Museu da Pessoa

Transcender é o caminho

autoria: Museu da Pessoa personagem: Gabriela Augusto Campos de Santana

Entrevista de Gabriela Augusto
Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 14/09/2021
Projeto Mulheres Empreendedoras Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1011 - Parte 1 e 2
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo


P/1 — Vamos lá! Gabi, pra começar gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome, data e local de nascimento.


R — Oi, Lu. Meu nome é Gabriela, eu… aliás, desculpa, você pode repetir a pergunta?


P/1 — Claro! Gabi, pra começar, gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.


R — Olá, meu nome é Gabriela Augusto Campos de Santana, eu falo de São Paulo, SP e eu nasci em onze de março de 1993.


P/1 — E quais os nomes dos seus pais?


R — Meu pai se chama, se chamava, porque ele é falecido, Carmelo Mariano de Santana. E a minha mãe se chama Raquel de Lima Campos Santana.


P/1 — Com o que seu pai trabalhava e o que sua mãe faz?


R — Meu pai era bancário. Ele trabalhou algumas décadas em Bancos, teve uma vida bastante difícil. Mas a minha mãe também teve uma vida bastante difícil, mas ela sempre foi do lar.


P/1 —Como você os descreveria? Como você descreveria seus pais?


R — Bom, uma coisa que eu preciso dizer sobre os meus pais é que eles são, aliás… o meu pai já faleceu, infelizmente, mas os dois sempre foram pessoas bem simples. Então a gente nunca foi apegado a nível de consumo alto, a gente saía pouco pra ir… quando a gente ia para um restaurante, a gente ia no McDonald's. Era algo muito simples. A gente nunca fez grandes viagens. O máximo que a gente ia era o litoral de São Paulo, Peruíbe. Então eram pessoas bem simples, mas pessoas bem batalhadoras, sabe? Meu pai estudou até o ensino médio e minha mãe estudou até a quarta série. Eles não… vieram de famílias bem humildes, então meu pai era guardador de carros. Tanto meu pai, quanto minha mãe, não tinham dinheiro pra comprar material escolar. Então foi sempre muito difícil a vida, pra eles. Meu pai chegou a morar na rua por um tempo. Meu pai sofreu uma série de violências da mãe dele, nunca soube o nome do pai. Mas, aos pouquinhos, ele foi conquistando espaço no mercado de trabalho e ele chegou até a posição de bancário. Então ele começou a trabalhar em Banco há muito tempo. Foi assim até o início dos anos 2000, quando ele foi demitido. O Banco que ele trabalhava passou por alguma fusão, alguma coisa assim. E, desde então, ele não conseguiu um outro emprego formal. Assim, meu pai, desde 2000, 2001, acabou caindo na informalidade. Então nosso nível de consumo caiu ainda mais, até que ele faleceu em 2011. Mas aí a minha mãe sempre foi do lar também, ela sempre tinha um trabalho que não é muito bem valorizado, mas eu sei que é um trabalho duro. Mas eu diria que são pessoas…. meus pais sempre foram pessoas muito... como que eu posso dizer? Assim, a minha mãe, por exemplo, um dia, eu devia ter uns dezoito anos, dezessete anos, ela virou pra mim e falou: “Meu, essa porta da cozinha é muito pequena”. E aí eu falei: “Meu, beleza, mas o que a gente vai fazer sobre? Sei lá, acho que a porta não precisa ser maior, né?” E ela falou: “Meu, mas se eu quiser passar alguma coisa por essa porta, eu não vou conseguir, eu quero fazer algo sobre isso”. E aí eu lembro que eu fui acho que num… passar final de semana na casa dos meus amigos, alguma coisa assim e quando eu voltei a minha mãe tinha cortado a porta, a parede, assim, com a Makita e tinha feito uma nova porta, assim. Ela trocou o buraco da parede do lugar. E isso define bastante a minha mãe, quando me perguntam como minha mãe é. Acho que ela é essa pessoa, assim, ela fala: “Meu, essa porta é muito pequena, eu vou cortar essa parede, pegar uma Makita e vou cortá-la e vou fazer do meu jeito”. E eu acho que eu acabei, também, pegando um pouco disso. Eu acho que eu tenho um pouco dessa característica da minha mãe. Mas o meu pai também. Assim, meu pai era uma pessoa… eu me lembro, se eu pudesse defini-lo de maneira objetiva, contando uma história. Assim, a gente ia bastante para um lugar chamado Taboão da Serra, aqui em São Paulo. E lá a gente tinha um terreninho, onde a gente plantava coisas, tal. E aí um vizinho estava enchendo a laje, tipo, aqui tem muita essa cultura de encher a laje, de chamar uma galera pra carregar uns cimentos e ajudar na obra e aí chamaram o meu pai pra ajudar. E aí meu pai foi lá ajudar. Ele ficou o dia todo, acho que uns dois dias lá, ajudando a encher a laje e aí tinha que carregar lata de cimento no ombro pra subir uma escada e jogar o cimento no lugar. E ele ficou tanto tempo carregando essas latas lá, ele não ganhou nada com isso, estava fazendo um favor pro amigo dele. Mas a lata foi machucando-o, tipo muito, tipo muito, muito, muito. Tipo, ele foi carregando as latas, abriu um buraco, assim, do tamanho de, sei lá, uma maçã, assim, (risos) no ombro dele e ele foi, assim, carregando, tal e o cimento foi, além de ter machucado, o cimento ainda queimou. E ele ficou com uma cicatriz muito feia, uma queloide absurdamente grande, uma baita de uma marca no ombro, porque ele foi trabalhar esse dia e ele não ligou pra dor. Ele falou que ia fazer a coisa e ele decidiu terminar essa coisa que ele se propôs a fazer, independentemente da dor que ele sentiu. Eu sei que é uma situação pequena, mas acho que isso o define bastante. E acho que, querendo ou não, eu tenho um pouco disso também. Eu digo que vou fazer alguma coisa e eu vou lá e faço, independente do quanto doa, independente do quanto me machuque.


P/1 —E como é a relação de vocês?


R — A minha relação com os meus pais sempre foi boa, muito boa. Assim, excelente... excelente não é uma palavra… como que eu posso dizer? Excelente é uma palavra esquisita, né? Eu diria que foi uma relação bem amorosa, assim. Meus pais sempre, é que assim… os meus pais sempre deixaram a vida deles em segundo plano e olharam pra mim. Eu sou filha única. Eles sempre fizeram de tudo pra que eu me sentisse bem. Meus pais tinham uma relação boa, também não brigavam na minha frente. A minha infância foi bastante feliz. Inclusive, pensando até na minha transgeneridade. Porque, assim, a primeira vez que eu parei pra pensar sobre isso foi quando eu tinha, sei lá, uns quatro, cinco anos de idade, quando eu falei: “Meu, eu quero fazer parte desse universo feminino!” Mas é claro que eu não sabia definir isso como: “Ah, transgeneridade”, né? Não era um conceito simples pra uma criança da década de noventa. Mas aí eu comecei a usar, sei lá, teve um carnaval que eu usei roupa da... um carnaval que eu usei uma fantasia feminina, da minha vizinha. E aí eu coloquei um biquíni, coloquei uma peruca e meus pais não acharam que era um problema. Eles acharam bacana, falaram: “Nossa, sei lá, você está se divertindo”. E eu me senti culpada por aquilo, por ter usado roupas femininas no carnaval. Eu me lembro que minha mãe tinha uma máquina filmadora e ela filmou. Inclusive, eu fiz até uma postagem nas minhas redes sociais, recentemente, sobre isso. Mas a minha mãe filmou e aí, algum tempo depois, não sei, dois anos depois, eu tinha, sei lá, uns cinco, seis, sete anos, não sei, uns amigos dos meus pais foram em casa e aí meus pais mostraram essa fita pros amigos deles. Falaram: “Olha só, ele brincando de carnaval com as amigas, tal!” E eu fiquei com uma baita de uma vergonha, assim, eu falei: “Caramba!” Eu fui até pro quarto, me escondi, até chorei, assim. E minha mãe falou: “Meu, porque você está chorando?” E eu falei: “Meu, que vergonha, vocês mostrando isso, assim”. Eu não sei, me senti mal, me senti menos, por estar fazendo aquilo. E a minha mãe falou: “Meu, não é um problema”. Minha mãe estava sentindo orgulho de mim, sabe? Então acho que isso define um pouco a relação que a gente tinha. Meus pais sempre me apoiaram. Nunca, assim, me deixaram… mesmo quando a gente pensa nessa questão da transgeneridade, que não é uma questão tão simples pra grande maioria dos pais. Por mais que meus pais não entendessem completamente essa minha questão, eles estavam ali pra me apoiar e sentir orgulho de mim.


P/1 —E você sabe como eles se conheceram?


R — Bom, hoje eu moro em um lugar que fica próximo da Praça Benedito Calixto, aqui em São Paulo. E, inclusive, está tocando uma música vinda de lá, eu acho, agora. Que é onde os meus pais se conheceram. Eles se conheceram na Praça Benedito Calixto, que é na frente de onde eu moro hoje. Parece que… eu não lembro, meus pais eram pessoas bem reservadas, tá? Então eu nunca tive tantas conversas com eles sobre isso, detalhes, tal. Mas a minha mãe me disse que tinha a missa, tinha alguns eventos na igreja que fica aqui próxima, a Igreja do Calvário. E não sei se ela participava, participou de algum desses eventos e a galera ficava na praça e aí meu pai acho que também devia ir pra pracinha e eles acabaram se conhecendo ali há vários, vários anos.


P/1 —E você sabe a história do seu nascimento?


R — Poxa, sobre a história do meu nascimento, eu já tive algumas conversas sobre isso com o meu pai, com a minha mãe, mas eles sempre foram pessoas bem reservadas, sabe? Bem reservadas, eles nunca fizeram questão de contar muito, muito dessas coisas. Mas eu me lembro de um dia que eu peguei um disco de vinil que estava guardado em algum lugar de casa e era um disco de curso de inglês, era um curso de inglês no vinil (risos). E aí eu fiquei fuçando, tal, ouvi o disco e fiquei olhando pra capa. E, em algum lugar da capa, estava escrito lá: “Feito em 1978”, alguma coisa assim. E eu falei pro meu pai: “Meu, por que você tem um disco de vinil com curso de inglês, feito em 1978?” Ele falou: “Ah, eu achava que você ia vir antes”. E eu não sei, acho que eu acabei não perguntando mais sobre, mas, assim, eu nasci em 1993. Eles estavam com esse disco de vinil de 1978. Um curso de inglês. Meu pai era assim, ele era assim, ele… eu não sei se era uma ansiedade dele, mas, não sei, se eu nascer, ele comprou um curso de inglês pra mim. E ele fez assim acho que durante toda a vida dele. Ele… eu me lembro que eu tinha caixas de lápis de cor, essas coisas, que foram compradas há muito tempo. Mas, bom, eu me lembro que eu tinha caixas de lápis de cor compradas há muito, muito tempo. Eu me lembro que escrevi, usava esse lápis de cor por volta do ano 2000, mas elas tinham sido compradas, sei lá, em 1995, não sei. Então, meu pai, eu acho que ele antecipava muito as coisas. Antes de eu nascer, ele se preocupava com muita coisa. Antes de eu saber escrever, ele comprava lápis, comprava… sabe? Então acho que meu nascimento talvez tenha sido rodeado por essa energia, uma ansiedade, uma… minhas tias, meus familiares, sempre disseram que meu pai falava que eu fui a coisa mais importante que aconteceu na vida dele. Meus pais queriam me chamar de Dominique. Isso ia me poupar bastante esforço agora, pensando na minha transgeneridade, que eu não ia precisar retificar meu nome, porque Dominique é um nome que serve bem, tanto pessoas alinhadas com o espectro masculino, como também com o feminino, né? Eu não sei, eu não gosto tanto do nome, assim, Dominique, mas me economizaria um certo esforço, nesse sentido. Mas aí meus pais queriam colocar o nome de Dominique, mas acabaram colocando outro nome, que eu acabei mudando, agora, mais recentemente, com a minha transgeneridade.


P/1 —E você chegou a conhecer os seus avós? Você sabe um pouquinho da história deles?


R — Eu conheci os meus avós. Da parte do meu pai, a minha vó chamava Maria Noêmia. Ela não o tratava muito bem, quando meu pai era mais novo. Ela, eu não sei, fez várias coisas ruins com ele, mas ele sempre a amou bastante e a gente sempre ia pra lá, sempre foi bastante presente na casa da minha vó. E eu me lembro do meu vô também, que eu convivi com ele pouquíssimo tempo, o Alcides. Mas o Alcides não era pai biológico do meu pai. Meu pai nunca conheceu o pai dele. O Alcides era um padrasto, assim. Mas o Alcides… a gente conviveu pouco tempo porque, quando eu tinha, sei lá, uns sete anos, ele faleceu. Faleceu de câncer, sofreu bastante. E aí eu só conheci a minha vó, Maria Noêmia. Foi com quem eu convivia com mais frequência. A gente ia lá aos finais de semana. Mas, da parte da minha mãe, eu me lembro só da minha vó, não me lembro do meu vô, da parte da minha mãe. A minha vó faleceu também. Aliás, meu vô faleceu… meu vô paterno faleceu em primeiro lugar quando eu tinha sete anos. A minha avó paterna faleceu quando eu tinha uns 24 anos, por aí. E a minha avó materna deve ter falecido quando eu tinha também uns vinte e pouquinhos anos. Ela se chamava Mercedes e eu achava isso o máximo, porque eu gostava de carro. Sempre falava: “Nossa, como que alguém pode se chamar Mercedes?” E ela era bem legal. Assim, ela era mais quietinha e tal. Ela acabou falecendo quando eu tinha vinte e tantos, mas eu gostava deles também.


P/1 —E, Gabi, principais costumes da sua família. Quando você volta pra infância, você tem alguma comida que te lembra essa época, algum cheiro, algum sabor, ou alguma data comemorativa?


R — Poxa, eu… falando de comida, eu sempre gostei bastante de carne, tem até alguns vídeos meus falando: “Carneee, quero carne, carneee”. Acho que deve ter sido uma das primeiras palavras que eu aprendi. Então se eu pudesse falar de um cheiro, de uma situação, de um evento, é churrasco. Assim, eu acho que meus pais faziam um churrasco, mas, como eu disse, era bem precário a nossa estrutura. Meu pai e minha mãe sempre foram pessoas muito humildes, muito humildes, muito simples. Eu não tinha dinheiro pra comprar material escolar. Meu pai morou na rua um tempo. Passaram muita necessidade, muita necessidade. E aí quando meu pai conseguiu um emprego, ele sempre guardou dinheiro. Acho que ele tinha um medo que eu passasse aquilo que ele passou. Então mesmo que ele tivesse algum dinheiro, ele, assim… a gente não investia em roupas, não investia em... a única coisa que ele comprou foi um terreno em Taboão da Serra, que era a segunda paixão dele. Aliás, eu não sei hierarquizar as paixões dele, mas era uma das paixões dele. Ele… a gente ia lá, tal, plantar lá. Tinha um pé de manga, tinha um pé de jaca, tinha várias coisas lá. Ficava brincando na terra e eu tinha, recebia… eu usava roupa doada, assim. Sei lá, às vezes, a gente não precisava 100% dessas roupas doadas, meu pai tinha um emprego, mas a gente era pessoas simples, então porque não usar uma roupa que alguém já usou? E, às vezes, eu ficava brincando na terra e meu pai e minha mãe trabalhando lá na terra. Então, às vezes a gente andava meio sujo, meio rasgado. E era lá em Taboão que a gente fazia esses churrascos, assim. E fazia, sei lá, no bloco, né? Pegava uns quatro blocos, botava o carvão no meio e uma grelha. Não sei se era uma grelha, talvez seja uma grade, (risos) em cima dos blocos. Mas era engraçado, porque a gente não fazia questão de se vestir tão bem. A gente sempre andava com roupa de trabalho e eu rolava na terra, com a meia rasgada. De tal forma que os vizinhos acharam que a gente estava ocupando, invadindo, que não é um bom termo, que a gente era do MTST, estava invadindo aquele terreno, aquelas pessoas maltrapilhas fazendo churrasco no bloco e na grade e andando com aquelas roupas esquisitas. Mas as pessoas perceberam que a gente não era, (risos) não estávamos ocupando aquele espaço. E a gente ficava lá, no final de semana, fazendo churrasco, colocando… é, assim, tanto carne, quanto outros vegetais. Então se você me pergunta, se alguém me pergunta sobre cheiros, sobre comidas, eu pensaria nesse churrasco que a gente fazia em Taboão da Serra, ali, no meio das plantas que a gente plantava.


P/1 — E quais eram as brincadeiras favoritas dessa época?


