pela primeira vez, depois da última guerra, os pré-metrôs pararam. E foi sucesso, eu garanto para vocês pelo seguinte, dois anos depois tornou a se repetir esse desfile, e em Paris nada se repete se não for sucesso, só o que foi sucesso é que se repete, e nós voltamos, fizemos o segundo desfile e foi ainda mais empolgante, e não aconteceram outros porque o Jacques Chirac passou para primeiro-ministro, saiu do governo, da prefeitura e não deu continuidade. Mas assim mesmo a prefeitura de Paris me convidou para fazer uma excursão de quatro meses pelo interior da França. Em quatro meses eu visitei oitenta cidades da França. Passou-se um ano e essa mesma excursão se repetiu, eu conheci mais oitenta cidades. Depois fui convidado para fazer a Conde d’Azur e continuei viajando. Portanto, eu conheço a França mais do que muitos franceses, até o centro geográfico da França eu conheço.

Então viajei pelo mundo inteiro, e conhecer o mundo é uma expansão, você cresce, porque só conhecendo outras culturas a gente sente necessidade também da expansão, do estudo, da pesquisa, e é tudo isso que me motiva aos setenta anos continuar trabalhar, porque o mundo é tão maravilhoso, que por mais que a gente faça, esta fazendo pouco. E é por isso que eu inicio meus novos setenta anos com muita garra, ainda farei muitos eventos, eu estou com garra.



P/1 - Joãosinho, se você tivesse que mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, você mudaria?



R - Não. Não porque até dizem que o sagitariano avança quando ele tropeça, ao invés de ir para trás ele vai para a frente. Eu te garanto que se eu não tivesse tido experiências negativas, e eu tive muitas, eu não teria uma experiência completa. Eu aprendi pela própria vida que essa polaridade que acontece comigo, de eu estar num navio, ir lá para o fundo e de repente estar lá em cima, esse é o jogo da vida, o alto e o baixo, a luz e a treva, o bem e o mal. Eu tenho certeza que o planejamento cósmico está feito dentro dessa lei de polaridade. Mão esquerda, mão direita, o bem e o mal, e o equilíbrio, que é o número três. Exatamente quando eu entendi que LEI é um, três e sete, eu vim me lembrar, eu me lembrei das palavras da minha mãe: “Um dia você há de saber o valor de seu nome!” Exatamente quando eu entendi o valor do número três eu entendi o que minha mãe quis me dizer, porque Trinta é o três ao infinito, então o número do meu nome tem um grande valor e eu tenho conhecimento disso, e tendo conhecimento que entre o bem e o mal, a luz e a treva, deve-se procurar o caminho do bem. Então, as experiências negativa foram tão válidas para mim como as experiências positivas. A vida para mim é esse jogo, é esse escalar de altos e baixos, é esse vivenciar as diferenças, e por isso a vida me ensinou uma coisa, a estar atento, a prestar atenção, a não olhar numa só direção. É por isso que lá no morro do Salgueiro, fazendo festa, fazendo carnaval eu poderia ficar somente olhando o aspecto da alegria, mas lá, junto da alegria, estava a tristeza, e eu soube olhar para essa tristeza e quis começar trabalhar, não consegui, consegui mais adiante. Mas então, a grande lição que eu tenho da vida é ter atenção, olhar para o mundo, olhar para as pessoas, olhar para a vida, estar atento.



P/1 - Joãosnho, qual é o seu maior sonho hoje?



R - Ah, meu sonho é ver o Brasil caminhando com seus pés verdadeiros, com suas mãos, com seu corpo, com sua cabeça, realmente desse gigante que nós somos. Que Deus ilumine o nosso presidente, o Lula, para que com todo o mundo, com os inimigos, com os amigos, com os apagados, com os mornos, com os quentes, com os frios, com todo mundo, que haja um despertar de consciência, que haja uma atenção de que estamos no terceiro milênio. Olha o número três novamente presente. No número três do terceiro milênio é a hora e a vez de nós levantarmos esse gigante chamado Brasil. Ele é muito grande, mas o Brasil é grande, nós somos grandes. Que não haja medo, que não haja receios, sejamos audaciosos, criativos, sem medos. Nós estamos preparados, está aí um exemplo de grandes empresas, e eu volto a falar da Vale do Rio Doce como exemplo. Gente, chegou a hora do Brasil, viva o Brasil!



P/1 - Bom, eu posso perguntar só mais uma coisa? Essa paixão pela dança. Você falou que continua pesquisando, estudando?



