Museu da Pessoa

Terapeuta e produtora cultural

autoria: Museu da Pessoa personagem: Thamara Fernandes Sales Santos

P/1 – Thamara, qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Thamara Fernandes Sales Santos. Nasci em São Paulo, no dia 3 de abril de 1980.
P/1 – Como é o nome dos seus pais?
R – Meu pai se chama Antônio Fernandes dos Santos e minha mãe Maria de Lourdes Sales.
P/1 – Seus pais nasceram em São Paulo?
R – Não, os dois são sergipanos. Meu pai nasceu no interior do Sergipe, uma cidade chamada Itabaiana e a minha mãe é de Aracaju, a capital.
P/1 – Vamos falar um pouco, começar pela sua mãe. Você sabe um pouco a história dos seus avós maternos? O nome deles, o que eles faziam?

Eles também são de Sergipe?
R – Meu avô, se não me engano, é de origem alagoana. Eu sei muito pouco a respeito da história dele, ele faleceu com 81 anos, se não me engano, quando a minha mãe tinha 14 ou 15 anos. O que eu sei é que ele veio de uma família de senhores de escravos, mas ele era negro e parece que ele teve uma briga, uma discussão que me disseram e que ele matou o sujeito lá com quem se desentendeu e fugiu. E aí ele foi pra Sergipe. E a minha avó materna era viúva, filha de indígenas, era de origem da tribo dos Kariri-Xocós, uma tribo dizimada também, não sei se os Kariris ou os Xocós, e eles se uniram, que é do interior de Sergipe. E a minha avó perdeu a mãe dela, que era indígena, com se não me engano quatro ou cinco anos de idade. As origens dos meus avós eu não sei muito.
P/1 – Quantos anos ela tinha quando sua avó tinha?
R – A minha avó materna faleceu em 1987, mas mãe dela, quer dizer, a minha bisavó materna, faleceu quando a minha avó tinha uns quatro ou cinco anos.
P/1 – E quem criou ela?
R – Quem criou ela foi uma pessoa tipo amiga, sabe, as pessoas que cuidavam. Alguém que pegou pra criar ela e o irmão.
P/1 – E esse seu avô foi pra Sergipe, e ele fazia o que lá?
R – Ele trabalhava numa repartição pública, se não me engano. E quando meus avós se conheceram ele tinha um casal de filho, era viúvo e a minha avó tinha dois filhos homens e era viúva também.
P/1 – Sua mãe não tinha nascido.
R – Não. E a minha mãe é a primeira filha do casal, dos dois.
P/1 – E a sua avó fazia o quê?
R – A minha avó era dona de casa.
P/1 – E vamos falar agora um pouco da família do seu pai. Seus avós paternos.
R – Meus avós paternos. Do Estado de Sergipe também, de ascendência portuguesa, todos eles eram brancos. Aliás, não, a minha bisavó paterna, ou tataravó, também era indígena e a minha avó dizia que ela foi caçada em dente de cachorro.
P/1 – É mesmo? Como assim?
R – Por algum português.
P/1 – É mesmo?
R – Foi caçada. É, caçada. Cachorro, dente de cachorro (risos).
P/1 – Dente de cachorro é um cachorro que foi lá e...
R – É, caçada. Como bicho, como animal, né?
P/1 – Mas ela morava onde? O que ela fazia?
R – Alguma tribo, também era indígena. E aí foi pega. E a minha avó, essa história do meu pai também, tem alguns silêncios assim, o meu avô também faleceu bem velhinho, doente, quando meu pai tinha 18 anos. Se não me engano, o pai da minha avó, meu bisavô paterno se matou enforcado por conta de um boato, alguma coisa de história de abuso, aí ele não suportou e se enforcou. E aí a minha avó, que era a filha mais velha dele, a minha bisavó já era falecida, ela morreu de depressão, ela definhou assim, perdeu a vontade de viver e a minha avó era pequena, mas era a mais velha. E a minha avó cuidou dos outros irmãos. Tinha um irmão mais velho, eu não sei quantos irmãos a minha avó tinha, exatamente, eram vários. E a minha avó era a mais velha das mulheres, então ela cuidou dos outros. E eu tenho hoje um tio vivo, que é irmão da minha avó.
P/1 – Mora aqui ou mora lá?
R – Mora em Osasco. Mas todos são sergipanos.
P/1 – Seu pai é de...
R – Itabaiana.
P/1 – Itabaiana e a sua mãe de Aracaju. Você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Eles se conheceram em 1977, no início do ano numa viagem de volta de férias. A minha mãe foi passar as férias em Aracaju e meu pai foi passar as férias com a família dele também, lá em Sergipe, e na volta, na viagem de ônibus, deu uma confusão lá que venderam o bilhete duplicado e aí meu pai ficou pra fora e não conseguiu embarcar. Deu escândalo, e ele já era envolvido e movimentos sociais, naquela época da ditadura ele era envolvido aí nos porões, nas articulações, então ele sempre foi muito politizado, aí ele causou, mas conseguiu. Falou: “Não, eu tenho que trabalhar e eu vou embarcar nesse ônibus de qualquer jeito”. E aí alguém trocou pra ir no dia seguinte e ele foi. E a minha mãe foi conversar com ele, acho que na primeira parada, ofereceu uma água de coco, uma coisa assim. E ela diz que tinha a impressão de que já o conhecia (risos). E aí eles foram conversando a viagem inteira, se não me engano uns três dias de viagem naquela época. Foram conversando, aí ficaram amigos, eles se falavam, meu pai ligava pra ela sempre, praticamente todos os dias, na hora do almoço, alguma coisa do tipo. Eles ficaram amigos, namoraram, ficaram noivos e casaram, tudo em nove meses.
P/1 – É mesmo?
R – Nessa época meu pai morava em Mauá, numa pensão.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – É, em Mauá.
P/1 – Então vamos voltar, eles já estavam em São Paulo, os dois, quando eles se conheceram.
R – Eles se conheceram na viagem de Sergipe pra São Paulo.
P/1 – Mas a sua mãe também já estava morando aqui.
R – Morava aqui.
P/1 – Então vamos voltar. Como é que foi a infância do seu pai?
R – A infância do meu pai foi na roça e eu soube de várias coisas que ele fazia, de vender mingau, vender pipoca na porta do cinema. Ele ajudava a minha avó na roça. Ele também foi o primeiro filho da minha avó e o meu avô, pai do meu pai, ele era viúvo e tinha, se não engano sete, oito filhos, ele tinha vários filhos. E a filha mais velha do meu avô era da mesma idade da minha avó, com quem ele casou. E o meu pai foi o primeiro filho desse casamento, então o meu avô era viúvo e casou com a minha avó. Minha avó disse que não queria casar de jeito nenhum, que foi forçada, foi obrigada. Ela era órfã na época e vivia pro cuidado das pessoas, minha avó sempre cuidou de pessoas doentes. E aí o meu avô era um homem velho e ele ficou doente, acamado, durante alguns anos, então meu pai era meio que braço direito da minha avó, era filho mais velho, ajudava a cuidar das coisas, da casa e trabalhava na roça e fazia esses outros trabalhos, e eu soube que durante a adolescência ele trabalhava numa venda também para o padrinho dele. E a cidade onde ele nasceu e se criou, que é Itabaiana, é uma cidade que é no centro do Estado de Sergipe e é rota de todos os cantos do Estado, então é uma cidade muito comercial, as pessoas lá vivem do comércio, especialmente da feira, historicamente da feira, as pessoas vendiam coisas. Então todo mundo vende farinha, cebola, coisas do tipo. E todo mundo tem apelido nessa cidade e as pessoas se reconhecem pelos apelidos e pela ascendência. Por exemplo, a irmã mais velha do meu pai, que é do primeiro casamento do meu avô paterno, é Maria da Manteiga, porque era esposa do Zé da Manteiga, que era vendedor de manteiga. E o filho deles era o Manteiguinha. Então todas as pessoas têm alguma coisa que relaciona à tarefa, à função da pessoa.
P/1 – E seu pai estudou?
R – Estudou. O meu pai morou em Itabaiana até os 18 anos e aí ele veio escondido pra São Paulo, arrumou lá de pegar carona num caminhão e veio pra São Paulo e deixou uma carta lá.
P/1 – E por que São Paulo?
R – A família dele, os irmãos do primeiro casamento, quase todos tinham vindo pra São Paulo já, moravam na região do ABC e ele veio pra cá, ele queria sair dali. Ele estudava, disseram pra mim, que ele ensinava os outros lá na cidade dele. Ele gostava de Matemática, ele ensinava todo mundo e ele queria ser engenheiro. E todos passaram, mas ele não passou no vestibular, ele ficou desencantado e veio pra São Paulo. E aqui ele fez faculdade de Matemática em Mauá. E quando a minha mãe conheceu ele estava fazendo faculdade, estava mais ou menos na metade da faculdade, por aí.
P/1 – E a sua mãe? Você sabe da infância dela?
R – A minha mãe perdeu o pai aos 14 ou 15 anos e aí um irmão mais velho dela, por parte de mãe, era locutor de rádio, se não me engano, no Rio, ele foi pro Rio. Minha mãe fala sempre muito dele, do tio Paulo. E o tio Paulo e a tia Rosa, que era a esposa dele, foram morar no Rio e depois de um tempo, quando o meu avô já tinha falecido, eles mandaram uma passagem de avião pra chamar minha mãe pra morar lá, pra tentar sobrevivência. Quando meu avô faleceu eles tinham uma vida boa, ele era funcionário de uma repartição pública, mas naquele tempo não tinha pensão, não existia isso. E ele nunca quis comprar uma casa, ele gostava de morar em local bom, ele não podia comprar, então ele preferia alugar do que comprar num local pior. E quando ele faleceu não tinha mais a renda e a minha avó começou a passar roupa, lavar roupa pra fora e a minha mãe ajudava. A minha mãe fazia sapatinhos de crochê, de tricô, ela sempre fala isso, e ajudava minha avó no ferro de brasa. E aí eles não viam perspectiva. E nessa época minha mãe estudava e ela tinha feito curso de datilografia (risos), então ela era a única que tinha possibilidade de arranjar um emprego, um trabalho melhor naquela época porque a família estava numa situação mesmo de passar fome, não era todo dia que tinha o que comer. E então a minha mãe foi pro Rio e logo ela arranjou trabalho e mandava dinheiro pra minha avó lá no Nordeste. Depois que minha mãe pôde, ela trouxe a minha avó e os filhos, aí veio a carreira.
P/1 – Pro Rio?
R – Para o Rio. E ela ficou alguns anos trabalhando no Rio, naquela época é porque era bem fácil.
P/1 – Ela morava onde lá?
R – Ela morava acho que Vila Isabel. E ela morava na boca de uma favela, logo na outra esquina era a favela. Então eles moravam lá no quarto e moravam oito, dez pessoas nesse quartinho. E ela fala do fogão jacaré, ela sempre conta bastante história assim.
P/1 – O que é o fogão jacaré?
R – Eu acho que é um fogãozinho daquele que é só o fogareiro, uma boca ligada no botijãozinho de gás. Eu acho que é isso (risos), no meu imaginário, que eu entendo que ela fala é isso. E aí foram os irmãos pra lá e em algum momento eles viram que em São Paulo as ofertas eram melhores. Ela ficou desempregada, ou alguma coisa do tipo e se mudava de emprego com mais facilidade e ela veio pra São Paulo, então ela veio jovem pra São Paulo, acho que com uns 19 anos, 20 ou nem isso, por aí. Não sei se ela já foi direto trabalhar na Kibon ou não, ou se passou por algum emprego antes, mas eu me lembro, a minha mãe trabalhou mais de 20 anos na Kibon. E então quando ela veio pra cá ela foi morar na região do M’Boi Mirim, que já tinha uma tia minha, irmã mais velha dela por parte de pai que morava lá. E a minha mãe veio e passou um tempo até se arranjar. E o irmão mais velho da minha mãe, por parte de pai – é muita gente, né?
P/1 – Não, mas vai cruzando, você vai ver.
R – Viajava, estava sempre viajando, era meio malandro assim, jogador, tinha várias mulheres, então a família foi se espalhando por alguns membros (risos), mas a maioria da família da minha mãe veio parar aqui em São Paulo e ficou alocada ali naquela região do M’Boi Mirim. E quando a minha mãe estava trabalhando na Kibon ela viu uma oportunidade, comprou um terreno naquela região.