R — Hum, brincadeiras favoritas dessa época. Eu gostava de cavar buracos, assim. É estranho, né? Acho que as pessoas não costumam dizer que elas gostam de cavar buracos, mas eu cavava buracos. Eu tinha (risos) uns carrinhos, caminhõezinhos. Eu tirava terra de um lugar, colocava no caminhão, levava pra outro lugar, tal. E eu me lembrei porque eu cavei um buraco bem grande, que cabia uma pessoa dentro do buraco. E aí meu pai comprou pó de serra pra fazer alguma outra coisa, não sei. E aí eu enchi o buraco de água e aí eu botei pó de serra de tal forma que não dava pra saber que era um buraco. Parecia que era uma continuação, assim, do solo. E eu falei: “É uma armadilha que eu acabei de fazer, alguém pode passar e cair num buraco cheio de barro”. Mas eu não fiz por mal e ninguém caiu no buraco, aí eu fiquei brincando de me jogar dentro dele. Eu e minha amiga. Tinha uma amiga chamada Samanta e aí ela ia bastante comigo, finais de semana, tal. E a gente ficava cavando buracos, fazendo essas coisas e a gente ficava, sei lá, brincando na lama. Eu me lembro que nesse terreno que a gente ia, que a gente plantava as coisas, tinha meio que um morro, era do tamanho de um carro, mais ou menos, o morro. E aí eu comecei a cavar um buraco no meio do morro, assim, tipo um túnel. E aí eu fui cavando com, sei lá, tinha uma pazinha de plástico, alguma coisa assim. E aí eu fui cavando, todo final de semana eu cavava um pouco, tirava terra de lá e levava pra outro lugar. E aí eu cavei muito. Acho que foram anos cavando esse morro e aí eu fiz um túnel que cabiam umas pessoas dentro do morro. Entrei de um lado e saí do outro. E era bem legal brincar lá dentro. Não sei, achava que era uma casa que eu tinha feito dentro do… e era, de fato, dava pra ficar lá, mais de uma pessoa, dentro do morro, no buraco que eu cavei. Mas aí meu pai começou a ficar com medo, eu acho. Os vizinhos começaram a dizer: “Nossa, esse morro vai cair em cima da criança e vai machucar e, se você não estiver perto, pode acontecer até algo pior, né?” E aí meu pai acabou tirando o morro do lugar, pegou e derrubou a minha obra. (risos) Mas eu ficava fazendo isso. Se eu falar de brincadeiras, eu até tinha um videogame, mas ele era meio velho, era um master system 3. Ele era daquelas fitas de assoprar, tal. Então acho que, na maior parte do tempo, eu estava brincando na terra e em outra parte do tempo eu poderia estar jogando videogame. Mas o meu videogame não funcionava muito bem. Eu tinha uma superstição, que a fita não funcionava, acho que eu passava muito mais tempo tentando fazer funcionar do que jogando de fato. Então era acho que 45 minutos jogando… aliás, 45 minutos tentando fazer o negócio funcionar e quinze minutos jogando. E aí tinha que ficar soprando a fita e eu passava cotonete com álcool e eu fazia todo um… como que eu posso dizer? Ele tinha todo um procedimento. Mas aí eu achava que, se eu botasse a fita no videogame e eu me escondesse atrás do sofá e o videogame não soubesse que eu estava ali, ele ia funcionar. Então eu sempre fazia isso e funcionava. Eu queria enganar o videogame. Falava: “Meu, esse videogame não funciona quando eu quero. Então vou fingir que eu vou botar a fita aqui e eu vou me esconder e aí ele vai falar: ‘Nossa, ele não quer mais jogar, então vou funcionar’”. E aí funcionava, então, acho que é isso a minha vida quando eu era criança. E eu tô falando de infância, oito anos. Depois as coisas foram mudando, né?


P/1 — Mas tinha alguma coisa que você mais gostava de fazer?


R — Hummmm… coisa que eu mais gostava de fazer. Poxa, eu… isso é uma coisa bem maluca. Aliás, não é tão maluca, acho que é uma coisa normal. Não sei se normal, é normal? Não sei se é essa palavra também, mas é uma coisa que acontece com as pessoas, né? Eu sempre gostei de carro, que eu vejo muitas pessoas trans falando: “Ai, me descobri trans, ou me descobri mulher trans porque eu gostava de brincar de boneca”. Eu não acho que isso significa nada, porque eu sempre gostei de carrinhos, tal. Eu tinha vários carrinhos e esses carrinhos que eu carregava terra e fazia essas coisas, mas também uns carrinhos, tipo Hot Wheels, assim. Então se eu falar… se eu for falar sobre o que eu mais gostava de brincar, eu diria que meus carrinhos.


P/1 — E nessa época você pensava o que você queria ser quando crescer, no que você queria trabalhar? Era algo que fazia parte dos pensamentos?


R — Quando eu era criança meu sonho era ser motorista de ônibus. Eu achava o máximo, falava: “Nossa, olha o tamanho desse carro, tem uma pessoa que o dirige, deve ser uma baita de uma experiência bacana”. Eu queria ou ser motorista de ônibus, ou motorista de trator (risos). Eu não sei porque, eu acho que pelo fato... eu gostava dessas máquinas, essas coisas, assim. Meu pai dizia: “Não, eu vou te levar ali na obra, pra você entrar no trator, pra você ver como é e tal”. Ele acabou não me levando, nunca pra… eu não sei, acho que o cara do trator não ia ter muita paciência de me explicar lá as coisas que o trator e… ou talvez sim, né, talvez ele achasse legal alguém admirando a profissão dele. Mas eu achava que ia ser assim. Eu não entendia muito bem as dinâmicas do mundo. Então, pra mim, eu acho que essa era a profissão mais… acho que isso também demonstra que eu era uma pessoa simples, né? Eu acho que eu não queria muito, queria aquilo que me fazia feliz, sem me preocupar com outras coisas.


P/1 — E qual é sua primeira lembrança da escola?


R — Poxa, eu me lembro que, a primeira escola que eu estudei foi uma escolinha chamada Hello Baby. E aí eu tinha uma amiguinha lá, que eu não sei o nome dela. Mas eu tinha uma amiguinha e era tão amiguinha que eu fui na casa dela uma vez e eu era uma pessoa tão pequena, tão pequena, que eu me lembro que eu estava lá na casa dela e os pais dela chegaram. E aí eles chegaram pra dar oi, pra gente, mas eu não conseguia ver o rosto deles, era muito alto. Então eu me lembro só da perna deles, assim. Não sei se quem está me ouvindo agora já assistiu um desenho chamado A Vaca e o Frango, que mostrava só o… é que o desenho, os personagens principais do desenho eram uma vaca e um frango. Eu acho que quem desenhou o desenho não conseguiu conceber o pai de uma vaca e de um frango, então fizeram só os pés, né? Então, a sensação ali que eu tive, com essa minha amiguinha da escola, foi essa. Quando eu olhei pros pais dela, eu falei: “Nossa, eles são tipo... só vejo os pés deles”. E essa foi a primeira escolinha, eu tenho pouquíssimas lembranças, acho que essa é uma delas. Depois eu fui pro prezinho, pra uma escola chamada Professor Antônio Branco Lefevre. Ficava aqui em Pinheiros também, São Paulo/SP. E foi lá que eu fiz o meu primeiro desenho, desenho de um carro. Teve uma… um dia que as crianças foram chamadas pra pintar o muro da escola, cada um fazer seu desenho. E acho que o primeiro desenho que eu lembro que eu fiz foi nesse muro, que deve estar lá, embaixo de umas quatro, cinco camadas de tinta. Não sei, se algum dia eu me tornar uma pessoa muito importante, talvez alguém possa ir lá cavar meu primeiro desenho. Talvez seja um documento histórico importante, se algum dia eu me tornar alguém, de fato, importante. Mas aí, nessa escola, eu me lembro que tinha uma professora chamada Cristina, que ela era meio... como que eu posso dizer? Não sei se isso é meio de Hobbes, Locke, estado de natureza, assim… que ela tinha uma coisa de: “Ah, fulano te bateu, você tem que bater nele também!” (risos) E ela meio que ensinava isso pra gente. Falava: “Olha, fulano te deu um soco na barriga, chama o fulano aqui. Ó, o fulano está aqui, dá um soco na barriga dele também”. E eu não sei, é um pouco questionável (risos) essa educação. Mas eu me lembro que eu tinha uma professora no prezinho, que tinha essa abordagem. E tinha um colega lá de sala, que se chamava Danilo e ele era muito importante. Eu não sei porque ele era importante entre nós, crianças. Eu acho que alguém disse alguma vez que ele era e as pessoas começarem a repetir isso. Tipo bitcoin, sabe? Alguém falou: “Ah, vale muito dinheiro”. E aí as pessoas começaram a repetir, cada vez começou a valer mais e agora vale trezentos mil reais um bitcoin. Então eu acho que era meio que essa lógica assim, por trás da fama do Danilo. Eu lembro dos meus colegas falando: “Nossa, Danilo é muito amigo meu”. Aí as pessoas falavam: “Não, ele é mais amigo meu do que seu”. Aí outra pessoa falava: “Não, ele é tão amigo meu, tão amigo meu, que as minhas canetinhas estão organizadas da mesma forma que as canetinhas do Danilo”. Aí ficava todo mundo: “Caramba, então você é bem amigo mesmo do Danilo!” E eu me lembro que a gente estava brincando de pega-pega um dia e aí eu não sei o que eu fiz que eu trombei com o Danilo, o Danilo caiu e se machucou. E aí foi um fato importante, ali naquela nossa comunidade do prezinho. Assim, eu machuquei o Danilo, sabe? Foi algo difícil ali, aquela situação, mas o Danilo me perdoou. Mas aí, ok, tinha… eu ainda me lembro dessa… desse personagem. Tinha um menino chamado Otávio. Era um menino preto, retinto, que ele era, eu não sei se dá pra medir isso, hierarquizar isso, mas talvez um dos mais inteligentes da sala. Ele foi o primeiro a aprender a ler. E ficava todo mundo: “Caramba, ele sabe ler!” Tipo, muito conhecimento, assim. A gente ficava: “Caramba, ele pega o livro, ele entende tudo o que está ali”. E ele lia e a professora falava: “Otávio, lê pra gente isso que está escrito aqui!” E ele lia devagar, gaguejando e a gente ficava: “Caramba!” É o grande poder pra alguém, essa capacidade de leitura. Eu me lembro que nessa época eu suei um pouco, eu aprendi três palavras. Eu aprendi “caio”, “maca” e “cama” (risos). Mas aí eu, enfim, terminei o prezinho e entrei na primeira série. E quando entrei na primeira série, eu me lembro que eu comecei… eu já estava começando a aprender escrever, ler. E aí a professora passou umas coisas na lousa e ela pediu pra copiar. Eu fui para uma escola chamada Escola Estadual Rodrigues Alves. E quando eu comecei a copiar as coisas que a professora passou, tal, na lousa, eu estava na metade, ela foi e apagou. Quando você termina a lousa, você apaga e escreve de novo outra coisa. E ela apagou e eu não tinha terminado de escrever e eu falei: “Meu Deus, a primeira série é uma graduação acadêmica muito alta, porque é muito difícil. Caramba, no prezinho as coisas eram fáceis, agora, na primeira série, eu não consigo nem copiar o que está escrito na lousa. Será que eu vou conseguir acompanhar essa, não sei, complexidade acadêmica aqui?” Então, foi um choque pra mim a primeira série, porque era difícil. Mas eu me lembro até… eu tô me lembrando de momentos bons, até meio engraçado quando a gente lembra. Mas uma última memória, se eu pudesse mencionar, que eu me lembro que na primeira série, a gente dividia as coisas em letras, tipo, a gente começava a aprender coisas com a, depois coisas com b e aí eu estava em alguma letra mais avançada, assim: l, n. E um dia eu fui na casa da minha prima e minha prima era um pouco mais velha, devia ter, sei lá, uns três ou quatro anos a mais, de idade. E eu cheguei nela pra colocar uma banca de: “Meu, que letra você está? Meu, eu vou falar uma letra aqui, que eu acho que eu tô mais avançado que ela, assim”. E aí ela falou: “Como assim que letra que eu tô?” Eu falei: “Meu, você não está estudando? É dividido por letras, quanto mais letras você tem, mais inteligente você está ficando, assim”. E ela falou: “Meu, eu já passei dessa série, eu tô” - sei lá - “na terceira série” - alguma coisa assim - “não tem mais letras”. Eu falei: “Como assim não tem mais letras? Depois das letras, o que a gente precisa aprender?” Ela falou: “Outras coisas, tal”. E essas são algumas lembranças que eu tenho da escola, de, não sei… momentos de dificuldade, momentos de surpresa, porque eu achava que as coisas iam seguir de um jeito durante toda a minha vida acadêmica ali, mas não, a gente se surpreende.


P/1 — Como seguiu a sua formação? Você ficou nesse colégio até o final, ou você mudou mais uma vez?


R — Humm… pensando em formação, pensando nas escolas que eu frequentei, eu fiquei no Rodrigues Alves da primeira série, até a oitava série. Agora eu acho que deve ter mudado essa nomenclatura. Não sei se quem assistir esse conteúdo também, em outro tempo, se isso vai ser diferente. Mas eu estudei da primeira à oitava e eu me lembro que a quinta era o ginásio, né? Então, pra mim, a quinta série era o… são pessoas muito velhas, maduras e responsáveis. Eu me lembro que quando eu estava na segunda série, eu estava fazendo alguma coisa na frente da escola. Tinha um jardim, eu estava brincando. E aí veio uma menina, me chamar a atenção. Ela falou: “Ó, esse lugar aqui, eu tô fazendo um negócio aqui, você está me atrapalhando”. E aí eu falei: “Meu, mas como assim?” Ela falou: “É melhor você ir embora, porque eu sou da terceira série”. E eu me assustei, falei: “Caramba, ela é da terceira série, eu sou da segunda série!” Ela é uma pessoa, tem um poder, uma coisa com a qual eu não posso lidar. Eu, de fato, baixei a cabeça pra ela. Então eu tinha esse respeito, eu acho, segunda série pela terceira série. Mas aí tinha quinta série, que era o ginásio, era um… as pessoas sempre falavam: “Nossa, o ginásio!” E aí eu me lembro que da primeira série, até a quinta série, eu era uma pessoa bem estudiosa, sabe? Eu acho que desde o prezinho, principalmente a primeira, segunda série, eu queria ser, talvez fosse a primeira pessoa da sala. As minhas professoras sempre falavam: “Nossa, olha só”. Ficava falando de mim, umas pras outras, assim: “Nossa, tem uma pessoa aqui, uma criança aqui absurdamente boa nas coisas”. E eu tinha muito orgulho disso. E eu fazia... como que eu posso dizer? Porque a professora pedia lição de casa, ela falava: “Ah, recorte da revista três palavras com r”. E aí eu ia e recortava trinta. A professora falava: “Escreva duas frases…”, eu fazia tipo quinze. E eu fazia as coisas bem, eu escrevia bem. Tinha um menino lá, que era bem inteligente também, era o Francisco, Francisco…. eu não sei, acho que isso demonstra que eu sempre fui uma pessoa, talvez, bastante competitiva. E eu meio que competia com o Francisco. Eu tentava ser melhor, eu falava: “Nossa, o Francisco está sendo melhor”. E a gente ficava nessa coisa, assim. Isso até a quinta série, mas aí depois da quinta série eu não sei o que aconteceu, que eu desencanei. Eu ainda continuava uma pessoa um pouco nerd, mas eu não era aquela pessoa nerd brilhante. Eu não era do fundão, era da frente, mas eu não tirava as melhores notas, não fazia muita questão das coisas. Que antes eu passava mal, assim: “Caramba, não vou fazer a lição de casa, tenho que fazer, a professora vai ficar triste comigo, assim”. Mas aí depois da quinta série, eu meio que dei uma desencanada e, assim, eu estudei até a oitava série no Rodrigues Alves. E aí tinha alguns caminhos possíveis, depois da oitava série. Tinha alguns caminhos possíveis. Eu podia… algumas pessoas tentavam bolsa de estudo numa escola chamada São Luís, Colégio São Luís. Era um colégio bom, particular, tal. Pessoas tem… ganhavam bolsa lá. Era um caminho, mas meus pais tinham um pouco de pé atrás, falavam: “Meu, não sei, talvez você não se sinta bem no meio de uma galera que não é da sua classe social. Talvez essas pessoas não te tratem bem”. E aí tinha uma outra escola que era conhecida por ser meio violenta, de ter uma galera mais valentona, assim. Que a maior parte do Rodrigues Alves foi pra lá, mas aí eu fiz um vestibular numa escola técnica e eu passei. Eu passei bem colocada, eu passei acho que em oitavo lugar, alguma coisa assim. Aí eu fui estudar lá. Mas, nessa época, eu usava o Orkut, eu comecei a usar o Orkut em 2007, comecei a usar o Orkut em 2006, 2007. Eu demorei um pouco pra usar, porque todo mundo falava: “Ai, eu consegui um convite”. Que tinha essa coisa de precisar ter um convite, né? E aí eu consegui um convite do Orkut. Não sei, acho que quando eu entrei, acho que nem precisava de convite. Eu criei uma conta lá no Orkut, tal. E isso acontece comigo, eu sempre sou meio a última a chegar. Mas eu acabo, não sei, me destacando. E quando eu falo em me destacar, pode até parecer, não sei, presunçoso da minha parte. Mas isso tem relação com a minha escola, sabe? Porque por isso que eu tô levantando essa coisa do Orkut porque, assim, no Orkut eu comecei a fazer um “hard use”, um uso mais… um uso… eu comecei a aprender muita coisa no Orkut. Eu acho que o Orkut foi muito importante na minha vida, porque eu comecei a entrar numas comunidades de programação, de tecnologia e aí eu aprendi um pouco de Javascript e aprendi um pouco de HTML e eu comecei a aprender a usar alguns… como que eu posso dizer? Assim, no Orkut existe um tipo de falha explorável, chamada de xss, que é um… não é um acrônimo, mas "XSS" significa “Cross-site scripting”. E esse tipo de falha permite com que uma pessoa injete um código dentro de uma página ali, do site, de tal forma que esse código seja executado sem… não digo consentimento, mas ele seja executado automaticamente, pelo simples fato de alguém entrar numa página e um hacker, não sei, alguém que tenha um conhecimento técnico mais aprofundado, se injetou esse código nessa página, ele roda um código que pode fazer ações automatizadas no seu computador e eu aprendi isso. Eu me lembro que eu fiz várias coisas grandes, ali no Orkut. Eu me lembro, eu não sei… quem tá assistindo esse vídeo provavelmente não deve se lembrar disso, isso é uma coisa que acho que vai sumir no meio da história, né? Mas no Orkut não tinha essa coisa de mandar recados em massa, comunicação em massa pras pessoas. Mas aí eu fui uma das pessoas que começou, no Brasil, com um negócio chamado “recados pra todos os amigos”, que você copiava um código, colava no seu navegador, aí ele abria uma interface, aí você selecionava toda sua lista de amigos e colocava lá: “Quero mandar esse recado, sei lá, mandar uma corrente”. Foi aí que deve ter surgido essas correntes, esses gifs de boa tarde, sabe quando todo mundo manda nos grupos? Acho que eu que ajudei (risos) a começar com esse negócio. Isso existia no e-mail também, mas no Orkut eu comecei com esse código e ele tinha um efeito viral, assim. Toda vez que alguém mandava, vinha no rodapé do recado: “Esse recado foi enviado com o código tal, que você vai aprender na comunidade tal”. Essas pessoas entravam na minha comunidade. E foi um negócio tão forte, assim, tão… de tão longo alcance, que eu consegui “upar” esse código em um servidor que eu criei. Era um servidor gratuito, eu não tinha um puto no bolso, cinco reais, dez reais, pra pagar um servidor. Mas eu comecei, aí eu fiz o código, coloquei no meu servidor. E aí a galera entrava na minha comunidade e, assim, em duas semanas a minha comunidade foi de zero a quatrocentos mil membros. E hoje as pessoas são influencer com quatrocentos mil seguidores, hoje, em 2021. Porém, em 2007, pra você juntar quatrocentas mil, meio milhão de pessoas contigo, era mais difícil. E eu fiz isso em duas semanas. E aí eu comecei a ser uma pessoa reconhecida na internet. Não existia esses nomes, né? Não existia, a gente não usava o termo “meme”, a gente não usava o termo “influencer”, não tinha essa coisa de público. Mas aí eu criei essa comunidade, aí a comunidade levava o meu nome. Porque, assim, essa é uma coisa que eu não digo com muita frequência, mas meu nome de registro é Diego. E no Orkut a gente tinha uma forma diferente de escrever as coisas, tinha uma outra grafia, tinha uma outra coisa. A gente botava “h” no final das coisas, pra simbolizar “ó”, pra simbolizar… então, era “Dgoh”, né, vem de Diego, Dgoh. Era tipo “Dgoh Codes”, que era tipo “Códigos do Diego”. A comunidade era “Códigos do Diego”. E tinha… chegou a quatrocentos mil, mas depois subiu mais, chegou a… tinha 487, nunca bateu um milhão, acho. Chegou a 487 e aí a gente fazia várias coisas interessantes. Criava códigos, criava coisas. Eu me lembro de uma falha explorável no Scrapbook. Ela permitiu com que eu colocasse um código no Scrapbook dos meus amigos da escola. Por que eu tô falando disso? Porque eu estava falando da escola. Eu coloquei um código no meu Scrapbook que, quando alguém entrava, ele replicava pro Scrapbook das outras pessoas que entrassem e eu teria, em teoria, acesso ao login de todo mundo ali. Então eu criei esse código quando eu estava no último ano, estava na oitava série, eu criei esse código, aí eu consegui acesso do perfil de todo mundo da escola, do Orkut. E não só daquela escola, de todas as escolas no entorno. Eu acho que eu devo ter conseguido acesso a, sei lá, trinta mil perfis, assim. Não sei, foi algo grande, todas as escolas, todas as coisas, todo mundo que usava, assim, foi quase que um worm, assim. Que tem um termo técnico pra esse tipo de código, né? Que ele foi se replicando sozinho. E aí eu tive acesso a esses perfis. E aí isso me fez ficar com medo de ir na formatura da escola, da oitava série, porque o pessoal, eu não sei quem sabia que eu tinha feito. É que eu não fiz mal pras pessoas, com isso, eu estava só testando, aprendendo. Mas eu fiquei com medo mesmo assim, falei: “Meu, a galera vai achar ruim que eu entrei no perfil delas”. E eu não fui pra formatura, mas eu terminei a oitava série, acho que nessa pegada. Eu estava meio nessa coisa do online, do digital, me achando hacker, assim. Com um pouco de medo, [de] como as pessoas encarariam isso e eu cheguei assim no ensino médio.


