Museu da Pessoa

Trabalhar pros outros nunca foi minha praia

autoria: Museu da Pessoa personagem: Cristiano Gonçalves Cardoso

P1 - Fecha os olhos, respira fundo, vai tentando trazer imagens do passado na sua mente, as mais longínquas que você consegue ver, vai voltando pra trás, pro passado __________ (00:23). Que imagem que te vem?
R1 – Uma imagem? Primeiro, com a minha mãe.
P1 – Como que é essa imagem?
R1 – Minha mãe sempre foi a pessoa mais perto da gente, né? Pelo menos dos filhos. E aí ela sempre querendo ensinar a gente escrever, ler ou falando de trabalho.
P1 – Como é seu nome completo?


R1 – Meu nome é Cristiano Gonçalves Cardoso.
P1 – Qual o seu local e data de nascimento?
R1 – Minha data de nascimento: 15 de abril de 1985, sou favelado da gema, São Paulo.


P1 – Qual favela?
R1 – Favela da Vila Prudente.
P1 – Os seus pais são da favela também?
R1 – Não. Minha mãe é pernambucana e meu pai é mineiro.
P1 – Qual o nome da sua mãe?
R1 – Minha mãe Geniclides Gonçalves Cardoso.
P1 – E você conhece a história da sua mãe, dos seus avós?
R1 – Mais da parte da minha mãe que da parte do meu pai.
P1 – O que seus avós faziam? De onde que eles eram?
R1 – Meu vô da parte da minha mãe era nordestino de Pernambuco e aí essa questão, eles trabalhavam muito que eles chamam na roça, né? E aí minha mãe veio pra São Paulo, após casar com meu pai. Aí eles eram de Pernambuco, mudaram pra Ocauçu, que é aqui interior de São Paulo e aí meu pai acabou conhecendo minha mãe com 15 anos, minha mãe casou com 16 anos.
P1 – Você sabe como eles se conheceram?


R1 – Não, meu pai era um doidão, que gostava da Jovem Guarda e aí ele foi visitar algum parente dele, viu minha mãe, falou que gostou e, no outro dia, ele veio buscar minha mãe pra casar. No outro ano ele voltou e foi casar com a minha mãe. Rápido, assim.
P1 – Sua mãe gostou dele também?


R1 – Não. Minha mãe falou que não gostava. Minha mãe falou que só o viu uma vez, só. Meu pai fumava um baseado e aí (risos) minha mãe nem sabia que aquilo ali era maconha, deu pra ela e falou: “Fuma, que é gostoso”. Aí ela fumou, falou que ficou bem doida e descobriu que aquilo era maconha e não quis mais, mas meu pai era bem doidão, gostava de Jovem Guarda, Roberto Carlos.
P1 – Aí ela não queria, mas casou?


R1 – É, ela falou que não queria, minha vó queria, meu vô não queria.
P1 – Seu pai trabalhava?


R1 – Meu pai trabalhava. Sempre foi trabalhador.
P1 – O que ele fazia?
R1 – Meu pai era metalúrgico. Meu pai sempre trampou.
P1 – Não, mas lá em Pernambuco. Ele conheceu sua mãe em Pernambuco?
R1 – Conheceu aqui em Marília.
P1 – Já tinham vindo?
R1 – Isso. Já tinham vindo, já.
P1 – E por que ela casou?


R1 – Primeiro namoradinho que tinha gostado dela. Acho que meu vô olhou e falou assim: “Filha, aqui nesse final de mundo, vai esse ou nunca mais você casa, né?” Aí casou. (risos)
P1 – Quantos anos tinha sua mãe quando ela casou?
R1 – Minha mãe falou que casou com 17 anos.
P1 – E seu pai?
R1 – Meu pai já não sei, não. Eu e meu pai tínhamos pouco contato, mesmo morando dentro de casa. A gente nunca foi presente, trocando uma ideia.
P1 – Quando seu pai e sua mãe casaram, a sua mãe tinha profissão ou dona de casa?
R1 – Não. Minha mãe sempre foi dona de casa.
P1 – E logo que eles casaram, tiveram filhos?


R1 – Depois de três anos.
P1 – Quantos filhos?
R1 – Quatro.
P1 – Você é qual?
R1 – Eu sou o caçula dos homens, sou eu e mais um, o Cláudio. Aí tem a Sandra e a Nana.


P1 – O seu pai e sua mãe casaram e foram morar onde?
R1 – Aí moraram em Marília, depois mudaram pra São Bernardo, depois vieram pra favela.
P1 – Os quatro irmãos nasceram na favela?


R1 – Não. Um nasceu em Marília, outro em São Bernardo e eu e minha irmã nascemos na favela, a mais nova.
P1 – Por que eles saíram de São Bernardo?
R1 – Era aluguel. Aí meu tio era uma grande liderança aqui dentro da favela, o ‘seu’ Dalvino e aí saiu na revista Veja, há muito tempo, acho que 1970, meu pai veio pra cá... 1979 saiu na revista Veja, na capa, meu tio, chamado Dalvino e o ‘seu’ Espíndola, os mafiosos da favela, mas era questão de política, né? E aí, como estava saindo muitas entrevistas sobre essas duas pessoas, uma, o ‘seu’ Dalvino, por conta que ele dava injeção na pessoa periférica, que ele fez um curso de Medicina. Ele ia ser padre, aí acabou falando que não ia ser mais padre. Ele ficou exercendo essa função, mas não era médico. Ele dava injeção dentro da favela, dava remédio, aquela consulta básica, que é periférica. E o ‘seu’ Espíndola era uma grande liderança dentro da favela, eles saíram na revista. Como meu tio tinha ido pra igreja católica e saiu na revista, meu pai comprou, naquele tempo, uma Veja e foi visitar minha mãe. Aí meu vô olhou e falou: “Esse aqui é meu irmão”. Ele falou: “Seu irmão?” “É. Faz anos que não o vejo, ele ficou na igreja, é seminarista”. Aí meu pai foi e trouxe todos os meus tios pra ficar na favela (risos), meus tios nem queriam contato com ele e, no final da conta, a família inteira da parte da minha mãe veio pra cá.
P1 – Ele queria mudar pra favela? Não entendi.
R1 – Não, ele não queria mudar. Ele veio pra cá, morava de aluguel...
P1 – Veio reencontrar o irmão?
R1 – É.
P1 – Meu pai foi à Ocauçu e conheceu minha mãe, casou, foi morar em São Bernardo. Ele estava lá em São Bernardo, voltou pra Marília, pra levar minha mãe pra visitar a mãe dela. Aí eles foram com a revista Veja, que tinha a foto do meu tio, aí meu vô falou assim: “Esse cara aqui é meu irmão. Faz muitos anos que eu não o vejo”. Aí eles vieram, trouxeram meu tio e meu vô pra visitar o meu tio que estava aqui na favela, aí meu tio falou assim: “Aqui tem casas pra alugar, pra vender”. Aí meu vô veio de Marília pra cá, morar na favela. Aí meu pai também veio. Aí todo mundo veio, porque todo mundo morava de aluguel.
P1 – E aí compraram casa aqui?
R1 – Compraram. Aí minha vó comprou uma casa, que era uma igreja católica, morou lá. Meu pai comprou uma casa um pouquinho peto da casa da minha vó, aí estamos aí na favela desde 1979.
P1 – E como era sua casa? Você mora na mesma, desde quando nasceu?
R1 – Isso. Voltei pra casa da minha mãe, aí moro na mesma casa desde o dia que eu nasci, desde o dia 15 de abril.
P1 – Como é a casa?


R1 – Quando era barraco... a minha casa, se não me engano, tem cinco por quatro. Não é uma casa grande. É um barraquinho pequenininho. Embaixo tinha um quintal, pequenininho, porque todas as casas da favela têm um cachorro. Aí entrava, já era a sala e a cozinha, tudo junto e tinha um banheiro. Subia a escada, era um quarto único. Depois meu pai demoliu o barraco e construiu uma casa de quatro andares. Aí, embaixo, onde que é a sala e a cozinha, em cima é um quarto e depois outro quarto. Aí tem a parte de cima.
P1 – E como vocês dormiam? Todo mundo: pai, mãe e filhos num quarto?
R1 – Todo mundo junto.
P1 – E como era viver assim?
R1 – Pra nós não foi tão diferente, né, porque nós só tivemos esse hábito. Nós não sabemos como é ser diferente, se não fosse isso, mas a família do meu pai, que já mora em São Bernardo há algum tempo, já era diferente, né? Cada primo já tinha um quarto, já tinha a sala, que era cozinha, banheiro, carro. A família do meu já é um pouco mais bem estruturada que a família da minha mãe. Mas, dos dois mundos, eu acho que eu tinha mais prazer de estar perto, era a família da minha mãe, porque todo mundo estava junto, todo mundo comia o que todo mundo comia, não tinha essa frescura. Se a gente caísse no sono, ia dormir no quarto da minha vó. Final de ano nós esperávamos meu vô chegar, meu vô era vigilante e só era virada de ano quando meu vô chegava. Então, quando meu vô virava a rua, era forró a noite inteira, na semana era jogo de dominó, baralho, sempre a gente estava junto. A família do meu pai era mais tudo no certo.
P1 – E aí você tinha um convívio com sua vó, com tios, porque estava todo mundo aqui.
R1 – Isso. Aí é um pesadelo, pra nós, que somos pequenos, porque cada um quer mandar em você, que é menor. (risos)
P1 – E com quem você brincava?
R1 – Com todos os meus primos. Eu tenho 15 tios. Todos os meus primos. A nossa brincadeira era familiar, né?
P1 – Do que vocês brincavam?






R1 – Até os sete anos eu brincava de bola, pular corda, esconde-esconde, chuta pote, de tudo que você imaginar. Pipa era pouco. Pião, vilinha, jogo da velha, stop.
P1 – E brincava com outras crianças, seus primos?




R1 – Com outras crianças. Até os sete anos foi esse ritmo. Depois dos sete anos minha vida muda, né?
P1 – O que aconteceu?








R1 – Porque eu já comecei a trabalhar com sete anos de idade.
P1 – Começou a trabalhar em quê?
R1 – Trabalhava numa mecânica, com meu irmão. Aí trabalhava de manhã com ele e estudava à tarde. Ou, se eu estudasse de manhã, trabalhava à tarde. Então, a minha infância acabou com sete anos.
P1 – O seu pai que te levou lá pra trabalhar?
R1 – Não, meu irmão. Meu pai trabalhava demais. Meu pai trabalhava domingo a domingo e, nas horas vagas dele, ele estava bebendo.
P1 – Ele continuava como metalúrgico?


R1 – É. Eu não lembro do meu pai um dia em casa.
P1 – Que lugar que ele trabalhou?
R1 – Na refinaria da Petrobras, aqui na Braskem, só em grandes empresas. Trabalhou na (Peterman? 10:46), que faz estofado de carro. Meu pai nunca ficou... não me lembro do meu pai parado, se não fosse férias.
P1 – E ele que era o provedor financeiro?
R1 – É, ele dava o básico em casa, porque imagina quatro crianças dentro de casa, cuidando de uma casa, minha mãe não trabalhava e o único dinheiro que entrava dentro de casa era o dele e aí era o básico. Nós convivemos com arroz, feijão, uma farofa e um ovo. Não tinha esse negócio de dois ovos, não. Era um ovo só. Se você escolhesse um frango, o peito do frango era dele, a coxa era da minha mãe e a coxa era do meu irmão mais velho, o restante era nosso, nós só podíamos escolher um pedaço de carne. Refrigerante a gente foi tomar com 12 anos de idade. Antes minha mãe fazia garapa. Era água bem gelada com um monte de pedra de gelo e açúcar. Aí ela falava que aquilo era guaraná. Quando eu cheguei com 12 anos, que eu fui saber que não era o guaraná (risos) que eu bebi lá no Centro da cidade, não era aquele guaraná em casa. Guaraná. Minha mãe, quando não estava em casa, quem cuidava da gente era meu irmão. Aí meu irmão inventava umas coisas que hoje a gente dá risada, né? Porque essa galerinha de hoje não vai viver isso, né? Meu irmão cortava o tomate, aí eu falava assim: “Estou com vontade de comer caqui”. Aí meu irmão cortava o tomate, tirava a semente, colocava açúcar, tudo dele era açúcar e ele falava: “Caqui”. (risos) Aí nós comíamos, pensando que era caqui. “Estou com vontade de comer maionese”. Ele pegava o leite em pó, batia com bastante açúcar, ficava maior grosso, falava: “Maionese”. Aí nos atacávamos no pão, pensando que era maionese. Aí nós fomos enganados de uma maneira que nós não poderíamos ter acesso àquelas coisas e aí chegou um certo tempo, nós também já estávamos aprendendo, né? Então, aqui tinha muito Peralta, Tulha, esses hipermercados que antes eram do nosso tempo esses aí e atrás dele sempre tinham os lixões, né? Que era o que estava azedo ou já estava no tempo de validade. Nós só esperávamos sair e levava pra casa e comia, a gente sobrevivia com isso, né? Era essa a nossa realidade, da minha casa.
P1 – Vocês iam?
R1 – Nós íamos bastante.
P1 – Quem ia?