R - Repara bem, eu faço o espetáculo, portanto, o espetáculo é feito de múltiplas partes. Tem a parte coreográfica, tem a parte cenográfica, porque um desfile de escola de samba é uma grande ópera. O que é uma ópera clássica? É um libreto, portanto, uma obra literária adaptada para um espetáculo que se baseia em música, em dança, que tem cenários, que tem atores, cantores, bailarinos. Então uma ópera reúne todas as artes, a literatura, a música, a dança, a pintura, a escultura, e quando você vê um desfile de uma escola de samba, você vê exatamente uma ópera. O desfile de escola de samba começa com um enredo, o que é um enredo? É uma história que deve ter começo, meio e fim, exatamente como o libreto da ópera. Esse libreto, como na ópera, ele é musicado, cantado, dançado. Se a ópera tem um cenário, a escola de samba tem os carros alegóricos. A ópera tem seus personagens principais, a escola de samba tem os destaques. O que são os destaques? São os personagens principais da ópera, ou melhor, da escola de samba. A ópera tem um corpo de baile e tem o corpo coral. O corpo de baile dança, não canta, enquanto o corpo coral canta e faz a evolução, exatamente isso acontece com o desfile da escola de samba, você tem os passistas que não cantam mas dão no pé, e tem as alas que cantam, que fazem evolução mas não dão no pé como o passista. Portanto, o desfile de escola de samba é uma ópera de rua. Para se fazer uma ópera, você tem que estar atento a tudo o que uma ópera requer. O canto, a dança, a cenografia, a escultura, a pintura. Então o carnavalesco tem que reunir essa capacidade de olhar, de saber para poder fazer.



P/1 - Joãosinho, deixa eu só voltar uma frase sua que ficou famosa: “Quem gosta de miséria é intelectual!” Você pode remontar um pouquinho esse contexto?



R - Nessa nova etapa do carnaval que se iniciou com o trabalho de Ana Mary Louise Neri, Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, e que eu continuei, sobretudo, o que aconteceu foi o crescimento da escola de samba, ela se organizou e cada um de nós, o Pamplona, o Fernando, pôde realizar os espetáculo já melhorado. E quando eu comecei a montar meus enredos, eu sempre tive uma visão tanto do mundo como do Brasil, uma visão muito grandiosa, de beleza, tanto que se você tivesse que me perguntar como eu definiria Deus, eu diria: “Deus é um carnavalesco nota dez, ou nota mil, ou nota milhões de zeros.” Porque é incomensurável, porque a vida é uma maravilha. Então eu quis sempre, nos meus enredos, transmitir essa beleza, essas novas dimensões, eu quis abrir portais que a emoção, que a arte proporciona, que a beleza proporciona, e comecei a fazer meus carnavais com essa concepção, e começou depois de algum tempo a haver cobranças, cobrança de quem? De alguns intelectuais, porque se já se estava numa época de turbulência, já o Brasil tinha passado a década de cinquenta, a de sessenta, já se tinha instalado no Brasil, e aí vem um fato muito importante. É que a revolução aconteceu em 1964, e estava no Salgueiro e permaneci no Salgueiro até 1974, e eu, junto com o Pamplona, que é um confesso ideólogo, comunista assumido, junto com o Arlindo Rodrigues, e claro que eu estava junto deles, eu também entendia o posicionamento. Eu apelidava a Beija Flor, naquela época, de Unidos da Arena, por quê? Porque enquanto eu estava fazendo o primeiro carnaval no Salgueiro, que foi em 1974, “O Rei de França da Ilha da Assombração”, a Beija Flor naquele ano de 1974 estava fazendo um enredo chamado “O Grande Decênio.” O que era o Grande Decênio? Era um elogio aos dez anos