P/1 – Mas ainda ela não conhecia seu pai?
R – Não. Aí ela construiu a casa, a família construiu a casa. Ela comprou dois terrenos.
P/1 – No M’Boi Mirim mesmo?
R – No M’Boi Mirim. E o meu tio que construiu a casa dela, ela deu o terreno em troca do serviço e todos os irmãos dela, toda família morou nessa casa. E nessa casa todos, família com os agregados, os filhos, todo mundo quando estava numa situação difícil ia pra lá e a minha mãe meio que ajudava, contribuía no sustento da casa, mas todos colaboravam, todos trabalhavam. E os que estavam numa situação mais difícil sempre era um passo pra trabalhar. Então isso é muito forte na minha família, essa fala do trabalho como a única possibilidade e o caminho, um caminho pra vida, um caminho pra seguir na vida é o caminho do trabalho. E aí a minha mãe, isso, as pessoas todas passaram por lá, da família dela, e ficaram.
P/1 – Nessa casa?
R – Nessa casa. Iam casando.
P/1 – Você chegou a conhecer a casa?
R – Eu morei lá depois de alguns anos.
P/1 – Ah, você vai contar como é a casa.
R – E nessa época, quando a família estava, praticamente todos os irmãos tinham casado, já com filhos e tudo, estava todo mundo encaminhado, aí ela falou: “Agora está na minha vez”, foi nessa época, mais ou menos, que ela conheceu meu pai e logo casou.
P/1 – Mas aí eles se conheceram voltando de lá.
R – Voltando de Sergipe, mas de uma viagem de férias, os dois estavam de férias e se conheceram no retorno pra São Paulo. Ele morava em Mauá e ela lá no M’Boi Mirim e aí eles se encontravam pra ir no cinema.
P/1 – E aqui ele fazia o quê?
R – Meu pai trabalhava no IBGE, ele era concursado, ele foi trabalhar no IBGE. E nessa época que ela conheceu trabalhava no IBGE.
P/1 – E ela trabalhava na Kibon.
R – Trabalhava na Kibon.
P/1 – O que ela fazia na Kibon?
R – Era secretária executiva. E eles se encontravam nos finais de semana, iam ao cinema, ela fala sempre muito de cinema. Saíam, iam passear no centro, em Santo Amaro. E eles falam que naquela época tinha cinema de rua, hoje não tem, só em shopping, ou, raríssimas exceções, mas naquela época tinha bastante cinema na cidade.
P/1 – Aí eles casaram.
R – Isso. Aí eles casaram.
P/1 – Teve festa, você sabe como foi?
R – Eles casaram numa igreja evangélica. A minha mãe passou por várias religiões, ela cresceu numa família católica, meu avô era muito católico, queria que ela fosse freira, ela fala. E o meu pai, a família católica apostólica romana, todos muito católicos, cresceram na igreja. Depois que meu avô faleceu, e minha avó materna nunca gostou de igreja, então ela não era obrigada a ir, ela não ia. E meu avô era lá, como chama? Não lembro as palavras que ela dá. E depois que minha mãe veio pra São Paulo ela fez parte de várias igrejas evangélicas.
P/1 – Você sabe por que evangélica?
R – Não sei, acho que tinha aquela coisa de...
P/1 – Se era católica...
R – Ela não gostava da igreja também, ela ia porque era obrigada, mas ela não queria saber de padre, ela não queria saber de ser freira, nada disso. Então ela não gostava. E ela falou que na igreja evangélica ela encontrou pessoas, tipo amigos, acho que tinha mais a ver com isso, pode ser que ela tenha conhecido, suposições, mas até onde eu sei ela tinha amizades, alguém, alguma amiga que era evangélica e aí ela se afinou e passou muitos anos sendo evangélica. E o meu pai era rebelde. A família toda dele muito católica, mas meu pai não suporta igreja.
P/1 – Mas eles casaram na igreja evangélica.
R – Casaram numa igreja evangélica. Outra, na verdade não é nem por questão da religião, era porque é onde eles conseguiam casar, que era num local que eles queriam, que tinha essa coisa pra casar na igreja católica tinha que pagar todas as igrejas daquele território até chegar no local onde eles queriam casar. E aí era um vulto enorme. E eles casaram, eles moravam em regiões bem distantes, quando eles casaram eles foram morar em Pinheiros. Não, minto, eles foram morar lá vizinho do Sesc, lá na Nove de Julho, na Praça 14 Bis. E um ano depois a minha mãe engravidou do meu irmão, que nasceu dia 17 de abril de 1979 e logo depois que o Bruno nasceu, um tempo depois eles foram morar em Pinheiros num apartamento que um amigo dela emprestou, que ele ia morar na África do Sul, se não me engano e ele falou: “Ó, você quer ficar lá, cuida e tal”. Nessa época eles não tinham comprado apartamento, eles moravam de aluguel. E um tempo depois eles compraram um apartamento na região do Jardim Miriam, que era próximo, era intermediário onde meu trabalhava no IBGE em São Bernardo e a minha mãe trabalhava na Kibon que era no Brooklin, então ali o Jardim Miriam na divisa com Diadema era meio do caminho para os dois. Eu não sei se era CDHU, onde era aquele condomínio, que vários amigos, colegas de trabalho da minha mãe compraram apartamento naquele condomínio, que era um condomínio de prédios, tinha 20, 24 blocos. E aí eles compraram. Então quando eu nasci meus pais moravam nesse local. Eu nasci em abril de 1980, então uns dias antes do meu irmão completar um ano. O meu irmão nasceu prematuro.
P/1 – Como é o nome dele?
R – Bruno Fernandes. E todo mundo achava que ele tinha uma deficiência porque nasceu com as mãozinhas fechadas, os pezinhos tortos assim, de bailarina, e a minha mãe fez muito tratamento de fisioterapia, de reabilitação, de estimulação precoce, na verdade, com ele. Quando eu nasci minha mãe disse que ela só foi saber reconhecer que ela estava grávida com estava com quatro meses. E eu nasci de oito. Nasci na Maternidade Santa Joana aqui em São Paulo.
P/1 – Mas vocês foram morar no Jardim Miriam.
R – É, na época que eu nasci meus pais já moravam lá.
P/1 – Você chegou a morar naquela casa do...
R – Eu fui depois.
P/1 – Ah, entendi. No Jardim Miriam você ficou quanto tempo?
R – Eu fiquei até os sete anos, tinha acabado de completar sete anos. Quando eu tinha seis anos eu, meu pai e meu irmão, a gente sofreu um acidente de carro.
P/1 – Vamos voltar só um pouquinho antes de chegar no acidente. Você lembra como era esse apartamento do Jardim Miriam?
R – Lembro.
P/1 – Como que era?
R – Até há pouco tempo tinha uma amiga que morava lá, uma amiga de infância que a gente tem contato ainda hoje. Era um condomínio grande, eu me lembro da rampa, foi onde eu aprendi a andar de bicicleta. Eu me lembro que meu irmão tinha uma Caloi azul e tinha rodinhas, aí tirou a rodinha para eu andar, ele colocou em cima e soltou naquela ladeira e eu capotei, mas eu aprendi a andar de bicicleta assim. E o meu irmão ensinava tudo pra mim, a gente tinha uma idade muito próxima, então tudo o que ele fazia eu fazia também, ele que me ensinava. Eu lembro de escalar porta como o Homem Aranha e lá em cima pular. E numa dessas eu pulei em cima dele, me desesperei lá em cima e pulei em cima dele. Ele caiu, bateu a cabeça na quinta da cama. E o Bruno sempre batia a cabeça, vivia cheio de pontos, especialmente na cabeça e ficava em coma, voltava e tal, mas era bem danado, e eu era mais quietinha, mas ia na onda dele, das coisas. Então é isso que eu lembro desse condomínio. E tinha uma amiga da minha mãe, que era a tia Angela que morava no terceiro andar, a gente morava no oitavo. Tinha outras amigas que moravam no mesmo condomínio em outros blocos, ou na vizinhança, naquela região. E aí a minha mãe diz que ia todo mundo pra Kibon e cada dia uma ia com o carro e levava a patota toda, então era a mulherada e os filhos, deixava na escola e cada dia era uma. Isso é o que eu lembro dessa fase.
P/1 – Que outras brincadeiras você tinha lá? Com quem você brincava?
R – Nossa... olha, brinquei! Brinquei!
P/1 – Você ia falar das brincadeiras de infância do Jardim Miriam.
R – É, só puxando, que delícia contar a minha história e a minha avó, eu acabei de lembrar, ela era uma contadora de histórias. Estava conversando, de repente engatava, ia ta ta ta, ta ta ta e eu estava sempre muito perto dela assim. Bom, enfim, das brincadeiras. Nossa, brincava muito, eu tinha muito brinquedo. E tinha muita criança naquela época, o prédio tinha muita criança. Tinha um pátio, a área do condomínio era gigantesca e tinha um pátio também no prédio que ligava dois ou três blocos e aquele pátio era um local de brincadeiras. Tinha um salão de jogos também nesse andar do pátio que tinha pebolim, pingue pongue, tinha os jogos de mesa. E eu não sei se nessa época eu já jogava baralho, eu gostava de brincar. Meus pais jogavam baralho, então um tempo depois eu lembro que esse baralho fazia muito parte do nosso cotidiano, mas nessa eu lembro dos quebra-cabeças, mais ou menos isso. Eu não tenho muitas lembranças antes dos seis anos porque nesse acidente eu perdi a memória, então eu lembro dos seis pra frente, o restante é mais história que eu ouvi, ou fotos, coisas que as pessoas contaram. Eu não tenho lembranças das brincadeiras antes dos seis.
P/1 – Essas lembranças que você tem da sua avó contando história é dessa época ou é mais pra frente?
R – Não, é mais pra frente. Nessa época a minha avó materna era viva, ela faleceu em 1987 e morava lá no M’Boi Mirim, na casa que a minha mãe construiu. E eu ia pra lá alguns finais de semana passar o dia, almoçar, me lembro alguns domingos. E o que eu me lembro muito forte da minha avó, a lembrança mais forte que eu tenho dela é que toda vez que eu chegava ela fazia um pão na chapa pra mim, uma panela de ferro assim, pretona, uma panela velha, petrona, que eu adorava. Aquele pão, eu nunca comi pão mais gostoso do que aquele pão esquentado, que não é pão na chapa, mas é na panela, era naquela panela preta dela. É a visão que eu tenho da minha avó, a lembrança, essa na cozinha. Tinha uma mesa grande no centro, essa cozinha era quadrada, tinha uma geladeira azul, se não me engano e eu lembro dessa imagem.
P/1 – Ela fazia esse pão numa panela.
R – Numa panela preta de ferro. E ela me chamava de Tatinha. Acho que é. A minha avó paterna também me chamava de Tatinha.
P/1 – Como que era M’Boi Mirim, você lembra?
R – Nessa época?
P/1 – É.
R – Eu não lembro. Eu me lembro depois quando eu fui morar lá, mas já foi na adolescência, quando eu tinha 13 anos.
P/1 – E o que aconteceu? Vocês tiveram um acidente, como que foi esse acidente?
R – Nessa época eu acho que meu pai tinha saído do IBGE, ele pediu demissão para ir trabalhar com um amigo dele, um gaúcho, tio Aragão, que tinha uma empresa de telefonia. E eu acho que ele esqueceu alguma coisa no serviço e foi pegar. E era no Ipiranga, então era uma rua que era uma ladeira pra pegar a Imigrantes, a Ricardo Jafet pra chegar até o Ipiranga, e nessa ladeira o carro perdeu o freio. Aí estávamos eu e meu irmão atrás e ele. O carro bateu assim, o carro ficou destruído, nós fomos pra baixo e ele ficou um tempo ainda acordado, conseguiu chamar ajuda e ele só avisava: “Meus filhos!”, todo mundo olhava e não via ninguém, aí teve que serrar o carro e acharam as crianças embaixo. E quando identificaram, que ele conseguiu falar, ele desmaiou e aí eu, ele e meu irmão ficamos em coma durante um tempo. Meu pai e meu irmão voltaram logo, eu fiquei acho que sete dias e fiquei internada durante um tempo, fiquei dois meses assim, numa fase. Eu tive várias fraturas; os dois tiveram traumatismo craniano e eu tive traumatismo craniano e fraturas na bacia, no fêmur e tal, então eu fiquei um tempo engessada daqui da cintura até o pé de uma perna e até o joelho da outra perna.