R1 – Eu, meu irmão, minha irmã. Minha mãe reclamava, mas chegava em casa, comia também. (risos) Danone, queijo. Minha mãe se virava nos trinta, fazia bolo de chuva. Às vezes faltava dinheiro em casa, pegava bolo de chuva pra ir vender no final de semana, gelinho minha mãe fazia, bolo, vendia. Então, esse convívio próximo, assim. O barraco era pequeno, então não tinha muito esse negócio: “Agora eu vou dormir, vou fechar a porta do meu quarto”. Você só dormia quando todo mundo dormia. Ou quando meu pai chegava em casa, né? Aí você tinha que ficar no silêncio, porque o Jornal Nacional era de lei, você tinha que assistir (risos) com ele. Nós só comíamos quando ele chegava. Nós tomávamos café da manhã no sábado e no domingo, quando ele acordava. Então, essa foi a infância, assim.
P1 – Como era o ambiente dentro da sua casa? Quem exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R1 – Sempre a autoridade, durante algum tempo, foi minha mãe. Depois mudou meu pai. Depois os dois não tinham mais autoridade. A autoridade era meu irmão.
P1 – Por que uma época era um, depois outro...
R1 – Porque meu pai não ficava muito tempo em casa. Meu pai trabalhava muito, então ficou mais tempo minha mãe. Aí depois meu pai começou a já cortar as horas extras, o emprego dele, a empresa já estava pra abrir falência e aí ele ficou mais tempo em casa, sábado e domingo ele já estava em casa, cortaram o horário dele, ele começou a ter uma voz dentro de casa. Depois os dois já estavam percebendo que os filhos estavam evoluindo e aí meu irmão ficou o chefe da casa. E aí, na minha opinião, assim, onde que deu merda.




P1 – Por que ele tomou essa liderança?
R1 – Acho que meu pai já passou pra ele, né? Ele já tinha um papel do irmão mais velho, né?
P1 – Mas por quê? Ele trabalhava?
R1 – Já trabalhava, já tinha dinheiro. Ele vivia dançando, né? Então, final de semana não via meu irmão, vivia em competição de dança.
P1 – O que ele dançava?
R1 – Naquele tempo, black music, né? Dança de passinho de salão.
P1 – Você dançava também?


R1 – É, era obrigado, né, a escutar as músicas. Hoje eu agradeço, né?
P1 – O que você escutava?
R1 – Eu escutava James Brown; rap antes do Racionais, agora eu não lembro dos nomes: “Rute, Carolina, Bete __________ (15:17) igual, quatro nomes de menina”. Blacks. Ndee Naldinho, naquele tempo, era o auge. Sampa Crew. Então, nós tínhamos que escutar esse tipo de música pra ele. Hoje eu agradeço, porque é um prazer escutar essas músicas hoje. Mas naquele tempo que nós éramos pequenos, eu não queria escutar isso, nós queríamos escutar outras músicas, de criança, né? (risos)
P1 – Quando você disse que foi lá que deu merda, o que aconteceu?
R1 – Porque eu acho que quando você tira... o irmão mais velho toma a frente da casa, tira a autoridade do pai e da mãe, né? Hoje, eu tendo filho, eu acho que isso aí é a pior besteira, né? Você tira a referência, que é o pai e a mãe. O irmão mais velho nunca vai conseguir ser a referência do pai e da mãe. E às vezes o filho mais velho acha que tem mais autoridade do que o pai e a mãe. Então, meu irmão viu que ele não ia conseguir o poder de uma maneira, começou a gerar violência. Então, nós fomos muito agredidos, eu e meus irmãos.
P1 – Ele batia?
R1 – Orra! Se fosse hoje, no tempo de hoje, nós éramos torturados.
P1 – É mesmo?
R1 – É.










P1 – O que ele fazia?
R1 – Acho que ele não foi criado no modelo... meu pai não era agressivo com ele, porque ele é o mais velho, sempre foi o mais dondoca, né? Mas ele foi criado pra criar força, naquele tempo, pros amigos, eu acredito que ele ganhava autoridade com a força, né? Então, ele acha que a autoridade era a força.




P1 – Como ele batia em vocês?
R1 – Ele batia com murro, porrada, paulada. Rider, eu tenho raiva até hoje desse chinelo. “Rider, dê férias para os seus pés”. Um chinelo pesado. Era só uma (risos) no couro e já era.
P1 – Ele batia nas suas irmãs?
R1 – Batia em todo mundo.
P1 – Mas ele ficava agressivo... ele bebia?
R1 – Não. Era pra mostrar autoridade. Não bebia, não usava droga. Até hoje meu irmão não bebe, não usa droga.
P1 – E como é que seu pai e sua mãe se davam, se davam bem?


R1 – Quando meu pai bebia final de semana, sim. Aí, depois, quando meu pai se entregou pro álcool, aí já não se dava muito bem, não. Eu acho que minha mãe nunca foi feliz do lado do meu pai, né? Mas meu pai amava minha mãe. Eu sentia isso aí. Acho que meu pai foi aquele louco apaixonado por uma mulher, que talvez não sentiu aquele mesmo prazer por ele. Porque também acho que também ela, desde o começo da relação, não teve opção de falar sim ou não, né? Então, eu cresci numa casa machista, onde minha mãe não poderia falar se estava com dor ou não. Onde que minha mãe não podia responder se estava certo ou errado. Então, eu cresci nessa casa machista.
P1 – Mas sua mãe era carinhosa?


R1 – Minha mãe sempre foi carinhosa. Minha mãe é carinhosa até hoje, com todo mundo. Minha mãe é carinhosa. Aí minha mãe, durante um tempo, ficou internada no hospício.
P1 – O que ela teve?
R1 – Não teve nada. Ela simplesmente é espírita, né? E aí minha mãe não sabia ler, nem escrever e de repente ela estava escrevendo inglês, espanhol, falando outro idioma. E aí a galera, naquele tempo, achava que era loucura. Aí ela foi pro hospício, ficou um tempo internada, até o dia que chegou um senhor chamado ‘vô Alberides’, nós o chamávamos, levou minha mãe pra mesa branca e começou a desenvolver a minha mãe.
P1 – Quanto tempo ela ficou internada?
R1 – Minha mãe ficou internada um ano, assim, era duas... não me lembro de cor, assim, mas ficou um tempinho internada.
P1 – Quantos anos você tinha?
R1 – Nove anos. Sete, oito, nove.
P1 – E você entendia o que estava acontecendo?
R1 – Não. Fiquei sabendo que minha mãe ficou internada no hospício há um tempo.
P1 – Você achava que o que tinha acontecido?
R1 – Achava que ela estava doente. (risos) Menos hospício. Mas sabia que minha mãe tinha uma coisa paranormal. Quando nós éramos pequenos, minha mãe... nós nunca fomos ao médico, minha mãe que benzia a gente, pegava mato, assim, fazia um chá, nós tomávamos. Na casa da minha mãe sempre teve muita criança, pra ela benzer. Crianças que chegavam no médico e os médicos falavam que não tinha nada e minha mãe benzia. Do nada, assim, minha mãe parava num lugar e estava conversando sempre com alguém. Pra mim era natural isso, não tinha medo dela.
P1 – E seu pai, _____ (20:00)?
R1 – Meu pai morria de medo da minha mãe. Teve um dia que minha mãe estava sentada e, do nada, o copo foi na cara do meu pai, mas minha mãe não triscou a mão no copo. O copo estava ali, minha mãe aqui e meu pai sentado ali. Ele xingando minha mãe e minha mãe acho que entrou em transe, o copo tchum. Aí ele já era, ficavam em pânico.
P1 – Você viu essa cena?
R1 – Vi. Várias cenas, em casa. O chuveiro ligava...
P1 – Que outras cenas você viu?
R1 - ... no meio da madrugada nossas cobertas saíam da cama. Nós pensávamos que era um ou outro, mas não. Minha casa nós fomos criados nesse ritmo, né? O parente da minha mãe já é uma linha mais... meu tio foi do candomblé, depois foi pro quimbanda, meu vô era espírita também, meus tios também eram. Hoje já são de uma religião mais conservadora, mas quando chegava final de semana era atabaque em casa, normal. Atabaque na casa da minha vó. Em casa, minha mãe ficava de boa.
P1 – Como era o atabaque? Você ia?






R1 – Ia. Eu sou do candomblé, né? Mas naquele tempo...
P1 – Mas lá era mesa branca?
R1 – Minha mãe é da mesa branca, meu tio é do quimbanda e meu vô era da umbanda. Então, era uma mistura danada.












P1 – Mas esse atabaque, o que era?
R1 – Da umbanda.
P1 – Que é a linha da sua mãe. E ela recebia algum espírito?


R1 – Jurema.
P1 – Qual a característica?
R1 – Da mata, né? É descendente de Oxóssi. Cabocla.
P1 – Tinha festa?
R1 – Não. Não tinha grandes festas. Só era mesmo trabalho de gira, que hoje eu entendo um pouco, é um trabalho mais de gira.

P1 – E outras festas, comemoravam? Aniversário, Natal, Ano Novo...
R1 – Aniversário, Natal. Sempre nosso aniversário era conjunto com alguém, pra economizar. (risos) Aí era um bolo pra todos os primos. Ou senão nós pegávamos todo mundo que fazia aniversário num mês só, comprava Tubaína e aí já era. Coca cola era impossível ter em casa. Nós ganhávamos roupa o ano inteiro. Aí, no final do ano, nós mandávamos roupa pra igreja. (risos) Aí, chegava janeiro, minha mãe ia lá comprar as mesmas roupas que nós já tínhamos doado. (risos) Então, era uma loucura a nossa vida. Não foi uma vida luxuosa. Hoje eu lembro, assim, que a nossa briga, na virada do ano, todo mundo passava de branco e só tinha uma roupa que era branca, em casa, que era o conjunto da Shell, que era do pessoal do posto, de abastecer e minha mãe lavava. Era um segredo com aquela roupa. E quando era final do ano, nós tínhamos que pegar aquela roupa, pra poder passar a virada de ano. Hoje eu fico pensando, mano, era um macacão da Shell, cara. E nós andávamos com o macacão da Shell. Então, a infância foi dessa maneira. Aí, quando eu cheguei com sete anos, que eu comecei a ganhar um pouquinho de dinheiro, a primeira coisa que eu fiz foi dar o dinheiro pra minha mãe. Aí, quando eu fiz dez, doze anos, aí eu comecei a pegar o dinheiro pra mim, já comecei a ajudar, um pouco, minha mãe, mas todo meu dinheiro era pra minha mãe. Nós não pegávamos dinheiro pra nós.
P1 – E a escola, você entrou com quantos anos?




R1 – Eu nunca fiz prezinho e aí já entrei pra escola com oito anos. Sete, oito anos.
P1 – Que escola?
R1 – Do lado da favela, chamada Carolina.
P1 – Com quem você ia pra escola?
R1 – Com meus primos.










P1 – Caminhando?
R1 – Isso. Atravessou a rua, já estava na escola.
P1 – Você lembra de alguma professora que tenha te marcado?
R1 – Lembro da Doralice, foi minha primeira professora, da primeira à quinta série. Acho que foi uma das melhores professoras que eu tive, que acho que primário é fundamental (risos) pra você saber se você vai gostar ou não da escola, né? E a Doralice fez você não gostar da escola. Não por conta que ela era ruim, porque ela era muito boa e nós, naquele tempo, queríamos saber de brincar. Então, não era uma coisa simpatizada. Chegava na escola oito horas da manhã, até meio dia era uma lição interminável. Se a primeira à quinta série era daquele jeito, imagina da quinta à oitava! E uma professora chamada Vera Lúcia, que era de Português, da quinta à oitava, que essa eu gostei dela pra caramba, aí eu já comecei a andar com alguns amigos, aí foi engraçado, porque os meus amigos nunca foram tão legais, hoje só sobreviveram três.