da revolução, a revolução que estava matando as pessoas, que estava exilando os intelectuais, os artistas e políticos. Em 1964 a Beija Flor faz esse enredo, chega no ano seguinte faz “O Brasil do ano 2000”, elogiando a revolução, até com um samba incrível que falava de PIS-PASEP, Funrural, e foi exatamente em 1975 que eu decidi sair do Salgueiro. Portanto eu tenho a minha concepção esquerdista, porque convivi com a esquerda, participava das ideias da esquerda, só que meu trabalho estava indo naquela direção. Quando eu decidi sair do Salgueiro para fazer uma obra social, eu procurei uma escola pequena e encontrei o Anísio, e a primeira pergunta que e fiz foi: “Anísio, por que vocês fazem enredos elogiando a revolução? A Beija Flor tem algum envolvimento com a revolução?” O Anísio me disse: “Não, é que chegou ano passado ou retrasado, o professor me deu uma sugestão para que a Beija Flor fizesse o enredo sobre o Mobral, nós como não tínhamos enredo, gostamos do enredo, foi um carnaval barato, porque a maior parte do pessoal saiu de estudante de colégio e deu resultado. Esse professor chegou no ano seguinte, deu outra sugestão, e como nós recebemos um telegrama do general, nós gostamos e continuamos a fazer.” Eu digo: “Então, você tira seu cavalo da chuva, porque se eu tiver que ir para a Beija Flor eu não vou fazer absolutamente enredos de elogia à revolução, ao contrário, e já tenho um enredo que é até subversivo, o enredo que e tenho é a história do jogo-do-bicho.” Ele disse: “Ah, não vai passar, porque o jogo-do-bicho é proibido!” Eu disse: “Deixa comigo! Deixa comigo, porque tão ventilando de oficializar o jogo-do-bicho, de fazer a zooteca, então deixa comigo!” Aí, naquela época, tudo era censurado, então tinha que se mandar para a censura tudo o que você ia fazer. Aí eu mandei uma carta, escrevi o seguinte: “A Beija Flor, uma escola que a anos vem fazendo seus enredos de elogios às obras do governo revolucionário, vai lançar se próximo enredo dentro dessa mesma linha, o enredo da Beija Flor vai ser um elogia à próxima obra da revolução, que é a zooteca.” Porque essa história da zooteca começa com a nobreza, o Brasil ainda era monarquia quando o Barão de Drummond desejou dar um presente ao Rio de Janeiro, ele queria fundar o Jardim Zoológico, que teria a aprovação do Rei Dom Pedro Segundo, que dava uma verba muito boa para o Barão de Drummond fazer o jardim Zooloógico, e o Jardim Zoológico foi fundado na Vila Isabel e durante muitos anos o rei manteve, mas com a queda da monarquia a república abandonou o Jardim Zoológico e o Barão de Drummond ficou em apuros para alimentar elefante, leão e outros bichos. Ele estava em dificuldades quando um italiano que era dono de uma casa de flores no centro da cidade deu um conselho ao Barão, que ele fizesse a experiência que ele estava fazendo na casa lotérica, na casa das flores, que era uma loteria. Todos os dias na casa de flores eles sorteavam uma flor, quem tivesse comprado flores naquele dia, no dia seguinte podia escolher flores que levava de graça. O Barão de Drummond então criou o tíquete de entrada do Jardim Zoológico com 25 bichos, que era vendida a entrada a duzentos réis, e no fim do dia havia um sorteio e quem ganhasse recebia dois mil réis, que era muito dinheiro. Como o Rio de Janeiro não tinha televisão, não tinha atrativos, aquele sorteio lá na Vila Isabel, no Jardim Zoológico, passou a ser uma atração da cidade, o que levou muito dinheiro para o Barão, que pôde manter o Jardim Zoológico. Mas o que aconteceu? Começaram a aparecer os corretores zoológicos.



