Museu da Pessoa

Tudo vem pra fortalecer

autoria: Museu da Pessoa personagem: Claudia Mayu Konuma

Projeto Medley
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Claudia Mayu Konuma
Entrevistada por
Local
Código: PSCH_HV965
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
Revisado por Leonardo Dias de Paula

P/1 – Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.


R – Claudia Mayu Konuma. Nasci em 25 de março de 1974, em Guarulhos, São Paulo.


P/1 – E quais são os nomes dos seus pais?


R – Minha mãe se chama Mayumi Konuna, meu pai é o Tadashi Konuna. Que mais?


P/1 – Você sabe como eles se conheceram?


R – Se conheceram em São Paulo, embora os dois nasceram no Japão, cada um numa província diferente, e vieram para o Brasil com um ano de diferença entre um e outro. Mas o meu pai era nove anos mais velho que minha mãe, e aí ele veio já adulto. Minha mãe veio trazida pelos pais, pela família, com nove anos de idade. E se conheceram no bairro da Liberdade, na Praça da Liberdade, se cruzando quando ela começou a trabalhar ali.


P/1 – E o que eles faziam ali?


R – Ela dava aula. Na época, tinha uma empresa... Puxa, não vou lembrar da empresa em que ela trabalhava, mas ela... tinha as máquinas de tricô, então ela era professora de como utilizar esta máquina que era importada do Japão. E o meu pai já trabalhava como, se não me engano, economista numa empresa japonesa. Então, por isso acabou ficando com o local… parece que um ia para um local... acabaram se cruzando ali na praça e se apaixonando ali na praça.


P/1 – E quais são os principais os costumes que você lembra da sua família?


R – Costumes? Vários costumes. Costume, assim... Eu tenho mais duas irmãs, a mais velha e a mais nova, a gente tem dois anos de diferença entre uma e outra. No Japão, a gente tem uma referência, um costume de homenagear, comemorar, os três, os cinco e os sete anos de idade de meninas, por exemplo, sempre essa diferença. Então eles sempre mantinham essa… Quando a gente fez aniversário de três, cinco e sete anos, a gente tinha até o vestidinho costurado pela minha mãe, da mesma cor, todo igualzinho, todo bonitinho. Tenho até uma foto, eu acho que eu até trouxe essa foto. Mas é um momento assim do costume, né, e na época tinha muito a referência da mãe ser a dona de casa, ela costurava tudo, ela... enfim, fazia tudo em casa, além da comida, da organização da casa, até a roupa. Hoje não tem mais nada como uma obrigação ou um costume. Além disso, tem várias referências assim de ritos japoneses que a gente celebrava. Tinha também, eu não vou saber de datas exatamente, mas tinha um momento no ano em que a gente tinha que pegar grãos de soja crus e atirar por cima do telhado da casa, que dizia que isso era para espantar os onis, como se fossem diabos na cultura japonesa. Também tinha... toda noite a gente tinha que rezar uma oração budista antes de dormir, tinha o ano novo japonês, a gente praticamente não comemorava o Natal. O Natal era o momento de presentear as crianças, então eles gostavam da fantasia do Papai Noel, de escrever cartas, e aí a gente descobria os presentes debaixo da arvorezinha de Natal, mas não com o sentido cristão, mas com o sentido talvez mais comercial mesmo, mas era divertido. O ano novo, sim — e aí não é o réveillon, mas o ano novo, o dia primeiro de janeiro —, era comemorado e o momento de reunir toda a família. Então sempre, ainda hoje, a gente reúne toda a família no dia primeiro de janeiro, e eles fazem um revezamento entre a minha mãe e os irmãos de onde vai ser o local de encontro da família. Então é sempre divertido. Dependendo de quem tá promovendo, rola um amigo secreto da família, ou é só comemoração, comida, e é muita comida, é muita coisa mesmo. Então, é muito interessante que, apesar da gente levar comida, a gente volta com comida pra casa. Não sei de onde, né? Parece que multiplica, parece que, não sei o que acontece, volta com um monte de comida e fica comendo a comida do ano novo durante a semana. Que mais que eu posso falar? Os rituais de aniversário sempre foram comemorados, e o interessante, no meu caso e no da minha irmã mais velha, é que a gente nasceu no mesmo dia, com dois anos de diferença. Então, a gente tinha, tem várias fotos nossas que é sempre a gente cantando parabéns. Aí a gente chega ali na adolescência e a gente fala, quer dizer, eu falo: “não quero mais você comigo”. E ela fazia questão de, independentemente de onde eu estava, ela tinha que invadir a minha festa com os meus amigos. Ela vinha atrás, mas tudo bem. Essa é a única pessoa no mundo, depois da minha mãe — meu pai já se foi —, mas, depois da minha mãe, a minha irmã é a única pessoa no mundo que eu realmente quero que se lembre do meu aniversário. As outras pessoas eu perdoo, mas ela, se esquecer, eu não perdoo. E vice-versa, com certeza. Que mais... Acho que tem essas, tem alguns momentos da religião budista. Então a gente tem o momento do finados, que, no budismo, japonês, eu acredito, tem uma ligação muito forte com os antepassados. Então, dia dois de novembro é o momento de a gente fazer visita ao cemitério ou então ao ossuário. Meu pai foi cremado, então as cinzas dele a gente lançou uma parte ao mar, mas uma parte ficou no templo budista. Então é o momento de a gente fazer a visita, uma oração, e também, na virada do ano, a gente começou a ficar no templo pra começar o ano fazendo uma oração de agradecimento pelo ano que passou e que vai entrar. Então é um momento mais de reflexão do que de festa, de gastar dinheiro.


P/1 – Você se lembra de alguma comemoração específica ou de alguma festa ou aniversário? Tem alguma recordação?


R – Lembro, lembro uma especificamente. Na verdade, dos presentes de aniversário que eu e a minha irmã... a gente tinha que dividir praticamente tudo, então ou era tudo igual... Como era perto da Páscoa, era comum a gente ganhar ovos de Páscoa. Então não tinha Páscoa, a gente era budista mesmo, então tudo bem, não ia ter chocolate de outra forma. Mas teve um presente de aniversário que era um fogãozinho com franguinho assado lá que ficava girando, mas que ficava na tomada, né? Naquele dia, a gente resolveu que as duas queriam brincar ao mesmo tempo com aquele brinquedo, mas uma queria o frango e a outra o fogão. E aí a gente começou a puxar e quebrou o brinquedo no mesmo dia, e depois disso aprendemos a compartilhar de outra forma. Então, sem essa, senão não vai ter brinquedo pra nenhuma das duas.


P/1 – E você se lembra de refeições, comidas marcantes? Vocês tinham isso?


R – Sim. A minha mãe, japonesa, ela estudou até os três anos de idade, quer dizer, terceira série do primeiro grau, tanto no Japão como no Brasil, então ela não teve a capacidade de escolarização muito grande. Mas o que tinha aprendido aí foi o suficiente para ela conseguir ler revistas japonesas. Nas brasileiras ela nunca teve muito interesse, mas nas japonesas ela tinha. E as revistas lá são muito instrutivas, então falam de nutrição, falam de que tipo de alimentos são bons para determinadas faixas etárias ou determinadas necessidades de saúde. Então, ela cozinhava muito bem. Inclusive, aos nove anos, quando chegou ao Brasil, os irmãos mais velhos e os pais ficavam na roça, e ela tinha que cuidar dos mais novos, né, que ela tinha um irmão bebê e um pouquinho mais velho, de dois anos de idade. Então ela cuidava dos pequenininhos e também fazia comida para os irmãos, para a família. Aos nove anos, então era... Desde então ela tomou a responsabilidade,

assumiu a responsabilidade de cozinhar para a família. E até hoje ela gosta de cozinhar, não foi coisa que ela fez só porque era uma obrigação, ela foi se aprimorando, tudo, ela gosta. Então, a referência de comida era muito forte na minha infância, e o meu pai era um chato, porque ele queria sempre uma comida nova todo jantar, não podia repetir. Então, para ele, tinha que ser novo no jantar. Ele ficava fora na hora do almoço né, então o almoço nosso em casa era a repetição, era para terminar a comida de ontem. Mas eram, são vários cheiros, várias comidas diferentes. Mas uma que eu me lembro muito na minha infância que a gente não comia muito, vocês vão até achar engraçado, mas era feijão. Feijão era uma vez por mês, eu acho. Era tão raro que eu e minha irmã, a gente... eu tinha uns dois, a partir de uns dois anos e ela com quatro. A gente brincava na rua, não tinha carro no local, muito raro passar um carro, não tinha ônibus, não tinha quase nada assim, a gente só caminhava. Ia pra casa dos amiguinhos, tal, tudo um pouco longe, mas tudo dentro do mesmo bairro. E sempre que a gente voltava — a gente tinha sempre um horário para voltar, mas a gente não usava relógio, a gente sabia pelo sol, né? E a gente voltando, assim: “nossa, hoje eu já sei o que é que é, esse cheiro é de feijão!”. Aí chegava toda já salivando, porque era feijão com arroz. E era muito bom o cheiro de alho, e ela colocava um pouquinho de bacon na panela, então dava um cheiro bem característico. Mas sempre assim... A comida em casa sempre foi muito boa, não posso reclamar, e eu ficava muito brava com o meu pai quando ele falava que alguma verdura tinha um pouquinho de fibra. Como é que você pode reclamar uma coisa dessa para quem cozinhou? Não pode. É impossível! Como é que... enfim, então a gente brigava por essas coisas também, não pode reclamar de uma comida tão boa. Mas, assim, o feijão era um marco que eu lembro; da rua a gente já sentia o cheiro. Tem o — aí já é refeição japonesa —, mas em casa a gente fazia guioza, acho que vocês devem conhecer, em São Paulo hoje tá muito comum. Aí ela fazia, virou uma receita assim que a gente acaba fazendo todo mundo junto, que faz a massa, para abrir a massa já é um mutirão, né? Hoje, a minha mãe faz sozinha, porque ela tá morando sozinha, mas, assim, sempre que a gente conseguia, todo mundo estava lá abrindo a massa. Depois, todo mundo recheando o bolinho. Depois, pelo menos uma pessoa estava lá pra fazer, a gente gosta de fazer mais fritinho, né, com óleo bem fininho na frigideira. Você vai virando e deixa crocante. Tem pessoas que fazem no vapor, mas em casa é sempre na frigideira, ou numa sopa de legumes. Mergulhava, deixava lá e ficava bem gostoso, era uma trouxinha dentro da sopa. Deu até vontade de comer agora. Era muito bom. Gostou, né? Que mais... esses são os meus preferidos. Também tinha um que... o meu pai, ele trabalhava com comércio exterior, isso numa época em que a gente já morava em São Paulo, né, e lá nos Estados Unidos ele comia todo dia o hambúrguer. Ele ficou só um mês, mas foi o suficiente para ficar com trauma de hambúrguer. Então, assim, sempre que ele tinha alguma reunião que ia voltar mais tarde, a minha mãe fazia hambúrguer em casa. Então, o hambúrguer ficou um marco para gente, é o dia em que a gente vai se esbaldar, porque ele não vai estar em casa. Então, aí ela comprava um iogurtinho, meio que fazia um lanchinho. Para ela, acho que devia ser mais fácil, não é tão difícil, e agradava todo mundo que estava lá em casa. Acho que são esses.


P/1 – E como era a relação com as suas irmãs?