P/1 — E como foi essa etapa do ensino médio e começar a pensar no vestibular? Uma formação fora da escola. Sair da escola, meio um desamparo, como foi essa época?


R — Bom, quando eu entrei no primeiro ano do ensino médio, acho que eu estava me sentindo uma pessoa coberta pra essa áurea, assim, de… não hacker, não acho que é um termo adequado, mas eu achava que eu falava: “Nossa, eu sou alguém, ali, reconhecida no meio digital”. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que isso foi muito importante pra minha vida. Eu acho que aprendi muita coisa com essa minha atuação digital, mas, ao mesmo tempo, acho que me prejudicou, pensando em socialização, sabe? Que eu ficava muito tempo na internet, acho que eu deixava de sair com amigos, com as pessoas ali da escola, que deveria ter interagido mais, acho que é importante ter esse balanço. Então, assim, acho que isso colaborou um pouquinho, acho que para uma pegada nerd que eu desenvolvi. Não que nerd seja uma coisa ruim, também. Mas acho que isso fez com que eu fosse a pessoa nerd da escola, que manja dos computadores. E foi assim que eu fui tocando o ensino médio, mas eu fui tocando e eu continuei numa pegada de não ser uma pessoa estudante. Ainda não tinha passado pela minha transição de gênero, nem sonhava com isso. Aliás, eu já sabia que eu me atraía bastante pelo universo feminino, eu queria, de alguma forma, mas não parecia possível passar por uma transição: “Como assim, alguém… é possível trocar, assim?” Eu não sabia que era possível passar por uma transição. Mas aí eu segui essa coisa mais nerd, numa pegada mais digital. E aí, na minha escola, eu fazia uma escola técnica, então eu podia fazer o ensino médio e escolher um curso técnico e eu fiz um curso de informática pela internet. Ficava na extensão da Escola Técnica Guaracy Silveira. Então eu estudava de manhã e ia à tarde pra lá. E eu continuava com a minha comunidade online, que era muito reconhecida. Eu comecei a criar… eu tinha outras comunidades também, sob minha administração. Uma comunidade chamada “Pérolas do Orkut”. Talvez, quem esteja assistindo esse vídeo, tenha ouvido falar, tenha vivido isso, tenha estado na “Pérolas do Orkut”. Mas eu tinha umas franquias de sucesso na internet. As pessoas frequentavam com… eram bem movimentadas. E aí eu comecei até com uma coisa de gestão de times, porque na… eu criei um domínio que era “dgoh.org” e eu criei uma… meio que um projeto, que era “dev.dgoh.org”, tipo “developers”, desenvolvedores, assim. Então, na comunidade, a gente tinha uma coisa de pesquisa e desenvolvimento, que era bem à frente do seu tempo. Eu chamei uma galera pra ser moderadora e está comigo lá nesse rolê que, meu, a gente era tudo criança, tinha treze anos, tal. Mas era uma galera muito foda, muito foda mesmo! Que eu não sei como eles não estão bilionários. Por exemplo, tinha um cara, um moleque chamado Joseph, que a história dele é incrível. Meu, o Joseph, o pai dele morreu atropelado por um ônibus e aí a empresa de ônibus deu uma indenização, mil reais, alguma coisa assim, que foi o dinheiro que ele comprou um notebook. E aí o Joseph começou a programar, com doze anos, treze anos, fazendo umas coisas sensacionais, assim. A gente começou a desenvolver essas coisas lá na DC, que era Dgoh Codes, DC, Códigos do Diego. E aí o Joseph começou a desenvolver e aí eu não quero nem pegar o crédito dele, né? Isso foi ele que desenvolveu bots, coisas automatizadas, por exemplo, você… tinha um robô que entrava nos tópicos da comunidade e ele postava, de tempos em tempos, era DC bot. Ele fazia publicações automáticas nos tópicos, para os tópicos ficarem em cima, no fórum. Tinha uma automatização que os moderadores faziam, sei lá, apagavam um tópico, aí abria uma caixa de diálogo, aí tinha que colocar o motivo da exclusão, tal, aí isso publicava automaticamente num blog, num livro de registro, quem que era a pessoa, autor do tópico, porque que foi excluído, quando foi excluído, quem foi o exclusor. Tinha uma coisa que o Joseph desenvolveu que, você queria acompanhar um tópico lá da nossa comunidade: “Tem um tópico falando sobre museus, quero receber atualizações disso”. Joseph desenvolveu um mecanismo que permitia que você assinasse isso e recebesse atualizações do tópico no seu celular, via sms. Então, o nosso sistema, da nossa comunidade, te avisava de novas respostas, falava: “Ó, você recebeu uma atualização na comunidade DC, tal, tal, fulano escreveu tal”. Não existia nada disso assim, não existia nem celular direito, não existia nada, não existia notificações assim, igual tem no Android, igual tem no IOS. E a gente tinha essas coisas assim, a gente tinha automatizações pras tarefas, a gente tinha sistemas bem avançados, que grandes empresas foram implementar depois. Inclusive há referências sobre essas nossas ferramentas que eram criadas. Se, quem estiver assistindo agora - isso foi feito em 2007 - colocar no YouTube “Dgoh Codes”, é “d”, “g”, “o”, “h”, “c”, “o”, “d”, “e”, “s”. Acho que isso não vai ficar pra sempre. Eu acompanho isso, eu vejo que a cada ano que passa as referências vão diminuindo. Mas há tutoriais de pessoas no YouTube ensinando a mexer nas nossas ferramentas, nas nossas coisas. E aí eu comecei a fazer - voltando, né, depois dessa digressão, assim, à coisa do meu momento na escola, quando eu estava no ensino médio - esse técnico de informática pela internet. Eu mandava super bem, eu fazia também sistemas. Os meus professores falavam: “Meu, se foi você mesmo...” - eu era uma pessoa lida no masculino, né? Ou era lida como uma pessoa, um homem - “... que fez isso, cara, isso é um baita de um case, você... isso é algo que as empresas não têm esse sistema que você criou. E isso fez com que eu acreditasse que fosse seguir nessa carreira. Não sei, seguir no digital, eu tinha uma expressão no online. Mas aí o Orkut começou a falir, (risos) começou a decair. Aí eu vendi as minhas comunidades lá, tinha algumas franquias, consegui vender. E aí eu falei: “Meu, vou parar com isso, eu vou seguir outra vida”. Eu estava gastando muito tempo no computador. Falei: “Meu, acho que eu não quero ser essa pessoa que passa a vida toda no computador”. Aí eu comecei a investir mais no social, fazer mais amigos. E foi assim que eu terminei o ensino médio, acho que querendo ser alguém mais popular ali, na Escola Técnica Guaracy Silveira. Mas foi bem no momento que meu pai morreu, também. Foi bem foda, assim. Meu pai não se cuidava bem, tinha uns problemas do coração, ele morreu e isso fez com que eu ficasse, me perdesse um pouco: “Meu, o que eu vou fazer agora, da vida?” E bem num momento decisivo, né? Tipo faculdade. E aí alguns amigos me ajudaram, alguns amigos… um amigo específico falou: “Meu, vamos fazer um cursinho popular”, que eu tô fazendo, fica na Rua da Consolação. Não sei se existe hoje ainda, chamava cursinho… era ACEPUSP, era Associação de Estudantes, da USP. Cursinho até pouco tempo atrás tinha até uma foice e um martelo pintada na… em cima da porta, assim. Era bem de esquerda. E eu comecei a estudar lá e foi muito importante pra… acho que foi fundamental pra ser quem eu sou. Acho que várias… meu, tudo isso que eu tô contando agora foi fundamental pra que eu seja essa Gabriela que está aqui na frente dessa câmera agora. Mas eu comecei a estudar nesse cursinho, cursinho super de esquerda, assim. E as pessoas começaram me contar, professores, porque o mundo é dessa forma, as desigualdades, as justificativas pras coisas. E nesse cursinho, eu botei na minha cabeça que eu queria estudar Direito. Falei: “Meu, eu quero estudar Direito”. Eu não sei de onde isso veio, mas eu falei: “Eu quero estudar Direito”. E eu não estudava tanto no cursinho, sabe? Eu não estudava tanto no cursinho (risos). Eu ia lá… eu gostava da aula de História, só. Tinha um professor, que ele... eu não lembro o nome dele, chamava ele de Tim, porque ele parecia o Tim Maia. Mas ele dava uma aula de História incrível e eu falei: “Meu, bacana! Eu quero só estudar História aqui no cursinho e aí eu nem me ligava muito na… acho que eu ia mais pra namorar no cursinho. Eu fiquei com algumas moças lá, foi bem bacana. Foi um momento bem mágico da minha vida. A gente saía do cursinho na Rua da Consolação - eu fiquei com uma moça chamada Mari - e ia pro MASP, no vão lá, sentava e ficava lá à tarde, namorando. Era um momento que eu não me preocupava com nada e as pessoas eram felizes, bastante felizes naquela época, que eu tô falando de 2011 aqui. 2011 era uma época que tinha emprego, tinha... o dólar custava pouco, as pessoas eram felizes. É que isso é bem subjetivo, eu digo: “Ah, as pessoas eram felizes”, né? Mas, meu, o mundo só piorou depois - pelo menos o Brasil - de 2011, em termos mais gerais. Porque, poxa, a gente tinha, naquela época, meu, uma consciência de: “Pô, eu vou sair daqui do cursinho, vou entrar numa faculdade”, tinha Prouni. Então as coisas eram mais simples, o Fies parecia uma boa ideia também. A taxa de desemprego era baixa, não tinha isso de: “Ah, eu vou me formar e não vou conseguir um emprego”. Não, todo mundo tinha um futuro, todo mundo tinha chance de ser feliz. E foi um momento, acho que um dos melhores momentos da minha vida. Eu também não tinha tanta preocupação: emprego, ah, cuidar dos negócios, da casa, do... e eu fiquei bastante tempo com essa moça, com a Mari. Eu prestei vestibular pra PUC pela primeira vez e não passei. Foi no meio do ano, enquanto eu estava no cursinho, então não foi um grande problema. Mas aí eu me lembro que eu entrei na - aí eu passei no final do ano, fiz um vestibular - em Direito na PUC de São Paulo. Eu passei em Direito na PUC de São Paulo. Ainda estava namorando com a Mari, Mariana Barbosa e foi um choque pra mim entrar no curso de Direito da PUC, porque as pessoas que estavam lá eram de uma classe social muito diferente da minha. Eu falei: “Wow, a galera está falando da viagem deles pra Austrália, pra Amsterdã e eu não tenho essas referências”. Tipo, eu ia comer no McDonald’s, eu ia viajar pra Santos, eu não sei o que falar, o que dizer. Eu comecei a me sentir mal, assim, acho que isso até despertou uma… isso foi bem maluco, porque meu pai morreu em dois mil e… foi em 2011, ou foi em 2010. Nossa, eu sempre me perco com as datas, mas foi bem na virada ali, do ensino médio pro cursinho, tá? Então, eu fiz o cursinho, eu fiquei triste, mas isso não me destruiu, eu continuei, porque o cursinho foi legal, me empolgou, me entreteve, tive amores ali ou o mundo também era… tinha um otimismo, assim. A gente era pulverizado por esse otimismo, aqui no Brasil, em 2011. Mas em 2012 eu entrei na faculdade de Direito da PUC de São Paulo e eu me deparei com essa outra classe social, foi um negócio, um baque. Falei: “Caralho, não sou, eu não sei, tem hierarquias muito fortes da sociedade, eu tô lá embaixo, né?” E aí a moça com quem eu namorava terminou comigo também e eu não sei, isso despertou até uma depressãozinha, foi meio maluco. Mas aí eu fui seguindo no curso e eu comecei a… eu falei: “Meu, eu vou resgatar esse meu lado digital, assim”. Eu fiz, fui fazer uma iniciação científica sobre comércio eletrônico. Uma professora lá, de Direito Comercial, gostava de mim, falou: “Por que você não pesquisa essa coisa comigo? De comércio eletrônico, pesquisa alguma coisa de digital, já que você entende de digital”. E aí eu comecei a… o que eu fiz? Eu fui fazer uns cursos. E aí eu fui num evento, uma vez, num escritório de advocacia especializado em direito digital, chamado Opice Blum, acho que é um dos mais famosos, ainda hoje. E aí tinha um evento lá chamado “Privacy of trowers” e aí eu fui lá, eu já tinha desenvolvido uma habilidade social boa, de fazer um network e comecei a conversar com as pessoas. Fiz amizade, adicionei uma galera no Facebook, aí depois eu fui fuçar no Facebook dessas pessoas. Eu vi que algumas delas estavam num grupo chamado “Governança da Internet”. E aí entrei nesse grupo, falei: “Meu, o que é isso, governança da internet? Interessante”. E aí quando eu entrei no grupo, eu vi que tinha umas postagens do cgi.br, que é Comitê Gestor da Internet no Brasil. Eles estavam com umas inscrições para uns programas voltados pra juventude, pra trazer pessoas jovens pra esse cenário, esse contexto, esse… governança da internet é basicamente o como a gente alinha esses atores que estão nesse ecossistema, que é a Internet. E aí eu comecei a fuçar isso, eu me inscrevi em alguns desses programas e me selecionaram para um programa em 2015 ou em 2014, acho que foi em 2014, ou em 2015 que… em 2015, acho que foi em 2015, 2015 foi organizado o International... aliás, International Governance Forum. IGF é a sigla. Foi organizado em João Pessoa, em 2015. E era um evento muito importante. O mundo inteiro, os grandes da tecnologia da internet vieram pra um lugar, em João Pessoa, pra discutir o futuro. Acho que teve… a Dilma, eu acho que, eu não sei se a ida dela estava cotada, mas ela fez uma participação remota no evento. Não sei se o Mark Zuckerberg estava pra ir pra lá, mas tinha gente tão ou mais importante do que, tipo, "Mark Zuckerbergs”, assim. Por exemplo, um dos caras que estavam lá com a gente, era o Vint Cerf. Vint Cerf é alguém, é uma pessoa que ninguém sabe quem é, Vint Cerf. Mas o Vint Cerf foi o cara que criou o protocolo IP. Tipo, o protocolo IP é a base da internet. Quando a gente abre o nosso Tik Tok, quando abre o nosso Instagram, ou liga o nosso computador, ele tem um número único que se conecta com outro computador, que vai fazer o download das coisas e vai fazer tudo funcionar. E tem um cara que inventou isso, que chama Vint Cerf. Ele é tido como o pai da internet, ele inventou a internet. E ele era uma das pessoas que estavam lá. E outros caras, tipo, ____________, os caras que ligaram os primeiros computadores um no outro, aqui no Brasil e fizeram a internet no Brasil. E a internet é uma coisa muito importante pra vida das pessoas, né? Da metade… não da metade do século passado pra cá, mas do começo desse século, principalmente a minha geração, que é a geração Y, a geração Z já nasceu totalmente conectada. Mas aí eu caí de paraquedas nesse cenário. Estava lá, no meio da galera e foi bem interessante, assim. Por exemplo, a gente estava lá, em uma situação, um momento no stand, o Vint Cerf veio pedir ajudar pra gente, que ele não estava conseguindo ligar o projetor num lugar. E aí a gente ficou zoando isso, assim, de: “Meu, o cara inventou a internet, mas ele não consegue ligar o projetor!”. Projetores são, de fato, difíceis de ligar, né? Mas aí eu acho que a minha trajetória acadêmica, se eu puder, não sei se eu deveria resumir isso, né? Tô divagando um pouco, aqui. Mas eu achei que eu seguiria numa carreira assim, de uma pessoa especialista, eu comecei até a estudar aquilo que se convencionou chamar de “Direito Digital”. Eu achava que ia seguir nessa carreira porque, meu, estava rolando um trabalho legal do Comitê Gestor da Internet no Brasil, mais programas. Eu participei desse, em 2015. Teve um outro, em seguida, também em 2015, Fórum da Internet do Brasil. Fiz participações importantes lá, falas, participei dos workshops, dos eventos, nessa sequência. Então, eu, no meio da minha graduação, acho que eu estava nessa, acompanhando essas movimentações assim, da internet, no Brasil. Mas aí veio a minha transição de gênero. Aí veio, assim, eu comecei a namorar com uma moça e essa moça era uma moça mais mente aberta, uma moça bem inteligente. E foi a primeira pessoa pra quem eu contei da minha transgeneridade. Eu cheguei um dia nela e disse: “Meu, eu acho que eu sou assim”. E eu contei como se fosse um problema, sabe? Mas ela falou: “Meu, não é um problema isso, é da hora, isso é legal!” E eu falei: “Nossa, não é um problema, pode ser legal”. E ela foi uma das primeiras pessoas que me ajudou com isso e começou a abrir um pouco a minha cabeça. Eu ainda estava na faculdade, eu ainda estava nesse contexto, assim, de governança da internet, essas coisas. Mas foi aí que eu comecei a reunir mais forças pra passar por essa transição de gênero. Eu terminei com essa moça, depois comecei a namorar com a minha esposa atual, que é a Simone. A Simone, de fato, me apoiou, assim, falou: “Meu, vamos aí, se monta, vamos explorar essa transgeneridade”. E, nesse momento, eu me lembro que eu… acho que um dos primeiros lugares que eu fui, assim, depois da transição… que eu transformei aos poucos. Ah, é óbvio, né, ninguém é do dia pra noite, mas o que eu quero dizer, aos poucos, eu vou até usar um conceito, que é da galera desenvolvedora do digital, é um conceito de “canary release”. Eu não sei, “lançamento canário”, eu não sei como é a tradução disso, canary release. Que é um termo que vem, parece que a galera usa e, assim, como funciona, canary release? Quando alguém tem uma tecnologia, não sei, uma plataforma grande, um Facebook, e quer lançar uma nova funcionalidade, ela não lança pra toda a base de um bilhão de pessoas, ela lança aos pouquinhos, pra grupos específicos e vai testando e vai entendendo qual é o impacto daquilo, como que as pessoas veem aquela mudança. E acho que eu fiz assim com a minha transgeneridade também, acho que foi meio canary release. E aí o primeiro grupo pra quem eu transicionei foi a galera da governança da internet. Eu fiquei um pouco receosa. É óbvio, né? Medo, não sei, de não aceitação, medo de violência. Mas aí eu fui pra um desses eventos, eu falei: “Meu, eu vou como Gabriela, agora meu nome é Gabriela, vou chegar lá e é isso! Quem não… os incomodados que se mudem”. E aí eu cheguei lá, ficou todo mundo: “Ãhn!” E eu falei: “Meu, é isso, sou essa pessoa que você está vendo”. E foi uma experiência bem interessante, foi a primeira vez… eu peguei um avião e fui pro… eu ganhei uma bolsa pra um evento no Rio de Janeiro, eu fui nesse evento como Gabriela, foi acho que uma das minhas primeiras aparições públicas, assim, não sei se posso falar dessa forma. E foi meio maluco, porque quando eu cheguei no hotel, eu botei minha mala em cima do colchão, eu falei: “Meu, eu tô com fome, eu vou sair pra comprar alguma coisa”. E era Rio de Janeiro, era noite e aí, quando eu estava abrindo a porta, eu pensei: “Meu, eu sou a Gabriela, sou lida como mulher agora e é perigoso andar à noite, pra mulheres”. Eu nunca tinha parado pra pensar nisso. Eu sempre, sei lá, pensava: “Ah, vou sair pra comer, vou lá na rua, vou andar, vou perambular e dane-se!” Mas, nesse dia, sei lá, foi em 2016, não sei, eu cheguei no hotel, fui sair pra comer à noite na rua e, pela primeira vez na vida, eu fiquei com medo, assim. Machismo, transfobia, foi a primeira vez, nesse evento do Rio de Janeiro. Mas aí, isso foi, acho que marcou bastante esse início da transição. Tanto pensando na transição de gênero, mas uma transição que permeou acho que toda a minha vida, pensando até no acadêmico, no profissional. Acho que, quando eu comecei a vivenciar mais na pele esse tipo específico de medo, esse tipo de intolerância, acho que aí que a minha vida começou a ir pra outro caminho.