P1 – Da escola?
R1 – É. Os amigos que eu comecei a andar, fora meus primos. E aí, um dia, um amigo meu foi pra escola, chamado Max, com um revólver, né? Ele foi, colocou o revólver debaixo da mesa e ela viu. Aí ele pegou o revólver, ela falou: “Por que você está vindo com o revólver pra escola?” Ele falou: “Eu vim só pra mostrar pros meus amigos”. E ela sabia manusear o revólver. Ela pegou, tirou as balas e falou: “Guarda na sua bolsa, não quero te levar pra diretoria”. E ela a maior simpatia, assim. Uma professora muito boa, muito qualificada, mas naquele tempo nós não demos atenção, né? Hoje eu tenho uma dificuldade de leitura e escrita, me considero semianalfabeto, tenho muita dificuldade de leitura e escrita, mas passei, fiz o fundamental, passei por aquela lei, que era só ir pra escola.
P1 – E seus irmãos, como eram?
R1 – Meu irmão mais velho nunca gostou de estudar, não. Ele era, no nosso linguajar, periférico 13, problemático. Muito problemático na escola.






P1 – Por que 13?
R1 – Não sei. Acho que o 13 é um número... (risos) nós, da favela, quando fala 13, é alguém muito problemático. Então, (risos) não saberia te informar por que 13, mas se ouvir esse número dentro de uma favela, você já sabe que é problema. E aí, minha irmã, a Sandra, gostava de estudar, gosta até hoje. A Nana também é igual eu, também não gostava muito de estudar. Nós não fomos uma família que gostava muuuuito da escola.
P1 – Você aprontava na escola? Você era comportado?
R1 – O meu único problema na escola era falta e namorada.
P1 – Você faltava muito?
R1 – Faltava. Pra trabalhar.
P1 – E namorar?




R1 – Namorar, namorei bastante.
P1 – Desde quantos anos?
R1 – Desde os oito anos.
P1 – É mesmo?
R1 – Com doze anos, dez pra doze anos, briguei com a minha mãe pra ficar mais na casa da minha namoradinha do que tudo. Aí, toda vez, era briga. Toda vez eu apanhava. “Você não vai sair de casa hoje”. Psiiiiiii, saía. E aí, já com doze anos, aí eu também já comecei a perceber o lado do machismo que eu acho que mais é tortura, né? Aí deu pra entender os motivos por que minha mãe não sentia aquele amor, na minha opinião, pelo meu pai.
P1 – Quando você foi virando adolescente, o que mudou na sua vida?


R1 – Total. A adolescência, na periferia, já é uma juventude. Você já é responsável. Não é com 16 anos. É com dez, doze anos. Não tem essa diferença: vai ter uma juventude e você já é maior após 18. Não, aos 18 você já pode ser preso. A única coisa que nós sabemos, quando somos periféricos. Com 12 anos você já é responsável pra compra roupa, pagar suas dívidas, comprar qualquer coisa dentro de casa, viajar, sair. Então, já mudou tudo, né? Mudou completamente. Então, tudo que eu queria, eu tinha que comprar e pagar. Meu pai já falava uma coisa que já virou tradição: “Eu já te dei três coisas importantes na vida: a vida, conhecimento e arroz e feijão”. Era esse linguajar que a gente tinha dentro de casa.
P1 – Você foi criado nessa tradição espírita. E você tinha isso com você, queria seguir, frequentar? Ou você ia por conta de um hábito familiar?
R1 – Eu ia pro lado familiar, tinha muita comida, doce, aí ia mais pra comer. A minha adolescência eu não curti muito religião. Eu acredito que, naquele tempo, até agora, é uma prisão. Você fica bitolado. Minha família sempre foi um pouco bitolada, né? Ou é ou não é. Pra nós não tem meio termo. Ou é muito ou não é nada. E aí eu vi umas coisas que eu não gostava muito, aí depois...
P1 – O quê?
R1 – Ir pra igreja todo domingo. Todas as quartas-feiras era dia de ir pro centro. Aí você tem que ficar lá, tem que fazer comida, tem que fazer isso. Então, as obrigações nunca curti tanto.
P1 – E que lugares você frequentava na adolescência, quando começou a sair?






R1 – Comecei... naquele tempo não tinha tantas festas hoje, como tinha, era quermesse, as famosas quermesses das igrejas, dos bairros; pizzaria; depois comecei a ir pros bailes e dentro da favela, né?
P1 – Onde eram os bailes?
R1 – Eu ia muito pra _____ (29:40), Over Night, pro Radial e os sambas dentro da favela, praça do samba.


P1 – Aqui na favela?
R1 – Isso já fora da favela.
P1 – E na favela?
R1 – Vera Cruz e a sede, onde tinha os dois bailes. Eu era o único jovem, adolescente, que andava nesses lugares, por causa do meu irmão, meu irmão levava a gente. Em estádio, né? Em estádio de futebol eu fui bastante.
P1 – Você torce pra qual time?
R1 – Santos. Eu sou da Torcida Jovem do Santos.
P1 – Por que você torce pro Santos? Teve alguma influência?
R1 – Não, teve influência. Ou você era ou apanhava mais. (risos) Aí você tinha que ser.
P1 – Quem era, seu pai?
R1 – Meu pai, a família do meu pai, quase toda era santista. Aí, em casa, criou uma força grande, meu irmão é santista muito fanático, eu também, mas hoje eu já estou mais cauteloso com isso. Meu irmão é louco até hoje pelo Santos. Aí nós começamos a ir pra estádio. Aí, aquela fúria que tinha dentro dele, ele soltava nos estádios, né? Aí nós ficamos mais amigos. Com 12 anos eu fiquei mais próximo do meu irmão, de conversa. Não trabalhava mais com ele, já trabalhava pra mim mesmo.
P1 – E você, o primeiro trabalho que você teve com seis anos...




R1 – Sete anos.
P1 – Na metalúrgica?
R1 – Com meu irmão.
P1 – Você ficou quanto tempo?
R1 - Sete, oito, nove, dez. Quatro anos. Aí, com 11 anos, minha mãe não me deixou sair pra rua, pra trabalhar, nada, porque meu irmão tinha me lixado todo, brincando. Diz ele que era uma brincadeira. Aí ele me lixou todo com uma lixa grossa, eu fiquei muito machucado, assim. (risos)
P1 – Te lixou por quê?
R1 – Só porque eu fui brincar com ele, lixei a mão, ele me lixou o corpo. Lixou, mesmo. Tive que falar pra minha mãe que eu caí em cima da bola. Mas não foi isso. Não tinha como eu cair de cima da bola e me ralar todo daquele jeito. E aí eu fiquei em casa, minha mãe não me deixou trabalhar com meu irmão, aí gerou um desconforto, né, de ambas as partes e aí, com doze anos, eu comecei a vender limão no farol. Aí meu amigo Magno, está vivo hoje, meu parceiro, falou: “Cris, meu pai está vendendo limão no farol. Você não quer vender, não?” ‘Seu’ Orlando. Eu falei: “Quero”. Aí nós fomos vender, ele falou assim: “A cada três sacos de limão que vendia por um real, um era nosso”. Aí eu vendia dez reais quase todo dia, né? Naquele tempo, dez reais era muito dinheiro. Muita grana. Aí eu falei: “Meu, pra que eu vou ficar vendendo três sacos pra ganhar um?” Aí comprei os limões, comecei a vender pra mim. Daí em diante só fui trabalhando pra mim.
P1 – Tem alguma história desse período de vender limão na rua? Como é que foi?
R1 – Vendi limão. Quando você está vendendo limão na rua, teve uma vez que eu vendi, aí o policial pediu, não militar, civil: “Dá um saco de limão”, eu dei, aí fiquei esperando o dinheiro do saco de limão. Aí a polícia falou: “Você está esperando o quê?” Eu falei: “Você pagar o limão”. Aí ele falou assim: “Você quer que eu apreenda toda a sua mercadoria?” Eu não sabia que podia ou não. Limão, era molecão aquele tempo, falei: “Não, o senhor vai ter que pagar”. Aí eu pendurei na viatura, o policial parou a barca, levou todo o meu limão e assim, não tinha precisão, cara, era só pagar um real, mas ele deu uma carteirada, pra pegar um saco de limão e aí eu falei: “Meu, maior sacanagem isso aí”. Aí, parei de vender limão, comprei saco de laranja, minha mãe me ajudava a espremer, espremia saco de laranja, fazia suco de laranja, vendia no farol. Aí depois, vendi saco de laranja, guaraná, água, aí eu vi uns meninos vendendo caneta e eles não andavam suados, nada, andavam bem arrumados, aí eu falei: “Mano, como vocês vendem essa caneta aí?” Eles eram de uma casa de recuperação, que vendia caneta, pra ajudar as pessoas dentro da casa de recuperação. Aí eu falei: “Como vocês vendem?” “Mano, aqui é na conversa. Você não pode vir assim, todo sujo. Tem que andar bem arrumadinho”. Aí, um dia, nós fomos bem arrumados e ele foi explicando pra gente, a gente chegava num carro: “Licença, não precisa fechar o vidro” – se o vidro não estivesse fechado – “só quero um minuto da sua atenção: estou vendendo essa caneta pra ajudar em casa. Se for possível, custa um real”. A pessoa fala: “Não tenho” “Qualquer moeda serve”. Aí a pessoa ia lá e dava uma moeda. Nós pagávamos três reais na caixa, vinha 12 canetas, o que a gente vendesse, dava lucro, né? Aí também perdi a minha mercadoria pra outros policiais civis, na caneta. Aí dava a caneta. Nem pedia pra cobrar, nada. O policial parava e levava as canetas. Então, quem trabalha no farol, é dessa maneira que é tratado.








P1 – Quanto tempo você ficou no farol?
R1 – No farol eu fiquei dos meus 12 até os meus 16 anos.
P1 – Você conheceu pessoas? O que você viu, na rua?
R1 – Conheci pessoas, fui agredido na rua...
P1 – Como você foi agredido?