P/1 – Que é aquela foto.
R – Que é aquela foto.
P/1 – Vocês acabaram selecionando?
R – Acho que não.
P/1 – Era bacana, né? Quer dizer, registrou.
R – Pode ser, mas acho que daí dá mais do que o número.
P/1 – Não faz mal.
R – E nesse período eu fiquei hospitalizada e eles meio que montaram um hospital dentro de casa, locaram uma maca.
P/1 – Por isso que vocês mudaram?
R – Não, isso era lá no apartamento do Jardim Miriam mesmo. E a minha mãe segurou o risco de perder a família toda, mas todos sobreviveram e ninguém ficou com sequelas graves, só cicatrizes mesmo. Eu demorei mais tempo pra me recuperar, mas fiquei sem sequela também. Então tinha uma maca na sala, o colchão d’água e a minha mãe passava todo dia na escola pra pegar lição pra levar pra mim e os amiguinhos iam lá e brincavam comigo, então não saía da cama, mas as pessoas estavam sempre lá. E eu me lembro quando eu tirei o gesso eu não sabia mais andar, eu me lembro de tentar levantar e capotar, de ter uns acidentes domésticos corriqueiros do meu desejo de sair andando. E aí, depois dessa fase, então assim eles tiveram muitos gastos, a vida deu um giro, minha mãe diz que nessa época eles não tinham, a vida era só trabalhar, ganhar dinheiro e curtir a vida, não tinha outros sentidos, não tinham religião mais, estavam distanciados. E parece que foi o momento de voltar para o sentido da vida, então eles começaram a pensar o que eles queriam de fato pra família. E meu pai tinha muita vontade de voltar a morar no Nordeste. E eles sempre iam passar as férias lá, iam acampar em Aracaju, iam pra praia, eles sempre gostavam, e aí eles resolveram. E a minha mãe foi demitida da Kibon nessa época, depois de 20 anos ou mais, porque a Kibon foi vendida e aí esse processo de troca de funcionários eles começaram a demitir todos que tinham mais de dez anos de casa. Foram demitindo e chegou uma hora a leva que era inevitável, ela foi demitida. E aí eles resolveram ir morar em Aracaju. E com o dinheiro que a minha mãe recebeu o meu pai comprou um material de construção lá na periferia de Aracaju. E a minha mãe que era secretária executiva, que vivia em cima do salto foi lá trabalhar com os carroceiros, que naquela época lá, nesse local, eles transportavam o material de construção em carroças, então os funcionários do local eram...
P/1 – E por que ele escolheu a periferia de Aracaju?
R – Então, na verdade o cunhado dele, o Zacarias, marido da minha tia Angélica – que é irmã, depois do meu pai que é o mais velho, a tia Angélica foi a segunda da minha avó – ele tinha um material de construção lá no mesmo bairro, que era o Santos Dumont. E aí estimulou e meu pai foi, tal.
P/1 – Mas ele foi transferido do IBGE, o que ele fez?
R – Não, meu pai já tinha pedido demissão do IBGE, exoneração, estava trabalhando na Subratec, que era a empresa do amigo dele, empresa de telefonia, e nessa época ele pediu demissão, largou tudo e foi pra lá montar o negócio dele. E aí foi difícil, foram dois anos que a gente passou lá, 87 e 88 a gente passou lá em Aracaju.
P/1 – Você estava com sete, oito anos.
R – Estava com sete anos quando eu fui. E um mês depois que a gente foi morar lá, tinha acabado de completar sete anos, um mês depois a minha avó materna faleceu. E a minha mãe fala que os irmãos disseram que a culpa foi dela porque ela foi embora e abandonou a minha avó e ela não suportou. E depois disso a minha mãe começou a ficar doente, teve vários problemas de saúde, desenvolveu mioma, de ter ficado em estado grave de ter que fazer cirurgia e tal.
P/1 – Isso tudo lá?
R – A minha mãe já estava morando em Aracaju, mas ela não conseguiu acostumar. Embora seja a terra dela, ela não conseguiu acostumar mais lá. E nesses dois anos, um ano e oito meses na verdade a gente morou em Aracaju.
P/1 – Você lembra desse período?
R – Lembro, lembro. Eu e meu irmão fomos estudar no Colégio Salesiano, que era o colégio de padre, colégio enorme, e às vezes a gente ia à tarde ficar com eles lá no depósito de material de construção.
P/1 – Do seu...
R – Do meu pai.
P/1 – Do cunhado dele?
R – Não, dos meus pais. Meus pais compraram.
P/1 – Ah, acabaram comprando o depósito de material de construção.
R – Compraram, isso. Perto do depósito do meu tio. Então foi por isso que ele entrou no negócio, mas ele não entendia nada do negócio, não era do ramo dele, ele, sei lá, se aventurou e não se deu muito bem. E aí a gente estudava no Colégio Salesiano, às vezes a gente ia para o reforço. Na época que eu fui pra escola eles não queriam me inserir na primeira série, queriam que eu voltasse para o pré porque eu não sabia ainda ler e escrever. Porque no final do pré, no período da alfabetização, eu estava hospitalizada, então a minha mãe pediu. E no esquema daqui de São Paulo era um outro processo e lá era meio quartel general, lá em Aracaju, então eu e meu irmão tivemos dificuldades de adaptação lá, mas assim, minha mãe pediu um tempinho e um mês depois eu já estava lendo e escrevendo, então já tinha toda a base, só não manifestava porque não tinha oportunidade de exercitar. Então lá eles chamavam de banca, era aula de reforço, a gente passava a tarde nesse local, que era meio que uma casa que várias crianças iam para estudar, como reforço escolar. E era muito comum aquilo, não eram crianças que tinham dificuldade, mas num período estava na escola, no outro período estava na banca. E aí a gente tinha muitos brinquedos, eu e meu irmão, e tinha a prática desde muito cedo que eu me lembro essa coisa de brincar com os vizinhos. A minha casa era uma porta aberta, todo mundo ia brincar na minha casa e lá podia tudo, e depois todo mundo arrumava, então a minha mãe não tinha muitas restrições. E ela fala que teve um período, estou voltando um pouquinho, mas ela fala que tinha uma parede que era só da gente, então a gente rabiscava na parede, naquele pedacinho, ali podia. E aí chegou uma hora que enjoou de rabiscar, pintou e nunca mais a gente pichou (risos). E quando a gente foi pra Aracaju já era na rua, a gente nunca tinha morado na rua, era sempre apartamento, então a gente nunca morou em casa na verdade. E lá em Aracaju as brincadeiras eram de rua, eram brincadeiras de roda, de pega, de esconde-esconde que dava a volta no quarteirão, eram brincadeiras coletivas de muita gente, da rua inteira e das outras ruas. A minha rua era uma rua de brincadeiras, eu lembro bastante. Não me lembro exatamente do nome das pessoas, mas me lembro que era bastante gente e que todo mundo brincava na rua. Lá em casa também, outras crianças iam lá pra casa, mas a gente não ia pra casa das outras crianças. E nesse período que a gente foi morar em Aracaju os meus primos moravam perto, que era um bairro chamado Sol Nascente, ainda é, Sol Nascente. Quer dizer, um lado da avenida era Sol Nascente, do outro era JK, então a família do meu pai, minhas tias, moravam ali, foi quando eu comecei a ter contato com os primos por parte de pai. Aí tinha o Leo que morava na rua de trás, na rua paralela e tinha a Carol que morava na rua virando a esquina. E o Leo era um pouquinho mais novo que eu, alguns meses mais novo, e a Carol acho que era uns dois anos mais nova que eu, então era essa faixa etária. E a gente brincava de muitas coisas, mas uma brincadeira que marcou bastante essa época era stop, forca, brincava muito disso, mas eu lembro de uma fase que eu acumulava embalagens descartáveis e era o mercado (risos). Então, tudo o que a minha mãe comprava era em caixa, então até arroz tinha em caixa, e eu guardava todas as caixas, saco de lixo, eu era acumuladora, tive uma fase acumuladora (risos). E eu juntava tudo. E tinha o caixa, passava e o mercado era sempre na casa da Carol, que era essa prima mais nova. A gente brincava muito lá porque a minha avó ficava lá na casa dela, então às vezes à tarde a gente brincava lá. E aí fazia o mercadinho, então tudo tinha preço e juntava, juntava e não sei por que cargas d’água uma hora foi tudo pro lixo mesmo (risos). Não sei se começou a juntar bicho, o que foi, eu não me lembro isso, o que acabou com a brincadeira. Ou se foi mesmo quando eu voltei pra São Paulo. Porque no final de 88 minha mãe resolveu voltar, falou: “Não quero mais ficar aqui, não me acostumo”, e diz ela, falou: “Eu vou, se você quiser vai, senão eu vou com as crianças sozinha”, e aí eles resolveram voltar. E eu me lembro dessa mudança, que a gente foi de ônibus, voltamos no final de 88 e a gente chegou aqui em São Paulo no Natal, praticamente.
P/1 – Você lembra da viagem?
R – Lembro.
P/1 – Como foi?
R – Foi eu, meu irmão, meu pai, minha mãe e tinha a Vilma, que era a empregada de casa. A gente sempre teve uma empregada morando junto, que dormia no mesmo quarto que a gente, que cuidava da gente, cuidava da casa. Era como se fosse um membro da família mesmo, não tinha separação de nada, comia junto na mesma mesa, minha mãe comprava coisas pra gente e comprava pra ela também, que era sempre alguém que a minha avó arranjava lá de Itabaiana, ou do interior do Sergipe, pra trabalhar em casa. E que ia pra São Paulo, então tinha o esquema de trazer. Elas estudavam, saíam e a minha avó mandava sempre uma outra pessoa, então além de nós quatro sempre teve um quinto elemento, vamos dizer assim, que era uma pessoa agregada da família. Então nessa época quem voltou com a gente foi a Vilma, que era da cidade de Salgado, interior de Sergipe.
P/1 – E vocês voltaram no ônibus.
R – Voltamos no ônibus, mandaram a mudança e a gente chegou praticamente na véspera de Natal. E meu pai voltou a trabalhar na empresa que ele trabalhava antes de ir, que era a Subratec, lá no Ipiranga, que era dos amigos deles. E aí foi dos nove anos, nessa fase eu tinha oito pra nove anos, até 91 meu pai trabalhou nessa empresa e eu cresci com esses filhos dos amigos dos meus pais, que eu chamo de primos, porque o tio Aragão, que era o dono da empresa, e a tia Helena, a tia Helena era irmã da mulher do meu tio mais velho por parte de mãe, daquele que vivia por aí, que era jogador, que tinha várias mulheres. Então ele casou com uma piauiense de Teresina e morava em Brasília. E através desse meu tio minha mãe conheceu essa cunhada e através dessa cunhada conheceu a tia Helena e elas ficaram muito amigas e acabou tendo mais afinidade que a própria família. Então eu cresci com eles, eles viajavam juntos, se encontravam todo final de semana. Depois de um tempo eles tiveram casa de praia em Caraguá, então a gente viajava muito pra Caraguatatuba, pra casa de praia deles. Depois eles compraram um terreno, um sítio e construíram uma casa, a gente também acompanhou todo o processo de construção da casa do sítio e que era um local de reunião de muitos amigos, então eu cresci no meio de muita gente, sempre foi muita gente.
P/1 – E a sua mãe voltou a trabalhar?
R – Voltou. Logo depois ela arranjou emprego e depois que ela voltou pra São Paulo ela sempre mudava de emprego. Nisso ela já tinha mais de 40 anos, já era mais difícil dela arranjar emprego, mas ela arranjava empregos temporários e tal. E se não me engano foi em 91 que o meu pai, que sempre queria ter a empresa dele, viu que a Subratec já não estava mais aquela Coca-Cola e ele abriu a empresa dele de telecomunicações. E aí a minha mãe entrou com ele de sócia e foi um período bastante difícil, depois de um tempo meu pai arranjou um outro sócio pra segurar as pontas. Foi nessa fase que eu me lembro de ter começado a trabalhar, então eu ia lá pra empresa e eu atendia os telefones. E eu ajudava meu pai nas coisas que precisava, então, por exemplo, mandava mala direta para os clientes.
P/1 – Mas telecomunicações o quê?