P/1 —Ô, Gabi, como foi o encontro com a Simone?


R — Meu encontro com a Simone é algo que precisa estar documentado, porque tem a ver com várias coisas, vários Brasis, várias… vários momentos aí, importantes. A gente fala história. Que, assim, eu namorava com uma moça chamada Carolina, Carolina Luvizotto, isso em 2014, época em que tivemos a Copa aqui no Brasil. E foi algo bem único, porque acho que vai demorar um pouco pra termos outra Copa aqui no Brasil. Então, eu me lembro de um dia, que estava eu e a Carol na minha casa, que ficava aqui na Rua Teodoro Sampaio. Morava com a minha mãe no apartamento, estávamos lá, eu não tinha passado pela minha transição de gênero ainda. Estávamos eu e a Carol, eu falei: “Meu, vamos na Vila Madalena, assistir o jogo, porque todo mundo está indo na Vila Madalena assistir o jogo”. E eu não sei, ela estava de bode, ela estava… ela não estava, não sei, ela não estava afim, acho que a gente não estava bem, também. Ela falou: “Ah, vai você”. Eu falei: “Não, eu quero ir com você”. Ela falou: “Não, vai você, melhor você ir, eu fico aqui”. Eu falei: “Meu, eu vou lá e já volto”. Que era perto, assim, da Teodoro, pra Vila Madalena. E alguns amigos estavam lá e eu fui até lá. Fui a pé, inclusive. E, chegando lá, eu me encontrei com alguns amigos. Meu, entre eles tinha algumas pessoas bem tóxicas, masculinidade tóxica, sabe? Mas o problema não era eles, em específico. Um desses amigos estava ficando com uma moça, que era uma moça - meu, dói dizer isso - bem machista, assim. E ela estava falando umas coisas ruins, a gente estava assistindo o jogo e ela estava falando umas coisas do tipo: “Mulher tem que se dar o respeito. Mulher que fica com alguns caras é uma vadia”. Falando coisas bem complicadas, com as quais eu não concordo. E ela estava falando isso de um jeito que… ela falou do lado, a Simone era uma pessoa X, que estava lá perto, assim. A Simone estava do lado e ela ouviu isso, a Simone falou… aí a Simone chegou nessa menina e falou: “Meu, isso que você está falando não é tão da hora assim, talvez você pudesse parar, pra pensar um pouco”. E aí as duas começaram a conversar, tal e aí eu estava do lado, aí eu ouvi isso, eu falei: “Meu, essa Simone é… como que eu posso dizer? A Simone é uma pessoa questionadora, né?” Aí eu fui falar com a Simone também, falei: “Simone…”, aliás, eu não chamei o nome dela, né? Eu cheguei e falei: “Ah, meu, isso que você está falando, concordo com o que você está falando também”. E aí ela… a gente começou a conversar, tal, eu falei que eu não era feminista, eu era… até então, né, que eu era uma pessoa lida como homem, né? Eu falei: “Ah, eu acho que o papel do homem é ser um apoiador do movimento feminista, e não um protagonista, acho que o protagonismo deve ser reservado às mulheres. E aí a gente começou a conversar, tal. Foi bem bacana. Mas eu namorava, né? Minha namorada estava em casa, me esperando. E aí eu não fiquei com a Simone, óbvio. Eu não sei, todo mundo trocou contato, essas coisas, tal. Mas eu voltei pra minha casa, e quando voltei pra minha casa, a Carol estava com as malas feitas, assim. Ela falou: “Meu, tô terminando, não quero mais ver você”, assim. E aí eu falei: “Poxa. Meu, eu quero ficar com você, tal”. E ela: “Não, eu vou embora”. E ela foi embora. Bem no dia que eu conheci a Simone. E aí eu até contei pra Simone, mas a Simone aparentemente não deu muita bola, assim. Eu lembro que eu fui assistir no cinema, na semana seguinte, A Culpa é das Estrelas. Estava passando no cinema, isso. E aí eu fui com uns amigos, tal e aí eu falei com a Simone no WhatsApp. Falei: “Simone, eu tô assistindo A Culpa é das Estrelas, no cinema”. Ela falou: “Ah, legal, depois você me conta, abraço!” E aí eu falei: “Ah, ela não quer nada comigo”. E a Simone parecia muito mais inteligente. Assim, eu estava, não tinha uma graduação ainda e a Simone estava no mestrado. Simone acho que tinha duas graduações. Ela era mais velha. E aí eu falei: “Ah, acho que ela não quer nada comigo”. Mas depois de um ano - eu parei um pouco de conversar com a Simone - eu lembro que eu estava numa festa. Meu, era uma festa, tipo uma formatura... não era uma formatura, era tipo um trote de uma universidade tipo Anhembi-Morumbi. E eu estava no meio de um monte de gente bêbada, falando coisas questionáveis. Eu falei: “Meu, eu queria conhecer alguém legal, eu acho que eu conheço alguém legal, eu gostaria de conversar com alguém legal, inteligente. Quem são as pessoas inteligentes que eu conheço aqui, que estão aqui no meu WhatsApp? Meu, a Simone, a Simone é uma pessoa inteligente, uma pessoa legal, uma pessoa bacana, uma pessoa com uma excelente visão de mundo. Vou chamá-la pra conversar aqui”. Eu estava lá no meio do lugar lá, da festa, aí eu chamei, eu falei: “Ah, oi, tal”. E aí a gente começou a conversar. Aí a gente marcou pra, sei lá, três dias depois de se encontrar no Parque do Ibirapuera, não sei, numa exposição que estava tendo lá. E aí a gente marcou de ir. Mas eu não sei, achava que ela era tão inteligente, que eu não pensei em ir. Falei: “Ah, não vou ficar com ela”. Não sei, tô indo lá, mas não parecia tão simples assim, ficar com ela. E aí foi, a gente estava conversando, peguei na mão dela, aí a gente foi e se beijou e começou esse nosso relacionamento atual.


P/1 — Nessa época você já tinha transicionado?


R — Não. Eu não tinha transicionado e, assim, essa é uma coisa bastante peculiar, né? Porque, quando a gente fala de transgeneridade, são várias as histórias, são várias as possibilidades e eu sempre fui uma pessoa que performou bem a masculinidade que a sociedade esperava de mim, então, as pessoas não desconfiavam. Então, assim, comecei a ficar com a Simone, e só depois de uns dois meses eu falei pra ela, assim, que talvez eu não fosse um homem. E o curioso é que, algum tempo antes de ficar com a Simone, uns seis meses antes, eu fiquei com outra Simone. Meio que namorei, assim, um tempinho. E uma vez eu disse pra essa outra Simone, falei: “Meu, talvez eu seja uma mulher trans”. E a Simone foi embora e nunca mais falou comigo, essa outra Simone. Ela foi embora. A gente foi dormir nessa noite, no dia seguinte ela acordou, foi embora e meio que terminou comigo, assim. Então eu fiquei com um pouco de medo com a Simone atual, de falar isso. Então foi um pouco difícil pra ela, foi um susto. Se a Simone é meio pessimista, ela achava que isso ia acabar com o nosso relacionamento, então talvez fosse melhor acabar no início, assim. A gente chorou, não sei, foi complicado. Mas ela não me abandonou nunca, assim. Ela, do contrário, sempre me apoiou. Teve um dia que ela falou: “Meu, se monta aí, vamos na padaria!” E eu falei: “Meu, mas como assim, ir na padaria é possível?” Ela falou: “Meu, é, vamos lá, vamos ver como que é isso, como você encara o mundo, como o mundo te encara”. E a gente foi e ela sempre foi me apoiando. Então ela foi uma peça bem importante em tudo isso.


P/1 — Como foi esse dia, Gabi?


R — Poxa. Assim, eu não tinha roupas. Na verdade, tinha sim, mas eram muito baratas e esquisitas e… então, isso impacta numa coisa chamada “passabilidade”, né? Quando a gente não tem muito dinheiro, muitos recursos, muito tempo de transição, a gente se torna menos “passável”. Isso é um termo que está ligado ao quão distante você está daquele modelo esperado do feminino, do masculino. Então, nesse dia eu me montei, eu me lembro que eu coloquei até uns quadris de espuma, (risos) pra tentar conseguir formas mais femininas. Então eu coloquei minhas roupas baratas do Brás, meus quadris de espuma, uma peruca que eu comprei na 25 de Março, muito barata, de uns cem reais, que eu nem sei se era uma peruca… não sei, talvez tenha sido menos de cem reais. Peruca que não tinha nada a ver comigo, maquiagem que não tinha nada a ver comigo e eu fui. Eu lembro que eu estava na fila dessa padaria e um cara atrás de mim falou alguma coisa, ele esbarrou em mim, não sei, falou: “Desculpa, moça”. E aí eu virei pra trás e falei: “Tudo bem”. Falei alguma coisa, tipo: “Ah, não, tudo bem”. Ele se assustou, assim, ele viu que eu era trans, não sei. E eu fiquei meio, um pouco com medo disso, eu falei: “Meu, a minha aparência não está agradável, assim”. E eu fiquei com muito medo de tudo. Tipo, eu não sei, eu tinha medo de tudo, de todos, do que as pessoas iam falar. Por exemplo, a única pessoa com quem eu interagi, se assustou comigo. Eu não estava, também, feia, eu só estava com… estava travesti, assim. E as pessoas não sabem lidar com isso, né? Mas aí eu me lembro que, assim, eu fui com medo, mas aí a gente foi no mercado depois e aí eu estava no mercado e eu estava com medo das pessoas me olharem muito, me encararem, assim. Eu me lembro que eu estava num lugar, numa posição, que as pessoas começaram a passar por mim sem me encarar assim, sem me olhar assim, sem se assustar. Eu falei: “Nossa, eu posso ser uma pessoa comum no meio das outras pessoas”. E meu, essas são coisas simples, que a gente… quem não é trans nunca parou pra pensar, né? Eu me lembro de uma vez... aliás, uma vez não, foi tipo nessa semana, foi nessa ocasião, depois da padaria, que eu peguei, eu raspei minha perna. E antes eu tinha medo, eu sei lá, eu pensava: “Meu, não sei, falaram que… a vida toda falaram que não era pra eu raspar, falaram que não era pra eu furar minha orelha, falaram que não era pra eu me apresentar assim em público”. Que minha mãe, quando eu era criança, falou: “Meu, essa é uma coisa que você faz dentro de casa, assim, você usar essas roupas, não é algo que as pessoas precisam ficar sabendo”. Eu achava que eram coisas pra fazer dentro de casa, que os outros não deveriam saber. Mas eu me lembro que, nessa semana, eu tirei os pelos da minha perna e foi uma experiência muito reveladora… não reveladora, mas transformadora, talvez, porque eu nunca tinha visto a minha perna. Eu falei: “Meu, eu tenho essas manchas, eu tenho... ela tem esse formato”. Eu não conhecia minha perna, eu não sabia que era possível fazer essas coisas, sabe? Era meio que inconcebível, eu sabia que o universo feminino me atraía, mas eu não pensava: “Meu, posso ir lá e raspar a perna, posso lá e ir na padaria, posso lá e ir no mercado”. Parecia impossível, achava que as pessoas iam me encarar, iam me bater, iam me xingar, iam… e aí, aos poucos que eu fui descobrindo essas possibilidades, esses outros universos, essa outra forma de viver e ver o mundo e muito disso com o apoio da Simone.