R – Acho que, assim, a gente foi mudando ao longo do tempo. Assim, a minha irmã mais velha sempre foi uma referência para mim, porque acho que era natural. A gente vivia meio que isolado numa comunidade em que só tinha descendentes de japoneses, então a minha primeira referência de outra criança era a minha irmã mais velha. Aí a gente tinha os vizinhos que tinham mais ou menos a mesma faixa etária. Então, eu seguia ela em todo lugar, mas como todo bom irmão mais velho, sempre coça pra fazer alguma judiação com os mais novos, obviamente. Então, ela também aproveitava e judiava junto, eles formavam ali um conluio entre os mais velhos contra os mais novos. E aí, quando nasceu a minha irmã mais nova, eu fiquei no meio, aí eu tinha que ser a defensora dos fracos e oprimidos para defender a mais nova da mais velha. Então, eu acho que assim... por muito tempo eu fiquei pensando “ai, eu sou a coitada”, mas depois eu cheguei à conclusão de que eu sou a sortuda, porque ao mesmo tempo que eu aprendi a seguir alguém, também consegui aprender a liderar alguém, fazendo os dois papeis já na infância. Então, assim, aí a gente evolui, mas no começo a gente fica achando que, poxa... Porque, na família japonesa dão muita importância para o primeiro, né, o mais velho é o representante de todos, então tem muito valor. E aí tem o mais novo, também acaba sendo o mais novo, é o caçula, é o que vai viver menos tempo com os pais, então eles têm uma tendência a acolher o mais novo. Aí você fica com aquela ideia de que é o coitadinho, porque então um fica com o mais velho — um dos pais fica com o mais velho —, o outro fica com o mais novo, aí você que é a do meio é largada. Então fica um pouco disso também, mas tudo bem, a gente aprendeu a lidar. A diferença não era tão grande, dois anos só, então acaba sendo a mesma coisa. A relação sempre foi muito mais próxima com a mais velha, a mais nova acabou realmente sendo mais protegida. Então, eu vivia na rua, brincando na rua. Agora, imaginem vocês, em São Paulo, como é que um adulto são deixa duas crianças de dois e quatro anos na rua, sem supervisão de adulto? Impossível, maluquice. Mas era assim, a gente ficava na rua o dia inteiro. A única coisa é que a gente fazia assim, a gente acordava, a minha mãe dava uma liçãozinha de matemática ou de grafia japonesa, a gente fazia uma ou duas páginas, e aí entregava para ela, ela olhava, e aí a gente ia para a rua direto. Já teria tomado café a essa altura, ia para a rua, brincava, brincava, brincava, sem nenhuma supervisão, voltava para casa quando dava fome, comia, depois já ia para a rua de novo e voltava na hora do jantar, às vezes pro lanche. Mas, assim, foi uma infância que eu considero feliz, porque muitas vezes, quando pedem referência de felicidade, para mim, é até os seis anos de idade. Porque, depois, tinha que ir pra escola, e a escola não tinha vaga pra mim. Eu faço aniversário em março, então, na época, a gente só podia ser matriculado com sete anos de idade, e era um mês só de diferença, minha mãe falou “não vamos esperar um ano para ser matriculado”. Então ela preferiu, pediu para a gente se mudar pra onde tivesse vaga. Aí descobriram na Vila Mariana uma escola pública e aí a gente se mudou. Mas São Paulo já é outra, né, selva de pedra, tem que olhar pros dois lados na hora de atravessar a rua, então, enfim, a liberdade da infância realmente acabou. Então, foi um momento pra mim divisor de águas, e para as minhas irmãs também, acredito que foi também. A mais velha já estava na escola, foi ela que me ensinou a ler e a escrever porque a gente brincava de escolinha em casa. Então, a gente tinha uma lousa, ela mostrava as letras e ela me fazia repetir tudo o que ela aprendia na escola. Então ela me alfabetizou, porque até então eu só falava japonês, era cem por cento japonês em casa. Então as primeiras palavras foi a mais velha que me ensinou, eu lembro de aprender a palavra “gato”. E aí, assim, era Caminho Feliz o livro que ela usava, não, Caminho Suave, Caminho Suave. E ela me ensinava todas as lições, e eu fui aprendendo com ela, mas era uma repetição. Algumas coisas, eu fui entendendo o significado daquilo pelas figuras e tudo, mas não sabia flexionar verbos, não sabia de artigos definidos, a/o, um/uma, era xis pra mim, porque no idioma japonês não existe isso, não é igual, não dá pra fazer uma tradução literal. Então, até a sequência verbo, objeto; verbo, não: sujeito, verbo e objeto, não tem uma sequência igual no japonês. O aprendizado não é tão direto, imediato. Então, a gente chegando em São Paulo, eu ganhei vários apelidos, principalmente o de índio, porque não flexionava verbo, e também não sabia usar os pronomes direito. Então foi um primeiro momento em que eu senti tudo junto, tudo ao mesmo tempo: mudar de ambiente, perder os amigos que a gente conhecia desde zero anos de idade, a falta de liberdade. Não é que a minha mãe não deixava a gente ir por aí, deixava, mas era diferente, era “vocês vão daqui até ali, e vocês vão juntas”. E era sempre assim, escola do bairro, mercado do bairro, duas, três quadras de distância, não mais do que isso. Então o mundo foi se apequenando, se apequenou de repente. A gente deixou de conhecer a vila como um todo. A gente ia de casa até uma chácara, a gente conhecia as colinas todas do bairro onde a gente morava, a gente tinha as nossas histórias para cada lugar da vila em que a gente morava. A gente chamava de vila, Vila Paraíso, embora, eu acho que não é esse o nome do bairro. Acho que é Vila Maria Dirce o nome do bairro lá em Guarulhos, mas a gente chamava de Vila Paraíso, porque ficou assim pra gente, porque pra gente era um paraíso. Tinha uma casa no topo da colina, a gente, e era assim, meio mal cuidada, aí a gente subia, escalava, ficava olhando pela janelinha, e via tudo meio esfumaçado e meio quebrado lá dentro, e aí a gente falava que era a casa da bruxa. E ficava lá fazendo todo tipo de fantasia sobre a casa da bruxa, o caldeirão da Cuca, todas as histórias a gente criou em torno daquela casa e depois a senhora vinha dar bronca na minha mãe, porque a gente aprontou na casa dela. Depois, a gente ia também pra uma chácara onde eram produzidas hortaliças, aí, a gente brincava de pegar girino dentro da água. Tinha um riachinho e uma pilha de esterco de galinha lá. Então, muita coisa da roça a gente acabou aprendendo, como é um pé de chuchu, como é que é um pé de alface, de tomate, como é que cuida, enfim, acaba aprendendo, mesmo não sendo da família de camponeses e tal, a gente acaba observando. Minha avó, mesmo no quintal, ela mantinha uma pequena horta e ela deixava... a minha avó morava com a gente, né? Ela veio trazida, né, pelo meu pai. Meu pai, com vinte e um anos de idade, resolveu vir ao Brasil. Os pais dele, minha avó era separada do meu avô e foi uma separação no pós-guerra. Ai, estou retrocedendo lá pra antes, gente. Mas, assim, o meu pai nasceu na Manchúria, a Manchúria fica na China. Na época, a Manchúria era colônia japonesa. Então, conta a lenda da família que, quando ele nasceu, fazia 40 graus negativos, e as pessoas diziam que esse menino não ia sobreviver, porque estava muito frio, mas sobreviveu. Eles viveram lá por um ano mais ou menos e depois se mudaram para Xangai. Mais uma região litorânea, uma espécie de Suíça na Ásia, na época, pelo menos. E aí começou a Segunda Guerra Mundial. Mas, assim, o meu pai ele conta várias histórias felizes dessa época em Xangai, porque ele conheceu várias culturas diferentes além da japonesa ou da chinesa. Ele fala que em relação à chinesa ele não conheceu tanto, porque os chineses eram obrigados a falar japonês com a família japonesa. Ou ficavam quietos ou tinham que falar em japonês. Então era um pensamento do dominador. Mas, além dessas duas culturas e dessa observação que ele fazia, ele conheceu coisas das culturas francesa e inglesa, porque ali se tornou um ponto de encontro de culturas diferentes. E isso, ele fala que ficou super encantado porque o meu avô lá, ele mantinha um café, ele falava de... Era um café com cortinas de veludo vermelhas todo... assim, na minha imaginação era uma coisa muito bonita, muito clássica, e do jeito que ele contava também, ele era um contador de histórias na família. Mas ele foi filho único, e aí acabou a Segunda Guerra Mundial, e ele diz assim “fomos expulsos da China e tínhamos que voltar”. Ele, que nunca voltou, nunca esteve no Japão, fala de voltar para o Japão. Para os pais era um retorno, mas para ele não, ele nasceu na China. E aí, chegando, ele fala “mas o Japão era um lugar muito feio, muito detonado”, né, porque tinha sido totalmente bombardeado. Casas destruídas, muita coisa tinha sido destruída, pessoas não tinham mais roupas novas, não existia mais isso, recursos super escassos, e as pessoas não tinham acesso a livros didáticos mais. A minha avó, mãe dele, minha avó teve que copiar livros para que ele pudesse estudar, né? Ele fala que ele era uma das únicas crianças que tinha sapato para ir para a escola, ele foi para a escola de sapato, mas lá ele sofreu bullying porque ele tinha um sapato e as outras crianças não. Então tomaram o sapato dele e ele foi embora para casa chorando. Esse foi um dos primeiros momentos, então o impacto era ruim, mas ainda por cima existia o tal do terremoto, que no continente não tem, mas lá no Japão tem. Então, pra ele, a sensação de que o Japão não é um lugar bom pra se viver foi muito forte, e a vida toda ele almejou assim: “vou voltar pro continente, voltar para um lugar onde a terra seja mais plana, onde a terra seja mais estável, que tenha mais fertilidade e tal”. Então, isso sempre acompanhou ele a vida toda, uma ideia que ele sempre teve. E aí, chegando no Japão outra coisa aconteceu, ele descobriu que o pai dele tinha outra família. Então, com a desculpa de que ele — o pai, né, dele — de que ele não ia ficar naquela cidade, que era a cidade da minha avó, uma cidade muito pequena no meio das montanhas, “não vou ficar, porque aqui não tem emprego pra mim”. Aí ele falou que ia morar em Tóquio, mas chegando lá, assim, o meu pai e a mãe dele descobriram que tinha uma família com crianças da mesma idade dele, tinha mais de uma criança. Então, na época, assim, era pior do que quando eu era criança, a separação era uma coisa assim como se marcasse o rosto da criança que o pai não estivesse na família. Então, para ele não ser marcado pelas outras crianças, eles falavam que o pai estava trabalhando fora. Então mantiveram essa história durante praticamente a vida toda, mas quando a minha avó ficou doente, também chegando no Japão, quem trabalhava era o meu pai, ele tinha só oito anos de idade. Então, ele trabalhava em loja que vende ferramentas e parafusos, brocas, ferragens de forma geral, e o que ele fazia foi separar e pesar, além de empurrar o carrinho. Ele sempre foi, segundo ele mesmo relatava, foi sempre uma criança franzina, magrelinha, até o final da vida ele foi magrelinho, então ele teve até dificuldade de empurrar. Ele tinha que empurrar o carinho de mão ladeira acima para levar a serragem até a loja. E no pós-guerra não tinha muito alimento, então era ou o exército americano que distribuía ou era alguém do governo que distribuía e era o único alimento que era distribuído, que era batata. Então, a gente imagina “ah, carregar batata é tranquilo”, mas com oito anos de idade e usando baldes, e baldes não eram de plástico na época, eram de ferro. Então ele ia com dois baldes, um balde para ele e um balde para a mãe, e ele dizia “eu tinha que subir um trilho para chegar ao local de distribuição”. Então ele ia caminhando. Não foi uma vida fácil, não foi uma vida que não marcasse, e ele teve que se virar, tanto para estudar, como para ter um alimento em casa. Diz que, na época em que ele estava pronto pra ir pra faculdade, ele foi pedir ajuda pro pai, e o pai falou assim “olha, se eu te ajudar a ir pra faculdade, eu vou deixar de pagar o colégio do seu irmão mais novo”, que é o meio irmão, né? Então o meu pai, que era um dos mais velhos, falou “não, pode ficar, deixa esse dinheiro pro mais novo. Porque tudo bem, eu vou embora daqui”. Então foi quando ele decidiu que ele ia pegar as economias dele, ia pegar a mãe dele, foi quando fizeram a separação formal dos pais, mudou o nome, o nome de família dele seria Ara, né, então ele adotou o nome da mãe. Ele se desligou do pai, porque ele considerou assim “apesar de todas as chances que eu dei, ele não me correspondeu até o último pedido que eu poderia ter feito pra ele, antes de uma vida totalmente independente”. Então pra ele foi a saída, mas na época ele pensou na emigração, ele sempre sonhou em ir pra São Francisco, mas depois do final da guerra, o Japão e os Estados Unidos, ainda não tinha abertura pra imigração japonesa nos Estados Unidos. Então ele viu o Brasil como oportunidade e, como ele tinha algum conhecimento um pouco mais técnico, ele conseguiu já vir pra uma atividade que não fosse só de campo. Então ele veio para o porto de Santos, pelo porto de Santos, e já se instalou ali na região da Liberdade. Ele fala que era, eu até esqueci o nome da rua, mas ele fala de uma pensão ali nas proximidades da Galvão Bueno, por ali, no bairro da Liberdade mesmo. Aí você estava perguntando da minha relação com as minhas irmãs, então isso evoluía, né? Os meus pais, os dois tradicionais, então a gente tinha que jantar todos juntos. Essa coisa de “eu vou jantar quando eu quero” não podia, a gente tinha que estar todas à mesa à noite, e isso funcionou até a época da faculdade da gente. Então isso foi bastante longo, né, a gente manteve bastante isso. Mas eu tive uma irmã mais velha que sempre foi bem atrevida, né, e foi desbravando o mundo das relações com... porque a gente vinha de uma cultura muito japonesa, não só o idioma, mas os costumes, a forma de pensar, alimentos muito diferentes do brasileiro. Chegando em São Paulo, a gente via que os pais eram calorosos, afetivos, abraço, beijo, e, até então, nunca tinha abraçado a minha mãe e meu pai. Como se fosse algo de despedida, né, na escola, nunca. Uma relação muito formal. Eu até, em vários momentos, eu penso que a gente na cultura japonesa, pelo menos na minha família, a gente é muito desenvolvido para o ambiente de trabalho, por quê? Porque a gente tem que entender as diretrizes do que é o certo e do que é o errado, do que é pra ser feito e do que não é pra ser feito, sem precisar de um acolhimento afetivo. Porque a gente tem que simplesmente respeitar, aceitar e aplicar. Então não tem chance de melindre, não tem chance de discussão, de argumentação. Só que isso a gente foi construindo com os nossos pais, a gente começou a questionar “poxa, se vocês acham que a gente tem que ter essa conduta, por que morar no Brasil? Por que que a gente frequenta uma escola que os nossos amigos, noventa por cento deles, são brasileiros?” Então a gente começou a questionar. Eles discriminavam com muito preconceito mesmo que a gente se relacionasse afetivamente, tivesse namorados brasileiros. Então, não podia. E se fosse japonês que não falava japonês, então, pior ainda. Vai segregando cada vez mais e ficando mais difícil, porque mesmo sendo japonês, mesmo hoje, são muito poucas pessoas que falam o idioma, e hoje eu acho que talvez aqueles que estão voltando do Japão, que fizeram uma vida no Japão, eles conseguem falar, mas a maioria não. Então, quando a gente chegou em São Paulo, a gente teve um impacto grande com essa coisa de... E a primeira série minha foi até muito engraçada, porque o meu impulso foi reproduzir o que eu era, o que eu sabia ser, né, em um novo local. Então a gente brincava de subir em árvores, ficava se atirando do alto da árvore e tudo mais, isso na infância toda, corria para lá e para cá, andava de chinelo para lá e para cá. Tentei fazer tudo isso, mas não deu certo. As meninas da minha turma me mantinham bem longe, “essa menina aí é esquisita”, e também os meninos achavam estranho, mas tinha mais abertura de molecagem com os meninos do que com as meninas. Mas, com o passar do tempo, quando você vai vendo, fica se repetindo que você está ficando de lado, que não pode participar do Corre Cotia com as menininhas, do Passa Anel que as menininhas estavam brincando. Você começa a pensar “poxa, que estranho, o que está acontecendo?” Aí, dos oito aos quatorze anos eu me fechei, parei de falar com qualquer pessoa e parei de tentar amizades, parei de tentar me inserir na roda das meninas, e eu lembro muito fortemente que eu ficava encostada numa pilastra durante todo o intervalo e depois entrava na sala. Então vivia uma vida praticamente de muda. Dizia “bom dia, professora” e, quando sabia de alguma coisa, contribuía, com alguma dificuldade de falar. Fui retendo cada vez mais a minha voz, e aí comecei também a criar um sentimento, que talvez não fosse tão bom, que era o de raiva, de raiva dos outros. Eu culpava os outros por me segregarem. Mas essa raiva, o que é que eu fiz? Ao invés de ficar só com raiva, eu estudava. Já que eu tô sozinha, vou estudar, vou fazer as minhas coisas, e os outros que se danem. Ficava pensando dessa forma, mas algumas pessoas na própria escola eu percebia que tinham dificuldade nos estudos e começavam a me perguntar: como é que fazia isso, como é que fazia aquilo. E aquela coisa de “você é o índio” desapareceu, pelo menos com essas pessoas. Então me aproximei dessas pessoas que pediam ajuda, ajudava, e mantive uma relação até hoje com essas pessoas, mais próxima, que vem desde os sete anos até hoje, juntos com essa referência. Mas, assim, foi um sentimento prolongado de certa raiva, de querer me manter como eu mesma, sem ter que me dobrar para ser igual aos outros, ou ao que queriam, porém me isolando, o que era ruim também. Que eu me via, me sentia isolada, e foi um tempo muito grande, né? Se você for pensar, uns seis anos é um bom tempo. Com uns quatorze anos, começaram a falar “tem um vestibulinho para as escolas técnicas”. “Ah, mas o que é que é isso?” Não entendia nada, não sabia o que era o vestibulinho, corri atrás e vi que era uma prova que a gente fazia para ver se a gente conseguia uma vaga em uma escola técnica, porque as técnicas tinham uma educação melhor. E aí a gente foi com o pessoal da escola que tinha interesse para conhecer uma dessas escolas. Aí a escola foi a escola técnica federal, e aí eu me encantei, achei um ambiente muito livre e muito aberto. A gente teve, fez um tour com os veteranos, os alunos de lá mesmo, e foi bem interessante, isso me encantou. E eu falei “eu vou estudar, vou ver o edital desse vestibulinho”. Li de ponta a ponta, porque os meus pais, como eles não liam bem português, eles também não podiam me ajudar mais a essa altura, então eu tinha que saber qual era a lista de conhecimentos que eu tinha que ter pra essa prova. E aí eu mesma fiz uma imersão para estudar e me sair bem nessa prova, e consegui passar, mas o principal motivo era que eu queria ter uma oportunidade de ser alguém que eu achava que eu queria ser. Porque aquelas pessoas do passado, se eu abrisse a boca o pessoal já ficava “nossa, a Claudia está falando!”, e aquele escândalo já me dava aquela angústia. Então eu queria um lugar que não tivesse, se possível, nenhuma daquelas pessoas. E aí por isso, como a escola técnica era mais concorrida mesmo... Na verdade, só um menino da mesma turma foi para a mesma escola que eu, só que fazia em outro período. A escola técnica era dividida em cursos, ele fazia edificações e eu processamento de dados. Então isso ficou segregado também, então foi bom. Foi quando eu me vi com a oportunidade de ser uma nova Claudia, de ter uma nova identidade, de tentar ser aquilo que eu achava que tinha que ser. Isso foi bom. E aí acho que eu aprendi a falar um pouco mais, a expor mais, mas acho que me soltei mais para falar nos últimos dois anos. Antes disso, eu tinha uma mega dificuldade para falar, principalmente para falar em público. Aprendi, eu acho que, eu posso não conseguir ser muito objetiva, mas eu acho que eu consigo me expressar bem. Aí as minhas irmãs...