R – Era telefonia. Eles vendiam equipamentos, centrais telefônicas da, era NEC naquela época. Ele mandava mala direta para os clientes, então eu dobrava, envelopava, colocava selo.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Tinha 11 anos. É, 11 anos eu tinha quando comecei a trabalhar com meu pai. Mas antes disso eu sempre tinha... Ah, nessa fase, quando a gente estava em Aracaju, aliás, minha mãe começou a frequentar centro espírita, que foi logo depois que a mãe dela faleceu. Ela disse que fechava os olhos e via a minha avó, estava no banheiro, no quarto, na sala, qualquer lugar ela via minha avó e ela achou que estivesse ficando louca. Até arrepiou (risos), ela achou que estivese ficando louca. E aí a minha tia Angélica, irmã do meu pai que morava perto, falou: “Vou te levar no centro espírita”. E aí levou e ela foi fazer tratamento de banho de luz, passes, fez e logo depois a minha avó foi encaminhada disseram, minha mãe parou de ver a minha avó por lá. E continuou indo, então foi essa época, em 87, que ela entrou pro Espiritismo e frequentou centros espíritas e tal. E quando a gente voltou pra São Paulo a minha mãe passou a frequentar a Federação Espírita de São Paulo. E aí não lembro por que entrei nesse assunto. Ah, mas os trabalhos, já lembro! Enquanto os pais ficavam no centro espírita, a gente ia de sábado, e aí meus pais ficavam assistindo palestras e tinha as turmas das crianças.
P/1 – Seu pai acompanhava ela.
R – Acompanhava.
P/1 – Ia a família toda.
R – É, ia meu pai, minha mãe, eu e meu irmão. E era de sábado de manhã. A gente almoçava, saía de lá e ia pro sítio em São Roque.
P/1 – Vocês tinham um sítio?
R – Não, pro sítio do tio Aragão.
P/1 – Ah, daquele amigo que você falou, do tio.
R – Isso, mas meus pais compraram um terreno em um condomínio fechado em São Roque onde eles queriam construir a casa de campo deles, que logo depois teve o acidente, eles começaram a construir, aliás, e depois que teve o acidente mudou o rumo das coisas. E aquele terreno ficou lá, então anos depois eles venderam aquele terreno e nunca chegaram a construir a casa de campo. Mas tem essa planta, está lá em casa até hoje. Eu mudei recentemente e eu vi essa planta, estava lá e minha mãe: “A planta”. Eu falei: “Guarda aí que um dia essa casa vai ser construída”. É uma casa linda, tem essa planta.
P/1 – Eu só não entendi um pedaço. Porque você disse que você chegou a morar na casa de M’Boi Mirim.
R – É, foi depois. O que aconteceu? Vou fazer o link. Nesse período que as coisas começaram a ficar difíceis.
P/1 – Que foi quando seus pais abriram a empresa de telecomunicações.
R – De telecomunicações, isso. Só para eu concluir aquele pedaço, a gente ia pro centro espírita e tinha as turmas das crianças e lá a gente sempre aprendia a fazer coisas e lá eu aprendi a fazer cachecol no tear, aprendi a fazer coisinhas e tudo eu queria fazer pra vender, pra dar de presente, tal. Então eu fazia e aí eu gerava a minha mesada. Nessa fase, então antes dos 11 anos eu já fazia algumas coisas nesse sentido, tino empreendedor (risos). E aí as coisas começaram a ficar difíceis quando meu pai abriu a empresa, depois ele arranjou um sócio e depois de um tempo ele descobriu que esse sócio estava trocando centrais novas por quebradas e estava roubando, desviando o dinheiro. Ele ficou enraivecido e resolveu sair da sociedade, e aí as coisas ficaram bem piores do que estavam. O apartamento que a gente morava no Jardim da Saúde era alugado, mais especificamente na Vila Gumercindo e a gente estudava no colégio Santa Helena, que era bem em frente ao prédio, era só atravessar a rua. Morávamos no oitavo andar, num apartamento de dois quartos. E aí ou pagava a escola, ou pagava o aluguel. E eles resolveram não tirar a gente da escola, manter, só que não tinha como pagar o aluguel, então eles foram morar, e a minha mãe tinha aquela casa onde minha avó morou. E quem morava nessa casa na época era a minha tia caçula, a irmã mais nova da minha mãe. A minha tia pagava um aluguel e chegou um tempo a minha tia arrumou um namorado que foi morar com ela lá junto e parou de pagar o aluguel. E reza a lenda, eu não conheci esse namorado da minha tia, mas disseram que ele era um macumbeiro, pai de santo, mas que fazia macumba, histórias de família, e que causava, que não era uma pessoa bem vista na família, não era uma pessoa do bem. Aí a minha mãe começou a cobrar: “Olha, não é só você que está morando, tem alguém que se instalou aí”, minha mãe estava precisando do dinheiro do aluguel, e minha tia acho que ficou dois anos sem pagar o aluguel e minha mãe mobilizou uma ação de despejo. E ele fez várias macumbas e quando conseguiu fazer o despejo nós fomos morar nessa casa. E minha mãe diz que quando entrou na casa era a casa inteira cheia de macumba e foi um transtorno pra gente morar lá. Uma, porque mudou o padrão de vida, a gente morava no Jardim da Saúde e foi morar na periferia de São Paulo. Naquela época não é como hoje, então assim, a Avenida M’Boi Mirim era uma mão que subia e outra que descia, era um trânsito fenomenal e era na época da gestão da Erundina. E foi nessa gestão da Erundina que começou a duplicar a avenida, então as coisas melhoraram, mas era um cenário de periferia, era muito diferente do que a gente vivia.
P/1 – Que mais, como é que era? Você está falando isso é 89?
R – Não, isso já foi 93, quando eu tinha 13 anos.
P/1 – Como era lá?
R – Meu pai teve empresa, ele abriu essa empresa que era, qual era o nome da empresa? FL? Não, FL não sei se era o nome do material de construções, não lembro. Graham Bell era o nome empresa, que foi o pai do telefone, o inventor do telefone, a empresa chamava Graham Bell. A empresa lá de Aracaju, o material de construções, era FL, de Fernandes e Lourdes. Esses dois anos eles viveram disso e foi cada vez ficando pior, então foi em 93, no primeiro semestre de 93 que a gente foi morar na M’Boi Mirim. E aí foi um terror, foi terrível, pra mim foi traumático e a minha mãe relata que pra ela e pro meu pai também. Acho que quem foi mais tranquilo foi meu irmão, se sociabilizou rapidinho, ele fez amizade rapidinho com os moleques da rua. E eu detestava aquele lugar.
P/1 – Como era a casa?
R – Aí meus pais, não lembro se eles fizeram alguma reforma. A minha tia tinha modificado a casa também. Quando a minha avó morava tinha um portãozinho de ferro, uma escadinha de três degrauzinhos e do lado direito de quem entra tinha um jardim, subia a escadinha, tinha uma porta que dava acesso pra casa e virando o lado esquerdo tinha um corredor que dava acesso ao quintal, área de serviço e a cozinha do lado de fora. Era uma casa de dois quartos também. E a minha tia, que já é falecida, demoliu o jardim e abriu pra fazer a garagem. Quando a gente foi morar lá já não tinha mais aquele jardim da minha avó, tinha lá um espaço que era um buraco, na verdade, porque não era exatamente uma garagem, mas era um buraco no muro. Era horrível (risos). Era horrível.
P/1 – E M’Boi Mirim, como era? Tinha a avenida que subia e descia.
R – Tinha a avenida que subia e descia, ônibus com as pessoas penduradas do lado de fora pra ir trabalhar. A gente tinha nessa época um carro, uma Caravan velha, caindo aos pedaços que quebrava e arrumava e tarará tarará, e vira e mexe o carro quebrava, era um carro velho de mais de 20 anos. O carro quebrava e a gente tinha que sair cedo e então acordava de madrugada pra pegar o ônibus cinco horas da manhã e já era o ônibus lotado. Eu e meu irmão, a gente continuou estudando no Santa Helena e meus pais continuaram trabalhando no Ipiranga, então a gente atravessava a cidade, a Zona Sul todinha, praticamente. Eles deixavam a gente na escola e iam trabalhar. E depois quando a gente saía da escola a minha mãe passava e pegava a gente e ia pra casa durante um período, e outros períodos quando ela estava trabalhando com meu pai. Depois que eles fecharam a empresa minha mãe foi trabalhar com a tia Helena na Subratec, que era aquela empresa. Aliás, Subracom, que ela abriu uma outra empresa, o marido tinha a Subratec e ela tinha a Subracom. Minha mãe foi trabalhar com essa amiga dela, eu chamava de tia Helena, e outros tempos eu e meu irmão voltávamos de ônibus, eram três horas de trajeto de ônibus da saída da escola até chegar em casa. Meu irmão, eu me lembro e minha mãe sempre fala, que ele almoçava de manhã, no café da manhã, ele batia o prato de arroz e feijão de manhã pra passar o dia. E a gente comia lanche na escola e algumas vezes eu me lembro da gente almoçar antes de ir, outras vezes não, a minha mãe deixava comida pronta (emocionada). E a gente tinha, cada um tinha uma camisa do uniforme da escola, então a minha mãe lavava à noite, colocava atrás da geladeira e de manhã a camisa estava seca, passava e ia pra escola. E às vezes quando a gente ia pra escola que o carro quebrava o meu irmão ia junto porque os homens, era muito homem encoxava, tal, então meu irmão ficava sempre dando a retaguarda pra ninguém encostar em mim. Ele sempre cuidou de mim e nessa fase foi... (chorando)
P/1 – Você estava com quantos anos?
R – Treze anos. Nessa época a gente se afastou bastante dos amigos que moravam no Jardim da Saúde. Desse grupo de amigos dos meus pais também, começaram a ficar mais distantes. Meus pais resolveram sair da empresa e foram trabalhar como corretores de imóveis, recebiam de vez em quando. A gente tinha bolsa na escola, que a dona Helena que era dona do colégio Santa Helena cedia, tinha um desconto. E a gente ficou o resto do ano de 93 nessa escola e no ano seguinte, que foi 94, a gente voltou a estudar no Brooklyn nos colégios onde a gente estudava quando era criança, que a minha mãe trabalhava na Kibon.
P/1 – Que era particular.
R – Que era particular. Só que era metade do caminho. Eram bons colégios que eles conheciam e que o valor era acessível também perto da condição que eles podiam. E aí eu fui estudar no Beatíssima e meu irmão foi estudar no Meninópolis. Esses dois colégios ficam na Avenida Morumbi. Ficavam, Beatíssima acho que ainda existe, o Meninópolis foi vendido, virou faculdade, acho que não existe mais o colégio Meninópolis. Beatíssima era colégio de freiras e o Meninópolis era de padre. Então a gente foi estudar mais perto e a nossa rotina, a gente saía do colégio e pegava ônibus pra ir pra casa, mas já era metade do caminho. E eu passei esses anos, foi 94 que a gente mudou de colégio, eu ficava durante a tarde na casa do meu tio, que era vizinho de muro, irmão caçula da minha mãe, então pulava o muro e passava parte da tarde lá com meus tios, jantava lá, assistia televisão lá, que é o meu tio Luciano e a minha tia Salete, que são pessoas muito queridas, eu tenho um vínculo muito forte com eles, acho que por parte de mãe são os tios que eu tenho mais proximidade. Embora tenha com os outros também, mas eles fizeram parte da minha história de maneira muito especial.
P/1 – E você fez amigos lá nesse período?
R – Onde eu morava não. Eu me isolei, foi uma fase de isolamento. Só que antes, quando era criança o centro espírita era no sábado e na adolescência já era grupo de juventude e mocidade espírita, esses grupos eram aos domingos. Então eu saía de domingo, pegava o ônibus, tipo com 13, 14 anos, eu ia sozinha, pegava o ônibus no domingo de manhã e ia pro centro. A Federação Espírita ficava na Rua Santo Amaro, no centro da cidade, e eu ficava lá durante a manhã, comecei a participar de um grupo de Artes que tinha lá, então escolhia, tinha o grupo de Jogos, Jogos e Brincadeiras, tinha o grupo de Música e o grupo de Artes, aí eu entrei nesse grupo de Artes. Eu acho que era as duas primeiras horas no domingo, tipo das oito às dez e depois era o grupo da mocidade ou da juventude, então eu frequentei durante um tempo. Ali tinha os amigos e eu fiz amizades lá. Terminava na hora do almoço, daí a gente saía pra fazer outros coisas lá pelo centro, então tinha uma amiga muito querida dessa época, que é a Lis, a gente ia pra Praça da República, pra feirinha de artesanato da Praça da República, e a gente ia ao cinema. Então nossa, eu frequentei os cinemas da República, todo domingo eu ia ao cinema. Todo domingo eu ia ao cinema e ia à feirinha de artesanato; rodava lá, às vezes comprava um anel, um brinco, uma coisa assim. E foi assim que eu passei. E em casa, no bairro onde eu morava eu ficava isolada, enclausurada dentro de casa.