PARTE 2


P/1 — Gabi, a gente terminou com você falando que sabia que o universo feminino te atraía. Queria saber como foi essa descoberta pra você, pensando em si, no seu corpo, como foi esse momento, sentimentos, enfim…


R — Bom, isso não é algo que aconteceu do dia pra noite. Assim, desde que eu me entendo enquanto uma pessoa, eu já pensava nisso. Assim, desde que eu tinha uns quatro, cinco anos de idade. Assim, eu via coisas que fazem parte desse universo dito feminino, né? E eu queria essas coisas pra mim. Desde as roupas, as maquiagens, o jeito de ser, de se apresentar ao mundo. Mas eu nunca concebi isso como uma possibilidade. Sempre pensei em… assim, eu não queria cair no clichê de “nasci no corpo errado”, mas eu achava que tinha duas possibilidades: ou você ser um homem, ou você ser uma mulher e eu tinha nascido como homem e era isso, assim, eu deveria me contentar. Só quando eu fui crescendo, que eu percebi essas coisas não eram tão fixas, assim. A primeira vez que eu vi uma mulher trans e eu estava com meu pai. Era uma criança, não lembro exatamente a idade que eu tinha, mas eu perguntei pra ele, pro meu pai, por que aquela mulher era diferente? E aí meu pai falou: “Para de olhar, para de olhar, porque esse povo é barraqueiro, esse povo é perigoso, e se você ficar olhando, é capaz de você arranjar problemas”. E eu cresci com aquilo na cabeça, pensei que travesti, que trans era confusão, era barraco, era problema. E foi difícil, pra mim, ir desconstruindo essa ideia, né? Foi todo um processo de autoconhecimento, de entender que transgeneridade pode estar relacionada com várias coisas. São várias as histórias, são várias as alternativas, são vários os caminhos. Então, só quando eu entrei nos vinte e tantos anos, que isso começou a se tornar uma possibilidade real. Mas muito disso veio de um apoio. Acho que, se eu não tivesse apoio das pessoas com quem eu me relacionava, namorada, acho que eu não teria... ou teria transicionado bem mais tarde. Porque outras pessoas me ajudaram com esse processo de autoconhecimento e também com essa… me ajudar a trazer segurança no processo e me ajudar a explorar esse universo, né? Quando a gente fala desse universo tido como feminino, são vários os elementos que o compõem, quando a gente fala do que é ser mulher. O que é ser mulher pode ser muita coisa. Então, eu tive que ir explorando isso, aos poucos. Eu lembro que, no começo, eu achava que alguém ia me dar um diagnóstico, assim, que… eu pesquisava na internet, quando eu tinha, sei lá, dezoito anos, dezessete anos, dezesseis anos, eu jogava lá no buscador: “Teste pra saber qual é o seu gênero real, assim, o gênero do seu cérebro”. E eu precisava fazer um teste oficial. Lembro que eu achei até uns que, supostamente, era da universidade “xpto”, não sei que lugar, que cientistas tinham elaborado, pra saber se eu teria esse diagnóstico, alguém ia lá e ia carimbar, assim: “Você é trans. Você, de acordo com o teste, de acordo com essa metodologia, você, a gente pode dizer com toda certeza que você é uma mulher”. E, assim, com o passar dos anos eu descobri que não é bem assim, né? Não… é difícil ter um diagnóstico, uma outra pessoa que vai olhar pra você e vai falar: “Ah, não, você é uma mulher; ah, não, você é homem”. Isso tem muito mais a ver com uma experimentação, uma exploração que vem num outro sentido. E foi justamente isso que eu comecei a fazer, né? Eu comecei a viver, simplesmente, essa minha feminilidade, essa minha transgeneridade. E, quanto mais eu vivia, mais eu queria. E eu acho que foi assim que eu me entendi enquanto Gabriela.


P/1 — Você falou uma frase que eu achei linda, que, quando você estava, teve essas primeiras experiências na padaria e no mercado, muito acompanhado da Simone, como foi pra você encarar o mundo e o processo de perceber o mundo te encarando? Você usou esse termo, queria saber como foi esse sentir, esse momento?


R — Pensando nesse “encarar o mundo e o mundo me encarando”, eu definiria, a primeira palavra que me vem à cabeça é medo. Medo do que, aí foi uma outra questão, né? Acho que eram medos de tantas coisas, muitas delas infundadas. Eu achava que era impossível sair na rua. As pessoas iam, não sei, eu ia ser agredida, ia sofrer várias violências e, de fato, sofri algumas, mas não foi tão ruim quanto eu imaginava. Eu imaginava que seria impossível que eu vivesse essa minha transgeneridade, de forma pública. Porque, assim, quando eu era mais nova, bem nova mesmo, tinha, sei lá, em torno de uns dez anos, eu estava na casa da minha tia e eu falei pra ela: “Ah, tia, eu vou, quero me montar, quero usar umas roupas de mulher” e aí minha mãe estava comigo, minha mãe não falou nada na hora. Mas aí depois que a gente saiu da casa da minha tia, a minha mãe me puxou e falou: “Esse é o tipo de coisa que você faz em casa, você não mostra pros outros”. Ela foi bem enfática, dizendo isso. E eu acho que eu fiquei com essa questão na cabeça, assim, é o tipo de coisa que eu deveria esconder. Mas a minha mãe não fez por maldade, claro. Ela, não sei, acho que queria me proteger. E também não entendia, não compreendia integralmente esse fenômeno da transgeneridade. Mas eu fiquei com isso na cabeça: “Meu, isso é o que eu faço escondida, isso me torna menos”. Isso, em teoria, né, na minha cabeça eu achava isso, que isso me tornaria menos, isso é algo que me envergonharia. Então, quando eu pensei nisso de encarar o mundo e o mundo me encarar, eu acho que eram vários sentimentos ali, que me consumiam, né? O medo, a vergonha. E, assim, foi um processo até entender que, não digo que foi fácil, mas foi de uma forma, eu vivi isso de uma forma diferente daquela que eu supus. Porque, assim, como posso colocar isso? Foi, assim, ao mesmo que me deu medo, me deu vergonha, foi bastante libertador, sabe? Fazer aquilo que eu queria fazer, desde quando eu era criança. Porque quando eu era criança, eu achava que eu ia, um dia, dormir e acordar mulher. Ou eu ia entrar numa máquina, e a máquina ia mudar o meu gênero. Mas isso não acontece, né? Pra além dos sonhos, pra além do mundo das ideias, da fantasia, não acontece. Essa transição de gênero tem que se dar de outra forma e demanda muito mais esforço, do que simplesmente acordar e tem uma fada e mudar o seu gênero. Então, assim, foi libertador saber, de alguma forma, que eu tinha um controle sobre isso. Não um controle sobre a minha transgeneridade, mas que eu mesma poderia investir energia nessa minha transição de gênero. Então foi um momento da minha vida regado por medo, por vergonha, mas também por libertação e, posteriormente, muita felicidade.


P/1 — Você comentou rapidamente desse apoio que você teve. Você gostaria de falar um pouco mais sobre isso, as pessoas que foram, que deram esse suporte, de alguma forma? E, não sei, você chegou a contar, não sei se esse é o melhor termo, mas, falar pras pessoas como foi isso, de dividir?


R — Bom, eu acho que eu só transicionei assim, nessa idade, porque eu tive algum tipo de apoio, algum tipo de suporte. Assim, desde a minha infância, a minha adolescência, meus pais nunca disseram que era errado. Se minha mãe já disse pra... que eu deveria fazer em casa, que eu deveria... não deveria mostrar esse meu lado de mulher pro mundo, né? Mas quando eu era criança, eu brincava com as roupas da minha vizinha. A gente, sei lá, pegava, botava biquíni, uma coisa assim, pra pular carnaval. Meus pais nunca encanaram, achavam legal que eu estava me divertindo. Quando eu fui crescendo, eu tinha umas roupas femininas até, escondidas. Mas quando eu cresci mais, comecei a namorar, a minha primeira namorada me apoiou, falou que era algo que eu não deveria me envergonhar e aí, depois, eu conheci a Simone, que me ajudou bastante, né? Ela, de fato, foi lá e falou: “Se monta, vamos pra rua”. Mas eu não sei se… eu acho bem curiosa essa ideia do contar, né? Porque essa é uma coisa que eu não fiz. Eu não... aliás, eu fiz com pouquíssimas pessoas. Não sei, talvez foram a Carol, minha namorada; talvez com a Simone. Mas, assim, quando eu fui pro mundo, eu não fui nessa pegada de contar para as pessoas que eu era trans. Eu simplesmente fui (risos). Eu simplesmente… eu me lembro que, assim, redes sociais, os meios digitais foram bem importantes nesse processo. Por exemplo, eu jogava um jogo online que se chamava GTA. Aliás, é um dos jogos mais famosos. E lá, no GTA online, dá pra você criar um bonequinho e escolher o gênero do bonequinho e roupas e ter tipo uma vida online, assim. E aí eu criei uma nova conta e, com essa nova conta, eu coloquei lá “Gabriela”, criei uma imagem, que era uma imagem que eu queria pra mim, um corpo que eu queria. Eu comecei a interagir com as pessoas online e por meio desse perfil, assim. Foi uma coisa que me ajudou bastante, nessa transição. Também criei perfis nas redes sociais, criei um Facebook com um outro nome, com uma outra foto minha, montada e comecei a interagir com as pessoas assim. E foi bem gradual. Eu comecei, em primeiro lugar, adicionando pessoas que eu não conhecia, que eram de grupos ali, que eu fazia parte. Mas depois eu comecei a... não contar pros meus amigos de verdade, meus amigos com os quais eu interagi anos, né? Eu não chegava e contava, eu chegava e falava: “Ó, eu tenho um novo perfil no Facebook, você me adiciona lá, você me aceita? E a Simone sempre me criticou por isso, assim. A Simone falava: “Meu, como assim, você chega numa pessoa e fala: ‘Ah, adiciona a Gabriela’, a pessoa não vai entender, a pessoa vai ficar confusa”. E eu sempre respondia pra Simone: “Meu, as pessoas precisam se esforçar um pouquinho pra entender o mundo também, né? O mundo pode ser mais complexo do que as pessoas geralmente acham que é”. Então eu simplesmente chegava e falava: “Ó, o meu e-mail não é mais esse, o meu e-mail é esse outro, o meu LinkedIn, o meu perfil no Facebook não é esse, ó, você me aceita nesse outro perfil? Você me adiciona lá?” Eventos que eu comecei, eu simplesmente fui com outras roupas, com outro crachá, com outra inscrição e isso chocava um pouco as pessoas, por mais que elas tentassem disfarçar: “Ah, não, ah, tudo bem? Oi, Gabriela!” Penso que isso deve ter gerado discussões e mais discussões entre meus colegas: “E, meu, como assim, era fulano, agora é sicrana!” Mas, assim, isso não me afetou muito, acho que foi meu jeito de lidar com a situação. Porque eu acho que, quando a gente conta, a gente, às vezes, acaba colocando uma carga negativa na coisa, né? Imagina só, se a gente tivesse que contar as coisas, contar, né: “Ah, nossa, preciso te falar uma coisa, eu sou heterossexual, viu? Puts, né, você não sabia disso, isso é algo que eu não revelei antes, mas, olha, eu sou heterossexual. Nossa, eu preciso te falar uma coisa: eu sou capitalista. Eu fiquei com medo de contar, mas, poxa, eu acho que o melhor sistema é o capitalismo”. Meu, a gente não conta essas coisas, a gente simplesmente as vive. Então eu simplesmente vivi isso, assim, simplesmente: “Meu, é Gabriela agora”. Por mais que isso possa ser confuso pra algumas pessoas, ser uma mulher trans, que é casada com uma outra mulher. E é isso, acho que o pessoal precisa se esforçar um pouquinho também, quem está no entorno, pra aprender a lidar com essas questões.


P/1 — E esse processo de transição aconteceu quando você estava na faculdade?


R — Meu processo de transição aconteceu enquanto eu estava na faculdade, sim, mais pro final do curso. Eu, assim, posso dizer que a faculdade foi algo que me atrapalhou um pouco porque era um ambiente bastante conservador, fazer Direito na PUC. Então, Direito, por si só, é um contexto conservador. Mas era uma faculdade mais elitizada e isso, aparentemente, fazia com que o corpo de alunos ali fosse mais uniforme também. Então as pessoas eram mais parecidas, tinham experiências de vida parecidas. O que era diferente parecia incomodar mais do que em outro contexto, do que numa universidade pública, do que numa universidade que não tivesse mensalidades tão caras. Então, assim, foi... acho que isso me segurou um pouco na minha transição. Mas acho que a primeira vez que eu me apresentei como Gabriela foi numa festa universitária lá, pra aquele grupo, primeira vez, pra aquele grupo, foi numa festa. E o pessoal ficou: “Ãhn, caramba, como assim?” (risos). Eu falei: “Ah, sou eu”. Isso me surpreendeu um pouco assim, porque eu também tinha medo, eu também pensava: “O pessoal não vai aceitar, o pessoal... não sei, vai ser difícil, vou sofrer várias violências”. Sofri algumas. Algumas pessoas não aceitaram, algumas pessoas me olharam com maus olhos, mas muitos dos meus colegas me acolheram, isso me surpreendeu bastante, isso me deixou bastante feliz. Então a universidade foi um momento bastante importante na minha vida e também nessa trajetória da transição.


P/1 — E quais eram as suas expectativas de carreira, nesse período?


R — Bom, eu achava que eu ia trabalhar num escritório de advocacia, que era a carreira mais óbvia ali, na faculdade. Eu cheguei a fazer um… eu comecei uma iniciação científica em comércio eletrônico, comecei a pesquisar um pouco sobre isso, porque eu tinha um pezinho na coisa digital, na coisa das internets. Mas, assim, eu tive bastante dificuldade de me enxergar nesses lugares, enquanto pessoa trans, principalmente. Não vi pessoas parecidas comigo e eu comecei a me questionar se seria possível que eu desenvolvesse uma carreira nesse sentido. Eu cheguei até a fazer umas entrevistas, depois dessa transição, como Gabriela, como mulher trans, mas eu não passei, não fui aprovada. Eu, assim, realmente parei pra pensar bastante sobre e cheguei à conclusão de que não parecia ser pra mim, não parecia ser pra mim. Eu, depois da transição, decidi seguir uma carreira num outro sentido. Eu comecei a pensar: “Poxa, me deparei com uma série de preconceitos, uma série de violências, o que eu posso fazer pra que outras pessoas não passem por isso que eu tô passando? Será que eu não deveria trilhar uma carreira enquanto consultora de diversidade? Será que eu não deveria criar uma empresa, nesse sentido?” E foi aí que eu fiz essa mudança de percurso na minha carreira.


P/1 — Como foi esse processo? Como deu essa... surgiu esse insight, assim?