P/1 - É ótima essa história.



R - Os corretores zoológicos tomaram conta, depois o Barão morreu e a prática da correção zoológica virou o popular jogo-do-bicho. Assim o enredo passou na censura (risos). Claro que eu não falei do jogo-do-bicho. Passou e eu ganhei o carnaval. Mas olha o que acontece, essa história é comprida. Eu passei para a Beija Flor e ganhei o primeiro carnaval, ganhei o segundo, ganhei o terceiro, junto com os dois que eu já trazia no Salgueiro, eu ganhei cinco vezes seguidas o carnaval, e continuei ganhando, mas em 1983 se faz a abertura da revolução. Brizola e toda a esquerda que estava exilada retorna. Quando o Brizola constrói o Sambódromo preparo o carnaval de 1984. Ora, quem o Brizola põe no júri? Todos os intelectuais que tinha vindo com ele e que estavam exilados e que todos, em peso odiavam a Beija Flor, por quê? Porque eles saíram daqui do Brasil com a Beija Flor fazendo elogio à revolução. Quando eles voltaram e me encontraram na Beija Flor, naquela época ninguém ligava para carnavalesco em tinha esse título de carnavalesco. Encontraram na Beija Flor quem? Então é esse que nós vamos dar nota baixa e nunca mais depois do Sambódromo eu ganhei carnaval. Saí da Beija Flor sem nunca mais ganhar carnaval, por quê? Porque os intelectuais que voltaram para o Brasil não sabiam que não era eu que tinha feito esses enredos. Esses enredos, inclusive um deles, o último, “O Brasil do Ano 2000”, foi feito pela Rosa Magalhães, a filha do Magalhães Júnior, e foi incrível o patrulhamento que fizeram comigo, e Leon Ishman, que foi o grande cineasta, quando ele foi júri de evolução do ano de 1988, quando eu fiz o grande enredo “O Mundo é uma Bola”, sobre a história milenar do futebol, ele, o Leon Ishman escreveu na papeleta: “Jamais darei dez para uma escola que fez o elogio da revolução!” E naquele quesito que abre a Beija Flor merecia dez, porque foi um desfile de baixo de chuva, que a Beija Flor surpreendeu, eu perdi o carnaval. Eu nunca mais na Beija Flor, eu saí de lá sem ganhar carnaval, vim ganhar na Viradouro, mesmo tendo feito em 1989 aquele carnaval que foi inclusive aplaudido por todos os grande intelectuais, que foi o “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, porque exatamente, antes me acusavam de fazer um carnaval de luxo, de fantasias, que não retratava a realidade do Brasil. Mal os intelectuais sabem que lá no morro, nós tivemos experiência disso, o crioulo no carnaval não quer sair de pobre, o crioulo quer sair de príncipe, de rei, vai dar uma pobreza para ele. Mas assim mesmo, eu de tanto ouvir: “Ah, Joãosinho não retrata a realidade do Brasil!” Eu também revoltado com a decadência do Rio de Janeiro, resolvi fazer “Ratos e Urubus”. Convidei... O enredo é o seguinte. Eu fiz um convite a todas as prostitutas, delinquentes, ladrões, mendigos, loucos, vagabundos, moradores de rua, para que todos catassem o lixo das grandes cidades, da grande cidade do Rio de Janeiro e tirasse do lixo da igreja, do lixo da imprensa, do lixo dos políticos, tirassem os restos e fizessem uma fantasia. Então o carnaval inteiro era feito de lixo, e foi o maior carnaval que até hoje por todo o Brasil e mesmo no exterior é comentado como o maior espetáculo. É essa história para responder a sua pergunta de por que saiu essa frase. Essa frase saiu exatamente porque quando eu disse: “Povo gosta de luxo!”, eu não estava me referindo ao luxo de ouro, prata, o que seria uma cretinice. Quando eu falei: “Povo gosta de luxo!” eu queria me referir ao luxo da emoção, ao luxo da beleza, ao luxo da participação, porque ninguém avalia para uma comunidade um pouco pobre, de morro ou de baixada, o quanto é importante participar de uma escola de samba, porque eles são a classe Z. Uma antropóloga se assustou quando eu falei classe Z, por quê? Porque nós só falamos da classe A, da classe B, C, se fala da classe D. Da Z não se fala. Z é aquela humilhação de vida, são famílias que não têm trabalho, que não têm esperança de vida, que passam fome, essa é a classe Z que existe tão perto de nós nas favelas, nas baixadas e que eu convivi durante décadas com essa classe Z. Eu sentia o quanto esse povo valoriza a sua escola de samba, porque na escola de samba, além dele encontrar um apoio até para as suas necessidades, porque a escola de samba ampara muito, ampara as crianças com os projetos que eu já me referi, sobretudo a classe Z encontra uma identificação e por isso é que a classe Z ama a sua escola de samba, porque a escola de samba não acontece só no dia do desfile, só naquela hora, a escola de samba é uma participação durante o ano inteiro. São os ensaios, são as reuniões, são os trabalhos. Então a escola de samba tem uma presença muito maior na vida da classe Z, na vida das comunidades, muito maior do que as autoridades imaginam. Quando eu terminei essa frase dizendo: “Intelectual é que gosta de miséria!”, é porque naquela época pseudo-intelectuais me cobravam de fazer um espetáculo monumental. Eu fazia esse espetáculo monumental para essa classe Z, porque eu não usava dinheiro, não usava ouro nem prata, eu usava minha imaginação, minha criatividade, que eu aprendi desde criança a fazer. Então meus carnavais eram luxuosos? Claro, eu fazia um exercício de transformar um papel que embrulha prato, plástico, materiais jogados fora, eu tenho a capacidade de transformar em ouro, prata e o que eu quiser. E eu ria daqueles que falavam, porque na verdade eu estava enganando a eles, e enganar é o próprio espírito do carnaval. O homem se transforma em mulher, a mulher no homem, então eu achava graça quando via as críticas: “Joãosinho é só luxo!” Eu digo: “Olha, que ótimo, e estou trabalhando com materiais baratos, com papel de chumbo e eles estão engolindo como ouro e prata. Eu sou um bom carnavalesco!” E fiz o “Ratos e Urubus.”



P/1 - Tem que encerrar, Fernando, por causa do horário?



R - Inclusive eu tenho.



P/1 - Ah, eu queria marcar outras. Bom, então vamos continuar outro dia?



R - Vamos, porque agora eu tenho que ir.



P/1 - Tá bom.