P/1 – Você morou lá até quantos anos?
R – Morei até ir pra faculdade.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu fui pro berçário, logo depois minha mãe colocou numa escolinha. Eu fui pro berçário bebezinha, acho que com quatro meses, três, quatro meses, por aí. Depois eu fui para uma escolinha, que era o Del Rei, que é onde tem uma foto e depois acho que no Beatíssima eu entrei no jardim ou no maternal, no maternal. Eu devia ter uns quatro anos, maternal. Fiquei no Beatíssima até o final do pré. Fui pra Aracaju, aí fui pro Salesiano, fiz a primeira e a segunda série lá. Quando voltei pra São Paulo na terceira série até a sétima série estudei no Santa Helena, que é lá na Saúde, na Vila Gumercindo, depois fui pro Beatíssima, fiquei um ano lá, o ano de 94, depois mudei pro Meninópolis.
P/1 – E dessa sua fase de infância até pré-adolescência que professores você lembra que te marcaram? O nome deles, por que te marcaram?
R – Da infância, do Beatíssima eu me lembro da professora chamada Rosinha, que era acho que do pré ou antes, eu me lembro da figura dela. Acho que porque a gente foi no casamento dela, quando ela casou a gente foi no casamento dela. Depois, quando eu fui pro Santa Helena tinha uma professora de Ciências que o nome dela era Érica, era uma japonesa, e eu gostava muito de Ciências e tinha uma boa relação com ela. E depois, no período da sexta série que eu comecei a ter Educação Ambiental e tinha um professor chamado Fábio, que era filho da dona Helena, era filho da diretora do colégio. E ele era alpinista, eu me lembro dele trazer slides das viagens dele contando, trazendo todo o contexto, cenário global, então ele falava sobre efeito estufa, chuva ácida, era aquilo naquela época e eu me lembro daquele contexto da Eco 92. E eu me lembro de ter escrito, foi a primeira vez que eu me lembro de ter escrito algo que fosse significativo, que foi nessa fase pré-Eco 92 e era uma visão disso, do que estava acontecendo no planeta sob a minha ótica. Eu entreguei isso pra ele e aquela carta foi parar na Eco 92 na época. Aí ele falou. Eu entreguei assim, ninguém me pediu, eu entreguei pra ele, depois ele leu pra classe que eu tinha escrito e ficou com aquela carta pra ele, não sei que fim levou essa carta, mas é uma coisa que eu escrevi e que foi parar na Eco 92. Foram esses professores que eu lembro.
P/1 – E quando você era pequena, você tinha desejo assim: “Quando eu crescer...”. Do que você mais gostava na escola?
R – Nossa, eu brincava de tanta coisa, mas eu me lembro de querer ser professora. É, acho que pequena, que eu me lembro quando eu me remetia à profissão era professora. E eu me lembro de uma professora na oitava série que foi bem marcante, não sei se foi a professora ou se eram as coisas que ela fazia. Eu me lembro de um trabalho bem importante que ela dava aula de Português e as aulas eram de interpretação. Era pra fazer em duplas e cada dupla selecionava uma música, uma letra, pra fazer interpretação da música. Ela foi uma que me marcou. E teve uma que me marcou bem negativamente, que foi a professora de Inglês, que eu nunca mais quis aprender Inglês. Na verdade eu tinha vergonha de falar em público, isso quando eu tinha 14 anos, eu estudava num colégio de elite na Avenida Morumbi, eu morava na periferia de São Paulo, M’Boi Mirim e eu me sentia um lixo, me sentia muito inferior às outras meninas e todo mundo fazia inglês, fazia isso e aquilo, eram da Cultura Inglesa e aquilo não fazia parte pra mim, então eu me comparava. Então tinha vergonha de falar errado, de falar que eu não sabia. E sempre a professora chamava, falava lá do número. Eu não tinha um nome lá no Beatíssima, eu tinha o número 39, era o meu número da chamada. “Número 39” (risos), e aí eu falava: “Não fiz”. Na verdade eu tinha feito a lição, mas eu não falava porque eu não queria me expor. E ela nunca foi conferir se eu tinha feito ou não. E era negativo, então eu só tinha ponto negativo com essa professora porque eu nunca falava. E ela falava que eu não fazia lição, não era uma aluna aplicada. E tinha um professor de Religião que eu batia a boca com ele, que na prova de Religião eu falava: “Não tenho obrigação de saber isso”, e escrevia umas asneiras. E eu fiquei de recuperação de Religião na oitava série, primeira vez na vida. E depois eu fui para o Meninópolis.
P/1 – Foi na formatura do colegial ou do ginásio que você foi oradora?
R – Foi nessa escola, no Beatíssima. Interessante que eu era enclausurada, não falava, era tímida, tinha algumas amigas, tinha panelinha, mas não era uma figura popular na escola. Mas eu acho que foi por sorteio, não foi nem por mérito. Tipo, algumas pessoas disseram que queriam ser, ou não, mas eu acho que eu fui sorteada e fui oradora. Eu escrevi, meu tio, irmão caçula do meu pai, me ajudou no processo e eu lembro que ele me deu a Parábola do Escorpião e da Rã, do Rubem Alves e eu fiz o discurso a partir dessa parábola. E era aquela coisa, quem disse que o adolescente é ruim? Que a natureza do adolescente. Eu nem lembro direito, mas eu fui oradora e foi um trauma, foi traumático porque eu falei, o discurso era enorme, eu peguei o microfone e soltei e fiquei lá, lendo a história. E aí acho que passou do tempo que era pra ser, ‘querido senhor tarara tarara’, então não foi um discurso convencional naquele sentido de “Agradeço aos pais e aos professores”, eu peguei uma história pra contar uma outra história. Mas foi significativo, acho que foi a primeira vez que eu peguei o microfone na minha vida, que colocaram o microfone para falar para um grande público. Tinha centenas de pessoas. Só de formandos eram três oitavas séries, mais o colegial e mais o magistério, tinha mais de mil pessoas naquele salão, uma coisa bem gigantesca. Não sei como eu tive coragem, acho que eu estava meio anestesiada, fui assim, sabe, sem meio que pensar na coisa. E aí comecei a escrever mais nesse período da adolescência porque eu vivia isolada, então eu vivia em vários mundos diferentes, eles não tinham muita conexão, local onde eu morava, local onde eu estudava e onde eu saía no final de semana, para o lazer.
P/1 – Que você ia pro centro.
R – Que eu ia pro centro espírita, isso. Eram mundos diferentes, as pessoas não se conheciam. E eu me afastei daquelas pessoas, só um amiga que eu mantive contato que é essa que a mãe faleceu ontem, foi a única que eu mantive contato desde então, que era minha melhor amiga da escola, mais próximo. E quando eu morava lá no M’Boi Mirim, na periferia, nas férias os meus pais mandavam eu e meu irmão pra Aracaju, pra passar as férias com a minha avó paterna, então a gente ia pra lá. E aí meus primos viraram meus amigos, então tinha o Leo, tinha a Carol. E eu ficava sempre na casa da tia Dai, que era com quem minha avó morava. E a tia Dai é solteira, ela nunca casou. Ela tinha uma filha e minha avó morava com ela, então a gente tinha toda a liberdade lá. E a gente sempre ia pra lá, então quando eu voltava. E eu tinha vontade de morar em Aracaju, eu queria ficar lá. Lá era tudo bonito, tinha praia, a família vivia bem, estava todo mundo bem e eu não me conformava de morar na periferia: “Por que a gente está lá na periferia se a gente pode viver melhor?” Lá colégio era muito mais barato do que em São Paulo. Falava: “Por que a gente não mora lá em São Paulo que dá pra estudar sem esse sacrifício?” Então eu me correspondia por carta com esses meus primos de Aracaju, eu escrevia muita carta. Durante as aulas eu escrevia carta. E quando eu entrei no colegial eu fui estudar no Meninópolis que era o mesmo colegio que o meu irmão, aí lá a gente tinha bolsa também, e até acho que foi por isso que meus pais me mudaram de colégio, para poder ter essa possibilidade de desconto. E era o colégio que tinha meninos, eu era adolescente, tímida, uma ostra.
P/1 – Você já tinha se apaixonado por alguém antes?
R – Já. Namoricos.
P/1 – Qual foi a primeira paixão?
R – Ah, foi o Vitor que era meu primo. E era o namoradinho, tinha platonismo, tal, mas tinha também os namoricos de criança, aquela coisa. Sempre nas brincadeiras de casinha era papai, a mamãe, sempre eu e ele e o Bruno, que é meu irmão, com a irmã dele, que era a Cris, que era a minha amiguinha. Então o que eu estava falando? Da escola, mudou da escola.
P/1 – Você estava falando da escola.
R – Isso. E tinha os meninos. Mas aí que eu me enclausurei mais ainda, não me interessada por ninguém, palpável, era tudo muito platônico, tudo muito distante. E eu não me relacionava, era muito pouco, tinha uma ou outra amiga. Até acho que no segundo colegial que eu comecei a abrir mais, no terceiro colegial que eu me enturmei, então praticamente no terceiro ano que eu estava no colégio que eu fui me enturmar. Coincidiu que nesse período eu. Ah, então, e aí eu era muito CDF, eu tinha boas notas, mas eu não gostava muito de estudar, eu estudava na véspera da prova. Eu tirava notas boas, mas eu dormia nas aulas, sentava na janela, ficava olhando pra rua, pra Avenida Morumbi, os carros passando e ficava escrevendo carta, viajando. E quando eu estava no terceiro colegial foi quando meu pai me matriculou nesse curso do Senac, o curso de modelo e manequim.
P/1 – Por que você entrou nesse curso?
R – Eu queria, mas foi meu pai que arrumou, não era uma coisa que eu pensava, mas o meu pai me matriculou: “Olha, tenho uma surpresa pra você”, me matriculou nesse curso. Eu era um palito e aí eu passei no processo seletivo, ele me matriculou e tinha uns exercícios de jogos teatrais, vocais, tinha uma série de exercícios, então esse curso me ajudou a liberar um pouco a timidez. Eu fiz o primeiro módulo, passei, fiz o segundo, passei. E aí no segundo meu pai falou: “Não tenho mais dinheiro pra pagar o cursinho”. Era um curso caro, e aí eu falei: “Tá, então eu vou me virar, eu vou arrumar esse dinheiro”, eu tinha 16 anos nessa época. Eu pedi: “Me empresta um investimento”, acho que já era real, já tinha virado. “Me empresta 50 reais”. Eu fui lá na 25, comprei um monte de buginganga, montei um bastidor lá, coloquei brincos e anéis e tal e fui pra Praia Grande andar na praia e vender.
P/1 – Por que na Praia Grande?