R — Bom, eu fiquei pensando no que eu poderia fazer, no que estava ao meu alcance. E, assim, como eu não tinha dinheiro, como eu não tinha recursos, não tinha visibilidade, não tinha nada, o que eu consegui fazer foi um livrinho. Acho que eu devo ter até algum aqui. Eu fiz esse livrinho aqui. Eu o chamei de “Manual Empresas de Respeito”. Ele está até um pouquinho amassado, mas aqui eu coloquei os principais conceitos sobre combate à Lgbtfobia, sobre igualdade racial, sobre respeito à pessoa com deficiência. Eu fiz o possível e o impossível pra colocar esse guia aqui, de como promover uma cultura de respeito numa empresa, num… qualquer lugar, qualquer contexto. E aí eu fiz esse livrinho de uma forma que eu pudesse imprimir na minha própria impressora. Eu penei um pouquinho pra fazer esse livrinho, que é muito complicado você fazer a coisa, acho que chama “paging position”. Você precisa colocar a primeira atrás da última página e você precisa fazer tudo de um jeito que você recorta e encaixa e vira um livro. É mais do que uma encadernação, é um… esqueci o nome dessa ciência aí, de fazer livros. Mas eu dei um jeito de organizar isso. Inclusive, eu não tinha muito dinheiro, tal. Eu pedi as ilustrações para uma moça. Eu estava pesquisando na internet uns bonequinhos, pra botar, tal. E aí eu vi que tinha uma moça ilustradora, da Argentina, eu acho. Falei: “Meu, muito legal esses bonequinhos, eu acho que eu podia colocar no livrinho, mas era em dólar, era caro. Aí eu mandei e-mail pra ela, falei: “Olha, eu tô querendo fazer um negócio bacana aqui no Brasil, tô com um projeto assim, assado, será que você não conseguiria me ceder a licença dessa arte pra eu colocar no livrinho?” Ela falou: “Claro, muito legal isso que você está fazendo, tal!” E ela me deu uns bonequinhos, aí eu coloquei os bonequinhos no livro, escrevi aquilo que deveria ser escrito, sobre boas práticas, sobre como combater esse preconceito, essa intolerância. Fiz vários desses livrinhos e comecei a distribuir de porta em porta, em empresas que ficavam no entorno de onde eu morava. Eu morava num lugar chamado Taboão da Serra. E lá em Taboão, eu comecei a ir em empresas, desde restaurantes, academia, coworking e eu oferecia esses livros pra galera, eu falava: “Ó”. Chegava lá, procurava a gerente, o gerente, às vezes o dono. Eu fui basicamente em empresas pequenas, no começo. E, nesses lugares eu encontrei um pouco de resistência. As pessoas não entendiam aquilo que eu estava defendendo, tipo: “É estranho. Como assim? Eu devo falar de igualdade de gênero na minha empresa? Por que eu deveria falar sobre Lgbt, por que eu deveria...?” Isso foi em torno de 2017, tá? Fui nessas empresas e eu parava pra conversar com a galera, chamava essas lideranças das empresas pra conversar sobre o fato deles terem tido algum caso de assédio também, algum caso de preconceito e como eles tinham agido diante disso. E aí eu oferecia os livrinhos, sem cobrar nada. Foi um pouco difícil no começo, mas algumas empresas começaram a me chamar pra palestras, pra treinamentos. E aí foram... como que eu posso dizer? O começo da Transcendemos, porque foi nesse momento, quando começaram a me contratar pra esse tipo de treinamento, eu pensei: “Poxa, isso pode se transformar também num... a gente pode escalar isso, né? Posso atingir um número bem grande de empresa”. Então, eu saí ali do Taboão, que era onde eu morava, comecei a ir mais pra Pinheiros, Vila Olímpia, comecei a me relacionar com empresas cada vez maiores. Então essas empresas começaram a me demandar não só pra treinamentos, mas também pra um apoio estratégico, em diversidade e inclusão. Começaram a me contratar pra projetos cada vez maiores, cada vez mais complexos e eu consolidei a Transcendemos como uma empresa de consultoria, ampliando a equipe, trazendo outras pessoas e hoje nós nos tornamos uma referência nesse sentido.


P/1 — E como funciona o seu trabalho? Não sei se ele passou por alguma mudança, desde o início até hoje, mas se você puder contar um pouquinho desse processo.


R — A forma que eu trabalho mudou. Sempre, ela está em constante mudança, a forma como eu estruturo os projetos, como eu gerencio os atendimentos, mas basicamente as empresas me procuram - geralmente são empresas - eu não procuro as empresas e elas sempre apresentam algumas dores. Elas sempre apresentam… como que eu posso colocar? Muitas delas não sabem por onde começar. Acreditam que devem fazer algo pra promover essa diversidade, essa inclusão. Assim, pensando na inclusão de pessoas negras, pensando na inclusão de pessoas trans, mas não sabem exatamente o que fazer. Então, desde o começo, eu sempre tive que direcionar um esforço pra, em primeiro lugar, um diagnóstico, entender quais são os desafios de cada uma dessas organizações e, a partir daí, pensar num remédio. Pensar em pré-projeto. Então desenhar um fluxo ali, pra aquela instituição que eu pretendo atender, não só pensando no censo, porque muitas a gente tem que rodar uma pesquisa, rodar uma pesquisa anônima, que as pessoas que trabalham nesses lugares são convidadas a responder e colocar um pouquinho de dados demográficos, os dados relativos à sua experiência com o trabalho e isso nos orienta a pensar numa estratégia, pensar numa agenda de ações. E essa agenda de ações é diferente pra cada uma das empresas que a gente atende. Ela precisa ser adaptada a várias questões. Por exemplo, é diferente falar de diversidade numa empresa do Sul e numa empresa de São Paulo. É diferente falar disso em uma... não só falar, mas pensar isso, em uma siderurgia e em uma startup. É diferente pensar isso em uma siderurgia e uma startup. É importante ter uma visão estratégica da coisa. Então, pra que a gente tenha uma visão estratégica, a gente primeiro precisa passar por essa etapa de diagnóstico e esse diagnóstico precisa se basear em dados. Claro que a gente precisa ter conversas, ouvir as pessoas de diferentes formas, mas é importante que a gente tenha um método mais sofisticado de coleta de informação e que isso oriente uma estratégia, de fato, eficaz. Então se eu fosse resumir meu trabalho, eu diria que ele tem essas etapas, assim. As empresas me procuram, elas apresentam as dores delas, __________ tem um projeto, e geralmente contempla uma etapa de diagnóstico e, a partir desta etapa de diagnóstico, uma estruturação de um _________, um plano estratégico, de como tornar aquela organização mais amigável à diversidade. Seja essa diversidade relacionada à pessoa negra, seja essa diversidade relacionada à pessoa trans. E eu tenho esperado que cada vez mais empresas caiam na real, que caia a ficha, de que esse é o caminho mais inteligente a se trilhar. Pensar estrategicamente a diversidade e a inclusão.


P/1 —Você lembra de alguma história que tenha te marcado, que tenha te tocado de alguma forma, com algum cliente?


R — Bom, são várias as histórias, sabe? Eu acho que cai sobre mim uma responsabilidade bem grande, no sentido, assim: pessoas que estão em empresas onde não se sentem livres pra serem quem são. Geralmente, as empresas, em algum momento eu vou lá e faço uma palestra, eu falo pra uma imensidão de pessoas. Às vezes setecentas, às vezes mil pessoas. E depois dessas grandes falas, eu recebo mensagens nas minhas redes sociais, no e-mail, de pessoas aflitas, de pessoas não só aflitas, mas, muitas vezes, pessoas sem perspectiva, pessoas que estão tristes, às vezes até quase deixando as empresas onde elas trabalham, porque elas não se sentem à vontade pra fazer uma transição de gênero, elas não - mais do que não se sentir à vontade, né? - têm a segurança necessária pra isso. Mas não é só sobre pessoas trans também. Recebo mensagens de mulheres, de pessoas negras, de pessoas que vivem com HIV, que não encontraram um outro meio, um outro canal pra desabafar, pra falar dessas angústias, pra falar daquilo que as incomoda, das barreiras com as quais se deparam. E essas pessoas me procuram, elas falam: “Gabriela, o fato de você ter vindo falar na minha empresa hoje, acendeu uma chama de esperança na minha vida. Eu estava triste, eu estava sem saber pra onde ir, mas você me inspirou. Espero que você ajude a galera daqui a mudar um pouco a cabeça, a se tornar mais consciente sobre esses assuntos e também, agora, quando eu vi você falando aqui, eu passei a conceber como uma possibilidade, assim, viver quem eu verdadeiramente sou, aqui no meu trabalho”. E isso me deixa muito feliz, mas também me preocupa bastante. Assim, no sentido de pensar no tamanho da responsabilidade que eu tenho. Porque não é simplesmente uma consultoria. Assim, todas as consultorias são importantes, né? Uma consultoria financeira, uma consultoria de comunicação, mas eu não sei se outro tipo de consultoras, outro tipo de consultores, recebem mensagens tão emocionadas, tão profundas. Assim, de pessoas que, de fato, estão angustiadas. Eu recebo mensagens de pessoas que falaram em tirar a própria vida. Tem pessoas que estão realmente tristes, mas que veem em mim uma possibilidade de mudança. Isso que me move, sabe? Isso que me move. Eu acordo toda manhã pensando nessas pessoas que eu poderia ajudar, de alguma forma. Mas eu também tenho a noção que eu não sou uma super-heroína, né? Eu também não queria ser presunçosa, não queria ser… mas eu acho que isso me dá muita responsabilidade e, assim, isso… como que eu posso falar? Assim, eu… recai sobre mim várias responsabilidades, porque pra além dessas pessoas que me mandam mensagens e compartilham suas angústias comigo, eu também penso que poucas pessoas trans, mulheres negras, chegaram onde eu cheguei, chegaram nesse lugar. Porque eu tenho bastante seguidores, principalmente no LinkedIn, eu consigo alcançar centenas de milhares de pessoas por semana. As pessoas me ouvem, as pessoas me têm como uma figura importante, como uma opinião bem fundamental, pensando no mercado de trabalho, no mundo do trabalho, né? E eu tenho essa voz hoje, eu tenho esse espaço que outras colegas, outras pessoas desses grupos que eu faço parte, esses grupos sub-representados, não tiveram essa possibilidade, não tiveram essa… não conseguiram chegar onde eu cheguei, por uma série de motivos. Eu não digo que eu represento todas essas pessoas, porque são várias as histórias, são várias as narrativas, mas, ao mesmo tempo, eu tenho uma responsabilidade com outras pessoas que fazem parte desses grupos que eu faço. Por exemplo, grupos de pessoas trans. Então, quando eu toco um projeto, eu tenho bastante medo de cometer um erro, porque esse erro não recai só sobre mim, ele também diz respeito à outras colegas trans, outras pessoas desses grupos que… eu tô pensando na melhor forma de explicar isso, assim… eu, se eu cometo um erro, eu penso que as pessoas vão apontar pra mim, vão falar: “O traveco errou, eu falei pra você que rota não era um bom caminho, que reserva de vagas não era um bom caminho, que as pessoas não devem ser contratadas pela… por uma características pessoal e sim pela competência”. As pessoas acabam caindo nessa justificativa. Eu me lembro de ter visto, há algum tempo, uma imagem que dizia o seguinte: “Você aceitaria andar num avião pilotado por um rapaz negro, que entrou na companhia aérea por cotas?” Assim, como se o rapaz negro fosse menos capaz, como se ele fosse menos habilidoso, por terem abaixado a régua e… mas eu tenho medo de apontarem pra mim e falarem isso, sabe: “Meu, essa travesti não deveria estar aqui, ela errou, a gente deveria ter contratado o cara consultor, homem cis, branco pra tocar esse projeto”. Tenho medo de queimar o filme, não sei, das minhas colegas, dos meus colegas trans, ou de outros grupos. Então eu acho que essa responsabilidade recai de uma maneira, com bastante peso, sobre os meus ombros. Então, eu me esforço muito mais do que uma pessoa branca, do que uma pessoa que não é trans, pra tocar esse trabalho que eu toco de uma maneira, com excelência, sabe? Fazer, desconstruir essa imagem, de que, por exemplo, a mulher trans, o lugar dela é a prostituição, assim. Eu acho que uma pessoa trans, por exemplo, deve estar onde ela quiser, da mesma forma que a mulher também pode estar onde ela quiser, deve estar onde ela quiser. E isso só vai se ampliar, se depender de pessoas como eu, o mundo vai ver cada vez mais mulheres CEO, cada vez mais pessoas trans em posições de liderança e eu tenho trabalhado todos os dias pra promover essa mudança.


P/1 — Gabi, a gente te escutou muito bem, mas a sua imagem está travada.



R — É. Ai, meu Deus! Faz quanto tempo?

P/1 — Foi agora, foi a última frase.


R — É esse aplicativo aqui, que ele, às vezes, dá um bug aqui. Espera aí, deixa eu tentar restartar. Eu acredito que o lugar da mulher é onde ela quiser, da mesma forma que o lugar da pessoa trans também é onde ela quiser. Então eu tenho trabalhado todos os dias, pra que a gente tenha cada vez mais mulheres CEO, cada vez mais pessoas trans em posições de liderança, pessoas negras. Enfim, essa é uma das coisas que me move, que me faz acordar todos os dias, ligar meu computador, pegar meu carro, ir nas empresas, ir nos lugares e fazer o meu trabalho.


P/1 — E quais foram e são seus maiores desafios, nessa sua trajetória profissional?


R — Bom, eu diria que o meu maior desafio foi conquistar autoridade, assim. Foi mostrar que uma pessoa trans, uma pessoa como eu, pode sim estar liderando uma mudança numa empresa transnacional, numa empresa que está em vários lugares da América Latina, que precisa de uma nova estratégia de negócios. Uma mulher trans poderia comandar um projeto desse, poderia impactar pessoas que estão em diferentes países, uma organização que se desdobra por toda as Américas. Então, assim, foi bastante difícil, pra mim, construir essa autoridade e construir esse legado. Porque hoje, hoje e sempre, as pessoas que me procuram, as pessoas dessas empresas, sempre colocam a seguinte questão: “Você já fez isso antes? Que resultado você teve?” Então foi uma caminhada longa, até que eu pudesse dar uma boa resposta pra essa pergunta, né? Até que eu pudesse construir esse portfólio de projetos, que eu pudesse mostrar que pessoas como eu podem, sim, ocupar uma posição estratégica e importante como a que eu ocupo hoje.


P/1 — E preconceito, discriminação, esse tipo de violência, como você enfrenta?