P/1 – Você se lembra de algum professor marcante nessas duas escolas?


R – Sim. Eu lembro de, tinha uma professora de ciências de que eu gostava muito, a dona Shizui, no primeiro grau, eu gostava muito da aula dela. Mas eu não posso deixar de mencionar que eu fazia aula de japonês e matemática no método Kumon, na época não era tão conhecido assim. Então, pelo fato de me isolar, eu acho que isso me ajudou a me concentrar nos estudos, porque eu canalizei, ao invés de ter amiguinhos e bagunçar e tal, eu ficava nos livros e na pintura também, que eu sempre gostei também, mas sempre fui autodidata na pintura. Agora, professor... eu tenho, eu fazia uma escola japonesa que ficava dentro de um templo budista que não era o mesmo que a gente seguia. Lá, eu não lembro dos professores, mas depois a gente foi para uma escola particular em que a professora era amiga da minha avó, parte de mãe, e ela dava aula na garagem dela. Então, era muito fofa e dava aula pra talvez umas dez crianças ao mesmo tempo, cada uma com seu estágio de desenvolvimento no idioma. E depois a minha mãe quis mudar a gente de professora, me lembro desse dia, saí, fui chorando que eu não queria sair da primeira escola, e fui chorando para encontrar a segunda professora, mas depois que terminou também chorei de novo, porque aí já tinha apego. Essas professoras do idioma japonês foram marcantes e também a de Matemática. Eu tive do Kumon duas professoras, sendo que a última foi mais próxima. Ela era professora do Estado de Matemática também e contava vários casos, e naquele momento já falava da violência dos alunos contra o professor na escola pública. Então, assim, aquelas conversas com ela me fizeram entender mais o cenário em que a gente estava vivendo, da cidade, das relações, das diferenças de classes e tudo mais. E aí na escola técnica já... também tive o prazer, para quem foi chamada de índio foi um grande avanço, eu tinha uma professora de Literatura, Beatriz, que foi uma grande referência. Ela dava aula tanto de Literatura quanto de Redação. E eu lembro que eu escrevi uma redação sobre metamorfose que era sobre mim mesma, mas falando de uma mudança, uma transformação, com essa professora. Tinha muitos bons professores, principalmente na parte técnica, mas acabei não seguindo assim a parte técnica, né, mas a parte mais base da nossa educação. Esses professores foram importantes pra mim: de Matemática, Português e Japonês. Acho que ferramentas assim de comunicação. Aí, na relação de convivência com minhas irmãs, cada uma, apesar de a criação ser a mesma, cada uma teve uma leitura diferente. A mais velha, ela, ao invés de se isolar, se atirou em se relacionar. Então ela tinha amigas da escola que seguiram pelo bairro no segundo grau também, e ela, por outro lado, ela tomou pau, não seguiu pra faculdade e tal. Então tem o seu lado bom e o seu lado ruim. A mais nova já cresceu uma pessoa um pouco mais meiga e mais afetuosa, ela sempre teve um equilíbrio um pouco maior entre a importância dos estudos e dos relacionamentos. Então cada uma faz uma leitura, apesar de as referências serem bem parecidas. Mas, assim, eu acho que não sei se é comum em todas as famílias, mas a gente não fala tanto da gente mesmo entre nós, algumas coisas acabam ficando guardadas, não se abre. Talvez, assim, uma pincelada aqui, a outra ali, por mais que a gente faça as coisas mais ou menos junto, algumas coisas cada uma faz do seu jeito, e os valores são meio compartilhados.




P/1 – Imagino que, por exemplo, pensando nessa parte da vida, menstruação, vocês também não conversavam, ou foi algo que vocês chegaram a conversar, você e sua mãe, suas irmãs?


R – Minha mãe, apesar de ela não ter uma escolaridade, ela lia muito, lia muito essas revistas... é interessante, as revistas são para a identidade social das pessoas no Japão. Então tinha, como se a revista se chamasse Dona de Casa. Então, a revista Dona de Casa mostrava como orientar seus filhos e filhas pra determinadas situações. Então ela já tinha o manualzinho dela e ela agia de acordo com a revista. Então, eu lembro muito bem quando ela me chamou, acho que com mais ou menos onze anos, dez pra onze anos, e ela me chamou para uma conversa. E eu achei estranho “cadê as minhas irmãs?”, era só comigo. E ela trouxe uma ilustração, tipo um mangá, explicando sobre o desenvolvimento sexual, como nascem os filhos e tudo mais, que é uma mudança no corpo e isso e aquilo, né? Eu fiquei um pouco chocada, meio que não entendi direito, mas eu não posso dizer que ela não tenha feito isso. Ela fez do jeito dela, do jeito que ela conseguiu se expressar. Mas, assim, entre irmãs, não. Uma não ajudou a outra, não sei, nesse ponto. Não sei, mas a gente não trocou muitas figurinhas sobre isso. A gente até dormia no mesmo quarto, estava no mesmo local físico, brigava porque uma queria assistir televisão, a outra queria estudar, a outra queria ouvir música, mas não trocava essas coisas. Era como se os desafios fossem únicos, fossem só seus e você tinha que vivenciar aquilo sem partilhar com ninguém. E acho que a gente ainda tem, acaba tendo esse tipo de conduta no básico, no dia a dia. E talvez um modelo, a mãe da gente, a minha mãe, ela é, quer queira, quer não, uma mulher forte, porque desde os nove anos ela tinha que dar conta de uma série de responsabilidades. Então ela largava a gente, porque ela confiava na gente, largava de não ficar de babá o tempo todo, “o que vocês tão fazendo?”, mas ela ficava de supervisão à distância, mas... eu acho que a gente acaba tentando reproduzir esse modelo do jeito que a gente observa, então foi assim comigo, eu nem sei como foi essa conversa de menstruação se teve ou não teve com as minhas irmãs tanto que, não falei... Mas uma coisa engraçada que a minha fez foi um bolo quando eu menstruei pela primeira vez [risos]. Eu morri de vergonha, foi terrível. Ela chamou ainda os meus tios, nossa, eu não sabia aonde me enfiar... é louca... mas eu não sei, não sei se eu faria o mesmo com a minha filha. De fazer um bolo e chamar os tios dela... não sei... acho muito estranho, mas ela fez.


P/1 – Você tem a recordação desse dia?


R – Lembro, lembro do sabor do bolo que ela fez. Ela fez um bolo de festa mesmo, de pão de ló, chantilly e figo em calda, era um gosto muito diferente. Então, não sei se isso é comum no Japão, não lembro de isso ter acontecido com as minhas irmãs também, eu não sei o que é que deu nela.


P/1 – E como que foi quando você encerrou o colégio, a escola técnica, como é que foi esse momento? Você pensava na carreira que você queria seguir?