R – Porque a minha tia Inês, irmã da minha mãe, tinha uma casa de praia lá. Ela morava no M’Boi Mirim também, tinha uma casa de praia lá. Eu acho que foi carnaval, alguma coisa assim, tinha o prazo pra fazer a matrícula e eu não queria sair do curso porque eu conheci gente legal e gostava do curso, tal. Eu colocava as coisas e saía andando pela praia e as pessoas queriam comprar o que eu estava usando, aí eu trocava, então eu ia colocando (risos). Chegou no final do carnaval eu devolvi o dinheiro do investimento pro meu pai e falei: “Está aqui o dinheiro da matrícula para eu fazer o curso”. Aí eu fiz o curso. E depois no terceiro módulo, o último módulo coincidiu no ano seguinte no período do vestibular e aí também não tinha grana pra pagar, mas tinha escolha, ou faz esse ou faz cursinho, e a prioridade era fazer cursinho. E o meu irmão nesse período, quando eu estava no terceiro colegial, meu irmão já tinha passado na faculdade. O meu irmão foi fazer Zootecnia na Unesp de Botucatu e foi morar em república, e aí era tudo o que eu queria na vida, ter a vida que meu irmão tinha. Eu imitava muito o meu irmão, todos os passos que ele dava eu dava também. Só não no ciclismo, ele foi ciclista durante a adolescência. Meu irmão também trabalhou em loja de animais, vendia os animais, limpava as gaiolas, cocô dos passarinhos, essas coisas todas, trabalhou em pizzaria, fazia esfirra, meu irmão aprendeu a fazer um monte de coisas. Também trabalhou como office-boy junto com meu pai e outras. A gente sempre trabalhou, desde cedo. E meu irmão foi pra Botucatu. Alguns finais de semana que ele vinha pra casa minha mãe fazia tudo o que ele gostava, ele era recebido como visita, eu falei: “Também quero essa vida”, e aí ele foi morar numa república e vários gatinhos, aí eu queria também, né? Eu falei: “Não, então vou fazer o cursinho”, no ano que eu estava no terceiro colegial. E nesse período lá no colegial onde eu estava eles selecionaram alguns alunos pra fazer um curso de teatro, que era um curso de teatro de improviso, de menestréis, com o pessoal do Rituais da Alegria. E tinha um professor que era super gato, o Eduardo Amato. Eu vi uma apresentação dele e achei o máximo e depois eles convidaram esses alguns alunos pra fazer o curso e eu quis fazer. Não sei se pelo teatro, que eu achei interessante, ou pelo professor que era gatíssimo. Ele fazia faculdade de Esportes na USP naquela época. Eu fui e comecei a fazer esse curso e pra mim acho que foi uma libertação nesse período. Eu saí desse curso por causa do cursinho. Quinze anos depois, quando eu fui trabalhar no SESC eu me lembrei dessa figura quando alguém me pediu indicação de um professor de teatro, eu falei: “Eu me lembro de um professor de teatro”. Eu fui entrar em contato com ele e aí ele me contou: “Ah, eu lembro de você!”, e ele falou daquele projeto que a escola fez, que eles pegaram um pacote de alunos, que era um saco de gato e falaram: “Ó, esses são os alunos problemas pra vocês resolverem”. E eu não sabia que eu era um problema pra escola, porque eu me achava ótima (risos).
P/1 – Você foi descobrir 15 anos depois.
R – Quinze anos depois. Porque eu não era bagunceira, não dava trabalho nenhum, tinha boas notas e tal, por que eu fazia parte do saco de gatos?
P/1 – Você descobriu 15 anos depois (risos).
R – Que eu era um problema. E era por conta da timidez, do enclausuramento, era mais por isso. E eles não sabiam o que fazer.
P/1 – E no cursinho você já sabia o que você queria prestar?
R – Durante a adolescência, nessa fase do colegial, eu acho que até a partir da oitava série, eu queria ser jornalista. E teve uma outra fase que eu queria ser publicitária, que era a profissão da moda, meu pai estimulava e todo mundo dizia que eu era super criativa, e eu tinha agendas. Eu pirava nas criações com recortes de revistas. Eu joguei tudo fora, era tudo tão lindo. E todo mundo, as meninas, todo mundo queria ver a minha agenda, as coisas que tinha, queria fazer coisas como, e aí tinha aquela coisa meia de diário que eu escrevia em códigos, tal, então teve um período que eu quis ser publicitária. Mas eu me lembro de também querer ser jornalista, porque eu gostava de escrever. E meu pai falava: “Mas como você vai ser jornalista? Você não gosta de ler jornal”. Só que eu lia a revista Capricho, aquelas coisas, as coleções que eu fazia. Tive coleção de papel de carta também, tive muitas coleções de coisas, de álbum de figurinhas com meu irmão também. E eu gostava de escrever. Nessa época eu fui fazer cursinho e eu tinha dúvida, mas o que era mais certo pra mim era o Jornalismo. E aí eu descobri uma amiga de uma colega lá de classe, que é a Juliana, que falou que ia prestar Terapia Ocupacional, e eu nunca tinha ouvido falar, não sabia o que era isso e eu fui ler, fui ver no guia de profissões e tal. “Nossa, que legal, vou prestar também”, não era algo que eu conhecia. E quando eu prestei a primeira fase da Fuvest eu fiz a somatória de pontos, estava: “Opa, passei pra segunda fase”. E quando saiu a lista meu nome não estava, mas como meu nome não está? Eu passei. E de fato não saiu meu nome, só que não batia, pela contagem do gabarito aí eu fiquei furiosa, entristecida. E eu prestei o vestibular da Unesp também e fiquei na lista de espera, acho que da Unesp de Jornalismo. E pra mim foi um terror ter que fazer cursinho de novo, por que, como eu? Meu irmão só tirava nota vermelha, minha mãe ia lá pra falar com a assistente social pra manter a bolsa. E aí o Bruno era um terror porque ele vivia na laje soltando pipa, era a brincadeira dos meninos lá. Só que ele tinha os amigos que eram motoqueiros, eram mais velhos, eram ladrões de moto, a gente sabe das coisas que aconteciam, usavam maconha, tinha uma coisa bem assim de um acesso à criminalidade. E meu irmão fala que ele resistiu muito, que tinha horas, quando as coisas estavam muito difíceis, que ele não tinha dinheiro, ele se desesperava e dava vontade de sair com os meninos na moto roubar moto, mas ele nunca fez. E a gente falava: “Bruno, se você não estudar você não vai passar no vestibular”. E meu pai falava: “Você se vira, eu paguei escola a vida inteira e agora você que escolhe, se quiser ir pra faculdade você que vai pagar”. Aí o Bruno: “Tá bom, eu já estudo a semana inteira, final de semana eu quero descansar”. E ele ficava soltando pipa na laje e não estudava. E quando ele prestou vestibular ele passou na USP, na Unesp e na Federal de Viçosa que foram os três vestibulares que ele prestou. E ele ficou escolhendo, uni duni tê, pra onde ele ia. Então como o Bruno passou e eu não? (risos) Foi um terror. E na época também a gente foi fazer um cursinho comunitário. Tanto o Bruno quanto eu, a gente foi estudar no Aprove, que era um cursinho popular que tinha lá no Butantã. A gente ia do M’Boi Mirim, dava volta na cidade de ônibus horas e horas quando saía do colégio para ir estudar lá no Butantã. Então quando eu estava no colegial eu fazia esse trajeto também, por isso que eu saí do curso de teatro que eu amava. Foi pouco tempo, acho que eu fiz dois, três meses de curso de teatro, de menestréis. E no ano seguinte eu consegui uma bolsa no cursinho do XI de Agosto que era no Largo São Francisco, dentro da Faculdade de Direito. Aí a minha vida foi outra, nessa época eu fazia figuração no programa do Jô Soares.
P/1 – Como você começou a fazer?
R – Quando eu comecei a fazer curso no Senac eles arranjavam alguns trabalhos, então eu lembro de um desfile da Expo Noivas e Casais.
P/1 – Esse curso de modelo era no Senac?
R – Era no Senac. Eu tinha 16 anos. E aí eles arranjavam alguns trabalhos. Minha mãe acompanhava quando tinha esses trabalhos, recebia um cachezinho, às vezes nem recebia um cachê, mas tinha outros benefícios, e tinha aquela coisa da oportunidade de aprender e tal, de meio que entrar nesse mundo da publicidade. E eu sempre dava um jeito de ter alguma coisa, de ter algum dinheiro para fazer as coisas que eu queria. Então lá em casa nem sempre eu tive mesada. E nessa época, bom, não tinha passado no vestibular, eu tinha que fazer alguma coisa, eu tinha que trabalhar. E aí meu pai falava: “Não, mas eu prefiro que você estude”, porque ele viu que eu me esforçava, era diferente do meu irmão que ficava soltando pipa. E aí eu falava: “Mas eu quero ter meu dinheiro”, e aí eu fui atrás dessas agências e fiz inscrição em algumas delas e tinha uma que sempre me chamava pra fazer figuração do Programa do Jô, que acho que na época era no SBT ainda. Era no SBT, isso. Era lá na Anhanguera, então ia a van, o carro levava a gente, depois deixava.
P/1 – Você fazia o quê? Você ficava na plateia, como era?
R – De estátua, né, ficava lá. E era sempre de quarta-feira a gravação, então eu perdia algumas aulas de quarta-feira, era justamente o dia de aula de Redação, de Literatura, tal, eram matérias que eu gostava. Mas chegou uma época que meu pai falou: “Opa, você está fazendo muito trabalho, você vai ficar faltando na aula. Você tem que fazer uma escolha, ou você estuda ou você trabalha com isso. Se é pra ficar perdendo aula então vê qual é a prioridade”. E eu falei: “Mas é um trabalho muito inútil”, eu comecei a me sentir inútil. Eu fico lá, é uma carinha sentada lá. Eu me sentia uma estátua de verdade, sem vida, me sentia sem vida. E aí eu parei de ir, passei a recusar, não fui mais e me dediquei ao cursinho. Acho que foi a única vez na vida que eu estudei de verdade. E eu já tinha prestado a Terapia Ocupacional antes e nessa eu falei: “Eu vou ver direito o que é isso mesmo”. E uma amiga que eu tinha comentado falou: “Ah, eu conheço não sei quem que diz que conhece uma T.O.”. E eu cheguei, pegaram o telefone dessa pessoa e eu fui conhecer o trabalho dela na Associação Cruz Verde, que era lá na Vila Clementino, perto do Hospital São Paulo. E aí eu vi o trabalho dela e falei: “Ah, eu quero trabalhar assim todo dia, ser recebida com um sorriso, tal”. E essa Associação Cruz Verde é um local que trabalha com pessoas com deficiências bem graves, deficiências múltiplas, e eu vi o atendimento dela, uma criança com birra. Ela falou: “Ó, aprende a lidar com birra”. Eu achei o máximo porque ela trabalhava brincando. A criança surtando e ela brincando. E aí depois ela falou: “Quer conhecer o hospital?”, eu falei: “Quero, estou aqui” “Tudo bem, tem coragem?” “Tudo bem”. E a gente foi e eu lembro que quando abriu a porta do local era um hospital que tinha vários berços e camas de pessoas totalmente deformadas, então com cabeças desse tamanho, com tipo 40, 50 dentes pra fora, face deformada, sem mão, sem perna, corpo todo torto, tudo deformado. E ela chegava e aquelas pessoas, tinha até adultos, não tinha só de bebês com malformações congênitas, até adultos como hidrocefalia, que falavam ou que não falavam. Mas onde ela chegava eles abriam aquele sorriso ali. E aquilo ali encantou, porque eu falei: “Eu quero ser recebida assim no meu trabalho todo dia, quando eu for trabalhar eu quero ser recebida com esse sorriso”. Meio fantástico, mas foi isso que ficou pra mim, foi aquela imagem. Não era: “Ah, eu quero ajudar essas pessoas”, é: “Eu quero isso pra mim. Eu quero receber isso dessas pessoas”. E aí eu estudei e eu tinha certeza que eu queria Terapia Ocupacional. Eu estudei mesmo e eu pegava duas horas e meia de trânsito dentro do ônibus pra chegar, eu estudava à tarde nessa época, foi em 98 que eu fui fazer cursinho, lá no XI de Agosto, eu levava duas horas e meia pra chegar até o cursinho à tarde e voltava à noite eram três horas parada nesse trajeto. E esse tempo eu estudava, marcava. Chegava em casa, tomava um banho, comia e fazia os resumos. No dia seguinte de manhã quando eu acordava eu lia os resumos que eu tinha feito ou terminava de fazer as lições que eu não tinha conseguido terminar. Virava a madrugada, já acordava mais tarde. E na volta, no ônibus, eu lia, estudava, dormia e conversava. Então se eram três horas de trajeto eu dividia uma hora pra casa coisa, então eu descansava um pouco nesse retorno quando eu cochilava. E foi assim que aquele ano se passou. Mas eu acho que a força maior de ter estudado naquele ano é assim: “Eu não quero passar por isso de novo, eu vou entrar, que essa história não vou repetir mais”. E aí eu quis estudar bem longe, porque a USP, de universidade pública de Terapia Ocupacional só tinha na USP e na Federal de São Carlos. E eu falava: “Eu não quero ficar quatro anos fazendo esse trajeto até o Butantã nesse sacrifício, eu vou pra São Carlos”, que queria também morar em república como meu irmão. Eu passei na primeira e na segunda fase. A minha redação foi uma das 50 melhores da Fuvest naquele período, eu recebi no início do ano, depois que tinha saído o resultado do vestibular, tudo, eu recebi uma carta da Fuvest pedindo autorização pra publicar aquela redação como uma das referências de boas referências para os vestibulandos do ano seguinte e aí eu fui ver que eram 50 que eles publicaram e a minha estava lá no meio, então foi assim, nossa, que satisfação. E o tema da redação era sobre os vestibulandos que estavam pleiteando entrar na universidade naquele ano, então a redação falava de mim, era eu (risos), que estava tentando entrar. Então foi muito tranquilo pra mim isso. Meu pai já bancava o meu irmão morando fora em república, ele não tinha grana pra pagar dois filhos morando fora, moradia de dois. E eu prestei, eu não falei pra ele que eu coloquei primeira opção em São Carlos. Ele não sabia, ele achava que eu ia pra USP. E quando eu passo: “Bom, agora já passou, agora você vai”. Eu sabia disso e eu tinha aprendido com uma das minhas primas a bordar chinelinho havaiana, quando começou aquela coisa de miçanga na havaiana. E aí eu fiz um monte, eu fiz um estoque. Eu pedi, de novo um investimento pro meu pai, empréstimo, fui lá e comprei as miçangas, as chinelas e fiz um monte e eu falei: “Mas eu vou vender e eu vou passar. Vou me virar nos meus chinelos”. E assim foi, eu passei. O primeiro mês eu tinha o dinheiro das chinelinhas havaianas que eu tinha vendido. E aí foi festa.