R1 – Um cara veio, me deu um troco, eu dei o troco pro cara, o cara falou que estava errado, eu falei que não, estava certo. Aí depois ele veio no outro dia, me deu dinheiro, falou que eu estava com troco errado, eu falei: “Mano, todo dia você vem aqui e fala que eu estou com o troco errado. Não precisa comprar mais aqui”. Aí ele desceu do carro, veio me agredir, eu ataquei uma latinha de Coca cola nele e saí correndo, era pivete naquele tempo. Também teve um tempo que estava eu e meu amigo Magno, esse dia eu nunca mais esqueço, esse dia acho que foi o dia que eu aprendi o que era abuso infantil. A gente estava na frente de uma padaria e uma borracharia e aí, nessa padaria, chegou um mano e falou assim: “Meu, eu quero saber de você quantos anos você tem”. Estava eu e meu amigo, eu falei: “Eu tenho 15 anos”. O Magno tinha 14 anos. Um ano a menos. “Vocês têm pelo no corpo?” Eu falei: “Cara, eu tenho cabelo no corpo, todo mundo tem cabelo no corpo”. Ele falou assim: “Eu te dou vinte reais, pra você mostrar o seu cabelo do corpo”. Aí eu falei: “Mano, esse cara aí está com ideia errada”. Aí o Magno falou assim: “Mano, vamos sair dessa daqui”. E aí ele ficava sempre atrás, pedindo pra gente poder entrar dentro do bar, pra trocar ideia com ele. Aí teve um dia que eu fui, olhei e falei: “Mano, se esse cara vir, eu vou descer o sarrafo nele”. Aí, quando ele apareceu, nós falamos pra ele: “Qual que é a sua?” Aí ele falou: “Não, é porque eu gosto de criança”. Aí nós contamos pro dono do bar e o dono do bar foi e o agrediu.
P1 – Quando você estava, assim, na rua, você tinha uma coisa assim: “Quero exercer tal profissão, fazer tal coisa”? Você tinha um sonho, um ideal de fazer alguma coisa?
R1 – Meu sonho nunca foi profissional. Meu sonho era ser cantor. (risos) Quem não quer cantar? Existia, meu sonho sempre foi fazer dinheiro. Trampar, fazer alguma coisa. Nunca tive sonho de ser popstar. Trabalhar pros outros nunca foi minha praia. Nunca gostei disso. Nunca. A treta, eu, meu irmão e meu pai, era que eles queriam que eu fosse peão de alguém e eu nunca achei legal isso. “Vai trabalhar pra alguém” “Não” “Ali está precisando de currículo” “Não vou levar currículo”. E aí cresci, tenho 35 anos, nunca trabalhei pra ninguém.
P1 – Como é que você entrou nesse universo?
R1 – Da reciclagem?
P1 – É.
R1 – 2005, 2004, a rua estava passando dificuldade. Eu era camelô e vendia CD e DVD. E aí foi um tempo que estava muita pressão do rapa e da polícia civil e aí eu não estava conseguindo vender bem. Em 2005 a gente foi pra Alemanha. A igreja católica que a minha irmã convidou pra participar...
P1 – Espera aí: como é que você foi parar na igreja? Conta. Volta.
R1 – Eu estava terminando um relacionamento, já era noivo...
P1 – Quantos anos você tinha?
R1 – Eu já estava com 20 anos, já. Namorei com uma menina seis anos, aí nós noivamos, aí não deu certo, aí já estava terminando um relacionamento, aí minha irmã falou assim: “Você está bem?” Eu falei: “Mais ou menos”. Aí ela falou: “Vamos lá na igreja, tem um grupo de jovens”. Aí eu falei: “Mano, esse negócio de igreja não é legal. Dentro da favela, ainda!” E aí era um assunto que eu gostava, que era debate, nós estávamos fazendo uma discussão sobre o aborto. Sobre a questão de favor ou contra o aborto. E aí eu comecei a fazer uma discussão com a galera sobre a questão do aborto, gostei daquele papo, entrei pra igreja, começou a fazer uma discussão e o grupo já estava formado, pra... eu entrei em 2014... 2005, em julho, ir pra Alemanha. Eu falei: “Beleza”.
P1 – Fazer o que na Alemanha?
R1 – Encontro da juventude com o papa. Aí eu falei: “Beleza”. Começamos a participar, não tinha nenhuma chance de ir, quando de repente um avião caiu. (risos) Aí uns pais não deixaram os jovens irem. Aí surgiu uma vaga. Aí, na semana seguinte, um jovem foi atropelado, não pôde ir. Aí a igreja olhou pra um lado, olhou pro outro, tinha eu ali, ‘vai você’. (risos) Aí eu tirei meu passaporte rápido, pra ir viajar, em 2005, pra Alemanha. Eu fui pra Alemanha. Quando chegou na Alemanha, eu fiquei em _______ (39:25) e em Colonia. E aí eu comecei a conversar com o pessoal...
P1 – Conversava em que idioma?
R1 – Nada, mímica. Só sei falar o português e ainda ralo. Aí comecei a falar com mímica e aí quase fui expulso, no segundo dia. Porque, no primeiro dia, eu comecei a namorar com uma francesinha lá e a francesinha era de uma ala da igreja que era da casa de acolhida, os franceses tinham problemas com drogas, o pai dela e a mãe dela e ela estava em poder do Estado. E aí nós começamos a namorar lá, aí o pessoal, que hoje, aqui no Brasil é chamado assistente social, pediu pra eu me afastar. Aí eu esperava todo mundo dormir, aí ia dar uns beijinhos com ela. Aí chamaram o padre: “Se ele não se afastar dela, nós vamos ter que expulsá-lo”. Na volta ficamos 15 dias na Alemanha.
P1 – Como foi a sua chegada lá? Entrar em outro país, andar de avião?
R1 – Quando eu cheguei na Alemanha, um monte de gente veio tirar foto. Eu não sabia o que era, eu fui todo social pra lá, bem arrumadinho e todo mundo: “Fat Joe”. Eu falei: “Quem é esse cara?” Nem sabia quem era Fat Joe. Todo mundo vinha tirar foto. Nós estávamos em 15 jovens periféricos, ninguém sabia quem era Fat Joe também. Então, chegamos na Alemanha, todo mundo tirando foto, Fat Joe, aí eu estava coma roupa da Nike, mas comprada na 25 de Março, né? Aí todo mundo achava que era Fat Joe. E todo mundo veio tirar um monte de fotos. Aí, quando chegou em Colonia, que era no encontro onde nós estávamos com os jovens, a gente estava com mil e duzentos jovens, da Alemanha, francês, ingleses, portugueses, espanhóis e irlandeses. Aí, quando eu cheguei, chegaram os brasileiros, aí todo mundo: “Samba”. Parece que quando vê brasileiro, fala a mesma coisa: “Samba”. E nós chegamos iguais uns bonequinhos lá, sambando. Aí todo mundo veio conversar. Aí eu conheci o Padre Assis. Ele era um caboverdiano, que estava lá naquele encontro e aí ele traduzia tudo que a gente queria falar. Quando não estava o Assis, era mímica mesmo. Nós ficamos 15 dias lá, a gente fez uma peça de teatro. Eu não fui pra ver papa nenhum, particularmente, assim. Fui pra curtir, mesmo, ver o que era. Então, quando chegou pra vir embora, o Patrick falou assim: “Quem quer ficar aqui?” Aí eu falei assim: “Eu”. Aí ninguém levantou a mão. Só eu levantei. “Mas por que você quer ficar aqui?” Nós estávamos numa roda, assim, bem grande, eu falei assim: “Eu quero ficar aqui, porque aqui tudo é bom”. Imaginando que era tão fácil, todos os filmes que a gente vê na televisão, fácil de fazer, né? Eu vou chegar no aeroporto, eu vou falar que eu vou no banheiro, dali mesmo eu vou picar a mula. Meu, hoje você vê que não é tão fácil assim. Aí estava naquele tempo lá, falei assim: “Eu quero ficar”. Aí ele falou assim: “Você me decepcionou”. Eu falei: “Eu?” “É. Você me decepcionou. Você demonstrou pra mim que você é um parasita”. Eu falei: “Eu, por que parasita?” Ele falou assim: “Porque você vai fazer como qualquer outra pessoa faz: se acomoda nos lugares que já estão perfeitos e não quer mudar sua realidade”. Aí eu olhei assim, ele falou: “Meu, botava tanta fé em você e, no final das contas, vi que você é igual todo mundo”. Aí isso aí mexeu comigo, assim, sabe? Eu falei: “Você é louco, mano?” Nunca ninguém tinha acreditado em mim, falado que tinha acreditado, nem meu pai, nem meus irmãos, nem minha mãe, nem ninguém. Patrick, um padre, falar que acreditou em mim. Aí eu vim no avião pensando nisso, aí quando voltei, eu falei: “Eu quero fazer alguns cursos”. Aí foi quando eu comecei a me envolver com os projetos sociais, foi quando eu comecei a querer entender os problemas sociais, comecei a entender a questão política, comecei a querer entender...
P1 – Mas lá você teve alguma vivência?
R1 – Diária. A gente comia com os ingleses, franceses, tinha encontro...
P1 – Mas projeto social?




R1 – Não. Lá todo mundo estava junto, numa escola. E aí, todos os dias, a gente trocava ideias com as outras pessoas, como era.
P1 – Sobre o quê?
R1 – Como era a Irlanda, como era a França. Aí eu conversei muito com essa menina chamada Alexia, que eu fiquei durante um tempinho lá dando uns beijinhos e aí a mãe dela era de Martinica e foi levar droga pra França e aí foi presa, o pai dela era também de Martinica, também estava sendo preso e ela estava custódia do Estado. Outras pessoas que moravam lá, que também estavam no mesmo conjunto com ela, por causa de violência. Então, eram bairros muito periféricos. Pra eles são bairros periféricos. Eu tive mais contato com os franceses, né? Aí, quando eu voltei, voltei com a intenção de fazer Francês. E aí eu conheci um judeu, que pagou minha bolsa na Aliança Francesa e fiz Francês durante dois anos.
P1 – Onde você conheceu?
R1 – Aqui na favela.




P1 – O que ele veio fazer?
R1 – Ele é da Casa Ashoka, se eu não me engano, que atende moradores de rua. Ele foi morador de rua também, na França, veio pra cá e montou essa ONG, chamada Ashoka, para moradores de rua. Jovens moradores de rua. E ele dá uma formação pra essas pessoas saírem da rua. É uma casa de acolhida de jovens. E ele é amigo do Patrick, do Padre Patrick Clarke e aí o padre falou assim: “Esse aqui foi pra Alemanha”. Ele falou assim: “Você foi pra Alemanha? O que você mais gostou?” Eu falei: “Dos franceses”. Ele falou: “Eu sou judeu francês”. Eu falei: “Que da hora!” Ele falou assim: “Nosso idioma é a coisa mais linda”. Eu falei: “Ô! Bem diferente você falar bonjour, do que good morning”. Foi a única coisa que eu gravei. Aí ele falou assim: “Você quer aprender Francês?” Falei: “Quero”. E aí ele conseguiu uma bolsa com um grupo de jovens que eu participava, pra cinco jovens fazerem, na Aliança Francesa”. Aí fizemos dois anos de Francês, na Aliança Francesa.






P1 – E você aprendeu?
R1 – Eu tentei, não é tão fácil. Tentei. Não consegui aprender muitas coisas, mas os meus amigos que fizeram junto com a gente aprenderam bastante. Josimeire, Juscilene aprenderam muita coisa. Eu não consegui desenvolver tanta coisa, não.
P1 – E aí você voltou aqui e estava trabalhando com o quê?
R1 – Quando eu voltei da Alemanha?
P1 – É.
R1 – Eu fui vender bijuteria pras mulheres. Aí comecei a vender bijuteria, batom, maquiagem. Aí depois eu parei de trabalhar com essa questão de batom, maquiagem, fiz um curso chamado Curso de Verão, na PUC, que era sobre questão de informação, aí montamos um jornalzinho dentro da favela, aí eu comecei a trabalhar numa gráfica, à noite, porque aí, quando eu voltei, comecei a namorar com a Lilian. Meu sonho era ser pai. Aí tudo, assim, muito rápido. Eu falei pra ela: “Meu, eu tenho vontade de ser pai, mas eu acho que eu sou estéril, porque convivi seis anos com a minha namorada e não tive filho”. Ela falou assim: “Eu também sou estéril, acho”. Aí eu falei assim: “Então para de tomar remédio”. Aí, parou de tomar remédio, aí eu falei pra ela: “Eu queria ter um filho, mas eu queria ter um filho chamado Pablo Escobar”. Aí ela falou assim: “Sério? Quem é Pablo Escobar?” Eu falei assim: “Vamos assistir o filme”. Aí nós começamos a namorar após esse filme, aí depois que passou três meses, ela estava grávida. Aí nasceu o Pablo Escobar. Aí foi quando surgiu a cooperativa. Em 2007.
P1 – Por que você curtia o Pablo Escobar?




R1 – Por conta da... não problema da questão da droga. Acho que ele poderia ter sido outro, poderia ser o Joãozinho, o Fernandinho, mas acho que o Pablo Escobar, tirando o fator da droga e da ruindade dele, que a droga faz isso acontecer, foi um periférico que fez coisas que ninguém que tem faculdade conseguiu fazer. Hoje a rota dele, até hoje, nunca vi nego descobrir toda a rota do Pablo Escobar. Um periférico chegar na Ford e até hoje ser lembrado! Tirando, claro, não estou falando da questão do tráfico, mas sim ele, a pessoa. A inteligência que ele teve, de fazer coisas que a burguesia branca não teve condições de fazer. Subornar narcóticos, grandes empresários e viver da ordem dele, eu acredito assim que poucas pessoas na face da Terra conseguem fazer isso.
P1 – E aí você deu o nome do seu filho de Pablo Escobar?


R1 – Não pôde ser Pablo Escobar, só pôde ser Pablo. Escobar é sobrenome, não pôde. Aí ficou Pablo. E até hoje... agora, não, agora ele já está com 12 anos, né? Toda vez que ele estava numa escola que falava sobre o nome, eu era chamado, o porquê do nome. Aí eu falava, escrevia, a galera chamava o outro dia na escola.






P1 – Quantos anos está seu filho, hoje?
R1 – Meu filho está com 12 anos.
P1 – Você está casado?
R1 – Não. Solteiro.
P1 – Aí vocês se separaram? Quanto tempo depois?
R1 – Um ano e meio depois. Ela é minha sócia até hoje.
P1 – E aí, como é que nasceu a Recifavela?
R1 – Nasceu com uma junção de dois grupos. Eu já puxava carroça na madrugada...
P1 – Isso você não falou: quando você começou a puxar carroça?
R1 – Ao mesmo tempo que eu era camelô, eu puxava carroça à noite. Nunca fiquei parado. Meu negócio sempre foi dinheiro. Sempre gostei de dinheiro.
P1 – E por que você foi puxar carroça?