R – Sim. Assim, é importante colocar que a virada de mesa da minha vida foi aos quatorze anos. Não, foram duas viradas: dos seis para os sete, de uma pessoa completamente livre, sem margens — a vida não tinha margens, não tinha limites —, então eu livre e feliz, para uma vida estrita, contida, fechadinha, em cima do papel ou da pintura, mas dentro do meu mundinho. E depois, quando eu resolvi que não, que tinha que ser o que eu queria ser. Então, com quatorze anos, na escola de técnica o primeiro discurso dos professores era “antes de vocês serem profissionais, vocês são seres humanos, então essa escola existe pra formar vocês como pessoas”. Então, essa foi a primeira mensagem e achei muito legal, e descobri um tal de grêmio, grêmio estudantil, e acabei me vinculando ao grêmio no segundo ano, do primeiro pro segundo ano, não só com pessoas da minha turma, acho que não tinha ninguém da minha turma na minha chapa, eram só de outras turmas, de outros cursos. Comecei a discutir muito mais, naquela época a gente começava a discutir muito a questão ambiental, então tinha SOS Mata Atlântica surgindo com força. Era 1989, a Rádio Rock, que falava direto sobre questões ambientais. Então, em 1988, antes de terminar até o primeiro grau, eu fui fazer, tinha um trabalho que a professora, não me lembro nem se era professora ou professor, eu fui falar sobre a questão ambiental, então eu fui conhecer o SOS Mata Atlântica, o Instituto Socioambiental, enfim, fui fazer uma pesquisa de campo e acabei gostando das reflexões. A gente via as queimadas que vê até hoje no Pantanal, os bichinhos morrendo ali no Pantanal e tal, discussões sobre o sertão, sobre a máquina de deserto que a gente tinha, tem, mas várias reflexões, várias discussões, que fizeram com que eu me interessasse por participar de um grêmio estudantil. Então, até lá a gente... eu formei um vínculo muito forte com as pessoas que tinham um mesmo interesse que eu. E olha que o meu pai era malufista, né? Assim, batia no peito: “malufista” [risos]. Malufista, preconceituoso, assim, aí eu falei, “não vou ser nada disso, vou ser tudo o contrário dele”. Em casa era uma guerra permanente, mas era uma forma de abrir a discussão. Então ele não votava, porque ele dizia “eu nunca vou me naturalizar nesse país”. E eu falava “tá bom, você nunca vai votar, fica aí, arque com suas consequências”. Então, eu, com dezesseis anos, já votava, e eles, que pagavam impostos, tinham que fazer declaração. Ele falava que era muito injusto que ele que pagava tudo e não podia votar, e eu dizia “é, então se naturaliza”, né?. Então a gente ficava também nessas discussões de cidadania em casa. E a gente, ao longo do tempo, foi mostrando para eles o problema de algumas lógicas que talvez fossem predominantes na ótica tradicional, ou são ainda, não sei. Mas eu comecei a me envolver e o pessoal da escola técnica, principalmente o meu pessoal do grêmio, foi uma evolução que a gente, todo mundo foi para a faculdade, todo mundo foi para a USP [Universidade de São Paulo], para as escolas da universidade pública, também porque a gente passa por um filtro aos quatorze anos com, na hora em que a gente encerra o ciclo também, já sai todo mundo mais pronto, tanto empregado — a maioria de nós foi fazer algum estágio linkado ao curso técnico e depois foi pra faculdade, né? E a maioria também fez escola pública, universidade pública, e a gente acabou mantendo um elo, o vínculo. Mas nem tudo são rosas, na verdade nem tudo são rosas, namoros, pessoas desse grupo, e às vezes dá errado, né, dá muito errado, dá crises, e crises, e crises; e a falta de maturidade, as histórias de cada uma das pessoas. Eu consigo hoje elaborar, mas na época eram dramas gigantescos. Então, assim, terminar com um, começar a namorar com outro do mesmo grupo. Isso fez com que o namorado, primeiro, largasse a faculdade que tinha acabado de entrar, largou a USP porque, então já é um choque assim. Como é que uma pessoa faz isso? Mas fez isso. Aí você se sente muito sobrecarregado. Como é que a sua decisão pode impactar numa decisão de vida de uma pessoa? Aí depois passa toda a faculdade e eu me casei com este segundo indivíduo aqui, mas depois de dois anos também não deu certo, acabou também assim em violência doméstica mesmo. Apanhei, saí com o olho roxo e, depois daquele dia, cada um para o seu lado. Mas, assim, até então éramos pessoas que tinham a mesma direção, de querer fazer um mundo na mesma direção, compartilhávamos da mesma coisa, tínhamos várias histórias juntos tal, mas, é, dá errado. Dá errado, assim, não dá para dizer assim que é culpa cem por cento do outro, mas, é... não precisava acabar assim, né? Não precisava ser de forma violenta; podia ser de forma refletida. Mas a gente também passa por isso. E é interessante, assim, eu tenho dificuldade, né, eu fico pensando... Tem um fato que eu até pulei. Com doze anos, muito perto da história da menstruação, a gente na família tinha, em alguns momentos, a gente viajava com a nossa família, com outros irmãos da minha mãe, com outros primos. Aí teve numa dessas viagens, eu com doze anos, eu era bem desajeitada como todo adolescente, gordinha, usava óculos, não me relacionava bem com as pessoas, nunca imaginaria nada disso, né, mas uma das pessoas da viagem que eu não quero mencionar quem, mas, é... inexplicavelmente, assim, estávamos dormindo ali na sala todo mundo, várias crianças da mesma idade, e de repente aparece uma pessoa com a mão embaixo da minha calcinha. Aí eu congelei, assim, abri os olhos, sumiu a pessoa. Aí eu fechei, fingi que não tinha acontecido nada. Mas é... esse é um marco porque era uma pessoa que eu gostava, admirava até. Não consegui falar com mãe, pai, porque poderia impactar em todo o vínculo da família. Não consegui elaborar. Não é uma coisa que para mim seja natural, não acredito que seja bom. Mas, assim, me bloqueou. Eu tenho uma dificuldade de confiar nas outras pessoas, principalmente ter amizades, amizades que sejam só amizades, eu tenho dificuldade. Precisa de muito tempo, muito tempo, para eu me sentir confortável com alguém. De confiar. Então por isso que talvez aí esses dois primeiros namoros fossem importantes, mas eu tinha uma certa dependência, sim, de depender de namorado, depender pra ter uma voz, depender pra ter uma ideia, e não acho que eu tenha sido uma pessoa muito fácil, não acho que eu facilitei muito também, mas acho que eu me apeguei muito ao ponto de sufocar o outro. Tanto que, depois que eu tive esse casamento com essa pessoa que eu conhecia desde o colégio, fizemos a faculdade, inclusive era a mesma turma, a gente foi para o centro acadêmico, a gente fez muita coisa junto, estudamos fora junto, a gente foi fazer um intercâmbio na Argentina, mas, mesmo assim, deu errado. Eu tive um segundo casamento onde eu tive a minha filha, mas também não funcionou. É... é muito difícil a gente fazer uma avaliação sem qualificar ou desqualificar o outro, mas, não quero fazer isso, mas, talvez... só para... a minha ótica, né, o que passou pela minha cabeça, passou que eu tinha que escolher uma pessoa de quem eu não pudesse ter medo e que pudesse ter um certo domínio, então talvez pessoas um pouco, não vou dizer fracas, mas talvez mais inseguras do que eu, né, pra eu me sentir mais confortável. É estranho, né? Mas aí o segundo casamento era uma pessoa que nunca tinha tido nenhum relacionamento anterior, que então eu fui a primeira de tudo para essa pessoa e foi com quem eu tive a minha filha, mas logo eu me desinteressei. Depois que ela nasceu, eu me desinteressei, porque era como se não oferecesse uma parceria que me puxasse para algum sentido. Então, como um evento aos doze anos impacta nas escolhas que você na vida adulta faz: deixar de confiar em si própria ou no outro, criar barreiras e situações que depois você se arrepende. E não é nem que era culpa do outro, não era culpa do outro, era apenas a pessoa que é ela. Ao invés de aceitar a pessoa que ela é, você aceita o problema que ela não vai te causar, mas te falta a outra coisa também. Então são escolhas que acabam ferindo também no final das contas. Óbvio que não é o objetivo de ninguém ferir o outro, mas acabei ferindo sem querer, mas é uma pessoa que eu respeito, respeito demais porque é o pai da minha filha. Respeito e acho que é uma excelente pessoa, um excelente profissional, mas para mim acabou não dando certo. Aí, terceiro casamento. Uma pessoa com transtorno bipolar que eu conhecia desde o colégio, mas no colégio eu tinha outra visão porque ainda não tinha desenvolvido a doença. Não deixa de ser uma pessoa... apesar de ser uma psique totalmente diferente, ele tem um... ele falava assim “eu sou filho de italianos, então sou carcamano”. Então tinha um jeito de machão, porém já estava em uma situação assim, era bipolar, tinha sido diagnosticado depois já de formado. Tinha sido advogado, depois de três anos de carreira ele foi afastado da atividade e teve aposentadoria por invalidez. Então um homem adulto, que tinha aposentadoria por invalidez, que ainda está em idade produtiva, não consegue... Assim, teve aquela formação um pouco mais machista talvez de que o homem tem que ser o provedor da casa, mas todos os relacionamentos duraram de sete a oito anos, não foram curtos, mas, talvez, tinha uma vontade de ajudar e talvez já que é uma pessoa que está mais fragilizada do que eu, talvez eu possa ser um pouco mais forte. Mas, então, foi mais uma escolha que no final acabou também dando errado porque o transtorno bipolar por si já é um grande desafio, inclusive para a própria pessoa. E ainda mais quando afeta na vida produtiva da pessoa acho que se torna mais complexo ainda. Acho que as pessoas, hoje, nem precisa ser homem, mas mesmo... o peso não é tão grande para a mulher ter uma atividade produtiva, ainda né... Não sei, acho que as coisas mudaram tanto que a mulher também não quer ser dependente da pessoa ou de uma determinada situação, não gosta de não ter uma função ou uma utilidade para outras pessoas. Então, é, não deu certo novamente. Então mais uma escolha que acabou não dando certo, mas o transtorno bipolar, ele é tão cruel que de toda forma a pessoa acaba crucificando o outro. Quanto mais próximo a pessoa é de você, né, então, faz com que jogue pro outro a responsabilidade. Então durante esses oito anos, sete anos, ele deve ter abandonado eu e a minha filha três a quatro vezes por ano, então, chutando assim, vinte e quatro vezes de abandono. Bom, eu ia trabalhar, ela ia pra escola, pequena... ficava na escola... eu ia buscar ela na escola e a gente voltava esperando que ele estaria lá; mas não estava. No começo, você fica desesperado, corre aqui, liga ali, aí conforme vai acontecendo mais vezes você vai abrindo o... mais uma vez, mais uma vez. Você deixa de ir atrás porque você tem outras responsabilidades, amanhã você tem uma reunião importante, você tem que produzir um material para uma apresentação. Você não pode falhar, porque você tem que trabalhar pra manter tudo em ordem em casa, vai impactar na educação da pequena. Então você começa a ponderar, a segurar mais as emoções pra não ficar desesperado, e faz de conta que é o normal. Mas vai acumulando, isso se acumula, porque você está contando com a pessoa na sua vida, e se você não conta, a vida do outro parece vazia. Então é muito difícil tentar conciliar as coisas para que se encaixem, mas no dia a dia a gente vai mantendo, vai fazendo as coisas, conta com o outro pra tocar a vida, pra tocar a casa. A pessoa não quer dar e você fala “ah, não vou cobrar, porque vai achar que é cobrança, e cobrança vai estressar. Não vou sair fazendo, porque parece que estou menosprezando o outro”. Então a casa fica aquela bagunça, né, aquela sujeira, e você faz de conta que não está enxergando, faz de conta que aquilo foi feito, e faz de conta de que está tudo certo e, enfim, aí chegou um momento em que ele pega e tira tudo, tudo que era dele foi embora. A pilha de livros que gostava de ler, sumiu, foi embora de uma hora para a outra. De manhã, estava lá; à noite, não tinha mais nada, não tinha nenhuma roupa, nada, nem um par de tênis ficou pra trás. Então, dois, três dias depois a pessoa fala “não, quero voltar e tudo mais”, “não, já que você já tá aí, na casa da sua mãe, faz uma reflexão, ainda na praia, né. Então faz uma reflexão, aproveita, desestressa, eu sei que São Paulo é meio, meio barra mesmo e tal”. Aí a gente vai elaborando com o passar do tempo, com o passar dos dias vai elaborando, vai conversando e fala “não, acho melhor a gente pensar e dar um tempo, qual é o sentido disso tudo”. E então com o passar do tempo eu tinha a expectativa de que eu pudesse falar “não, pode voltar”, fosse pelo menos depois de um semestre, pensava que a pessoa tinha que elaborar o que estava fazendo. Se era pra voltar, era pra voltar de verdade, e não voltar pra abandonar de novo na sequência. Mas aí ele não aceitou muito esse tempo, aí no meio do tempo, mais uma cena de violência, de chegar, forçar a porta pra entrar, porque vinha pra ficar. Não dá, não é isso. Então, você fica tentando dizer, sem ser grosseira, sem ser violenta, mas eu não quero mais isso. Não agora, não sei mais pra frente, mas não agora. Aí a pessoa não aceita, começa a mandar mensagens, “ah, vamos conversar”, mandar mensagens, e mensagens, e mensagens. Só que assim, o bipolar começa bem, e começa a não aceitar. Com qualquer palavra que a gente possa dizer, pode desencadear uma reação inesperada. Até se for uma coisa assim bem normal de falar bom dia e boa noite, você só tá falando “bom dia” e “boa noite”, porque a educação manda, então você não está sendo acolhedora, você está sendo falsa, fria, um monte de coisas e aí é tudo culpa tua. Começa a receber mensagens falando de coisas que falou, não falou, aconteceu, e é tudo... tudo como se a gente fosse responsável por tudo aquilo que a pessoa estava passando, e como se a gente não perdoasse pelos erros dele. Aí um dia eu respondi e falei “eu acho que não é eu que não te perdoo, acho que é você que não se perdoa por não ter feito as coisas, e você, eu não sei, não acho que eu dar o perdão vai resolver as coisas, não vai melhorar a vida por causa disso, porque é você que tem que se perdoar, porque você que abandonou, eu nunca expulsei.” Eu nunca falei “vai trabalhar, porque você tem que trabalhar”, eu nunca exigi isso. Só queria uma pessoa que fosse parceira para a vida, mas como é que isso ia se desenhar dependia dele também. Então eu pensava que isso era uma boa mensagem de ser falada. Só que na sequência a gente começa a receber ameaças de vida né, de um monte de coisa, de que vai estar na esquina, “eu sei onde você trabalha, eu sei isso, eu sei aquilo, então toma cuidado na rua”. Não é normal, não é o esperado também. Então começo a perceber o quão tóxica pode ser uma relação quando você não tem o equilíbrio de... na relação, nos interesses que não são claros. Começa a colidir. Mas foi com essa pessoa que eu tive câncer, durante esse relacionamento. Então foi no terceiro casamento, eu tive o diagnóstico do câncer, ele esteva lá para ouvir, ele entendeu todas as recomendações lá. Participou de tudo lá, da cirurgia, participou de quase todas as partes dos momentos, mas também durante a quimioterapia, porque a quimioterapia é um processo longo, quanto mais você toma, pior você fica, você não vê melhora, é muito na base da fé mesmo. Mesmo que a pessoa não tenha fé, ela acredita pelo menos na medicina, mesmo que ela não tenha religião, né, eu quero dizer. Então é muito estranho, porque a gente toma um remédio para deixar de sentir aquele sintoma, aquela dor, e vai melhorando aos poucos. Agora, a quimioterapia, ela vem e já tira o seu brilho da tua pele, o cabelo cai, os pelos do teu rosto inteiro caem, do teu corpo inteiro caem, as unhas podem também cair, fica tudo roxo, a língua, a boca fica com uma sensação de jornal, tudo que a gente come fica com gosto de jornal, tudo fica com sensação de jornal. Muitas pessoas têm problemas aí de vômito, de não conseguir comer mais nada por causa disso. Eu não tive esse problema na parte da alimentação, mas assim, foi um momento que eu falei, não vou mais ingerir açúcar, não vou mais ingerir álcool, porque nunca mais quero ter essa doença, não vou mais comer carne, não vou mais tomar derivados de leite, a não ser que sejam orgânicos, porque tem muito tóxico na nossa alimentação. Esse ar que eu respiro já é suficientemente podre, já é o suficiente para a minha vida. E aí comecei a mudar tudo de alimentação. Nesse relacionamento ele — pelo menos isso —, ele teve abertura de fazer essa mudança, né, não posso reclamar disso. Então a gente fez uma mudança radical na alimentação, praticamente vegano em casa, mas a gente ainda mantém o peixe e os ovos, se forem orgânicos. Mas, assim, o tratamento da quimioterapia, ele precisa de um, não é obrigatório, mas era bom ter um acompanhante, porque a gente, antes de receber a droga em si, a gente toma um coquetel que é pra gente não sentir a náusea que vai vir. Então essas medicações são pesadas e te derrubam, você dorme. Então você fica lá uma hora tomando na veia uma medicação pesada, aí você tá derrubado ali. Aí na hora que termina, na hora de ir embora, o ideal é não dirigir, se tiver carro, eu não tinha mais carro, eu tinha vendido o carro, eu ia de ônibus pra casa. Então, teve momentos que ele não ia, não aparecia, não dava sinal de vida, apesar das promessas de que estaria lá, mas não esteve em todos os momentos, então eu ia embora de ônibus. E por sorte o cobrador, as pessoas que estavam lá arranjavam algum lugar pra eu sentar, porque na hora você está muito fraco, muito desligado, então a população acaba ajudando de alguma maneira, acaba tendo um espaço pra quem está em tratamento. Porque é muito evidente, né, você fica com um semblante muito marcado de que é um tratamento do câncer, então as pessoas acabam ajudando. Mas o lidar com o dó que os outros sentem por você também não é uma coisa tão fácil. Porque você tem que ser forte para que o outro não sofra, principalmente as pessoas mais próximas. Então eu procurava sempre estar presente, principalmente aos domingos, no culto matinal do templo budista, pra ver a minha mãe, né, porque, pra ela, se eu estivesse lá, era porque eu estava me cuidando espiritualmente, e se eu não estivesse lá, e estivesse reclusa em casa, era porque eu precisava dos cuidados dela e eu viraria coitada e eu não poderia fazer nada se... Não é que eu não queria ser ajudada, mas não queria que os outros sofressem. Então, eu tinha que estar presente ali pra minha família e me mostrar, participar das coisas que eles promoviam. Então procurei fazer as coisas bonitinho, participar. No trabalho também, nunca faltei, só no horário de tomar a quimioterapia. Mas é um momento assim que — até faço um paralelo com a nossa pandemia hoje — diferente da pandemia que é uma coisa que acomete todo mundo, todo mundo, sem exceção, o câncer é um caminho meio sozinho, por mais que tenha qualquer pessoa, marido, esposa, um par que esteja mesmo assim cem por cento do tempo do teu lado, é um problema que é você, você que tem que superar, você que tem que viver, você que vai sentir aquele gosto na boca, aquela náusea, é o teu corpo que vai ser desfigurado. No meu caso, foi câncer de mama. Eu tirei praticamente, eles não falam que, dizem que foi parcial, mas como eu não reconstruí, é uma mutilação mesmo. Mas, assim, eu até pensei em reconstruir, mas era mais pela minha filha e pelo parceiro do que por mim, então eu abri isso para eles, e eles falaram “não, não precisa fazer, passar por outra cirurgia, assim... não precisa passar por isso”, porque eles estavam vendo o que estava acontecendo e porque era importante. O médico foi dando algumas opções de não tirar tudo, tirar uma parte, deixar uma parte, mas que quanto mais você tirava era melhor e aumentava a sua garantia de que todo o câncer tinha sido removido, todas as células cancerígenas tinham sido retiradas. Então eu fiz o mais radical, porque eu via a minha filha com sete anos de idade assim, não vou deixar ela. Não vou deixar que ela viva sem mãe. Então, assim, optei pela vida, optei por realmente adotar tudo que fosse recomendado, alimentação... podia ser radical, podia não acompanhar muitas pessoas nos seus momentos de comemorações, mas pensei que era melhor. Hoje — depois de, deixa eu ver — faz — 2017 foi quando eu comecei o tratamento; 2018, quando foi a última quimioterapia —, então faz dois anos depois da última quimioterapia. Agora que eu comecei a participar de comemorações pelo menos tomando um pouco de vinho, por exemplo, mas, até então, não, mas eu não compro mais álcool pra eu consumir em casa, não. Se tiver um bolo com açúcar na festa, eu vou pegar uma fatia pequena, mas eu não vou fazer um bolo cheio de açúcar. Eu aprendi a fazer as receitas sem açúcar, sem farinha de trigo, sem essas coisas, a alimentação muito branca que é prejudicial. Então aprendi a cuidar. Estou tentando ensinar pra minha filha, pra que ela também não tenha o pesadelo na vida dela, até porque o meu pai faleceu de câncer de pâncreas, que também é uma coisa assim, uma hora você está bem, na outra hora você já era. Então, assim, acaba sendo muita informação que talvez pra uma criança é, começa a dar um medo que isso aconteça com ela também, então é bom dar instrumentos, mecanismos de como se virar pra não chegar a isso, ou se chegar, saber sobreviver a isso. Eu acho que, questão de doenças, acho que essa questão assim de você ter uma visão de propósito: “eu estou aqui para..., o que eu quero para a minha vida e para os outros”, inclusive, por que estou gravando isso? É pra poder dizer para as pessoas que, apesar de toda merda que possa acontecer com você, você pode ter algum propósito, algo que a gente possa fazer pelo outro. Então, hoje — inclusive é lógico que a gente não faz isso tudo sozinha —, mas quando você está doente, é você que está doente, o seu corpo que adoeceu, mas sempre existe uma rede de pessoas, por mais que não sejam do seu íntimo, da sua casa. Então, por exemplo o pessoal da minha equipe, né? Eu tenho 70 pessoas na minha equipe. Essas pessoas, cada uma delas ajudou, me ajudou a não, filtrando problemas, por exemplo. Naquela época, durante o meu tratamento, as pessoas seguraram muito assim, tentaram resolver todo tipo de problema, o que criou um crescimento nelas também, isso é uma coisa boa. E cada uma delas também tinha os seus problemas pessoais com seus familiares, mães, pais e tal, e isso não impediu que elas também fizessem a parte delas ajudando. Então é uma rede, né? Quando a gente fala de um problema que aconteceu com a gente, que gerou problemas que depois você entende a explicação, mas depois que já aconteceu tudo errado. Depois que você separou três vezes na sua vida e falou “putz, não tem nada certo”, aí olha pra trás e fala “poxa, mas eu estou aqui, se eu estou podendo fazer isso aqui é porque tudo isso aconteceu”. E poder abraçar tudo isso que aconteceu para poder passar para o outro uma esperança de que pode ser melhor, de que isso tudo vem pra fortalecer você mesmo e as pessoas que convivem com você. Acho muito interessante essa iniciativa do Museu da Pessoa, não sei se o meu depoimento tem grande valor, mas gostaria que ficasse registrado como um apoio para as pessoas que precisarem.