P/1 – Você morou com quem lá? Como é que foi?
R – Quando eu cheguei eu fui atrás do Serviço Social pra conseguir bolsa, alojamento e tudo. Como meu pai era professor do Estado e minha mãe era aposentada eles tinham renda fixa, então não consegui vaga no alojamento, eu consegui outros tipos de bolsa.
P/1 – Seu pai foi dar aula, ou ele nunca tinha parado?
R – Meu pai era corretor de imóveis e quando ele foi morar na periferia ele começou a dar aula, numa situação assim, que não tinha dinheiro nem pra pegar ônibus, ele foi dar aula por conta disso. Ele foi bem resistente de dar aula, mas também depois nunca mais deixou. Hoje ele é professor do Estado, já poderia ter se aposentado, tudo, e ele continua na lida. E ele era corretor de imóveis e dava aula à noite, então dava uma segurada nas pontas. E a minha mãe era corretora também e tinha a aposentadoria de um salário mínimo, não dava pra muita coisa, mas quebrava um galho. Eu não consegui essas bolsas e fui procurar uma república pra morar. E eu via aqueles anúncios no mural, lá pelos cantos lá da Federal, de uma república de umas meninas da Biologia, aí eu fui morar com elas. Morei com elas até elas se formarem, então era a Ana Maria, a Taís e a Índira, todas faziam Biologia e eu tinha acabado de entrar na universidade e elas estavam no terceiro ano. Então logo depois elas se formaram. E antes delas se formarem, uma das meninas da minha turma foi morar, teve problemas lá na república delas e a gente chamou ela pra ir morar com a gente, então ela morou com a gente também. E a gente tinha uma cachorra, uma labradora que a gente comprou e que era o terror. E dava várias festas na república. A gente dava festas, vendia cerveja pra pagar a faxina, olha só (risos), fazer festa e o lucro era pra bancar a faxina do dia seguinte.
P/1 – E como você bancava sua parte do aluguel lá?
R – Aí meus pais se viraram, eles falaram: “Não, a gente”. O aluguel naquela época era cem reais que eu pagava de aluguel, então não era algo tão... eu vivia com 250 reais, eu pagava aluguel, telefone, de vez em quando tinha faxineira, viajava, comia. Eu tinha bolsa alimentação no RU e naquela época o tíquete do RU era 75 centavos, depois aumentou pra um real. Eu tomava café em casa, comprava as coisas no mercado pra tomar café e almoçava e jantava no RU todo dia. E era barato. E durante um bom tempo eu tive bolsa alimentação, então nem esse um real eu não pagava. Eu me virava e o dinheiro rendia, não sei, não gastava nada, tudo era muito barato, ia pra festa e não pagava. Não bebia também, muito, nunca fui de encher a cara, então não gastava. Rendia. E todo mundo dividia. Aí um comprava o goró e todo mundo bebia junto, era uma coisa bem... fazia os almoços coletivos, um levava o macarrão.
P/1 – Você vinha sempre pra São Paulo?
R – Não, eu vinha no máximo uma vez por mês, às vezes a cada dois meses. Às vezes eu não tinha grana pra voltar e pegava carona na estrada, acho que meus pais nunca souberam, não sei se eu cheguei a contar que eu pegava carona na estrada. Louca, né? Às vezes pegava acompanhava, mas às vezes desespero de saudade eu ia pra estrada sozinha pegar carona. Já peguei carona com caminhoneiro. Vixi, porra louca total. Umas loucuras assim. Eu ia, tudo que eu tinha vontade de fazer eu fazia, não tinha muita coisa pra podar, né? A vida da liberdade.
P/1 – E como era a faculdade em si?
R – Eu tinha aqueles 250 reais pra viver, pra pagar tudo, então eu tinha que administrar. Vira e mexe algum professor arranjava alguma coisa também: “Olha, vai ter um evento tal, precisa vender os cadernos de T.O.”, aí eu ganhava uma graninha. Às vezes vendia uma outra coisa, fazia o chinelinho lá, inventava coisas pra me virar. E na faculdade acho que foi quando eu me senti nivelada, sabe? Porque independente de classe social, de origem de onde veio, todo mundo que entrou, entrou pelo mesmo canal, por mérito, pela inteligência, pelo esforço, pela formação que teve. Eu tive uma boa formação, sempre estudei em bons colégios. Todo o sacrifício dos meus pais era para que a gente pudesse estudar em bons colégios, sempre foi assim. Então não tinha coisas em casa, a tecnologia. A gente não tinha carro novo, não tinha TV nova, nada, a gente não tinha nada disso. Mas viajava, ia acampar. Nas férias do meu pai, da escola, então no meio do ano nas férias da gente a gente ia acampar, passava uma semana fora. No final do ano ia acampar no Natal, Reveillon, a gente ia acampar também, se virava. E assim foi na faculdade, eu aprendi a me virar. E eu me sentia nivelada, então logo na faculdade eu me enturmei assim, aí comecei a participar de Centro Acadêmico, era meio líder também, promovia as festas, era chamada pra organizar as coisas. Falava já, dava a cara a tapa, já tinha saído da clausura. Fiquei lá e aí foi, a vida sexual começou naquela época. Aí que eu me abri, assim, nossa. E lá em São Carlos eram as engenharias, então tinha muito homem pra pouca mulher, e o curso de T.O. era só mulher, então nós éramos (risos) muito bem vistas, eram as mulheres legais da universidade, as T.Os. Então eu tive toda uma vida de liberdade, aprendi a administrar, eu escolhia. E a minha família passou a ser os meus amigos e tudo, a gente era uma família de fato porque estava todo mundo longe. Se a gente não se enturmasse ficava só, então final de semana quando estava lá fazia almoço, era todo mundo junto. Era bloco. Voltava pra São Paulo, saíam os mesmos, os amigos de São Carlos mais os amigos de São Paulo, do cursinho, de adolescência, de infância, então a turma foi crescendo. E aí eu me vi muito em turma desde essa época. Ah, e eu tive bolsa de iniciação científica em 2000, 2001.
P/1 – E as matérias, os professores, como é que eram?
R – Era outro mundo. Foi fantástico, a faculdade foi um período de muito brilho. Embora eu dormisse em todas as aulas, eu dormia nas aulas, também não era tão bem vista assim. Em casa, sempre a minha república era reduto de farra, então o pessoal da Biologia, ia todo mundo estudar lá e não tinha como estudar com eles porque eles estudavam na farra. E eles conseguiam estudar em grupo, eu não. E não era a mesma coisa que eu estudava, eu estudava algumas matérias e eles estudavam outras. Então eu esperava todo mundo dormir para eu estudar. Então enquanto eles estavam lá eu ficava no meio da farra de todo mundo, quando eles iam dormir eu sentava, copão de café de meio litro (risos), era a minha droga, o café. Aí eu virava, estudava de madrugada, então quando eu chegava de manhã de ir pra aula ou eu não aguentava, ou chegava atrasada, ou ia pra aula e dormia, então dormi a faculdade inteira, não sei como eu passei. Eu me formei de verdade, mas eu dormi nas aulas. Mas teve uma professora em especial que foi a Helô, Heloísa Medeiros, que foi a minha orientadora no Pibic. Ela era esplêndida.
P/1 – O que é Pibic?
R – É programa de iniciação científica em pesquisa científica. Eu tive a disciplina de Dinâmica de Grupo com ela, Dinâmica Grupal e Dinâmica Institucional. E eu percebi que a minha carreira foi muito linkada aí, eu gosto muito de trabalhar com grupos, é onde eu me realizo. Embora eu curta fazer atendimento individual também, mas isso sempre me atraiu muito. E eu sempre fui envolvida em muito, tudo o que, olha, a vida universitária eu passei assim, eu aproveitei de tudo na universidade, tudo que tinha. Um detalhe importantíssimo que eu esqueci de falar. Quando eu entrei na universidade, seis meses depois meu pai abriu um cursinho, resolveu investir. Ele falou que ele tinha um ideal de reunir os professores das escolas onde ele dava aula, que eram as escolas públicas, pra fazer um cursinho pra turma das escolas públicas. E ele não conseguiu angariar professores pra fazer aquilo, que era de final de semana. Os professores não queriam trabalhar de final de semana, que era o único tempo pra descansar. Ele queria fazer, foi lá, pegou um empréstimo com um amigo, pegou um recurso e abriu o cursinho. E aí ele me falou, ele me trouxe pra junto porque ele falou: “Bom, você é que sabe como que é cursinho”, porque meu pai tinha noção de colégio, ele dava aula pro colegial, e eu tinha passado por aquilo. E o meu tio, que é irmão caçula dele, era professor universitário, ele é filósofo e é professor da Universidade Federal de Sergipe. Então ele chamou meu tio e eu pra fazer a seleção dos professores (risos). Eu era a minha visão como estudante, porque eu queria selecionar professores que fossem legais para quem estuda, né? E o meu tio com a visão para a universidade, de preparar esses caras para a universidade, o que se queria na universidade. E meu pai com a visão de professor, então a gente fez. Durante praticamente toda a minha faculdade meus pais tiveram esse cursinho e quando eu me formei.
P/1 – E deu certo o cursinho, as pessoas iam?
R – Iam. E virou um cursinho popular.
P/1 – Onde era esse cursinho?
R – Na República, na Barão de Itapetininga. Um prédio lá, uma salinha, era uma salinha.
P/1 – Tinha aluno?
R – Tinha alunos. Meu pai, na época, conseguiu um apoio na prefeitura, não lembro de quem era a gestão, mas ele tinha um amigo dele era Secretário de Obras Públicas, que era o Delmar Martins, conhece? Era amigo do meu pai de militância do PT, então desde o início da década de 80, fase de perseguição, tudo. Delmar e a Raquel, que era a esposa dele, eram perseguidos. Meus pais eram amigos deles, meu pai trabalhava com a Raquel no IBGE, parece, ela era geógrafa, tudo. Então meu pai que conheceu eles aí, ó que mundo pequeno. E o Delmar fez uma ponte lá pra conseguir esse espaço nos ônibus pra colocar os cartazes do cursinho. O cursinho era pra quem era pobre, que andava de ônibus; era para estudantes que trabalhavam o dia inteiro pra estudar à noite. Então era quem andava de ônibus mesmo. E aí foi formando público. E quando eu estava de férias eu ia pro cursinho e aí que eu comecei a dar palestra, falar, conversar com os estudantes, contar das histórias e como era a vida universitária, o que a gente pensava. Não era só passar no vestibular, era a vida universitária, então meio que a gente cultuava um sonho, não era estudar pra passar no vestibular, era estudar pra conquistar seu sonho, qual é o seu sonho? Então a gente foi nessa vibe que a gente construiu aquele cursinho, que chamava Síntese, Cursinho Síntese. A apostila a gente montava, era tudo muito artesanal. O meu pai comprava as apostilas por matéria, aí desmontava todas, montava as matérias pra ficar uma apostila com todas. Fazia o silk pra fazer os adesivos pra colar na capa, os adesivos do cursinho. A gente não tinha grana pra nada e fazia tudo, entendeu? Se virava nos 30 mesmo. E aí depois foi aprimorando, aperfeiçoando, as coisas foram melhorando, mas isso ajudou bastante a gente. Nunca foi tranquilo, sempre foi difícil, sempre foi um sufoco, era aquela coisa de trabalhar muito mesmo, de muito sacrifício, mas tinha um prazer naquilo que levava. E quando eu me formei o meu pai falava: “Olha, tem um projeto do governo que é pra isso, o governo vai financiar esse tipo de trabalho”, porque já era um trabalho social, mas não era uma ONG, era uma empresa. E ele falava: “Mas a gente já funciona aqui como uma ONG, vamos transformar isso aqui numa ONG”. E aí a gente abriu uma associação e convidou os professores do cursinho para serem os associados, então a gente abriu a Associação Cultural Síntese. E aí eu fiz uma cirurgia de hérnia umbilical e nesse período eles tiveram uma reunião...