R1 – Porque era a única opção naquele tempo. Ou trabalhava no farol, no Centro ou na madrugada. Pra eu não sentir ordem, sentir que eu estou recebendo ordem de alguém, eu prefiro puxar carroça. E aí comecei a puxar carroça.
P1 – Em qual bairro?
R1 – Na Mooca.


P1 – Em que lugar?
R1 – Toda a Mooca. Passava em toda Mooca e, de dia, eu vendia os produtos que eu pegava. Em toda a Mooca. Mas, naquele tempo, só pegava ferro e papelão.
P1 – Você pegava nas casas das pessoas?
R1 – Não. Pegava sempre o que estava na calçada.
P1 – Tinha muito? Como é que era? Você tinha ajudante?
R1 – Não, só era eu. Às vezes tinha muito, às vezes tinha pouco, às vezes estava chovendo, às vezes sabia que não ia ter nada, mas saía pelo menos com a carroça, pra dar uma volta.
P1 – Você tinha força?
R1 – Graças a Deus, assim, a parte de saúde eu sempre fui bem.
P1 – Você teve algum envolvimento ou vivência com droga?
R1 – Nunca gostei de droga, mas já saí pra tentar assaltar.
P1 – É?
R1 – É.
P1 – Com quantos anos?


R1 – Antes de eu me noivar, com 14 anos. Eu andava com 12 jovens, dos 12 jovens só estão três vivos. Então, meus amigos eram bem legais.
P1 – Tudo 13.


R1 – É, tudo 13. Aí, naquele tempo, meu irmão era mais casca grossa. Então, eu tinha medo até de um dia chegar em casa... meus amigos, todos, fumavam e eu chegava com cheiro de cigarro em casa. Você apanhava por causa do cheiro. E não tinha: “É a roupa” “Não, você fumou”. Naquele tempo não tinha maconha, né? Maconha não era tão fácil você achar e, na favela onde que eu moro, jovens não usavam droga naquele tempo. O traficante que comandava a favela não aceitava jovem se envolver com tráfico. Então, a favela que eu nasci já era uma lei, uma coisa que não era uma favela tão bagunçada, né? Então, nós, jovens, crianças que ele colocava, não podia estar no baile; não andava armado, mesmo que tivesse revólver; não usava droga. Se ele visse você usando droga, ele te pegava e te levava na casa dos seus pais.
P1 – Você usava revólver?


R1 – Minha família... meu irmão andava com muita gente que tinha muito revólver.
P1 – Por que usava revólver?
R1 – Acho que, naquele tempo, andar com revólver, era um gesto de segurança, sei lá.
P1 – Você sabia usar?


R1 – Eu não. Nunca nem dei um tiro. Mas como eu era menor, meu irmão colocava o revólver em mim.
P1 – Mas por quê?
R1 – Não sei. Mas com meus amigos eu já sei: por que eles saíam pra roubar. (risos) O meu irmão, não. Não era do crime. Mas ele andava armado. Não entendi até hoje também.
P1 – E aí seus amigos saíam pra roubar?
R1 – Saíam.
P1 - __________ (52:34)?
R1 – Não. Eles saíam pra roubar e voltavam. Aí eles vinham sempre com dinheiro. Aí um dia eu falei assim: “Eu vou sair pra roubar também”, mas foi tipo Cidade de Deus, sabe? (risos) Quando a vida ali não é pra você? Aí nos estávamos com uma Beretta, que é um 22, né, chamado 22 e nós colocamos dentro da marmita. Aí, quando nós pegamos a Anhaia Melo, saímos da favela, pra ir assaltar, naquele tempo era Ipanema, né? A Ipanema nos viu, passou por cima da calçada e enquadrou a gente. Meu, ali eu não conseguia parar em pé, porque as pernas já estavam tão moles, eu falei: “Agora eu apanho na polícia, na Febem e do meu irmão”, porque meu medo maior nem era a polícia, era meu irmão. “Meu” – eu falei – “agora eu apanho”. Aí o policial enquadrou a gente, revistou, olhou e falou: “Você não é o que trabalha no lava-rápido?” Eu fazia bico no lava-rápido. Eu falei: “Ahn, han” “Você também, né? Onde vocês vão?”. Eu falei assim: “Nós vamos lá pro lava-rápido”, que tinha um cara que cuidava do lava-rápido e dormia lá. O apelido dele era Só. “Você vai ver o só?” Eu falei: “Vou” “Vamos lá que eu te levo” e nós com o revólver dentro da Ipanema. Ele nos levou até...
P1 – E ele não viu que vocês estavam com o revólver?
R1 – Não, porque estava dentro da marmita. Meu” – eu falei - “isso aí não é pra mim, não”. Voltei pra casa e falei: “Mano, isso não é pra mim”. Aí meu outro amigo falou: “Não, é porque você foi com a pessoa errada. Vai comigo, que você vai ver como vai dar certo” “Nós vamos pegar o quê?” “Se nós pegarmos um carro, vamos roubar a saída do Carrefour, porque se roubar a saída do Carrefour, nós pegamos tudo que tem na despesa do carro e a gente traz. A gente não vai machucar ninguém, só vai pegar as despesas que o pessoal fizer” “Tá bom”. Quando nós chegamos em São Caetano, fomos daqui a pé, chegamos na porta do Carrefour pra assaltar, quando nós íamos abordar, que era uma mulher, logo piiiiiiiiiii (risos), aí o policial passou, cumprimentou o cara que estava perto da gente, eu falei: “Mano, isso é um aviso, eu vou embora, não é pra mim, não”. Ele falou: “Vamos na outra rua”. Quando nós vimos um senhorzinho... meu, olha as ideias, com 15 anos, eu falei: “Mano, nós vamos roubar um senhor?” “Vamos”. Quando nós fomos indo, aí veio aqueles caras de rua uauauauauau, eu falei: “Não, desisto”. Quando nós estamos chegando perto da favela, tinha uma operação de polícia na favela, no meio da madrugada, eu falei: “Onde nós vamos esconder esse revólver agora?” Aí nós jogamos dentro do lixo, esperamos a polícia ir, pra poder passar e pegar. Eu falei: “Isso aí não é pra mim, não é minha praia, não, isso aí. Nem usar droga, nem andar armado, nem conviver com isso. Não nasci pra isso”. Depois disso aí meus amigos foram morrendo, outros foram presos, depois de ser presos saíram, foram mortos. Aí perdi o contato com muitos, comecei a namorar também, namorei, noivei, fui pra igreja, aí larguei meu outro relacionamento, me envolvi com a mãe do meu filho hoje, que é a Lilian, aí tive o Pablo, terminamos o relacionamento, fundamos a cooperativa e ficamos longe. Acho que a melhor...
P1 – Como vocês criaram a cooperativa? De onde nasceu a ideia? Você já puxava...
R1 – Isso, puxava carroça. Aí, como eu fui da igreja, nós tínhamos um grupo de dez jovens. Debaixo do viaduto já tinha os catadores avulsos. E aí, como era no tempo do Kassab, o Serra ganhou a eleição da Marta, ele bloqueou todas as entradas de box dos catadores, que eles não podiam trabalhar mais debaixo dos viadutos. Aí esses jovens, catadores debaixo dos viadutos, foram atrás do Patrick e o Patrick era o líder do Movimento em Defesa dos Favelados, que atua aqui na favela. Como dentro da igreja falava muito de Teologia da Libertação, que eu acho que é uma teologia bem bacana, ele falou: “Por que vocês não fazem a Teologia da Libertação? Por que vocês, agora, não fazem a integração dos dois grupos, jovens e catadores?”. Aí, dos 15 jovens, ficaram dez. Aí nós fomos nos ajuntando, os dez jovens ficaram cinco. Dos cinco ficaram três: eu, a Lilian e a Josie. E dos catadores ficaram três jovens, três catadores: Fumaça, Manoel e ‘seu’ Basílio. E aí nós ajuntamos a realidade dos jovens catadores e fundamos a Cooperativa Recifavela. Cooperativa de Catadores da Favela da Vila Prudente.
P1 – Vocês tiveram algum apoio, alguém ajudou vocês?
R1 – Não. O Patrick pagou o Claudemir, que é uma cara que era da parte administrativa, que cuidava da documentação, pra gente fazer ata, documentação. Aí esse Claudemir ficou ajudando a gente nisso, ocupamos uma área debaixo do Viaduto Grande São Paulo e aí ficamos lá durante sete anos. Seis anos ficamos lá, debaixo do viaduto. E aí, como separar. A gente separava de um jeito, vinha um catador e falava: “Isso aqui está errado”. Aí nós separávamos de outro jeito. Aí outro catador falava: “Está errado”. Aí nós separávamos de um jeito. Até que um dia eu falei: “Lilian, chega. A gente vai montar uma coisa que é a nossa cara”. Aí montamos a cooperativa, a produção, do nosso jeito.
P1 – Como era montar a produção do seu jeito?
R1 – Um falava: “Papel branco não pode com capa... o livro não pode ir junto com papel branco”. Aí o outro falava: “Pode”. Aí, no final das contas, falamos: “Agora pode” “Pet branca não pode ser com isso, agora pode ser”. Montamos, ficamos um ano e meio sem tirar nenhuma renda da cooperativa, sobrevivendo, eu e a Lilian morávamos juntos, eu tinha que pagar as coisas do meu filho, aí eu fui trabalhar, fazer aquelas campanhas da Bauducco. Trabalhava na Bauducco de madrugada e numa lan house que a gente tinha montado dentro da favela, chamada Lan Barraco. Aí montamos dentro da favela a Lan Barraco e ficamos lá. Era como nós sobrevivíamos. Nos 13 anos que a gente tem de Recifavela, vamos falar quatro anos agora que eu consigo pagar as minhas contas daqui, essa grana daqui.
P1 – Quando vocês montaram, quantas pessoas vieram trabalhar?
R1 – Só nós quatro.








P1 – Mas quem puxava?
R1 – Carroça?
P1 – É.
R1 – Não, aí a gente não puxou carroça.
P1 – Vocês só recebiam?
R1 – Não. A gente comprou uma Kombi. Mandamos um projeto pro investimento reciclável, compramos uma Kombi. Aí, um cara queria receber como motorista. Como eu já tinha trabalhado no lava-rápido, eu falei: “Eu posso dirigir”. Aí eu dirigi uma Kombi da cooperativa durante seis anos, sem carteira de motorista.
P1 – Mas aí vocês pegavam onde?
R1 – Começamos, primeiro, pegar em obra, depois em prédios.
P1 – Pegavam o quê?
R1 – Reciclado. Começamos dessa maneira. Aí, depois, o Central Plaza fez o convite pra gente começar a pegar um grande gerador, ficamos lá durante dez anos, no shopping. Aí pegava do condomínio, do shopping. Começamos, debaixo do viaduto, dessa maneira.


P1 – Mas vocês pegavam, separavam...
R1 – Os reciclados, separávamos e de lá mesmo nós vendíamos.
P1 – E como fazia a separação?




R1 – Era uma bancada de madeira, feita de pallet. Aí começava a separar papelão. Nós tínhamos 4 big bags, aí nós enchíamos o big bag de papelão, quando enchia muito, nós jogávamos no chão uma parte, pra poder vender. E aí, quando nós nascemos, em 2007, em 2008, em 2009 deu a crise. E aí nós nascemos na crise, né? E aí nós não tínhamos muito ainda, nosso primeiro salário foi cinquenta reais, depois de um ano e meio. Depois daí a gente foi alavancando...
P1 – Pra quem vocês vendiam?
R1 – Tudo pra atravessador, debaixo do viaduto. Pessoas que atravessavam o material.
P1 – Vocês pegavam, recolhiam esse...
R1 – Nós recolhíamos com a Kombi...
P1 - ... separavam...
R1 - ... nós mesmo separávamos...
P1 - ... e vendiam pra atravessadores?






R1 – Isso.
P1 – E como era calculado o preço? Por quilo...
R1 – Sempre já tem o preço do quilo, já, eles.
P1 – Quanto que era?
R1 – Ah, naquele tempo lá, o papelão, nós chegamos a vender a três centavos. O misto a um centavo.
P1 – Hoje está quanto?
R1 – Hoje o papelão, noventa centavos. O misto, sessenta centavos.