P/1 – Posso te perguntar como é que foi esse momento de descobrir, como foi, fazendo exame preventivo? Como foi esse processo? Elaborar esse resultado, esse momento do resultado?


R – Foi assim... anualmente eu vou ao ginecologista, faço exames, os normais, o ginecologista vai colocando exames de acordo com a sua faixa etária e a regularidade em que isso precisa ser feito. Nos últimos cinco, seis anos, eu não estava tão regularzinha assim de ir na consulta. Por exemplo, ao invés de ir em outubro, eu comecei a ir em janeiro. Então comecei a mudar as datas de acordo com o calendário do trabalho. Aí, mas foi... eu não deixei de ir pelo menos uma vez ao ano. Então foi na mamografia que pegou um possível nódulo e aí já pediu para fazer uma punção do que seria esse nódulo, que poderia ser uma bolinha de gordura, que aí não era nada, poderia ser qualquer coisa assim, mas poderia ser algo como um câncer, um tumor. Então eu fiz essa primeira punção, deu um resultando que foi inconclusivo, que não era claro, e ao invés de eu ir pegar esse resultado e levar na ginecologista, eu enrolei, de janeiro até julho. Eu tive essa resposta desse exame e pensei “ah, é inconclusivo então não é nada, imagina, não vai ser nada grave, ainda mais que no exame falou que podia ser uma coisa inconclusiva”. Como eu apalpava e não sentia nada, não via nada, não tinha caroço, não tinha secreção, não tinha dor, não tinha nada, eu falei “ah, então é bobeira”. Aí enrolei, priorizei atividades do trabalho e nas férias que eu resolvi ir, com um certo peso na consciência, “já enrolei muito né, vou lá”. Cheguei em julho, a doutora me deu uma bronca, falou “como você faz isso? Agora você já está num nível mais avançado”. São cinco níveis, do mais precoce, pro mais avançado, o quinto é o mais avançado, eu já estava no terceiro nível que eu já ficava muito próximo, mas...assim, não melhora, a tendência é piorar, então você precisa agir. Então foi de julho, a gente complementou os exames, aí fez uma punção maior, uma biópsia mesmo, e aí ela diagnosticou, aí ela já me recomendou um outro médico, que era o mastologista, aí ele definiu qual seria o tratamento, qual o corte que seria feito, onde seria feito, qual seria o tamanho, ele apresentou algumas possibilidades. Foi embaixo do bico do seio, então ele falou assim “olha, está bem embaixo do bico do seio. Tem pessoas que dizem que não querem que tire o bico do seio ou a pele porque é uma região sensível, que é importante pra ela na feminilidade, e tal. Porém, o fato de você deixar essa pele pode ser que novamente tenha que fazer uma cirurgia para tirar justamente a pele”. Então o médico foi muito didático ao explicar isso, como é que... quais poderiam ser as consequências. A mama, ela também tem uma vinculação com as glândulas linfáticas que ficam aqui na axila, por isso que quando a gente apalpa o seio, também vem desde aqui de trás. Então era importante também, eles falam que a vinculação do câncer de mama com o restante do corpo, ele é perigoso, porque a glândula mamária e a glândula linfática produzem hormônios que caem diretamente na circulação do organismo, e se espalha rapidamente pelo corpo. Por isso que a indicação precoce da doença é muito importante, para você não deixar que aquilo vá para o restante do organismo. Então ele me explicou “olha, a gente vai tirar uma parte da glândula, hoje em dia a gente tem algumas técnicas pra não precisar retirar de todas as glândulas da axila”. Porque, o que acontecia antes, quando você tira essas glândulas, o seu braço praticamente se torna, você não pode fazer força, não pode movimentar demais, tem uma série de consequências para o seu organismo, para o seu dia a dia. Então eles tentam não retirar totalmente essas glândulas e apenas a sentinela. Essa sentinela, essa primeira glândula, seria aquela que faria uma primeira sinalização se há necessidade ou não de uma retirada, então existe um produto químico que, ele me explicou, era usado na panificação e que usava para uma coloração específica. Ele falou que este produto era usado para reagir com a glândula sentinela, se fosse de uma determinada cor, significava que sim, já tinha se manifestado nas glândulas todas, e que era necessária a retirada das glândulas. No meu caso, não foi necessário, mas ele, pra essa mostra, eles tiram umas duas, três glândulas pra poder fazer a verificação, mas foi assim, a cirurgia, o diagnóstico foi em julho; a cirurgia, em agosto; em setembro já tinham começado a quimioterapia. Então é uma coisa bem rápida, né, e, não sei, deve variar de câncer pra câncer, de pessoa pra pessoa, mas pra mim duas semanas de recuperação depois da cirurgia foi o suficiente pra começar a cicatrização sem nenhuma consequência, nenhuma dor, não tinha secreção estranha, não tinha coceira, estava tudo tranquilo. Então, não precisa ser um bicho de sete cabeças. É uma perda? É uma perda, mas é a vida. A nossa vida é mais importante que a doença. A doença não pode vencer, e o estético também não pode vencer. Eu tive uma tia, que é a cunhada da minha mãe, ela, 30 anos atrás, ela teve o diagnóstico do câncer de mama e, por estética, ela falou “não vou fazer cirurgia, não vou fazer tratamento, vou fazer tratamento alternativo”. Ela deixou os filhos dela adolescentes, ela morreu. Eu vi a minha prima sofrendo, sofreu tanto, chorava muito, mas não era só questão de chorar, ela abandonou os estudos, abandonou a vida que ela poderia ter tido, porque ela queria cuidar da mãe, ela tinha que ficar com a mãe, então ela viu a mãe ficando esquelética, na cama, parecia mesmo uma múmia de tão magra, tão chupada, assim, que ela estava, não tinha mais carne praticamente, tão debilitada que a pessoa com câncer em metástase fica. Então acho que não é algo que a gente deveria querer, eu acho a gente deveria querer se tratar. Eu sei que tem pessoas com ideias aí de tratar de forma natural. Eu não sei a efetividade disso, mas eu acho que a gente deveria fazer tudo que está ao nosso alcance, então seja medicina convencional, com médicos, cirurgia, medicação, perder cabelo, tanto faz, mas eu vou mudar a minha alimentação, vou mudar meu estilo de vida, vou mudar o que eu tenho por dentro de mim, as minhas crenças, vou pensar mais o lado espiritual, o significado da vida, tomar decisões melhores, pensar antes de agir, ter convívio mais positivo com as pessoas. Então eu acho que tudo isso, tudo que for necessário para ter uma vida melhor é importante para você não desenvolver aquele câncer novamente. Eu entendo que a gente, a não ser que a pessoa seja especialista, mas, mesmo assim, eu lançaria mão de todas as possibilidades pra poder manter a vida, poder ter, corrigir todos os erros que a gente possa ter cometido, ter a chance de agradecer os outros, acho que não tem preço. Então tudo que tiver ao alcance a gente deve fazer. Porque o outro também merece a chance de fazer o mesmo que você.


P/1 – E, Claudia, como foi contar pra sua filha?


R – Contei envolvendo ela no diagnóstico. Eu tentei agendar as idas ao mastologista, ao oncologista, com ela. Ela foi algumas vezes e eles eram muito didáticos, eles tentavam mostrar para ela qual era o problema, foram explicando o que é que ia acontecer comigo, e ela foi entendendo de uma forma tranquila. Então, eu pedia, depois da cirurgia principalmente, eu fiquei um pouco pensando o que fazer, porque ela era pequena, tinha sete anos, estava aprendendo a tomar banho sozinha, mas como era, não sei, eu acho que essa coisa de pais separados faz com que a gente, mãe, se aproxime da filha, filha principalmente, não sei se eu tivesse filho seria a mesma coisa, mas eu tomava banho com ela e pensava “será que agora eu vou parar de tomar banho, porque eu tenho uma cicatriz gigante?” Um corpo que não é mais o esperado, o modelo. “Não, eu acho que ela tem que ver, eu não acho que ela tenha medo de encarar a faca, eu não quero que ela tenha medo, quero que ela saiba enfrentar.” Então eu mantive e ela... porque a gente sai com alguns pontos segurando e curativos por cima e ela ajudava e esse braço não podia mexer muito, era só um braço para fazer as coisas, então ela acabava me ajudando, ou eu fazia de conta que ela estava me ajudando a tomar banho, então ela desenvolveu essa visão. Eu acho, eu espero que não tenha sido uma coisa traumática, eu espero que ela entenda a importância de se cuidar, a importância de não se achar uma coitada porque está acontecendo isso, e sim de que isso está acontecendo, então tem que fazer alguma coisa para que não aconteça novamente e que as consequências que vierem sejam as melhores possíveis. Então, acho que é a forma de mostrar para ela que ela pode lutar. Se isso realmente tem um fator genético, que ela saiba sair dessa, se vier a acontecer com ela.


P/1 – E quais foram as transformações causadas na sua vida a partir do câncer?