R — Bom, como eu enfrento preconceito e discriminação é uma pergunta bem interessante, porque, no meu dia a dia, eu ouço tanta coisa, tanta coisa que, meu Deus! (risos) Assim, são muitos os… esse preconceito, essa intolerância vem maquiada, ela vem de um lugar, ela aparece nas mais variadas formas. Por exemplo, a gente tem uma atividade, um modelo de workshop, no qual os participantes têm que construir uma persona de uma pessoa que eles querem incluir na empresa. Então, poxa: “Queremos aumentar a representatividade racial aqui. Então vamos, vamos dar um nome, vamos criar uma persona. O fulano de tal, que mora em tal bairro, estuda em tal faculdade, que tem tais receios, que tem tais sonhos”. E, por exemplo, uma empresa recente, uma turma a gente, sempre é feito com apoio de um consultor ou consultora da Transcendemos, mas enquanto a gente estava lá, fazendo a atividade, a gente fez uma persona de uma mulher negra e aí deram o nome da persona de Isaura. Assim, achei bem simbólico. Essa empresa que a gente estava atendendo tinha várias questões, vários desafios sobre inclusão racial, um contexto bem conservador neste sentido e eu achei bastante simbólico eles darem o nome de Isaura pra pessoa negra ali, que estavam querendo incluir. Eu não sei se foi nessa empresa, mas talvez numa outra, a gente estava desenhando uma persona e a gente tinha que escolher o nome da persona. E alguém falou: “Ah, vamos escolher um nome bem periférico pra essa persona!” E eu fiquei pensando nisso: “Poxa, o que é?” Foi bem constrangedor para a pessoa que falou, né? Até levantaram esse questionamento: “O que seria um nome periférico?” Há nomes de periferia, há nomes de pessoas que não moram na periferia. Mas, assim, são coisas que surgem com bastante frequência, às vezes surgem de maneira mais latente, mais irritante. Por exemplo, estava fazendo uma conversa sobre xenofobia e aí foi, essa foi presencial, essa foi, eu estava lá numa empresa e eu estava dizendo que o lugar onde a pessoa nasceu não necessariamente estava relacionado com o fato dela fazer um bom trabalho ou não, que a gente deveria desconstruir ideias de como baiano trabalha menos, baiano é sossegado, a gente deveria desconstruir isso. E aí uma das pessoas que estava ali, na plateia, na palestra, se levantou e começou a imitar um baiano. A pessoa foi até a frente, e falou: “Não, baiano é vagabundão mesmo, ele é… pessoal nordestino não gosta de trabalhar, não”. E aí começou a imitar, como se a pessoa andasse devagar e tivesse preguiça de fazer as coisas. E eu fiquei pensando: “Wow, eu tô falando, vim aqui fazer uma palestra sobre inclusão e o cara levanta e começa a encenar, assim”. E ele realmente acreditava nisso, que ele ficava defendendo que o baiano era preguiçoso. Então eu tenho que ouvir coisas assim. Eu ouço o tempo todo e eu sempre dou um jeito de não constranger, porque eu acho muito envergonhador, é um absurdo que as pessoas falem isso sem medo! Mas eu, geralmente, tomo cuidado de falar: “Fulano, poxa, você trouxe um ponto importante pra nossa conversa, né? Senta um pouquinho, vamos conversar, vamos ver se não há outras formas de ver essa questão? Se, de fato, o nordestino é preguiçoso”. E é maluco, assim, porque eu… isso me deixa triste, mas isso me deixa feliz, de certo modo. Porque isso demonstra que eu criei um espaço seguro, que as pessoas se sentiram confortáveis de falar o que elas realmente pensam. Isso é importante pra esse processo de mudança, porque se eu chego num lugar e o pessoal sempre só faz assim com a cabeça: “Ah, entendi, beleza, Gabriela. É pra parar de ser preconceituoso, então vou parar”. Eu acho complicado quando as pessoas não falam, elas simplesmente escondem. E eu acho importante que as pessoas tenham, não sei, uma liberdade ali, pelo menos naquele espaço, de se abrir, pra que eu possa pegar essa ideia e, de alguma forma, desconstruir. Mas é maluca a forma como algumas pessoas defendem. Por exemplo, o fato, a questão do assédio, assédio à mulher. Eu, na grande maioria das palestras que eu faço, eu abordo esse tema, de que é um problema pra mulher, hoje. Na verdade, não é um problema de hoje, é um problema que se desdobra por muitos e muitos tempos, mas que a mulher sofre assédio, principalmente de homens e que isso é algo que a gente deveria combater. Assédio muitas vezes sexual, são vários os tipos de assédio. Mas eu me lembro de uma palestra que, meu, tinha um cara defendendo que quem mais assediava e, quando se falava de assédio, o problema eram as mulheres que assediavam os homens sexualmente, que isso era um problema. E aí uma outra mulher que estava nessa palestra começou a concordar com o cara, assim. Falar: “Não, de fato, as mulheres que assediam os homens”. E eu comecei até a me questionar se eu estava acordada, se era real mesmo aquilo que eu estava ouvindo, mas o pessoal estava super defendendo isso, de que, meu, o homem que assedia a mulher e não o contrário. E aí eu perguntei pras pessoas que estavam ali, presentes, nessa palestra, perguntei pros caras, eu falei: “Você, que está aí, de camiseta vermelha, quando você sai à noite na rua, você tem medo do quê?” Aí o cara falou: “Ah, eu tenho medo de ser roubado, levarem meu celular, levarem minha carteira”. Aí eu falei: “Tá”. Aí eu olhei para um outro cara: “Ah, você, de camiseta verde, você tem medo do que, quando você sai à noite, na rua?”. “Ah, eu tenho medo de, não sei, alguém vir me roubar e me dar uns tapas na cara”. Falei: “Tá”. Aí eu comecei a perguntar pras mulheres, falei: “Meu, e você, moça que está de vestido, quando você sai à noite na rua, você tem medo do quê?” E aí ela falou: “Meu, estupro, todo tipo de assédio, todo tipo de violência sexual”. E aí eu comecei a perguntar pras outras moças e todas elas falaram estupro. E aí eu virei pro cara que estava defendendo que as mulheres que assediavam os homens, virei pra ele e falei: “Meu, é diferente a questão do assédio pro homem e pra mulher. Complicado a gente achar que há uma simetria entre uma mulher que dá uma cantada num homem, um homem que dá uma cantada numa mulher”. Então, eu ouço, eu me deparo esse tipo de ideia. Eu me lembro de uma outra empresa que eu fui e eu levantei uma questão, eu falei: “Gente, o que vocês acham sobre o fato de, quando a gente olha aqui pra galera que está na faxina, a galera negra, geralmente são mulheres que fazem esse trabalho, mas quando a gente olha pra diretoria, pro board, são homens brancos? Será que isso quer dizer alguma coisa?” E aí um cara falou: “Ah, eu acho que as mulheres, as pessoas negras, não estão lá no board, na diretoria, porque elas não se esforçam”. E, meu, eu comecei a tentar desenvolver essa conversa, mas a pessoa continuou, ela continuou sustentando de que tinha medo desse movimento de “Black Lives Matter”, de igualdade racial, porque ele, enquanto pessoa branca, se sentia ameaçado e ele achava que quando ele tivesse um filho, o filho branco dele que ia sofrer o preconceito, então tinha que parar com isso, esse movimento de mudança aí, porque estava virando ao contrário, o racismo reverso, era algo que o preocupava bastante. Mas isso falando do dia a dia de trabalho, né? Se eu falar de dia a dia, assim, da minha vida, assim, de sair na rua, de preconceito… poxa, esses dias, esses dias digo, uns dois meses atrás, agora, no meio de 2021, fui na farmácia comprar um remédio e aí quando eu estava saindo da farmácia, veio um cara falar comigo. Ele olhou pra mim, apontou e falou: “Você acha esse seu cabelo bonito?” E eu parei, pensei: “Poxa, será que ele está me elogiando, ou será que não?” Eu fiquei nessa dúvida. E aí eu respondi a ele, eu falei: “Acho esse meu cabelo bonito, você acha também?” E ele parou, ficou me olhando alguns segundos e pelo fato dele ter ouvido minha voz, que é uma voz mais grossa, ele me questionou, ele falou: “Mas você é mulher?” E aí eu falei: “Meu, começou, né? Só vim comprar um remédio na farmácia e tenho que me deparar com essa galera”. Eu falei: “Meu, sou mulher, sim”. E aí ele falou: “Então abaixa suas calças aí, que eu quero ver, se você tiver um pinto, você vai morrer agora”. E aí, meu, eu fiquei muito preocupada, eu falei: “Caralho, velho! Olha o que ele está falando, assim”. Tipo: “Se você tiver um pinto, você....” Ele falou isso, ele falou com essas palavras, falou: “Se você tiver um pinto no meio das pernas, você vai morrer aqui, agora”. Ele devia ter usado umas paradas, mas, mesmo assim, eu estava sozinha, eu olhei pros lados, não vi ninguém ali e a gente estava mais ou menos próximo, ele estava a um metro e meio de mim, dois metros, não sei. Eu pensei: “Meu, será que ele tem uma faca, será que ele tem alguma coisa, tipo, o que ele vai tentar fazer agora?” Olhei, olhei, não vi ninguém e eu fiquei meio congelada, esperando-o fazer alguma coisa, se ele ia pra frente, ia pegar algo e eu fiquei só esperando. E aí ele ficou me encarando um tempo, deu uns passos pra trás, aí ele apontou o dedo pra mim, como se fosse uma arma, sabe? Ele chegou e fez, tipo: “Pow!”. Bem simbólico. E aí ele foi indo embora e, sem brincadeira mesmo, ele virou ainda e falou: “Bolsonaro está aí, pra isso!” E eu falei, tipo: “Caralho!” Isso, assim, esse cara é insano, né? Ok. Mas é simbólico tudo isso que ele falou, né? Isso que ele falou pra mim é algo que outras colegas já ouviram e colegas que não estão mais aqui, né? E isso mexeu bastante comigo, eu cheguei até a fazer umas publicações nas minhas redes sociais, saiu nuns canais de comunicação online sobre essa situação que aconteceu, que, na minha opinião, é bastante simbólico. Acho que ela traduz muitas das violências que pessoas como eu, sofrem. Eu poderia ficar aqui o dia inteiro, a tarde toda, falando de situações de violência como essa que eu sofri. Por exemplo, uma coisa que acontece é as pessoas ficarem me olhando e tentando descobrir se eu sou homem, se eu sou uma mulher. Me lembro de um dia que eu estava no Largo da Batata, aqui em São Paulo, com a minha esposa, tomando uma cerveja, na calçada. Na frente de um bar, tinha um monte de gente na rua. E aí tinha dois caras do outro lado da rua. Eu estava em uma calçada, de um lado, os caras estavam na outra calçada, do outro lado. E eles começaram a olhar pra mim, pra minha esposa, e olhar de cima a baixo, olhar no meio das minhas pernas, dá pra perceber quando as pessoas estão olhando pra mim e conversando uma com a outra: “Ah, acho que é traveco. Ah, não, não é traveco não, acho que é mulher”. E eu vi que eles estavam conversando, tentando descobrir o que eu era. E, meu, um dos caras saiu de onde ele estava, atravessou a rua, chegou na minha frente, me olhou de baixo pra cima, não falou nada, voltou, atravessou a rua de novo. Voltou pro lado do colega dele, falou: “É traveco, mesmo”. Meu, assim... eu, assim, o meu trabalho é baseado em manter a paciência diante de situações de preconceito e tentar ser pedagógica, mas eu não sei, acho que situações como essa são uma afronta muito grande, uma demonstração de poder masculino, de poder cisgênero, de alguém que não está nem aí, vai chegar na sua frente, vai te olhar, te desrespeitar e vai embora, sabendo que ela tem esse poder assim, que ela tem esse suporte. E o que mais me incomoda é o seguinte: que, assim, nas situações eu poderia arrumar uma briga com o cara assim, falar: “Meu, quem você pensa que é?” Mas eles estavam em dois, né? Iam me bater. E o mais triste é que, se eu me envolvesse numa briga dessa com agressões físicas, provavelmente as pessoas que estavam no entorno não iriam me defender, eu iria apanhar como homem. Porque, assim, é um tabu. Eu não tô diminuindo, de forma alguma, a violência física contra a mulher cisgênero, é um problema grave, que a gente precisa endereçar e combater na sociedade, mas eu acho que tem uma diferença entre violência física contra mulher trans e a mulher cisgênero, porque existe ainda um tabu, né? Desde criança se ouve que não se bate em mulher, por mais que alguns homens batam. Mas agora, em travesti, em mulher trans é diferente, porque a gente não é considerada mulher por grande parte das pessoas. Então nessas situações que eu sofro esse tipo de violência, eu sempre penso que, meu, se eu apanhar, as pessoas não vão me defender, eu vou apanhar como homem e não só como homem, talvez como uma criminosa, porque existe o estereótipo de que a mulher trans, a travesti é barraqueira, é encrenqueira e é ladra. Existe essa associação. Quando as pessoas veem, sei lá, uma travesti correndo, gritando, elas não vão acudir. E é sempre isso que eu penso, eu penso que… eu não tô falando que a violência que eu sofro é maior do que a violência que uma mulher cisgênero sofre, né? São violências diferentes. Acho que eu tenho menos medo de estupro, por exemplo. Mas eu penso que, meu, os caras vão… podem me bater, me violentar e me matar. Isso é comum, isso é comum. Então quando eu ando à noite, na rua, eu penso nisso. E muitas vezes eu abaixo a cabeça pra esse tipo de violência. Mas às vezes não também, às vezes não. Assim, uma vez eu fui com a minha esposa pra Ubatuba. Faz uns dois anos. E aí a gente estava na praia e estava bem legal o dia. A gente fez uns passeios, a gente foi para uma ilha, voltou. E aí eu fui num quiosque da praia e precisava ir ao banheiro, aí eu comprei algumas coisas no quiosque, comprei algumas coisas no quiosque, aí me deram uma chave pra eu ir no banheiro. Aí eu falei pra Simone, minha esposa, esperar, falei: “Me espera aqui, que eu vou ali e já volto”. E aí eu fui no banheiro, quando eu voltei, eu passei por uns caras. E eu vi que eles estavam dando risada, não sei, estavam fazendo alguma coisa assim, mas eu não liguei, assim: “Sei lá, deve ser outra coisa, né?” Aí eu me encontrei com a Simone, a gente saiu do quiosque, começou a andar na praia e eu vi que a Simone estava bem mal, estava, tipo triste, mexida. Eu falei: “Simone, o que foi?” Ela falou: “Ah, nada não, vamos embora”. E eu falei: “Simone, o que foi?” Ela falou: “Nada, não. Vamos embora”. Eu falei: “Simone, me fala o que aconteceu”. Ela falou: “Não, não é nada, amorzinho, vamos embora, vamos pra casa, tal”. Eu falei: “Não, Simone, para, vamos parar”. A gente estava andando, eu falei pra gente parar, falei: “Me conta o que aconteceu. Alguém fez alguma coisa com você, alguém falou?” Aí ela falou: “Meu, quando você foi pro banheiro, os caras ficaram, tipo, rindo demais de você, foi muito humilhante ver os caras te olhando, te apontando e falando as coisas que eles falaram de você, quando você passou”. E eu falei: “Caralho!” Estava legal, a gente estava de férias, a gente não queria confusão, a gente não queria, a gente só queria curtir nosso final de semana. Eu pensei: “Meu, vou voltar lá”. E ela falou: “Não, não volta, não!”. Aí ela tentou me segurar, me agarrar e eu falei: “Meu, vou voltar lá e trocar ideia com esses caras, quem eles acham que eles são?” E, assim, acho que é uma prática bem travesti essa, de: “Meu, segura meus brincos, que eu voltar lá!” (risos) E aí eu tirei os brincos e fui lá. Não sei, eu tenho medo de puxarem e perder a orelha. Mas eu tirei os brincos e cheguei lá e eu vi que eram vários caras. Era tipo uns cinco, seis caras. Eu falei: “Meu, é um poder, eles têm mais belicosidade, né? Eu vou lá, vou falar com eles”. Assim, fiquei com medo, porque, poxa, são vários. Homens geralmente se sentem mais confortáveis de serem violentos quando estão em turma, né? Mas eu cheguei neles e falei: “Meu, vocês estavam rindo do quê?” E aí eu achei que eles iam engrossar, e não, eles se sentiram surpreendidos e intimidados. E aí um dos caras, eu descobri que um dos caras que estavam rindo ali, estava no grupo, era o dono do lugar. Ele era o dono do quiosque. E aí ele falou: “Não, a gente não estava rindo de você, a gente atende todo mundo bem aqui, independente da opção sexual”. Ele falou umas coisas assim: “Independente se é um travesti”. Mas ele falou: “Não, não foi isso, ah”. E eu falei: “Meu, não foi isso, você está me dizendo que você não estava rindo, você não estava zombando de mim e da minha esposa?” Ele: “Não, não, que isso”. E aí ele super afinou, ele super... aí eu falei: “Tá, beleza, então”. E eu fui embora, não sei se isso serviu pra alguma coisa, não sei se eles vão pensar duas vezes por medo do barraco, porque eu acabei fortalecendo esse estereótipo da travesti que faz barraco. Mas eu acho que se existe esse estereótipo, talvez exista por alguma razão. Porque, meu, a gente tem que ir lá. Eu não sei, talvez a gente tenha que ir lá e cobrar isso desses caras. Acho que eles não podem sair impunes e continuar achando que podem fazer o que eles bem entender, tanto com pessoas trans, tanto com mulheres, que… digo, mulheres cisgênero. É, eu acho que, de alguma forma, dá pra ser pedagógico, dá pra ser leve, dá pra tentar ter um discurso mais conciliador. Mas, às vezes, a gente precisa ir um pouco mais pesado. E isso, como eu disse, poderia passar a tarde toda contando dessas situações, que acontecem o tempo inteiro. E é uma coisa que eu estava até numa palestra, num workshop sobre questão racial e eu lembro de uma moça que eu vi, que ela disse o seguinte, ela falou: “Por mais que a gente tente deixar em segundo plano, por mais que a gente tente esquecer, o mundo fica nos lembrando quem nós somos e onde nós deveríamos estar”. As pessoas ficam me lembrando, assim: “Meu, você é uma travesti”. Que, assim, por mais que eu tente esquecer, por mais que eu… às vezes as pessoas até colocam isso, né: “Mas, Gabriela, por que você precisa ficar falando que você é trans? Meu, por que isso é tão importante? Você é simplesmente uma pessoa, né? Simplesmente um ser humano, nós somos todos iguais, Gabriela”. Mas, na prática, não é assim, né? Na prática, as pessoas ficam lembrando que a gente é trans, que a gente é negra… e, assim, falando de racismo, eu experienciei isso de maneiras diferentes ao longo da minha vida. Eu me lembro que antes da transição, quando eu era uma pessoa lida como um homem, as pessoas tinham... me viam como uma ameaça. Eu me lembro quando eu andava, sei lá, na rua, as pessoas se escondiam, seguravam a bolsa com mais força, fechavam o vidro do carro, guardavam o celular quando me viam, porque, afinal, eu era uma pessoa lida como um homem negro e existe o estereótipo. Existe essa relação que as pessoas fazem: homem negro, criminalidade. Então isso foi algo que eu sempre vivi, mesmo antes da transição, esse preconceito. Mas depois da transição, eu acho que esse medo, essa… as pessoas deixaram de me olhar como uma ameaça e passaram a me olhar com desprezo. Como nessa situação do quiosque na praia. As pessoas só riem e apontam e elas não têm mais medo, elas se sentem seguras pra fazer a violência, pra promover essa violência que elas acham que podem promover. Isso, inclusive, é curioso porque é triste, né? Mas tendo um olhar mais científico da coisa, eu não sei quem cunhou esse termo, mas é um conceito, que é o conceito de “desatenção civil”. Eu não sei quem cunhou, eu não sei quem cunhou esse termo, mas há um conceito, que é o conceito de desatenção civil. Se não me falha a memória, esse conceito está relacionado ao quão amplo é o espectro visual do homem e da mulher. Porque, assim, de acordo com essa teoria, o homem tem um espectro mais amplo, ele pode olhar pra mais lugares, quando ele está andando na rua, por exemplo. E a mulher não. A mulher tem um espectro visual mais estreito porque, se ela olha pra algum homem, olha pra outras pessoas, isso tem um outro significado, isso pode abrir espaço pra alguns tipos de violências, se a mulher mantém um olhar fixo em alguém, isso pode ser mal interpretado. Isso é uma coisa que eu senti bastante com a transição. Eu tinha mais liberdade pra olhar e as pessoas não me olhavam… como que eu posso dizer isso? É claro que hoje as pessoas me olham com curiosidade, mas o que eu quero dizer é que, assim, antes, um homem tinha medo, assim, acho que os homens se respeitam, de: “Bah, eu não eu vou olhar pra outro homem, porque vão achar que eu sou gay, vão achar várias coisas, mas, se alguém olha pra mim, eu desvio, as pessoas se desviam”. Mas, hoje, como mulher trans, negra, parece que as pessoas olham pra mim de uma maneira mais fixa, assim, como uma demonstração de poder, sabe? Elas olham pra mim de um jeito, algumas pessoas olham com uma admiração, talvez eu muitas vezes não sei o que move quem está do outro lado, mas eu sinto que as pessoas olham como uma demonstração de poder, no sentido de: “Meu, eu tô olhando pra você mesmo, você é, não sei, uma aberração, algo desviante e aí o que você vai fazer, se eu não parar de te olhar?” Eu sinto que o olhar, talvez, tenha esse outro tom, hoje. As pessoas fazem questão de mostrar quem é que manda, mesmo que com os olhos. Mas acho que de maneira geral, esses são alguns pontos que eu poderia falar sobre o preconceito, sobre intolerância.