P1 – Como você foi entendendo essa lógica de reciclagem?
R1 – Primeiro que era um universo que eu não sentia muita coisa, assim. Não sentia prazer de trabalhar. Trabalhava mais por causa da Lilian. Aí, convivi com ela, depois separamos, aí já estava debaixo do viaduto, esse Claudemir eu acho que foi o grande provocador. Ele era bacharel, doutorado, tinha um monte de faculdade e aí tudo que ele falava, assim: “Eu sei, você não tem conhecimento. Eu sei, você não entende. Eu sei”. Fazia essa provocação, tudo: “Eu sei, porque eu estudei”. Aí, depois de três anos de Recifavela, 2009, 2010, 2011, a gente recebeu uma assessoria de um investimento que a gente teve e o cara falou assim: “Meu, a cooperativa de vocês nunca vai ser uma cooperativa, vai ser uma ONG. Vocês não têm característica de ser uma cooperativa. Vocês não têm nada a ver com uma cooperativa”, ele falou pra mim. Falei: “Por quê?” “Porque você não tem perfil pra ser catador”. Falei: “Pra ser catador, precisa ser o quê?” Ele falou: “Como você é bombadinho” – eu já tinha uma tatuagem no braço – “você gosta de roupa de marca. Catador não é isso aí, não”. Eu falei: “Sou favelado, catador e isso aí não impede o jeito que eu me arrumo”. Aí ele falou assim: “Meu, não sei, isso aqui não vai andar pra frente”. Do outro lado tinha o Cláudio, que sempre falava: “Meu, você não vai aprender isso aqui, aquilo outro”. Eu falei: “Mano, a partir de hoje, a gente vai ser uma das melhores cooperativas do Brasil”. Aí, o primeiro livro que passou na bancada estava escrito Administração e Marketing, aí eu peguei aquele primeiro livro, comecei a ler, comecei a guardar em casa, li o livro, guardei, com toda dificuldade e aí, quando surgiu, passamos um ano debaixo do viaduto em 2011, em 2012 nó sofremos um incêndio. Queimou quase toda a cooperativa. Aí, logo em sequência, arrumamos a cooperativa, a gente não tinha quase nada, era só material, sofremos enchente. Aí a enchente foi decorrente, perdemos muito material. Aí nós fomos chamando pessoas pra agregar dentro da cooperativa. E aí uma empresa chamada Novelis pagou uma assessoria pra fazer um levantamento das cooperativas no Brasil e aí, no relatório, deu que a grande cooperativa, de grande potência de ideias, a Recifavela era uma delas.
P1 – E a que você atribui essa grande potência de ideias?
R1 – Acho que a provocação. Eu nunca gostei muito dos elogios. Eu acho que os elogios acomodam a pessoa.
P1 – Mas qual era o que vocês pensavam diferente?


R1 – A crítica. As pessoas falavam que debaixo do viaduto não podia nascer nada de bom. Não pode. Nós não aceitávamos o carroceiro ficar com a carroça. Nós não aceitamos o cara sobreviver com a carroça. E isso provocava quem acha que a carroça é o melhor caminho. Não, o melhor caminho pode ser, mas se você não mostrar uma ferramenta, pra ele, diferente, ele não vai saber. Ninguém gosta de andar com peso nas costas. Ninguém. Nem pra carregar coisas boas e muito menos coisas ruins e muito menos coisas dos outros. E aí começou a provocação. Então, todo mundo vinha e nos criticava. Primeiro, que eram jovens. Eu acho que, se você olhar, hoje nós somos a cooperativa mais jovem que tem, somos os jovens mais novos na frente de uma cooperativa. Tenho 35 anos, 13 anos de Recifavela. Acho que essa provocação que a galera fazia com a gente fez essa potência começar a surgir dentro de nós. E aí todo mundo falava assim: “Você sabe escrever?” “Não” “Ixi, não vai dar certo”. Aí eu fui chamado pra fazer um café social, que era de um projeto do Banco do Brasil, na Paulista. Quando eu cheguei pra fazer esse projeto, tinha que escrever, meu e eu era muito envergonhado, falava: “Meu, não vou escrever lá, não”. Quando pensa que não, o cara falou assim: “Escreve uma...”, escrever alguma coisa que eu não sabia escrever. (risos) Aí eu peguei o canetão e falei assim: “Escreve pra mim, que eu não sei escrever essa palavra”. Aí o cara olhou assim e falou: “Você não sabe escrever? Quantos anos você tem? Naquele tempo lá eu tinha vinte e poucos, tal, 26 anos, eu falei: “Vinte e seis”. Aí ele virou e falou assim: “Não sabe escrever?” Eu falei: “Por quê? É com a idade que sabe escrever?” Aí ele falou assim: “Vixe, não sei, não, se essa cooperativa vai dar balanço”. Eu falei: “Mano, esse cara está chapado, tem conhecimento só da leitura, o nosso trabalho é mais manual”. Aí começamos a pensar em montar uma cooperativa diferenciada. Aí, debaixo do viaduto, nós perdíamos muito material pra enchente, aí nós fizemos um levantado. Então, quando a enchente vinha, não molhava o nosso material. Aí nós fizemos entrada e saída. E todos os dias a cooperativa estava limpa, mesmo com o volume do resíduo que nós tínhamos. E aí, ficamos nesse processo e aí nós pensando em ser uma cooperativa sempre melhor. Mas tinha o Claudemir, que estava ali no meio, sempre pensava que a gente não ia ter condições de fazer isso aqui ser uma grande empresa. Tinha que trabalhar por modo de doação, que era uma coisa que eu nunca gostei: a gente depender de alguém pra chegar em algum lugar. E aí ele falou: “Sabe mexer no excel?” “Vendi muito, mas não sei nem abrir um excel”. Aí ele foi, me mostrou como abria e falou assim: “O dia que você aprender, a gente conversa”. Aí eu falei assim: “É?” Tinha um negócio chamado... naquele tempo estava surgindo o You tube, estava ganhando muita força, aí eu fui lá, pesquisava, aí comecei a montar as planilhas, comecei a mexer no word, apresentação, começamos a adquirir mais pontos, comecei a fazer uns números, pra ver como nós gastávamos de gasolina. Tudo isso saiu dessa cabeça aqui. Não foi Claudemir, não foi universidade. Foi aqui, um catador. E aí ele falou assim: “Como você calcula a gasolina?” Aí eu já tinha visto um vídeo, aí eu falei assim: “Eu pego, encho o tanque, vejo quanto que tem, terminando o tanque, eu divido pela questão do km, dá isso aí”. E aí começamos a fazer formação. Aí comecei a participar de tudo quanto era formação. Aí, quando chegou a gestão do Haddad, ele queria aumentar o volume da coleta seletiva pra 16% da cidade. E aí, como nós tínhamos a documentação tudo ok, nós conseguimos ser conveniados. Aí, esse galpão é conveniado com a prefeitura de São Paulo. Acho que foi o marco principal pra essa revolução acontecer. Aí, quando nós chegamos aqui, a primeira coisa que eu olhei, falei, desci aqui, tinha um muro no meio, que era o Muro de Berlim que nós chamávamos, que era pra ser uma cooperativa e aqui outra. Todas as cooperativas crescem, só nós vamos ter que ficar estagnados, sendo uma gestão petista, que falava que tinha que crescer. Aí eu falei: “Meu, quer saber de uma coisa? Vou voltar a estudar”. Aí eu tentei técnico durante três anos, aí na quarta vez eu consegui entrar pra fazer Administração. Aí, quando chegou na quarta vez, entrei, o professor falou assim: “Você veio procurar diploma aqui, o que você veio fazer?” Eu falei: “Não, eu vim conhecer. Eu queria saber se foi esse cara que eu leio, Toyota, foi esse cara mesmo foda, se o Fordismo fez isso daí mesmo. Eu quero saber se esses caras foram tudo isso que está no papel”. Ele falou: “De onde você leu isso?” Eu falei: “Eu tenho uma biblioteca em casa”. Ele falou: “Quantos livros você já leu?” Eu falei: “Um pouquinho”. Ele falou: “Conta pra mim”. Eu cheguei em casa, contei, eu tinha duzentos e cinquenta e cinco livros que eu já tinha lido.
P1 – Que você ficava pegando...
R1 - ... na reciclagem. Aí eu fui pra Etec e começamos a fazer.
P1 – Você tinha uma biblioteca de duzentos e cinquenta livros?
R1 – Duzentos e cinquenta livros.
P1 – Que livros que tinha? Que livros que você ia pegando?
R1 – Tudo que passava, que tinha o nome Administração, Publicidade e Finanças.




P1 - Tinha muito livro, fora esses, que vai pro lixo?


R1 – Vem muito. Literatura, tudo que você pensar passa por aqui. Muito livro.
P1 – O que vocês fazem com os livros?
R1 – Dependendo do livro, a gente guarda. Principalmente de Direito, que muita gente que vem aqui, a gente doa. Então, a gente guarda muito livro. Vem alguém aqui que trabalha na área administrativa: “Eu queria o livro tal”. A gente deixa avisado, anuncia no painel e vai deixando. Hoje nós temos uma biblioteca...
P1 – E literatura? É?
R1 - ... aqui dentro. Foi um sonho aí antigo, que eu consegui pra galera.
P1 – Eu quero ver depois.
R1 – Tem uma biblioteca. Aí consegui...
P1 – Aí você falou da Etec...
R1 – Aí, quando estive na Etec, comecei, aí foi outro choque de realidade, fiz, o professor falou assim: “Você vai escrever?” “Não, esse aí eu já li” “Você vai escrever?” “Não”. Porque o caderno, eu terminei (risos) a Etec com um caderno, só anotava as coisas principais. Chegava em casa, eu ia pesquisar as coisas que eu tinha ouvido, que eu não sabia. Mas o meu grande calcanhar de Aquiles foi o Português. Aí a professora veio: “Sabe fazer uma ata?” Falei: “Sei”. Realmente sabe fazer ata como está aqui, eu conversava muito com ela, na sala, os grupos que eu participava, quando chegou, ela falou assim: “Eu vou fazer uma prova amanhã”. Eu falei assim: “Beleza”. Uma prova amanhã, suave. Português. A professora: “Vai ser legal”. E ela deu uma folha pra todo mundo na sala. (risos) Eu falei assim: “Beleza”. Comecei a dar risada. Você não vai entrar no céu, viu? Aí ela deu a folha e falou assim: “Gente, só vou fazer essa prova no semestre, quem for bem, passou, beleza?” Eu falei: “Meu, professora maior esperta, ela fez pegadinha, mano, não tem nada errado aqui. Eu li e não vi nada de errado”. E todo mundo pegando, já fazendo e saindo da sala. Eu falei: “Meu Deus do céu! Mano, não tem nada de errado”. Aí a Lilian sentava atrás de mim, falou: “Cris, você quer ajuda?” Eu falei: “Ajuda? Não. Aqui não tem nada de errado, Lilian, é pegadinha”. Aí a professora chegou, só ficou eu na sala, em coisa de dez minutos. Aí ela chegou e falou assim: “E aí, Cris, como que está?” Eu falei: “Estou bem”. Ela falou assim: “Você está bem na prova?” Aí eu falei: “Estou”. Como nós tínhamos amizade, falei: “Professora, a senhora é fogo, hein? Deu uma prova pegadinha, né? Não tem nada de errado”. Aí ela falou: “Você não está vendo nada de errado?” Eu falei: “Não”. Ela falou assim: “Você não está vendo nem masculino, nem feminino?” Eu falei: “E tem isso? As mulheres são guerreiras, mesmo, hein? Tem masculino e feminino? Eu nem sabia disso. Não, é a luta das mulheres”. A professora olhou pra minha cara (risos) e falou assim: “Você não está vendo isso, a concordância?” Eu falei: “O que é isso?” Aí eu vi que o negócio já estava ficando sério e eu fiquei sem graça, aí eu falei: “Professora, vou ser sincero com a senhora: eu não estou vendo nada de errado aqui. Eu estou lendo, eu consigo entender o que está escrito, mas não estou vendo nada de errado”. Aí ela falou assim: “Como você passou de ano?” Eu falei: “Indo pra escola”. Aí ela pegou e falou assim: “Você não está vendo nada de errado?” Eu falei: “Não”. Ela falou: “Você não está vendo uma vírgula errada?” Eu falei: “Eu nem sei onde vai a vírgula aqui”. Aí ela pegou a prova da minha mão, falou assim: “Você é uma excelente pessoa, você tem um conhecimento fantástico, mas eu não sabia que você era semianalfabeto”. Aí eu falei assim pra ela... eu não me considerava um semianalfabeto, até esse dia: “Semianalfabeto?” Ela falou: “É. Você saber ler, sabe escrever o básico, mas você não sabe interpretar e tem uma dificuldade. Amanhã você vai sentar lá do meu lado”. Meu, eu com quase trinta anos, sentar do lado da professora na aula de Português! (risos) Aí, quando era aula de Política, da área, do ramo que eu estou, todo mundo vinha. Aí queriam sentar em grupo comigo. Quando era aula de Português (risos) eu ficava sozinho na sala. Sozinho. Aí começamos a fazer conta sobre questão de juros compostos. Eu nunca aprendi juros da maneira que a escola aprende. Eu faço umas contas doidas lá e chega ao resultado. “Meu, faz uma conta”. Eu prestava atenção e falava: “Mas se eu fizer dessa maneira, eu chego nesse número aí”. E aí, quando chegava na escola, a professora foi fazer uma prova, aí o menino chegou e veio sentar do meu lado: “Você sabe fazer?” Eu falei: “Não”. Aí ele falou: “Mano, você é semianalfabeto, agora não saber número é foda, né?” Aí eu falei: “Não pedi pra você sentar do meu lado, não, parceiro. Pode ir pro seu lado aí. Eu fico sozinho”. Aí, quando eu comecei a fazer, entreguei a prova, a professora falou assim: “Como você chegou nesse número?” Eu falei: “Eu fui tirando, pondo, dividindo e chegou nesse número aí”. Ela falou: “A sua montagem está errada, mas o seu resultado está certo”. Falei: “Qual importa pra senhora: o resultado ou a montagem?” Ela falou: “Os dois, mas você é muito louco, eu não consigo te entender, como você faz isso?” “Também não sei, professora. Sinceramente, eu não sei”. E aí fui pro TCC. Quando chegou no TCC, eu falei: “Eu quero fazer sozinho, porque eu já sabia que eu não sabia escrever. Quero fazer sozinho”. Aí ajuntamos cinco pessoas, eu falei: “Meu, meu único prazer de fazer o TCC é em cima do Banco do Povo, do Yunus”. Eu falei: “Você já sabe escrever? Você sabe quem é esse cara?” Falou: “Não”. Aí o professor veio e falou: “Não, não faz de Banco, não. Faz de cooperativa de crédito”. Eu falei: “Não quero fazer de cooperativa de crédito, quero fazer Banco”.
P1 – E de onde você conheceu o Yunus?