R – Eu achei muito engraçado que, depois do câncer, ou durante o câncer... assim, eu sou gerente de gestão de pessoas, o hospital tem mais de vinte mil funcionários, você pensa “eu sou apenas mais um no meio de vinte mil”. Então, praticamente uma cidade, tem cidades sem isso de população, cinco mil habitantes. Então, assim, não tem espaço pra você se sentir alguém tão conhecido lá, mas pessoas do nada começaram a conversar comigo. Talvez vendo, né, “poxa, você está aqui, você está passando por isso, você sorri, você conversa com as pessoas, a sua vida normal, legal isso”, então as pessoas vieram conversar. Eu acho que mais do que ser gerente de gestão de pessoas, ser um exemplo para as pessoas me tornou gerente de gestão de pessoas. Acho que... é um efeito que nunca imaginava, nunca poderia prever, mas acabou acontecendo, as pessoas acabam se inspirando na dor do outro na forma que elas lutam pra viver.


P/1 – E onde você fez tratamento?


R – Eu fiz o tratamento... Bom, minha ginecologista particular me recomendou um mastologista que também foi particular, mas ele fez a cirurgia num hospital que eu tenho no convênio, que foi no hospital São Luiz, a cirurgia, mas a continuação do tratamento foi no Santa Paula, que é na Amil, então o oncologista é de lá. A oncologia tem, depois da quimioterapia, a quimioterapia é uma medicação cara, mas ainda bem que eu tinha e tenho o plano de saúde que cobre tudo isso, e depois que acabam as quimioterapias, tem pessoas que precisam da radioterapia também, No meu caso não foi necessário, mas se fosse necessário faria também, por mais doloroso que seja. Mas também a gente toma uma medicação, uma medicação de controle hormonal, geralmente, então essa medicação também é distribuída pelo próprio sistema hospitalar. Então, no meu caso, é no hospital Paulistano que eu retiro as medicações. Mas foi tudo particular. Eu, apesar de eu ser do Hospital das Clínicas, eu sei que é muito difícil acessar o sistema de saúde, mesmo sendo São Paulo a cidade mais estruturada do país, é difícil acessar, mas como, apesar de trabalhar no Hospital das Clínicas, poderia ter conseguido, por meios internos, o acesso mais facilitado, mas eu achei “eu já tenho essa infraestrutura, eu não vou roubar o lugar de uma outra pessoa do sistema público”. Para vocês terem uma ideia, só no hospital, no Instituto do Câncer, ali ligado ao Hospital das Cínicas, aquele da Doutor Arnaldo, por mês, eles registram setecentos novos casos de câncer. Só nessa unidade. Isso não é olhando São Paulo estado como um todo ainda, então. Câncer é uma doença que é difícil você olhar pro lado e não ver ninguém com câncer, ou que nunca teve algum conhecido com algum câncer. Então, resolvi não tirar o lugar, por mais que tenham me oferecido, não vou fazer isso não.


P/1 – E nesse período como que estava dentro da sua casa? O casamento, o seu psicológico, a saúde mental, como você lidava com tudo isso?


R – Eu acho que, é... não é fácil, né? Não é fácil lidar com, ter um relacionamento bipolar em si não é fácil, tanto que eu comecei a falar disso antes de falar do tratamento de câncer. O tratamento de câncer só tornou, acho que é assim, a pessoa com transtorno bipolar ela costuma ter uma visão do mundo fundamentalmente do ponto de vista dela, então é ela que ajuda os outros, ou é ela que é boazinha, ou é ela que é a coitada. Então ela é o centro do universo. Eu não sei se isso é em todos os bipolares, mas o que eu percebi nesse caso foi isso, que a pessoa se sente o centro do mundo e que tudo gira ao redor. Então, quando eu comecei a ter que me tratar e cuidar da minha doença, comecei a fazer com que ele se sentisse diminuído, então isso foi uma coisa complexa e aí, assim, eu tentava marcar assim “olha, em primeiro lugar, pra mim é a Saori,” — a Saori é a minha filha — “mas eu não posso estar por ela cem por cento se eu estiver doente, então no momento eu vou ter que me tratar e sinto muito, não vou poder ficar pensando se hoje está sol ou está frio pra você”, né, então. Mas tentei levar um dia a dia normal no relacionamento, assim. Uma coisa que acontece no processo da quimioterapia, como eu falei antes, a nossa boca fica seca, com gosto de jornal, é o corpo todo que fica assim. O pé começa a formigar. Você está sentado, daqui a pouco você se levanta, você sente como se estivessem entrando agulhas no seu pé a cada passo, até você se acostumar de novo a estar de pé. Na mulher, resseca tudo, é meio, é horrível, para falar assim... Mas, mesmo assim, eu tentei manter uma relação sexual mediana, pelo menos duas vezes na semana a gente tinha relação, mas não era a coisa mais prazerosa, obviamente não dava pra ser. Mas assim, acho que foi melhor ter isso do que não ter, acho que foi melhor pra saúde mental. Foi melhor ter que cuidar da Saori, porque o pai dela sugeriu que ela ficasse com ele durante o tratamento, mas mesmo assim eu falei “não, eu quero que ela fique comigo justamente porque é com ela que eu me sinto viva e sinto a necessidade de estar viva”, o propósito, o tal do ikigai, em japonês. E eu queria manter o dia a dia o mais normal possível, e foi o que eu fiz, tentei manter o mais normal possível, tanto que eu continuei utilizando transporte coletivo pra lá e pra cá, né, pra resolver as coisas do dia a dia, pra ir pro trabalho, pra voltar da escola com ela. Tentei fazer as coisas o mais normal possível, porque eu acho que é exatamente isso, porque a gente fala mal da rotina, a gente não gosta da rotina, a gente quer ter alguma coisa diferente nesses dias, mas nessas horas o que salva é a rotina, o que salva a nossa mente é ter o que fazer. O que eu faço depois dessa porrada que eu tomei? Vou retomar a rotina. Se eu mantiver a rotina, quer dizer que a minha vida está mais ou menos em ordem. Se eu tiver essa organização, se eu continuar trabalhando, se eu continuar cuidando da pequena, se eu continuar com o poder de olhar a atividade da escola dela, se eu puder continuar indo na reunião de pais, ainda estou bem, isso é uma referência. Então eu tentei fazer isso, eu tentei manter, e no final existem grupos de ajuda para as pessoas com a doença, para os familiares que estão com os doentes, porque cada um tem uma reação diferente, então nenhum é pior, mas é apenas cada um. Todos somos únicos, então cada um reage de uma forma diferente. Eu não precisei disso, não precisei de terapia, mas acho que se precisasse lançaria mão também tranquilamente. Mas eu não precisei. Eu me agarrei ao que tinha no dia a dia pra manter a minha higiene mental funcionando, a parte espiritual também, eu achei bastante importante. O budista também, ele fala de transcender, essas coisas, de a gente não ter o apego material, então, talvez, no momento presente, as mulheres tenham aquele modelo, o modelo do corpo feminino, então na hora em que elas sofrem uma amputação, uma crise de identidade, eu não sei quem eu sou e tal. Eu não vivi assim, eu não tive essa reação. O budista sempre fala do desapego das coisas materiais e inclusive do próprio corpo, e eu procurei manter isso na minha mente, que esse corpo é transitório, não vou estar aqui para sempre, e o que eu sou agora não serei amanhã de toda forma. Então, tinha que sempre... passei a ouvir muitas palestras de Filosofia, já ouvia antes, comecei a ouvir ainda mais, comecei a estudar um pouquinho mais sobre o assunto. E também essas palestras que falam de neurociência, de funcionamento da mente, e até me entender melhor. Acho que são coisas que acontecem na nossa vida e a gente tem que catalisar. Por isso o paralelo com a pandemia é tudo isso, é uma coisa que impacta todo mundo, é uma coisa que todo mundo tem que aprender alguma coisa e, já que impacta todo mundo, provavelmente essa coisa tenha que ser de impacto coletivo, que não é só eu. Então, tem que ter uma evolução depois disso.


P/1 – E você continua fazendo algum tipo de tratamento, tomando medicação ainda hoje?


R – Tomo, tomo todo dia. Tem um comprimido pequenininho. O tratamento do câncer, a quimioterapia, ela, pela forma como ela é radical no corpo da mulher, ela pode gerar vários impactos. No meu caso, me levou de uma pessoa, mulher normal, para uma, pro climatério meio que direto, né? Climatério é o pós-menopausa. Então eu não tive a menopausa. Menstruei até novembro de 2017, depois disso nunca mais. De repente assim, “puf”, acabou. Apesar de existir, o médico ficar sempre questionando se está ou se não está, se veio ou se não veio, se você sente calorões ou isso ou aquilo, o médico sempre vai estar acompanhando e questionando isso. Mas no meu caso, eu fui direto para a pós-menopausa, para o climatério, e aí, nessa hora que a gente vê que essa mudança aconteceu, a nossa medicação também tem que mudar. Porque funciona em um outro esquema hormonal, o corpo começa a funcionar de um outro jeito. E aí essa medicação muda. E essa medicação que eu estou usando agora, ela corta a produção da... ai, esqueci. O hormônio feminino? Como ele chama mesmo? Estrógeno. Corta a produção do estrógeno no organismo feminino, né?


P/1 – Ou é estrogênio? Não sei.


R – Também não sei, estrogênio, estrógeno. Enfim, aí corta, e passou o próprio organismo a produzir outros hormônios. No meu caso, parece que — não sei se é no meu caso ou se é normal isso, se é previsto pela medicação — começa a produzir testosterona, então eu comecei a ver espinhas no rosto. Poxa, eu tenho 46 anos e tenho espinhas no rosto, que coisa estranha, né? Aí eu falei isso com o médico e ele disse “provavelmente é porque a medicação está funcionando, então continue tomando”. Mas uma outra coisa que acontece quando a mulher perde a produção do estrogênio ou do estrógeno é que a gente começa a perder cálcio do corpo, do organismo, então é uma outra atenção que a gente precisa ter. Então, a gente tem que fortalecer a musculatura do corpo, e aí é pra prevenção mesmo da osteoporose, trabalhar a alimentação, e a gente tem que complementar cálcio com outras fontes aí, não é vitamina, né, a medicação mesmo que a gente toma, o cálcio, e também no meu caso eu estou tomando. Já tive uma perda óssea importante, então estou tomando via intravenosa. Mas tem que ter os cuidados, eu faço tudo que o médico manda fazer, eu sigo as recomendações, e também eu sei que pode ter efeito colateral e vou ter que aprender a lidar com esse efeito colateral. Inclusive, estou tendo queda de cabelo de novo, provavelmente vou ter que fazer, tomar alguma medida em relação a isso. Mas é aprender a lidar, porque cada organismo reage de um jeito. O médico vai ter algumas ideias do que pode estar acontecendo, mas ele não tem uma bola de cristal para dizer “olha, essa indicação sempre dá esse efeito em todos os organismos”. Não é assim que funciona. Então continuo, sim.


P/1 – E olhando um pouco para trás, para esse momento do distanciamento, como você enxerga esse período e quais são as transformações que causou na sua vida e nas pessoas que convivem com você? Você falou da rede, acho que deve influenciar também.


R – Chegou março desse ano, eu já estava sozinha, só eu e minha filha em casa. Mas a gente estava no dia a dia normal: ela ficava na escola, e eu ia para o trabalho, buscava ela na escola no final do dia, a gente voltava. Ela estava morando comigo até então. Aí, com a pandemia, eu fiquei bem isolada porque ela tinha que ficar em casa, ela não podia ficar em casa sozinha, então ela ficou na casa do pai, onde ele e a esposa dele estavam em home office. Então, são adultos que podem cuidar dela. Minha mãe na casa dela, eu em casa e também falei “acho que é melhor, porque eu trabalho em hospital”. O hospital, quer queira, quer não, é um ponto focal, e ninguém sabia exatamente como agir. E a gente do RH [Recursos Humanos] é administrativo? Sim, cem por cento administrativo. Só que, no início da pandemia, a gente começou a contratar em massa profissionais da área da saúde, da assistência. Então profissionais da área da assistência, então são enfermeiros, técnicos de enfermagem, médicos, fisioterapeutas. Esses profissionais já estavam expostos à doença, então, na hora em que a gente... porque essa galera já tem a jornada de seis horas na maior parte de seus empregos, e eles estavam vindo querendo ter um segundo vínculo de trabalho e aí assumiam dois turnos de trabalho. Então foi um momento pra eles de conseguirem ter uma renda adicional, só que a gente ficou exposto a... No começo, a gente não estava conseguindo fazer a opção do distanciamento, porque estava todo mundo desesperado por emprego, então a gente não conseguia manter o distanciamento. Então a gente teve que contratar mil e quatrocentas pessoas, num curto espaço de tempo. O espaço que a gente tinha, por maior que fosse, aglomerava. As pessoas ainda não usavam máscara, principalmente nós, pessoas do administrativo, não sabia se podia usar a de pano, se não podia, se ia ser pior, se melhor e tal, então a gente teve pessoas infectadas no administrativo por causa disso naquele momento. Então eu vi, temos que ficar isoladas sim, então eu fiquei uns três meses sem ver presencialmente ninguém da minha família. Eu mudei a minha rotina, ao invés de usar transporte coletivo, comecei a andar, então ia para o trabalho andando, indo e voltando. Isso foi excelente para a minha saúde, muito ruim para os meus sapatos [risos]. Foi muito bom para a minha saúde, o que eu estava precisando eu já cumpri. O médico falava: “você está praticando atividade física?”, “é, essa parte está mais ou menos, né?”. Agora, não está mais ou menos, está em dia. E aí, só que na parte de relacionamentos a gente ficou isolado, o bom foi que a gente aprendeu a fazer as videoconferências para reunir com os amigos, né. Então começamos retomar as amizades que já estavam distanciadas também, por meio tanto do whatsapp, mensagens, com videoconferências, pessoas começaram a querer interagir mais também, o interesse nisso aumentou. Então grupos que tinham desaparecido ressurgiram. Foi bom. Mas, assim, acho que quem está trabalhando no dia a dia, quem continua tendo a sua rotina de trabalho, na verdade a gente não parou, não tive nenhuma parada no trabalho, não fiquei isolada em casa sozinha. Só no final de semana. Então eu não tive tanto essa sensação de isolamento muito forte. Eu acho que teve pessoas, sim, que tiveram muito mais do que eu. Foi mais, assim, em termos de algum feriado. Mas chegou nas férias, higienizei toda a minha casa, está tudo seguro, falei para a minha mãe vir para dormir em casa, trouxe a minha filha de volta, e a gente ficou tudo em casa. Então deu uma refrescada, e aí depois separou de novo. Deu aquela sensação de tristeza na hora em que todo mundo vai embora, mas aí a rotina de novo salvou, e a gente volta no dia a dia do trabalho, com as pessoas lá do trabalho com as mesmas dificuldades do que eu, os mesmos medos. Tem uns que se desesperam, que se angustiam, pessoas que desenvolvem doenças mentais, porque estão expostas no tipo de trabalho que tão lá, mas assim, quem é do administrativo e quem é da gestão de pessoas, de novo... Eu fiquei com a sensação de que eu era a pessoa certa no local certo, porque eu tinha vivido um treco lá na minha vida que não foi legal, mas que deu pra superar, deu pra ser exemplo pros outros, e a gente tinha que estar lá pra quem está na linha de frente, quem está cuidando do paciente, poder acolher. Então, a gente tinha que estar bem, poder gerar alguma solução, mecanismos de terapia. Não deve ser nada fácil ver tanta gente morrendo todos os dias, ver pais de família, colegas. Deve ser devastador tudo isso, então a gente que está na retaguarda tem que ajudar.