P/1 — Gabi, você trabalha com a escuta, né? A escuta de outras pessoas. E, pelo que eu entendi, tem esses dois lados: de inspiração, onde as pessoas conseguem se abrir pra você e poder justamente se inspirar e falar: “Nossa, também tô vivendo e passando por isso, você me inspirou e vou… enfim, seguir meu caminho” e isso dá força, e também tem esse lado de ter que ouvir coisas violentas, né? A escuta, quais são os aprendizados, a partir disso? Quais foram e são os maiores aprendizados dessa sua trajetória, dessa sua carreira?


R — Mas, bom, sobre escuta, o que eu poderia dizer que eu aprendi sobre escutar os outros? Eu acho que a escuta é uma estratégia, uma ferramenta importante pra que a gente se conecte com os outros, né? Porque, assim, meu trabalho é mudar, de promover uma mudança, mas fazer com que as pessoas mudem hábitos, mudem comportamentos, mudem, reflitam sobre o que significa aquilo que elas falam, aquilo que elas fazem. E eu não vou simplesmente chegar num lugar e falar que a pessoa não deve fazer a e deve fazer b. Isso, aliás, eu posso chegar e posso falar isso, a maior parte das pessoas que trabalha com o que eu trabalho fazem isso, de chegar e dar um manualzinho de como ser uma pessoa inclusiva. Mas eu não acho que isso é efetivo. Não acho que uma pessoa deixaria de ser preconceituosa simplesmente porque alguém falou que ela deveria parar. Eu acho que uma estratégia, um instrumento pra promover essa mudança, é entender o que move o outro lado e, a partir daí, se conectar com ele. Um exemplo que, às vezes, eu compartilho nos meus webinars, minhas palestras, é o seguinte: eu estava numa palestra uma vez, era mais uma roda de conversa. E nessa roda de conversa, eu estava ali com mais ou menos umas vinte pessoas, que eram, em sua maioria, homens cisgênero, seguranças de um shopping. E em algum momento daquela roda de conversa, eu estava falando pra eles que “traveco” não é um bom termo, a gente não deveria utilizar o termo “traveco”, por conta do sufixo dele, o sufixo “eco”, esse eco tem a ver com algo diminuído, algo menor, algo vil, pixuleco, esse sufixo eco vem em coisas que são menores. E eu disse a eles que não deveria, que esse termo “traveco” não era um bom termo, mas eles começaram, em seguida, me falaram o seguinte, eles falaram: “Gabriela, a gente também não gosta de ser chamado de guarda”. O segurança me dizendo isso, né? E os outros que estavam no entorno até completaram, falaram: “E guardinha, então! E quando chamam a gente de guardinha, a gente fica bravo, o pessoal chega e fala: ‘Guardinha, me ajuda com isso daqui’”. Eles começaram a colocar o lado deles, como eles se sentiam diminuídos quando eram chamados de guardinhas. E aí eu fiquei escutando-os um tempo e eu falei: “Poxa, galera, são coisas diferentes, vocês serem chamados de guardinha, eu ser chamada de traveco, mas tem algumas coisas em comum aí, né? A forma como a gente se sente diminuída, como a gente se sente mal”. E falando, ouvindo-os e falando isso, eu acabei criando uma conexão ali, com a galera que estava nessa roda de conversa. E quando eu me conectei com eles, eu tive mais facilidade pra pensar conjuntamente, pensar com eles formas de promover um atendimento ali, uma cultura de respeito, uma cultura de inclusão. Mas eu consegui me conectar com essa escuta. E, assim, eu não sei se isso tem necessariamente a ver com escuta, mas tem a ver com conexão. Eu me lembro que eu fui fazer uma palestra, aliás, uma série de palestras numa empresa, foi uma fábrica. Então foi com o pessoal ali da produção, tal. E, aliás, foi com mulheres, foi só com mulheres. E quando a gente chegou lá, eu fui com uma outra moça que trabalha aqui na Transcendemos, a gente foi, montou a sala, colocou as cadeiras em meia-lua, montou projetor, a gente ficou esperando as mulheres da operação, ali, que se convencionou chamar de “chão de fábrica”, chegarem. Eu achei engraçado que uma moça chegou... aliás, todo mundo chegou, a gente fez a nossa fala, mas aí, quando eu estava indo embora, uma moça veio falar comigo, ela falou: “Meu, eu sabia que ia ser legal quando eu vi o seu cabelo”. O meu cabelo super conectou a gente. E também a outra moça que estava comigo, a Jamile, também tinha um outro tipo de cabelo, mais volumoso, mais empoderado e essa moça disse isso sobre o meu cabelo e sobre o cabelo da Jamile, ela falou: “Sabia que ia ser legal, quando vi o seu cabelo e vi o cabelo dela também”. Eu fiquei pensando como essas coisas conectam.


P/1 — Gabi, como é o seu dia a dia e como essa pandemia impactou a sua vida, pensando nos aspectos pessoais e também profissionais?


R — Bom, meu dia a dia era bem diferente, antes da pandemia. Mas não só por culpa da pandemia. Antes da pandemia, eu tinha menos visibilidade do que eu tenho hoje, bem menos, muitíssimo menos. Então eu tinha mais tempo pra pensar nas coisas, organizar as coisas. Eu tinha algumas reuniões por semana, não tantas, não todos os dias. Então essas reuniões eram geralmente presenciais, então, empresas me procuravam pensando em como implementar um programa de diversidade, como implementar ações nesse sentido. E eu ia até eles, conversava e tinha tempo pra quebrar a cabeça e desenhar um projeto com muita calma, muita destreza. Ao mesmo tempo, não que eu não desenhe hoje com calma e destreza, mas eu tinha mais tempo pra pensar e isso era fundamental, porque eu tinha menos experiência também. Então como eu tinha menos experiência, fazia as coisas mais devagar. Mas aí, com a pandemia, eu, assim como o restante do mundo, fiquei bem preocupado, achei que o mundo ia acabar, ali em março, né? Mas o mundo não acabou, espero que ele não acabe em breve. Mas eu fui descobrindo, em abril, que o problema da pandemia começou a se desdobrar de uma maneira surpreendente. Cada semana que passava a gente via algo novo e foi um momento bem difícil pra mim, profissionalmente e também em todos os outros sentidos, né? Meu, as pessoas estavam morrendo, as pessoas estavam perdendo emprego, foi e ainda é bastante triste, mas, profissionalmente, eu tive os meus projetos, os meus clientes suspensos, cancelados. Então eu fiquei sem dinheiro, sem nada pra fazer. Eu achei que a Transcendemos, que é a minha empresa, ia quebrar, ela ia não existir mais. Eu cheguei até a mandar currículo pra outros lugares, porque eu pensei: “Meu, o que eu vou fazer agora?” Achei que os meus clientes, que são as empresas, de maneira geral, deixariam esse tema de diversidade e inclusão em segundo plano, que, sei lá, focariam nas suas estratégias de sobrevivência pros seus negócios continuarem operando e a igualdade de gênero, combate à Lgbtfobia ficasse em último lugar. Mas não, não foi isso que aconteceu, surpreendentemente. Nós tivemos vários acontecimentos importantes. Importantes, mas tristes, em 2020. Então, desde George Floyd, que foi uma força importante ali pro movimento Black Lives Matter, até o caso do Carrefour, até o assassinato do jovem na rede de supermercados, jovem negro. Isso fez com que as empresas se movimentassem e adotassem, principalmente o tema de igualdade racial, como algo urgente. Então isso fez com que as pessoas me procurassem com mais afinco, procurassem a Transcendemos, pra que a gente os ajudasse com estratégias de diversidade e inclusão. Mas esse caminho veio conciliado a alguns reconhecimentos que eu tive em 2020. Então eu ganhei um prêmio da Mckinsey & Company, que é o LGBTQ Achievement Award. Fui reconhecida como Top Voice no LinkedIn também, fui conquistando um número cada vez maior de seguidores. Então isso fez com que o número de empresas que me procurasse aumentasse vertiginosamente e isso mudou bastante meu dia a dia. Porque eu sempre respeitei bastante a quarentena, então eu fiquei aqui em casa. Minha casa não é tão grande, tem cinquenta metros quadrados.


P/1 — Gabi, queria saber o que representa, qual é a importância pra você, individualmente, mas também socialmente, de trabalhar com esse nicho de diversidade e inclusão e fiquei pensando no diferencial que você comentou, em relação às outras consultorias, que é justamente de poder trabalhar com essa questão mais íntima e pessoal das pessoas, que é o ser, o estar e o vir a ser, né? A diversidade e a inclusão, acho que promovem esse tipo de discussão. O que representa, pra você?


R — Bom, eu acho que a minha história, essa energia, o meu eu se misturam com a Transcendemos, assim. A Transcendemos e eu, eu não digo de ser uma coisa só, mas estão intimamente relacionadas. Eu acho que é uma forma que eu encontrei também de me expressar, de pegar esse meu propósito e transformar numa mudança. Então, a Transcendemos, até no nome, traz até um pouco do Trans, assim, mas não é só isso. Não é um Trans só de transgeneridade também. Eu fiquei um tempão pensando nesse branding, o que significa Transcendemos. Porque transcender é você se tornar maior do que alguma barreira. Você se deparar com um desafio, um obstáculo e se tornar maior do que ele, é ultrapassá-lo. E é justamente isso que eu faço no dia a dia, né? Me deparar com barreiras e conseguir transpô-las, mas me tornar maior que elas. E eu não faço isso sozinha, também. Então, o nome da empresa não é Transcendi ou Transcendeu, é Transcendemos, porque é coletivo, porque eu acho que a construção que a gente está fazendo aqui é coletiva. Eu acho que só, sozinhos, sozinhas, sozinhes, a gente não consegue promover a mudança que a gente está se propondo a fazer. A gente precisa trazer, cada vez mais, pessoas pro nosso lado. Então, é Transcendemos. E eu acho que esse Transcendemos também tem a ver com o fato de que isso não tem um fim, isso tem uma constância, eu estou até pensando a palavra pra definir, isso se desdobra ao longo do tempo, porque senão o nome seria Transcendeu ou Transcendi. Transcendido. Não, é Transcendemos. Passa uma ideia de continuidade. Eu acho que isso que eu faço... eu fiquei bastante tempo, vários meses pra pensar no nome, porque ele traz acho que um pouco de mim, até, da minha transgeneridade, essa coisa, mas eu não queria que também ficasse restrito a isso. Tanto é que até a identidade visual, as cores, não são a bandeira do arco-íris, a bandeira trans. Ela sugere, com as suas cores, essa diversidade, mas é maior que isso, né? Transcende o individual, as minhas próprias dores, acho que abarca os desafios que muitas pessoas da nossa sociedade vivenciam no seu dia a dia e propõe essa transcendência. Que a gente consiga vencer esses obstáculos, essas barreiras, que nunca deveriam ter existido. Isso é feito de maneira coletiva e contínua. Então acho que isso tem a ver com o significado, com o propósito do meu trabalho. Mas eu não lembro da segunda parte da pergunta.


P/1 — Eu acho que é isso, o que representa pra você, mas eu acho que já está explicado. Pra você, o que é ser uma mulher empreendedora?


R — Bom, pra mim, ser uma mulher empreendedora está relacionado com esses estereótipos que a gente tem que quebrar e desconstruir todos os dias. A gente promover reflexões, essa mudança de consciência, tentar combater a ideia de que lugar de mulher não é nos negócios, que o nosso espaço deveria estar restrito à cozinha, à prostituição, no caso das mulheres trans. A gente tem que, todo dia, tentar transcender esses desafios, né? É mais difícil pra gente do que é difícil pra outras pessoas, pros homens, mas eu acho que a gente acaba tendo que passar pelo conceito de sororidade também, quando a gente está falando disso, né? Porque, assim, ser uma mulher empreendedora é ter que se provar, trabalhar mais, ter muito mais esforço pra construir essa autoridade, mas talvez, ao nosso lado, a gente possa contar com essa ideia de sororidade. Então mulheres que apoiam mulheres, também. Eu acho que quando a gente fala de empreendedorismo feminino, a gente precisa passar por essa união. Acho que a gente precisa, enquanto mulheres, apoiar umas às outras.










P/1 — E quais são seus maiores sonhos, Gabi?


R — Bom, eu espero que a Transcendemos, no futuro, possa se concentrar em outro tipo de desafio, que não esses mais básicos, relacionadas ao assédio puro e simples, o racismo, a intolerância, a pessoa com deficiência, ou qualquer outro grupo sub-representado, que a gente não tenha que empregar tanta energia assim com essas coisas que não deveriam, essas barreiras que não deveriam existir. Então, eu penso que, falando de sonhos relacionados ao meu trabalho, é que a Transcendemos possa se concentrar em outras coisas, que a gente possa... que todo mundo possa vislumbrar essa igualdade, né? Que todo mundo tenha igualdade de oportunidades, que possa não só conquistar um emprego digno, que não só possa chegar numa posição de liderança, independentemente da cor da pele, independentemente do gênero, independentemente do fato de ter uma deficiência ou não. Eu queria que todo mundo pudesse chegar onde quer chegar, onde de fato merece chegar e que essas pessoas possam se sentir pertencentes às suas empresas, possam, no final das contas, serem felizes, porque hoje não é essa a realidade com a qual a gente se depara, né? As pessoas, o tempo todo, são assediadas, sofrem violência e preconceito por conta das suas características e não são livres pra serem quem são. Então eu sonho num futuro no qual as pessoas possam ser livres pra serem quem são.


P/1 — Ah, infelizmente eu só tenho mais duas perguntas, mas queria saber se você gostaria de acrescentar alguma coisa ou contar alguma passagem que eu não tenha instigado ou deixar alguma mensagem.


R — Ah, tô pensando, falei tanta coisa, né? Vocês vão editar isso e vão, tipo, deixar grandão, deixar pequeno, deixar em partes?


P/1 — O vídeo vai pra íntegra, né? Vai ter uma íntegra, transcrição é na íntegra. Mas vão ter dois vídeos curtinhos, que vai ser muito difícil, tenho certeza, de editar, porque tem tanta coisa muito interessante, mas é justamente pras pessoas terem um gostinho de quero mais e navegarem. É só pra chamar, sabe, esses vídeos.


R — Ah, tá, um teaser, assim…


P/1 — É, mas será na íntegra.


R — Ah, meu, eu acho que eu já falei bastante coisa, eu fiquei bastante feliz, eu acho que você foi muito boa, você tocou com maestria, aqui, a conversa. Só agradecer, mesmo, o convite. Assim, foi um prazer imenso poder conversar com você, Lu, poder compartilhar um pouco da minha história e espero que ela, não só inspire outras pessoas, mas que isso sirva como um registro disso que a gente está vivendo hoje, né? Não sei quando as pessoas vão estar assistindo esse material. Não sei, a gente não sabe muito do futuro, mas espero que isso seja útil, assim.


P/1 — Era isso. Eu queria perguntar, pra finalizar, como foi essa experiência pra você, de ter contado da sua vida, ter contado questões muito íntimas. Enfim, ter compartilhado um pouco com a gente, pensando desde a infância, as brincadeiras, até hoje em dia, os sonhos. Mas acho que já respondeu, ou não?


R — Bom, eu sempre digo que essa mudança que a gente está se propondo a fazer passa por um processo de autoconhecimento também. Antes de querer mudar o mundo, a gente precisa olhar pra dentro de nós. E eu acho que essa experiência de estar aqui, com você, hoje, Lu, foi bem importante, nesse sentido. Eu acho que, na medida em que eu conto um pouquinho dessa minha jornada, dessa minha história, eu acabei me entendendo mais. Acho que isso foi, assim, várias pecinhas que não estavam tão bem encaixadas, eu acho que eu consegui encaixar, enquanto a gente conversava. Eu acho que isso me dá mais insumo pra promover essa mudança que eu tô me propondo a fazer, que é algo que eu sempre digo nos meus trabalhos, nos meus projetos: “Antes de olhar pra fora, a gente precisa olhar pra dentro”.


P/1 — Muito obrigada! Foi muito gostoso passar esses dois dias com você, um grande momento de extrapolar bordas, que eu acho que é isso, isso faz parte de um processo contínuo, que você estava falando e foi muito especial, pra mim, poder estar aqui com você. E obrigada, de coração.