R1 – Eu ganhei um livro de uma menina chamada Sagolene, francesa, parceira minha até hoje, ela veio visitar a favela, nós fizemos amizade, ela ajudou muito a cooperativa e ela me deu o livro desse cara, Yunus, Banco do Povo. É um indiano, que fez o Danone, fez uma economia girar. Eu falei: “Eu quero trabalhar em cima disso, pra gerar uma coisa dentro da favela”. Quando começamos a fazer, ela falou: “Cadê os livros de referência?” Eu falei: “Está aqui”. Ela falou: “Você não tem nada?” O professor falou: “Como nós vamos montar?” Eu falei: “Como nós vamos montar? Vou falando pra você, você vai escrevendo”. Ela falou: “Mas sem livro?” Eu falei: “Eu já li tudo, eu sei como ele montou, porque ele montou, como foi o cálculo” e aí eu sentava do lado dela igual Chico Xavier e tchucutcututchu e aí nós montamos o TCC, que até hoje ninguém na história do Paula Souza escreveu um TCC pra montar um Banco. Aí montamos um Banco chamado Soufavela.
P1 – E o que é?
R1 – O Banco é a ideia que hoje deu a ideia do Recircular. A ideia era bancalizar as pessoas do modo mais simples que seja, porque nós trabalhamos com travestis e também com moradores de rua. E essa galera não consegue abrir a conta no Banco, por conta que não tem a... nesse processo.
P1 – O que é a síntese?
R1 – Crédito. Montar uma linha de crédito pras pessoas que não conseguem ser bancalizadas, porque não têm o comprovante de renda.
P1 – E como é que funciona isso?








R1 – Ele, simplesmente, com RG e CPF, ia abrir uma conta e ia ser poupança e conta corrente e, com os depósitos dele, ele poderia ter qualquer tipo de acesso, qualquer coisa que não sejam nos Bancos tradicionais. E, com isso, a gente geraria renda com o reciclado. Que a gente poderia emprestar crédito pra ele. Hoje mudou um pouco e nós montamos o Recircular, que é a ideia de conta de resíduo do morador periférico ir pagando por ele reciclar. Então, aí a ideia mudou um pouco, baseada em cima do TCC que a gente montou. Você tem um reciclado, você leva na nossa base, nossa base compra seu resíduo por 70% do valor que a gente negocia com a indústria. E aí o resíduo que é reciclado. Não é reciclável, a gente faz sua educação ambiental na hora, porque você vai querer comprar um produto no mercado que tenha venda depois. Você não vai comprar mais aquele que não tem a venda. Então, a sacada do Recircular é essa. E feito por periférico, né? E aí foi nesse processo que a gente começou.
P1 - ________ (01:18:43)?
R1 – Hoje já estamos montados, já. Montamos dentro da favela, um prédio, se eu não me engano 12 metros, quatro andares e aí, nesse primeiro andar, a pessoa leva o resíduo, nós pesamos o resíduo reciclado. Se estiver misturado, é um valor inferior; se estiver separado, a gente paga 70%. O segundo andar tem uma linha de produção pequena, que separa o mais grosso. E o terceiro andar é onde a gente conversa com os empreendedores, que é justamente a troca de produtos que sejam materiais reciclados, pra dentro da favela. Então, é basicamente isso aí.
P1 – Que outras ONGs ou associações se juntaram a vocês, nessa jornada?
R1 – Hoje o nosso grande parceiro é o MDF, Movimento de Defesa dos Favelados; também tem o Rotary Club Vila Alpina e o Club Rotary, que é internacional. E a Galeria do Rock. Esses são nossos parceiros.
P1 – A Galeria do Rock por quê?
R1 – Instituto Galeria do Rock, junto com o Toninho, o Marconi, o Glauber. Essa galera, tudo que tem de legal no Centro, eles trazem até a Recifavela, pra conhecer a gente. De uma maneira...
P1 – Como assim?
R1 – Grandes empresários. Pra tentar injetar um dinheiro aqui dentro ou os cursos que têm dentro da Galeria do Rock também incluem a gente.
P1 – Como você conseguiu essa ponte?








R1 – Tinha um grupo de investidores que queriam conhecer a favela, a gente começou a se conhecer e eu conheci o Toninho. Aí o Toninho, da Galeria do Rock, se aproximou comigo e a gente fez amizade, fiz amizade com o filho dela, com a mulher dele, com a própria Galeria. Começamos coletar reciclados dentro da Galeria do Rock e aí depois a gente parou, porque nosso veículo foi roubado. Depois nós não conseguimos voltar mais.
P1 – As pessoas que trabalham aqui passam por algum treinamento? Alguma concepção que você passa, desse aprendizado que você teve?
R1 – Quando o cooperado entra, ele tem três dias de formação. O primeiro dia é saber o que é a cooperativa; o segundo dia o que é o cooperativismo; e o terceiro dia é porque ele quer entrar no Recifavela. E aí, nesse dia, porque ele vai entrar no Recifavela e qual o sonho dele. Nosso plano de fundo aqui é trabalhar em cima do seu sonho.
P1 – E quais são os sonhos?


R1 – Tem vários: casa, carro, guardar dinheiro, construção de casa, mandar dinheiro pro Haiti...
P1 – Pro Haiti?
R1 – É, nós temos haitianos.
P1 – Tem haitianos?
R1 – Temos. Tem pessoas aqui que colocam que sonho é guardar dinheiro, voltar pro nordeste, montar alguma coisa.
P1 – Quem são as pessoas, que tipo?










R1 – Todas pessoas vulneráveis. Quanto mais difícil entrar no mercado, é nosso público-alvo. São refugiados, principalmente pessoas negras, Haiti, da África. Nós já tivemos georgianos aqui. Nós já tivemos refugiados políticos, bolivianos, também umas pessoas de Cuba aqui, moradores da favela, alberguistas, moradores de rua, mães e pais, grupo LGBT. Então, é o grupo mais vulnerável que você imaginar, é o que a gente trabalha. E é em cima desses sonhos que a gente trabalha. O porquê do sonho? Porque essas pessoas já não têm mais sonhos. E pessoas sem sonhos você não consegue alcançar nada. Você só está vegetando. Então, a gente trabalha em cima dos sonhos.


P1 – E vocês têm algum método?
R1 – É o que nós mesmos já criamos: qual seu sonho? Nós colocamos dentro de uma árvore dos sonhos e a gente vai trabalhando em cima disso. Então, a gente sempre vai fazendo um rateio no final do mês lembrando do seu sonho. E a gente tem uns psicólogos aqui, que vieram da Uninove e a gente conversa com eles em cima dos sonhos. Então, já vi vários relatos aqui, várias conversas. Hoje tem o Alemão, que trabalha aqui na prensa, ele é um rapaz que ficou muito tempo preso, aí ele chegou aqui e falou: “Quero um emprego, senão eu vou voltar pro tráfico”. Conseguimos emprego. Hoje ele está na baixada santista, construindo a casa dele, com o dinheiro daqui. Então, isso é o sonho, sabe? Você voltar, resgatar o desejo. Se você vai conseguir realizar ou não, é uma coisa, mas ele tem um desejo, um foco. Ele precisa de um foco.


P1 – Você acha que existe preconceito das pessoas em relação a quem trabalha com resíduo?
R1 – Preconceito é pouco. A gente é invisível pra sociedade. Totalmente. A gente é visível aqui, agora, que estamos dentro desse espaço. Se nós sairmos de carro agora, coletando, nós somos invisíveis. Não existe mais o Cris, toda essa história. A gente não é visto como ser humano, quem trabalha com resíduo. Em 13 anos dentro desse ramo, eu me considero invisível. Eu, meus filhos. E isso impacta nos meus filhos, muito. Então, quando eu vou dar uma palestra, quando eu comecei a dar palestra, que eu comecei a falar: “Sou um catador, tenho quatro filhos, três são feministas e um é contra o machismo tóxico”, isso dá um impacto. Quando eu falo: “Sou catador, favelado” é outro impacto. Porque, se eu não marcar minha presença, da minha identidade, fica ‘mais pior’ ainda. É isso que choca. Seria muito fácil eu falar: “Sou catador de material reciclado”. Não: “Sou catador de material reciclado, favelado, semianalfabeto, que vocês estão aqui ouvindo. Sou pai de quatro filhos, três meninas feministas...” - porque parece que esse nome provoca, né? Aí a galera (risos): “Mais um louco ali, que negócio é esse?” – “um filho contra o machismo tóxico, que está aqui falando com vocês sobre questão de resíduos”. E aí, essa mesma galera que me escuta, uns são tocados, outros não, outros é uma provocação, mas se eu não saio pra falar, eu fico mais invisível ainda.
P1 – Como você vê essa reutilização, essa lógica na sociedade, de pegar o resíduo... como você vê a importância desse trabalho de economia pra sociedade?
R1 – Esse trampo que a gente faz hoje, aqui, eu acho que é um dos mais essenciais. Se hoje não tiver catador e coletor na rua, coletando seu resíduo ou lixo, vira um caos isso. Você não consegue passar três dias com seu resíduo na porta da sua casa. Vira um caos. E esse trampo é tão importante, tanta importância... se a gente, hoje, quisesse dar um jeito na economia, nesse exato momento da crise agora, era só fortalecer a reciclagem. Só aqui caberia cem postos de trabalho. Mas nós estamos falando de uma coisa que é muito mais fácil desvalorizar hoje, amanhã dar uma potência pra outros setores. Hoje é importante? É. Mega importante. Geraria renda, impacto social, ambiental, impacto econômico, impacto educacional. O que a galera não percebe é que, quanto mais a gente não recicla ou injeta numa cooperativa de reciclagem, mais ibope ou mais força está dando pro setor privado. Que aí as coisas mudam, né? Esse aqui é um trampo quase gratuito. Quando vão pras privadas, é o valor do dinheiro público que vai aumentar. Então, aumenta imposto, aumenta mais gastos públicos. Então, eu vejo de extrema importância. É tão importante que estão nascendo mais empresas privadas pra cuidarem do lixo.
P1 – Como que são essas nomenclaturas? Lixo, resíduo...
R1 – Eu gosto de chamar de reciclado.
P1 – Mas as pessoas, comumente, aqui, chamam como?
R1 – Lixo. Aí a gente começa: “Reciclado”. Porque, se falar resíduo, é um modo mais genérico, né? Reciclado, reciclado, reciclado, reciclado. Mas todo mundo vem e chama de lixo. Mas lembra que não está chamando de lixo porque é lixo. Está chamando de lixo, porque ele acha que é lixo de fora. Então, dentro da favela também ele acha que é lixo. Então, você que trabalha com lixo, também é lixo. Então, o preconceito caminha junto com o tipo de evolução de pessoas que a gente quer. Se eu martelar aqui a vida inteira que isso aqui vai ser uma cooperativa, nunca ninguém vai me tratar como um grande empresário. Então, aqui é uma empresa de coleta seletiva. Então, às vezes nós temos que nos camuflar, pra entrar no mesmo sistema que o sistema colocou a gente. Então, aqui é uma empresa de reciclagem. Eu tenho que andar bem arrumado, porque eu trabalho numa empresa de reciclagem. Eu tenho que conversar bem, porque eu represento uma empresa de reciclagem. Então, eu tenho que me camuflar de uma maneira do sistema começar a querer me ouvir.