P/1 – E como foi pra você se tornar mãe? O que é que a maternidade representa nessa vida?


R – Eu diria que é uma conquista, né? Eu sempre pensei que tinha que ter uma profissão, uma certa estabilidade, e depois ter filhos. Eu queria ter tido dois filhos, mas não tive. Mas, assim, eu tenho a Saori. A Saori é tudo de bom na minha vida, é uma luz na vida, na minha vida, na vida das pessoas com quem ela convive, então eu acho que eu tenho uma sorte gigantesca. Ser mãe foi um aprendizado, assim. Foi um momento em que eu falei “agora eu entendo a minha mãe, agora eu entendo o amor dela”. Apesar da cultura fria dela, perdoo tudo, perdoo tudo de... todo tipo de... são valores da cultura dela, de base dela, mas eu entendo todos os cuidados que ela tomou e todo o acolhimento, toda, tudo que ela fez por nós. Mas foi um momento crucial. Acho que na hora que a gente tem um filho a gente entende a nossa mãe. É muito, ficou muito claro para mim. Acho que a gente aprende mais com eles do que a gente ensina. Acho que a gente aprende mais sobre nós mesmos quando a gente vê o que o filho faz. Toda pisada de bola que o filho comete, a gente, “acho que eu fiz isso”, “acho que eu falei isso”, “acho que deixei dar a entender sobre isso e a pessoa que está em formação foi na sua fala”. Então é muito prazeroso e gera uma ampliação da consciência, e a gente para de ser dogmático de certo e errado, bem e mal, passa a ser mais acolhedor, a gente passa a ser mais flexível com as outras pessoas. Não é a outra que tem que me acolher, às vezes eu que vou ter que acolher pra que haja o entendimento. Por mais que eu me sinta, sei lá, frágil. Acho que ser mãe é uma sorte que a gente tem e acho que existem mães que são mães adotivas, e acho que essas são ainda mais admiráveis do que mães biológicas, eu acho, são exemplos que até penso assim, em ter um segundo filho, talvez pudesse até ser adotado, né, também. Acho que não seria uma experiência ruim, acho que seria boa. Mas, no começo eu não achava, não. Eu não me achava capaz. Acho que ter um filho já te ajuda a entender muito mais da importância de ter pais. Acho que é uma lição.


P/1 – E o que você gosta de fazer nas suas horas de lazer?


R – Lazer? Gosto de namorar, gosto de conversar, gosto de pintar. Quando eu estava sozinha, assim, por exemplo no domingo, não tinha ninguém em casa, agora mesmo na pandemia, foi quando eu acabei pintando mais do que em outros momentos. Não tinha pra onde ir, não tinha com quem ir, então ficava comigo mesma pintando. Eu achei bastante interessante, acabei fazendo uma coisa que eu queria ter feito antes que era a constelação familiar. Eu queria ter feito isso, mas nunca tinha tido tempo. Acabei fazendo nessa etapa da pandemia e foi feito à distância, achei muito interessante, muito agregador, foi rico. Que mais... em tempos normais eu sou... participo do movimento escoteiro, agora ainda participo do movimento escoteiro, mas é virtual, não é a mesma coisa. A gente não consegue montar barracas, a gente não pode cortar bambu, montar pioneiras, não dá pra fazer esse tipo de atividades ao ar livre. Então eu me recolhi àquilo que era possível dentro de casa, então pintura, conversas, enfim, eu gosto muito de trabalhos manuais, nas férias nós pintamos as paredes do quarto de branco, o quarto dela ficou todo colorido, cheio de nuvens, todo enfeitado, então a gente acabou criando dentro de casa, dentro de casa mesmo, transformando dentro de casa o que era possível. E foi bom, porque a gente acaba aprendendo a usar um rolo de pintura, é um aprendizado. Agora não precisa mais pagar para alguém fazer, é só ter tempo e organização.


P/1 – E o que é que a pintura representa na sua vida? Porque você falou que ela entrou naquele período onde as margens também surgiram.


R – Eu sempre gostei de desenhar. Só que ficou mais presente na minha vida exatamente quando eu estava mais introspectiva. A pintura é uma arte mais introspectiva e muito pessoal mesmo. Existem artes aí, murais, que aí são feitos a várias mãos, que aí já é de uma outra forma, mas, assim, a pintura de tela, que é feita por um único pintor, é uma produção pessoal, é uma produção histórica daquele momento, daquela vida. E, para mim não é diferente, embora, quando a gente está aprendendo técnicas, a gente experimente, mas depois que a gente define uma linha, “eu me sinto mais à vontade assim ou assado”, você consegue imprimir algo de você ali. Mas o que é que significa? Para mim é uma possibilidade de expressão. Quando eu não tinha a possibilidade ou achava que eu não tinha a possibilidade de me expressar com as pessoas, era a pintura a minha forma. Como eu extravasa as minhas percepções ou a forma com que eu queria enxergava o mundo. Mas como eu não tinha técnica naquela época, né, até muito recentemente, — eu faço aula de pintura há quinze anos, nos últimos quinze —, então antes disso era muito intuitivo. Então eu aprendi a misturar, a fazer mistura de cores de forma intuitiva. Mas agora eu sei fazer isso com mais técnica e traços mais precisos, mais treino, com mais ferramentas mesmo. A pintura é algo que eu acabo pensando que, talvez a arte como um todo, é o que salva vidas mesmo. Talvez, se você for ver, minha mãe falava que ela tinha um tio no Japão que viveu na Segunda Guerra Mundial e era muita destruição na época, ele foi para o serviço militar e lá a única coisa que ele tinha era uma gaita. Ele era multi-instrumentista, mas ele tinha levado uma gaita e ele fazia com que todo o grupo com que ele estava ali no exército japonês ficasse um pouco mais feliz quando ele tocava. Então, a vida dele tinha sentido pela arte. E ele falava pra ela assim “olha, a arte, ela transforma vidas e ela tem o poder de salvar vidas, de conectar seres humanos, vidas”. E a pintura também para mim é isso. Quando a gente não se acha conectado com o outro, a gente consegue imprimir ali numa tela, e uma pessoa que vê e comenta acaba se conectando com você, mesmo que indiretamente. Então isso é interessante, porque possibilita essa troca. E mesmo um artista mais experiente, mais técnico, ele acaba se traindo, seja no traço, seja na inserção de alguma informação na tela, que não precisaria existir. Esse é o ponto provavelmente em que ele está expressando alguma coisa que, se você puxar, vai surgir alguma informação que ele não tinha o propósito de colocar, que é o autêntico dele ali.


P/1 – E quais são os seus sonhos?


R – Sonhos, sonhos, sonhos, sonhos. Eu penso muito assim, eu sempre estudei em escola pública, eu tenho um sonho que, desde a minha adolescência, é o de transformar a nossa sociedade de alguma maneira. A pergunta que você fez sobre a faculdade, as escolhas, a profissão... eu fui pra administração e especificamente pra gestão de pessoas porque, no curso técnico e dentro do grêmio, a minha mente japonesa falava assim: “olha, pessoal do grêmio, para o dinheiro entrar no caixa do grêmio, a gente vai vender uniformes, pra vender, a gente tem que controlar o que está vendendo, então a gente vai ter um caderninho onde a gente vai anotar quem é que está pagando, e quando foi isso e tal, para as coisas fecharem”. Então, eu, como uma boa japonesa em um curso de processamento de dados, desenhei um formulário de controle e percebi que as pessoas não preenchiam aquilo, e aquilo não servia de nada, pra porra nenhuma. Então, comecei a discutir com as pessoas “não, mas vocês têm que preencher, mas vocês têm que cumprir essa norma, porque senão a gente vai...”. Então, eu tentava doutrinar e pela doutrina não funcionou também. Pela lógica, também não funcionou. Pela responsabilização, também não funcionou, de falar assim “ó, foi na hora do fulano que o desfalque aconteceu.” Não adiantou, não adiantou nada disso. Então pensei “putz, alguma coisa tem que ser diferente, tem que ter alguma coisa”. E aí eu pensei “não, eu vou pra administração e eu vou pensar em cultura”, porque eu via que a cultura japonesa era mais regrada, mais certinha, e as coisas aconteciam, então deve ser a cultura brasileira o problema, né? Aí também, “mas poxa, como eu vou introduzir a cultura japonesa no brasileiro que não foi formado pra isso? Não vai dar certo”. E na época falava-se muito do modelo Toyota, da qualidade total e não sei o que, então a cultura japonesa estava muito em voga. Mas não dá, não é por aí. Dá para adotar algumas ferramentas? Acho que dá. Mas é muito diferente de ter a cultura mesmo. Não dá para ser assim tão fake. Então, por isso que eu fui para a linha de gestão de pessoas. Porque eu pensava que eu teria que entender as ferramentas para que as pessoas pudessem se engajar, pra que as pessoas se sentissem envolvidas com algo, ou que fosse importante para aquele propósito. Então é por isso que eu fui para a gestão de pessoas, mas, mesmo assim, ainda é difícil. Mas a minha ideia de transformação da sociedade tem a ver com isso, e é por isso que eu estou em um hospital público. Poderia estar em qualquer outro hospital privado, poderia estar dando aula de gestão de pessoas — poderia, já que eu fui para o mestrado —, mas eu acho que a minha contribuição é, se eu efetivamente conseguir fazer com que as pessoas do setor público, por exemplo, realmente... Imagina, vinte mil pessoas realmente trabalhando porque amam o trabalho, de verdade. Seria muito mais, a gente já tem a referência de que o Hospital das Clínicas é bom, a gente ainda tem o orgulho de que dentro do serviço público esse é um hospital modelo. Mas imagina se vinte mil pessoas realmente estivessem fazendo aquilo que realmente faz sentido para vida delas? Como isso seria transformador para toda a sociedade? Que impacto que teria na cidade de São Paulo, para o Estado de São Paulo, para o Brasil inteiro ou até na América Latina? Hoje, a gente já faz diferença, imagina se cada uma daquelas pessoinhas acordasse pensando “o que eu vou fazer de bom para aquele lugar hoje?”, e saísse de lá feliz, porque fez o que se propôs. Eu acho que seria transformador, eu gostaria de fazer alguma coisa assim, fazer com que no serviço público o trabalho fizesse sentido, porque tem muita gente que vai lá só pra bater o carimbo, ou pra bater o ponto e passar as horas e ir embora. Tudo bem, eu acho que faz parte do CLT, hoje, essa coisa meio de, até de escravidão, esse método de ir, bater o ponto, estar ali presente é o que... como se estar presente fosse o trabalho agregado, o trabalho de servir ao próximo, como se fosse isso. Não é isso. Então, o serviço público é fazer algo pela sociedade. O que é que é esse algo para cada uma dessas pessoas? Como essa pessoa que foi contratada como auxiliar de serviços gerais faz o serviço dela vendo refletido na sociedade? Hoje é uma coisa muito, muito distante e as pessoas acabam não enxergando. Não enxergando o significado do trabalho delas para o outro e isso na saúde é muito, muito preocupante, porque um desleixo, uma piscada, na atenção, um apagão mental em um segundo da vida da pessoa pode gerar uma morte. E é com uma vida que a gente está lidando. Então, na saúde, eu vejo que é o lugar em que ou a gente faz com que as pessoas trabalhem em função daquilo que elas foram contratadas, porque eu não vejo talvez muito sentido em trabalhos muito cartoriais, vou falar aqui mas... por exemplo, a atividade de um fiscal. Não é uma produção para a sociedade, mas a saúde é uma produção para a sociedade. Eu acho que esses profissionais, os educadores, o pessoal da saúde, o pessoal da limpeza, tem um serviço que é de fato para a sociedade. O pessoal da segurança, eu acho que tem que pensar um pouco o que seria essa segurança, porque, não sei, a gente vive dentro de muros e dentro de grades e em todo lugar câmeras de vigilância, então eu não sei mais o que é segurança pública. Enfim, eu acho que tem uma série de discussões que a gente precisa fazer e evoluir, mas a gente como servidor é em primeiro lugar cidadão, então o que a gente faz tem que refletir ali na ponta, de fato. Então, acho que o meu sonho tem a ver com isso, com uma transformação da sociedade, e aí a minha forma talvez não seja como, exatamente como cidadã, mas como uma pessoa que está ali dentro e tem a possibilidade de fazer alguma coisa acontecer. E tem que ser pela ética, tem que ser o fazer certo porque fui contratado, existo por isso, e lógico, eu sei que existem várias coisas ruins aí no modelo do Estado, no funcionalismo, na falta do reconhecimento dos profissionais, os salários baixos, isso não é nem mais discutido porque todo mundo já sabe, não é novo pra ninguém, ainda mais na saúde hoje. A gente está, todo mundo fala aí do SUS, todo mundo fala dos médicos, fala dos enfermeiros, da diferença salarial, e em São Paulo é ainda mais gritante, porque a gente concorre no hospital público, o hospital público concorre com os principais hospitais do país, os hospitais de ponta que pagam muito bem, e os profissionais que a gente forma lá dentro acabam saindo, óbvio, para os lugares que pagam melhor. Mas, mesmo assim, os que ficam são aqueles que a gente teria que estar defendendo, reconhecendo e valorizando e fazer com que as pessoas que produzem sejam aquelas que permaneçam no Estado, em prol da nossa própria sociedade. Ou então transforma tudo, implode tudo e recomeça. Vamos fazer autogestão, cada um cuida do seu, acaba com os impostos, não sei... uma visão muito radical de reiniciar tudo. Eu sei que aí seria um radicalismo geral e a gente não tem maturidade para isso ainda como sociedade. O meu sonho é meio utópico. E aí também um sonhozinho meu, pessoal, seria de participar de concursos de pintura fora do país, de ter uma experiência de arte fora do país, porque o país ainda não valoriza a arte, né? A gente vê algumas coisas acontecendo, grafitagem sendo reconhecida, mas assim, arte, de modo geral, é muito difícil aqui no Brasil. Então eu penso que talvez uma experiência fora, até para ser reconhecida internamente, seja um passo necessário. Reconhecida fora primeiro, para poder ser reconhecida aqui depois. Tenho essas duas coisas para mim que são importantes. Além, lógico, de ver a filha bem criada, mas aí acho que cem por cento das mães vão pensar isso.


P/1 – Claudia, você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma história, fazer algum comentário, que eu não tenha te instigado?


R – Comentário... eu acho que o principal, assim, acho que a gente tem que assumir o que a gente é, acolher o que a gente é, para significar algo importante. Então, se você se entende...se você tem clareza... na minha vida eu vi que eu passei por uma liberdade intensa, um colorido na minha vida muito grande até os seis anos, depois ficou tudo preto e branco, e depois um questionamento muito forte das minhas próprias origens. A minha adolescência não foi só debater política com o meu pai, e sim recusar ou não aceitar nenhum dos valores deles. Os valores tradicionais, disciplina. Valores da raça. Tem coisas que eu acho feio até hoje, mas tem coisas que eram boas e que eu falava que eu não era nada daquilo e hoje eu vejo que eu reproduzo boa parte daquelas coisas que eu negava. Então, acabo tendo sim uma disciplina, acho sim que a disciplina foi importante, sim, para eu conquistar algumas coisas. Acho importante uma certa organização da vida, mas a rigidez, sim, é que é perniciosa, é ruim. Mas quando a gente olha para frente, e quando a gente também olha para trás, a gente repara que a vida, por mais que a gente queira desenhar ela de uma determinada forma, a gente acaba vivendo de uma segunda forma, de uma outra forma. A gente tem que ser flexível, a gente tem que aceitar as coisas que não estão no nosso controle, mas a gente tem a oportunidade de controlar aquilo que é nosso, então são os nossos sentimentos, são as nossas expressões, as nossas falas, os nossos atos, tudo que a gente consegue controlar. O resto a gente não controla, eu não controlo o que vocês pensam sobre mim, eu não controlo o que um abusador pensa ao meu respeito, eu não controlo isso. Passei por várias situações, os homens — não posso nem generalizar isso —, mas alguns homens objetificam, transformam a mulher em objeto, como se você não fosse uma pessoa, como se você não tivesse sentimentos, como se você tivesse que agir de uma determinada forma. A gente não controla isso, mas a gente pode controlar a forma como a gente reage, como a gente lida com a coisa ruim que acontece com a gente. Talvez elaborar e talvez não ficar uma pessoa rígida porque algo ruim aconteceu e mesmo que ninguém saiba, você sabe que aconteceu aquilo com você, e a única pessoa que pode fazer algo por você é você mesmo, é você mesmo que vai acolher a sua dor. Não adianta você lançar para o seu parceiro sentimental que ele acolha as suas feridas, porque ele não vai fazer isso, e, às vezes, você também, como é que você vai sensibilizar a pessoa que não viveu? Nunca vai ser cem por cento. E ele vai fazer uma outra leitura também, a outra pessoa, né? Então a gente tem que fazer muita coisa por nós mesmos, mas não ficar um bloquinho de gelo que fala assim “eu não preciso da ajuda de ninguém”, até porque isso não é verdade, a gente sempre precisa dos outros. A gente, todos nós somos seres humanos, e a humanidade só existe porque existem esses vínculos, esses laços, essa rede de necessidades, interesses e tudo muito compartilhado. Por mais que a gente fale “putz, não curto essa linha de pensamento do presidente, não tem nada a ver comigo”, não é por isso que eu quero vê-lo morto, não é isso. Isso não vai resolver [risos]. Mas enfim, não é a morte que vai... uma linha de pensamento continua existindo independente de uma pessoa. Existe uma rede e existe uma certa interdependência que, talvez, a gente precise ressignificar e repactuar várias coisas, mas a gente não vive isolado, a gente depende, né? Que nem aquele negócio do efeito borboleta, “o bater de asas de uma borboleta no Pacífico pode gerar uma tempestade no Atlântico”, enfim. Então, uma coisinha que parece nada pode transformar totalmente a vida de um ser humano. Então acho que a gente tem que pelo menos contar com a gente mesmo e quanto mais consciência a gente tiver da gente mesmo, mais vai ser positivo, para a gente não entrar em caminhos que a gente não consiga se sentir assim, “não me reconheço, não sei quem eu sou, não estou feliz comigo mesmo”. E ainda culpar o outro por isso.


P/1 – O que que você acha de mulheres serem convidadas a contarem a sua história e falarem da saúde da mulher em um projeto de memória?


R – Acho que é uma iniciativa muito interessante. As mulheres, assim como aconteceu na minha própria família e em casa, três mulheres, três irmãs de idades próximas, que não falam tanto da sua própria saúde ou das suas próprias necessidades, talvez mais recentemente, depois dos quarenta anos de idade, a gente troque muito mais do que no começo da vida. Por que será, né? Por que será que não é importante a gente falar de saúde? Por que que a gente não fala sobre harmonia, por que que a gente não fala sobre estar feliz? Por que falar sobre as mudanças no corpo é tão tabu? Por que é que até mesmo angústias pessoais ou medos, receios, coisas que acontecem com a gente não podem ser faladas? Acho que talvez realmente a gente atribua à fala um poder bastante grande, por isso falar é importante; mas o não falar também é importante. Se a gente deixa de falar algo, se a gente deixa de compartilhar, talvez a gente também deixe de ajudar. Se a gente não fala que crianças de doze anos podem sofrer abusos, que podem ser até mínimos para um olhar de um adulto, mas para uma criança de doze anos que não viveu a vida, é uma invasão gigante, né? E, não sei, acho que a menina, ela é criada de uma maneira, não sei se ainda hoje, diferente da dos meninos. O nível de liberdade é diferente. Então poder e autonomia para mulher, até mesmo com o próprio corpo, do próprio entendimento, do seu próprio funcionamento, do seu próprio organismo, dos seus próprios limites, da sua própria voz, é para mim uma coisa importante para a nossa sociedade, viu? E não precisa ser só no Brasil. Mesmo na sociedade, e talvez ainda mais na sociedade japonesa de onde eu venho, é ainda mais importante poder ter esse espaço, trazer isso para a discussão. Acho muito inovador e acho que, espero contribuir mesmo. Eu imagino que tenham pessoas com histórias de vida muito mais marcadas e se essas pessoas precisam de ajuda para poder falar e contar as suas histórias, eu agrego a minha apenas para falar “olha, a minha vida não é nada como a de vocês”. Eu sei, conheço pessoas com outras histórias mais marcadas e muito mais agressões que guardam muito mais do que eu e que talvez elas pudessem compartilhar e pudessem ajudar outras.


P/1 – Para finalizar, o que é que você achou de contar um pouco da sua história?


R – Achei interessante. Hoje é o Dia do Funcionário Público, né? Dia 28 de outubro. Hoje, o [João] Dória transformou o dia em... o feriado mesmo vai ser gozado na sexta-feira. Não vai ser hoje, porque sexta emendaria com o feriado de Finados. Então hoje seria um dia que eu estaria trabalhando, mas acho que utilizei de uma forma muito boa essa tarde. E acho que de uma forma diferente, agregando para a sociedade de uma forma diferente, pelo menos para... eu não sei qual é o número de acesso a esse acervo, mesmo assim acho que para a posteridade pode servir de algo. Esse momento que a gente vive, não sei, acho que são várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, né, o cenário político interferindo na saúde da população, no espaço e até no modo de vida das, de todo mundo; as crianças que não vão pra escola, mas ficam em casa. Antigamente, a gente era meio que empurrado para fora de casa para brincar na rua, não fica dentro de casa, e agora não, a gente dá o eletrônico na mão da criança pra ver se ela consegue utilizar aquilo, agregar alguma coisa pra vida delas. Enfim, tudo muito diferente. Mas a tarde de hoje acho que aproveitei de forma muito boa. Acho que eu nunca tomei tanto tempo das pessoas, como vocês, para contar a minha história, de uma vez só. Acho que acabo fazendo um, assim, que nem tem um lencinho aqui de papel, mas acho que não cheguei no meu limite de aprofundar tudo que vivi, mas talvez porque eu já tenha elaborado um pouquinho melhor as coisas ruins. Eu acho que se fosse um outro momento da vida eu teria me emocionado, sim, com aquela sensação de “eu sou coitada, e tal”. Eu já tive isso, já tive isso, mas não estou mais assim, mas acho que isso foi muito forte na adolescência. Eu me sentia a coitada e chorava tanto, era tão dramática a minha vida. Aí depois eu falei “que saco, não quero mais isso não, não quero mais chorar”, porque acho que tem que... bola para frente. Aconteceu alguma coisa ruim, aprenda, mas tem uma coisa que eu ainda não aprendi a fazer, abusos acontecem de forma frequente com a gente. Relação homem e mulher. Outro dia eu estava com um vestido mais ou menos na altura, a um palmo do joelho, caminhando aí para o trabalho. A rua não está cheia de gente, mas o cara não quis botar a mão dele em mim? E, assim, a pessoa tinha espaço pra passar. Geralmente quando a pessoa esbarra é o ombro. Não foi um esbarrão, a pessoa deixou a mão. Eu não consegui agir, e essa é a minha maior vergonha. Eu não sei agir, eu não sei agir, eu congelo. Eu não sei o que fazer quando acontece algo assim. Então, esqueci de contar um episódio do ex com transtorno bipolar. Em algum momento eu falei “olha, me falaram que eu poderia ter aberto um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher, porque você está exagerando aí nas mensagens, falando isso, falando aquilo, e é contínuo, não para, e tal, é o final de semana inteiro falando um monte de coisa. Poderia ter te denunciado, mas não fiz porque acredito em você, porque eu conheço a sua índole e tal”. Acabou, mandei a mensagem. E achei que estava tudo bem. Mas, no dia seguinte, eu recebo uma mensagem da Delegacia da Mulher, porque tem um sistema online de boletim de ocorrência de violência contra a mulher. Ele se denunciou contra ele mesmo, usando os meus dados. Então eu recebi um telefonema da Delegacia da Mulher perguntando se eu queria seguir adiante com aquela denúncia. E eu falei “mas eu não abri esse boletim de ocorrência, não fui eu”. Aí eu contei a história no detalhe do que tinha acontecido, qual era o teor das mensagens, as ameaças, isso, aquilo, aí ele manda um buquê de flor para que eu me sentisse mal com o que eu estava promovendo a ele, e tal e tal. Aí ela explicou que isso é de fato uma violência, que a gente acaba não entendendo, mas esse assédio verbal, escrito, é uma violência sim, porque mexe com a nossa cabeça. É uma forma da pessoa querer entrar na sua mente, nos seus sentimentos, e mexer com você. Não está fisicamente, mas é uma violência. Então isso eu fui entendendo. Isso eu comecei a entender. E, por isso, eu sei que tem pessoas com histórias de vida muito difíceis, mas eu sei que também coisinhas pequenas que acontecem contra a mulher é o que faz com que a gente vá aceitando essas coisinhas como se fossem normais, mas não são normais. Não é normal, não é normal. Eu nunca fiz isso com outra pessoa. Eu vou deixar a minha mão para passar a mão em outra pessoa? Eu nunca fiz isso, não é normal, não dá para aceitar, mas eu efetivamente não sei o que fazer. Não sei o que fazer. Acho que não está na formação da gente. Não sei se a gente deveria ter tipo uma aula sobre defesa pessoal, sobre como reagir, eu sei que essa superação daquilo que me aconteceu aos doze anos e eu ter ficado calada, né, em relação a isso, ainda me marca, mesmo com quarenta e seis anos, depois de um bom tempo, mesmo passando por um monte de coisa, ainda não sei agir. Não sei se é uma coisa que a gente deveria orientar as crianças, meninos e meninas, porque meninos também são abusados, ainda na adolescência ou até antes, e que também marcam a vida de todos, para o bem e para o mal. O medo é que fique o mal mais predominante do que para o bem. Então eu congelo e essa é a minha maior vergonha da minha vida. Eu fico imaginando que se acontecesse com a minha filha, eu fico imaginando que eu avançaria em cima da pessoa, mas eu não sei. Será que eu deixaria passar? Sabe... eu não sei se também partir para uma violência física seria uma maior exposição ainda, seria uma maior chance de eu me dar mal, de pior ainda. Mas, coisas do tipo, não sei se é nem machistas, né, como só porque você está usando uma roupa assim ou assado, a culpa é sua mesmo que você que está provocando a pessoa. Poxa... a gente não pode usar a roupa que quer? Acho que a gente já está numa outa fase da história, da humanidade, que cada um pode usar a roupa que quer na hora que quiser. Pensando no respeito ao coletivo, acho que tendo um mínimo, né? Não é andar pelado no meio da cidade ou dentro de um hospital, mas acho que tendo um mínimo, acho que a gente pode usar a roupa que quiser. Não vejo mal nenhum do homem usar saia, e daí? Acho que é gente como a gente e não é por isso que ele tem que ser agredido, ou ela, porque está com uma saia assim que ela tem que ser mal falada ou porque, sabe? Cada um tem suas escolhas e todo mundo tem que respeitar as escolhas que cada um faz. Então, assim, a experiência de hoje, espero que me abra a mim mesma a minha cabeça para conseguir agir em um momento tipo abuso, tipo quase mínimo, parece besteira, mas eu quero saber agir, quero destravar.


---FIM DA ENTREVISTA---