P1 – Você falou que_______ (01:28:45) que fazia projeção de curta na favela. Você tem uma inserção, aqui, cultural? O que mais vocês fazem aqui na comunidade?
R1 – Aqui na favela, com a cooperativa, é só reciclagem. A cooperativa de resíduo. Antes nós fazíamos cinema. Hoje nós temos um projeto que esse ano a gente não fez, chama Favela Grafite. Que a ideia é fazer grafite dentro da favela, de personagens de pessoas que são periféricos e fizeram algo pela favela. Que é muito mais difícil a gente ver todo o sucesso de uma pessoa que é meu vizinho, é mais difícil ver isso, do que elogiar, exemplo, o Michael Jackson, que está lá do outro lado do mundo, sem saber que está na parede. Então, a gente luta mais pra serem reconhecidas as pessoas que estão ali, no convívio, que faz acontecer. O cara que, se der enchente, está aqui pra me ajudar a levantar meus móveis. É isso. Então, a nossa luta aqui da cooperativa, é valorizar quem está aqui. É desse chão.
P1 – E essa biblioteca, que era sonho e você montou?




R1 – A biblioteca, quando a gente conseguiu esse espaço total, a primeira coisa que eu falei pra Lilian: “Mano, meu sonho é ter uma biblioteca”. Ela falou: “Por quê?” Eu falei: “Eu sei que pouca gente vai gostar, mas a biblioteca é o único lugar real que, quando você está querendo viajar, é abrir um livro”. Sei que os cooperados não vão ter o prazer de ir lá, abrir um livro, mas os filhos dele vão ter curiosidade de abrir o livro. A gente não vai conseguir os macacões velhos, mas vai conseguir mudar a juventude, essa nova leva”. Então, as minhas falas, a minha conversa, a projeção que a gente está projetando, não é pra o que tem agora, é pra essas crianças, que vão ser os futuros jovens. Então, se eu for falar agora de uma biblioteca pra um adolescente, o cara vai querer curtir, mas se eu falar pra uma criança que aqui tem uma biblioteca, que talvez seja o único lugar criativo que ela pode viajar, no livro, é uma biblioteca e as conversas que a gente vai ter vão martelar na cabeça dela durante algum tempo e aí, o que eu luto contra o machismo tóxico não vai atingir minha filha, que hoje é uma criança e vai ser mais uma vítima sobre a questão do machismo. Então, é uma coisa montada para as crianças, a evolução, é uma coisa pra anos, não é uma coisa pra hoje. Então, é difícil pra uma marca ver um resultado pra anos. Os nossos objetivos, aqui da Recifavela, nunca é pra amanhã. Sempre são anos, é projetando.
P1 – Quais são seus planos pro futuro, pra Recifavela?
R1 – Quando eu entrei aqui meu sonho só era trabalhar, né? Depois meus filhos vieram, cada filho vai montando uma projeção na sua vida. Meu filho veio, a ideia era permanecer a cooperativa. Veio a Sara, que é irmã do Pablo, aí a ideia foi ser uma cooperativa não debaixo do viaduto, porque já estava difícil pro Pablo, né? Porque como nós não tínhamos ninguém pra cuidar, nós pegávamos nossos filhos, jogava dentro da caçamba de papelão, eles passavam o dia inteiro lá brincando, dentro dos papelões. E eu não queria mais ver aquilo. Aí depois veio a Sofia. E aí foi muito interessante, porque a Sofia falou assim: “Pai, eu nunca vejo ninguém falando de reciclagem e falando o nome do Cris. Nunca vejo meu pai”. E toda vez que eu vou pra atividade de criança na creche ou na escola, meus filhos têm orgulho de colocar que o pai deles é catador. Aí nasceu a Penélope.
P1 – Você já tem quatro?
R1 – Quatro. Tenho quatro filhos. E essa projeção de filhos fez eu perceber que a minha projeção não pode ser como o reciclado: vem, produz, recicla e vai. Porque daqui uns dias eu não vou poder ser reciclado. Minhas ideias podem, mas minha vida vai passar. O que eu posso hoje, meu sonho, a primeira coisa de tudo hoje é sair da Recifavela. Hoje. Porque eu sou uma liderança e aqui tem outras lideranças. Tem que abrir espaço pra outras pessoas. E sair da Recifavela não significa acabar com tudo. Mas uma projeção bem maior do que a gente já tem hoje. Coordenar coisas ou fazer coisas diferentes. O Recircular vai precisar de energia, a fábrica de grãos que a gente sonha, de plástico também precisa de energia e fazer isso aqui crescer. Fazendo isso aqui crescer, não significa... o nosso maior objetivo não é o reciclado. O problema do reciclado é das empresas. Nosso maior problema aqui, nosso maior sonho, é com as pessoas. Realizar o sonho das pessoas. Trabalhando de um lugar que pouca gente acreditou, jogou fora, não quero mais, não serve, mas como nós temos a frase: “Pra muitos, lixo; pra nós, uma oportunidade de mudança de vida”. É isso. Eu quero só ser o porta-voz de uma galera que iniciou lá debaixo do viaduto, pra chegar num lugar que é o nosso próprio lugar, onde nós achamos que é. Onde pouca gente acredita, nós vamos chegar. A gente está num lugar onde a burguesia acha que só é deles. Ocupar os lugares que: “Não pode entrar ali”. Claro que a gente pode! A gente pode estar lá. Então, é dessa maneira. Então, não tem como nós falarmos de reciclagem, sem falar da questão que hoje é a minha bandeira de defender, que é: como nós podemos falar de mudança de perfil de pessoas, se ainda nós estamos falando de uma coisa tão grave, que é a desigualdade social? Se nós não atingirmos a desigualdade social, não adianta nada a gente estar falando de reciclagem. Daqui dez anos nós vamos falar de outas pessoas, que sobrevivem mais da coleta seletiva, desumanamente. Não que esse é um trabalho inviável, é porque é um trabalho desumano. Hoje nós ganhamos centavos aqui. Hoje, pra gente vender um resíduo, são centavos. O preço aumentou, por conta que está faltando resíduo no mercado. Mas quando tudo estabelecer, volta a nossa realidade de sempre. Isso é desumano. Nós sobrevivemos da reciclagem, porque é isso que a gente gosta de fazer. Como alguém que gosta de pintar casa, pintar tela e sabe que uma tela vai ser vendida só daqui a dez anos, mas ele tem esperança de fazer uma tela muito bem feita e vender, pra estar numa casa de alguém. Nós somos os artistas da reciclagem. Mas não é isso aqui que vai fazer nós mudarmos a vida, porque a desigualdade é muito grande, né?
P1 – E como é que você acha que, dentro dessa lógica da reciclagem, é possível reverter e diminuir a diferença social?
R1 – Aqui, não. A reciclagem não vai conseguir mudar a desigualdade social. Nós vamos conseguir formar opiniões sobre a desigualdade social. A nossa única ferramenta aqui é informar, mas mudar é um parâmetro muito mais de cima, do que está na nossa mão.
P1 – Você comentou que seu sonho também diz respeito a fábrica de grão de plástico. O que é?
R1 – Hoje nós reciclamos material, a Recifavela. Como qualquer outro processo, de qualquer outra cooperativa. Não é um bicho de sete cabeças. Todo mundo sabe reciclar. Hoje, pra gente vender o plástico, o que pode ser comercializado, a gente perde 60% a 70%. Se a gente fizesse o processo simples de lavagem e frake. O que é o frake? Deixar o plástico pequeno, sem virar grão ainda. Então, é esse processo que a gente quer procurar. Além de ser uma cooperativa, ser uma indústria que faz o processo de um frake. E a gente quer, o lucro dessa empresa, ser dividido em três eixos: cooperativa, manutenção do equipamento e retorno pra favela. Então, tudo nosso tem que estar ligado à favela. Ali é nosso chão. Ali é nossa preocupação maior. Então, não tem como nós falarmos de Recifavela, só de reciclagem. Só desse quadrado que a gente está aqui.
P1 – E no seu cotidiano, fora esse universo todo que você faz, o que você gosta de fazer, seus hobbies?
R1 – Gosto de viajar. Sou fascinado na cultura negra. Gosto de ler. Assistir série. Muita série de biografia. Eu sou fascinado na história do Malcolm X, Marighela, Dandara, Zumbi. Gosto muito de discussões políticas. Não sou um cara muito de balada. Gosto de ouvir bastante coisas que eu não tenho muito convívio. E curiosidade, eu sou muito curioso. Então, esse universo que eu vivo também me afastou de muitas pessoas que conviveram comigo, né? “Vamos pra uma balada hoje” “Meu, hoje eu não vou, vou assistir uma série” “Vamos viajar”. Todo mundo está na praia, eu estou lá lendo um livro. (risos) Se eu vou pra praia dez vezes ao ano, as dez vezes eu nunca entrei na água. Estou lá lendo um livro. “Vamos pra algum lugar” “Mas por que eu vou pra aquele lugar? Aquele lugar tem o que, de interessante? Ir por ir, não dá certo”. E assim também eu fiz bastante amigos, né, que também têm a mesma pegada de conhecimento e, com esse conhecimento básico que a gente vai fazendo, a gente vai se virando de alguma maneira. Mas meu hobby é esse: criar coisas novas ou coisas que já estão ali na mente, antigas. Eu gosto de ficar muito com meus filhos: viajar, trocar ideia, mostrar pra eles lugares diferentes. Viajo bastante.


















P1 – O que você achou de ter a sua história registrada no Museu da Pessoa e ter dado essa entrevista? Como foi pra você?
R1 – Primeiro, assim, foi um baque, né? Não é todo dia que alguém quer ouvir você. Eu fiquei muito feliz pelo convite. O Erich do Recicleiros tinha me indicado. Primeiro por ele ter me indicado. A gente conversa muito pouco, mas é um cara que me acompanha muito, eu tenho imenso carinho por ele, o pouco que a gente conversa, a gente sempre está trocando ideia. E aí, de repente, vem aqui o Museu querendo saber um pouco da sua história. Eu fiquei feliz pra caramba, assim, sabe? Porque eu acho que agora, uma parte daquilo que eu tenho como objetivo da vida, já está concluído. Meus filhos podem chegar no Google e colocar lá Recifavela, que talvez vai ter uma coisa eternizada. Então, mesmo que seja um pai solteiro, vou marcá-los de alguma maneira. E representar uma organização que hoje são os primeiros passos. Quem vai desfrutar de tudo isso é quem vai vir depois. Mas não é uma coisa que é pra amanhã, né? É diária. Tem mais um pouco ainda pra acontecer e pra poder desfrutar tudo aquilo que a gente plantou. Ninguém planta arroz pra colher feijão, né? Então, estamos plantando uma coisa bem bacana, pra quem vem em sequência e lá na frente falar: “Isso aqui foi fruto de um favelado, de uma favelada, de um povo aí que quase não é visto, é crucificado e aí surgiu essa potência toda”. Tem uma frase bacana, assim, que eu gosto de relembrar: “Difícil foi começar, né? Agora, impossível vai ser parar”. Então, é um pouco da história que a gente acabou de falar.
P1 – Muito obrigada!
R1 – Obrigado você!