P/1 – Mas você já tinha se formado?
R – Tinha me formado, estava fazendo estágio.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Aqui em São Paulo. Porque no curso de T.O. lá em São Carlos o último ano era só estágio e eu não queria me formar, não queria sair da faculdade, não queria sair daquela vida. E aí o que eu fiz? No ano de 2002 a Taís que morava comigo, ela já tinha saído da república, já tinha se formado, mas ela morreu atropelada e aquilo mexeu bastante comigo, acho que com todos nós, porque ela tinha 21 anos na época. Linda, na flor da idade, indo pra vida, agora vida de adulta e de repente ela vai embora. Acho que aquele sentimento de finitude, tipo, nem tudo é pra sempre, essa ilha da fantasia. Então nesse momento eu comecei a parar pra pensar de fato que as coisas poderiam ter fim e eu queria aproveitar mais a vida. E no meu Pibic, primeiro trabalho da faculdade, pesquisa de iniciação científica foi com, na época a gente falava, portadores de HIV/Aids. Eu comecei, na faculdade, a atuar como T.O., através da pesquisa, com pessoas em condição terminal, uma instituição fechada, um abrigo assistencialista que isolava. Eram loucos, malucos, mendigos, era a nata escória da miséria da sociedade e com Aids em fase terminal, eram essas pessoas que eu encontrava toda semana. Eu comecei a viver no meio deles, então eu tinha contato com a morte direto e de repente vem a morte pra perto. E aí pra mim foi muito difícil. E eu comecei a viver muito ansiosa como se o dia fosse acabar pra mim também. Eu queria viver tudo, então foi de muita intensidade esse período em São Carlos. Aí eu fiz trabalho voluntário também no centro espírita lá numa comunidade que era o Buracão, e aí era com adolescentes lá da favela.
P/1 – Você fazia o quê lá no Buracão?
R – Eu fazia atividades com as meninas e era muito voltado pras mudanças do corpo, pra sexualidade, pra vida na favela, eu tinha referência porque eu vim da periferia também.
P/1 – Esse conhecimento de onde que vinha? Era da tua vida, do curso?
R – Era de vida. Também ajudava a faculdade sim, porque me ajudava no campo das atividades. Antes eu tinha meu conhecimento de vida, mas na faculdade eu aprendi a trabalhar com atividades, então eu que lançava as propostas de atividades que iam ser feitas com o grupo das meninas. E nesse período que eu conheci a Sirlene, que fazia faculdade de Arquitetura lá na USP e a gente começou a conduzir esse grupo de meninas sozinhas, depois a Sirlene foi morar na república comigo, é uma grande amiga que eu tenho hoje, começou mais ou menos nessa fase aí. Então sempre estava muito próximo desse cenário de exclusão. Claro que meu trabalho ia pro lado social, né? Tinha a ver com a minha história.
P/1 – E você ajudava no cursinho, no Síntese.
R – E ajudava no cursinho.
P/1 – Ele existe até hoje?
R – Não, a gente fechou. Então, aí nessa época quando eu estava me formando. Então eu falei que eu não queria me formar e aí eu fui pra, eu deixei no último ano, daí eu tinha essa justificativa, que eu estava triste, deprimida e tal e que eu não dava conta de pegar todas as matérias. Eu peguei as matérias e deixei uma matéria obrigatória por fazer. Se eu não fizesse todas as obrigatórias eu não tinha como sair pra estágio. Então eu atrasei, eu deixei de pegar uma matéria pra ficar mais um semestre na faculdade e eu fiquei um semestre fazendo uma disciplina. Eu peguei várias optativas e eletivas, tudo que eu podia de outras eu peguei. Aí peguei História da Arte, fui pegar outras coisas que não eram do meu cenário e fui fazer as coisas que eu gostava; entrei em um projeto de extensão, participei de espetáculo, tive aula de expressão cultural, participei de espetáculo, me envolvi em um monte de coisas nessa fase da faculdade. E aí chegou uma hora, não tem jeito, vou ter que. Meus pais falaram: “Acabou a festa, volta pra São Paulo. Você vai fazer o estágio aqui porque a gente não pode mais bancar”. Eu voltei pra São Paulo pra fazer o estágio, então em um período eu fazia um estágio e em outro eu trabalhava com eles no cursinho. E foi nesse período. E eu não fazia um monte de estágio ao mesmo tempo porque eu comecei a trabalhar com eles, então peguei um estágio de cada vez e eu atrasei mais um semestre. Então eu fiz a faculdade em cinco anos. Nunca tomei pau, mas eu atrasava as coisas pra poder viver aquela história, aquele período. Então aí a gente abriu a associação, os professores foram convidados e eu tive uma hérnia, tive que fazer uma cirurgia e quando eu estava na recuperação meu pai voltou de uma reunião: “Olha, a gente colocou você na presidência” (risos). E eu não tinha nem me formado. Uma ninfeta, não sabe de nada, está lá. Ai que bom, me senti poderosa: “Opa, eu sou presidente”. Então eu comecei minha carreira de fato como presidente de uma associação. E eu falei: “Bom, já que eu sou presidente eu posso fazer projeto”, e meu pai falou: “Olha, tem um projeto lá”, era na gestão da Marta Suplicy e aí tinha Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, o programa Formação Cidadã que ia financiar projetos pré-universitários. Eu escrevi, a gente já trabalhava com isso, já tinha passado por tudo e eu tinha a bagagem, me sentia com bagagem, de gestão necas, né, tinha bagagem de outras coisas. E eu fiz esse projeto e ele foi aprovado, então meu primeiro projeto foi aprovado pela Unesco e foi desenvolvido em parceria com a Prefeitura de São Paulo. E aí a gente botou toda turma pra trabalhar. E foi muito legal, ficou um projeto fantástico.
P/1 – Qual que era o projeto?
R – Era um projeto Cursinho Síntese, acho que era o nome. E a proposta era de ter as aulas regulares do curso pré-universitário, de ter o plantão de dúvidas, naquela época plantão de dúvidas tinha, mas não tinha orientação vocacional, não era uma coisa de praxe ter em cursinho. Então tinha uma psicóloga de plantão que fazia orientação vocacional e tinha o programa diferencial, que esse foi o pulo do gato, então, de segunda à sexta os alunos tinham as aulas regulares do cursinho e de sábado eles tinham atividades especiais. Então todo sábado tinha, acho que até falei isso no grupo de Gestão Cultural lá, tinha o grupo de T.O. que era o grupo de atividades socioeducativas ou socioculturais, então nesse grupo a gente trabalhava os sonhos, os projetos de vida. Tinha as atividades interdisciplinares, então era separado, quem ia prestar pra Humanas, Exatas ou pra Biológicas. E tinha os plantões de dúvida. Então era um grupo que era mais ligado pela questão das Humanas, Exatas e Biológicas e esse grupo circulava, então cada horário um grupo ou estava no plantão ou estava na aula interdisciplinar. A gente acreditava que era aquilo que faria diferença no preparo pra que as pessoas se esforçassem ou se organizassem e adaptassem a vida pra poder estudar e enfrentar aquele prejuízo em relação a uma formação educacional precária, né? A maioria vinha de colégios públicos, meu pai dava aula em colégio público e ele falava: “É um abismo, é uma distância absurda”. Só que na faculdade eu conheci muita gente que morava no alojamento, muito pobre, de periferia de várias cidades, de vários Estados que estudavam em universidade pública, então a gente falava: “Dá pra entrar”. Que vieram de formação de escola pública. E tem respaldo pra poder se sustentar, se manter na universidade. Eu vim dessa história, então se eu vim outros podem também, então a gente apostou. E aí foi o ano de 2003.
P/1 – Mas vocês receberam um financiamento para desenvolver?
R – Recebemos 200 mil pra executar aquele projeto durante o ano. Foi no ano de 2003, eu fazia estágio em um período e estava sempre lá. Então eu trabalhava 60, 70 horas por semana entre estágio e no cursinho ficava até tarde da noite, final de semana, às vezes tinha atividade de domingo. Então foi um período que eu trabalhei bastante. Coloquei várias pessoas que eu conhecia pra trabalhar, inclusive que tinham se formado junto comigo ou de áreas afins, que fizeram também cursinho comigo, que passaram e tinham histórias bem semelhantes e que compreendiam a realidade de uma maneira muito próxima. Isso eu já comecei a aplicar lá naquela época, de ter junto pra trabalhar essas pessoas que eu confiava, que eu tinha vínculo afetivo com essas pessoas, eram meus amigos. Mas não era uma coisa de empregar os amigos, de favorecer, eles sabiam.
P/1 – De identificação.
R – É, tinha um valor agregado, que eles sabiam do que a gente queria. E tinha todo aquele ideal de recém-formado, de pessoas querendo mudar o mundo. Bom, e aí a gente recebeu a primeira parcela, a segunda começou a atrasar, atrasar, atrasar e começou a criar um problema sério que o cursinho ampliou, a gente recebeu financiamento pra ter 200 bolsistas, aí era um cursinho pequeno, de duas salas, né? Uma sala grande que ficou sendo essa sala, aliás a gente ampliou, depois com o projeto acho que a gente tinha três salas. Cresceu. Imagina, durante quatro meses 200 alunos inadimplentes, é o cenário. Porque os alunos não eram inadimplentes, eram bolsistas, mas a prefeitura não fazia repasse da verba, então a gente começou a não conseguir pagar as despesas. E aí começou a gerar o caos. E era pressão, era uma dor de cabeça que a gente vivia batendo lá na porta, na prefeitura, falando, e tarara tarara. Chegou o final do ano, a gente no pico de estresse dos problemas. Aí meu pai começou a desviar, sair dali, não querer mais ficar no cursinho, ia passear, largava. Aí a minha mãe ficava lá com os problemas, eu também, os professores reclamando. Foi um período bem difícil, chegou no final do ano, o projeto foi aprovado pra dois anos e a gente não quis continuar mais um ano vivendo daquele jeito. A gente cancelou o contrato, fechou o projeto ali, prestou as contas de tudo que tinha recebido, tudo o que tinha acontecido e fechamos o cursinho. Meus pais se separaram e eu fui embora pra Aracaju. Os destroços.
P/1 – Por que eles se separaram? Por causa do cursinho?
R – Ah, isso potencializou bastante, né? Distanciamento, aí meu pai arrumou outra, começou a dar os pulos dele, então ficou evidente, ele sempre foi muito ali, de repente ele sumia, desaparecia. Pra perceber a mudança de comportamento, viciado em internet, em sites pornográficos, começou a ficar pesada a coisa. E eu comecei a adoecer também, comecei a ter crises de pânico. Foi o caos total, geral. E nessa época eu fiz estágio na Reabilitação Física, fiz estágio na Oncologia Pediátrica. E nessa época eu estava fazendo estágio na Saúde Mental, na Psiquiatria. E aí eu vendo meu pai adoecendo em casa e eu sem poder fazer nada. Então abriu o chão assim, isso abriu o chão. E aí eu resolvi. A gente fechou o cursinho, fechou na verdade que a minha mãe falou: “Não quero mais, tchau, estou indo embora”. Quando a minha mãe abriu mão e falou: “Não brinco mais, não jogo junto mais, se vocês quiserem façam sozinhos”, aí meu pai não deu conta de fazer. Porque ele sempre esteve junto, apoiando. Nessa hora eles se separaram. E aí a minha tia, uma das irmãs do meu pai me chamou, eu tinha acabado de me formar e a minha tia falou: “Por que você nao vem pra Aracaju trabalhar aqui? Não tem muitas pessoas da sua área”. Eu: “Olha, eu sempre quis morar em Aracaju, vou voltar pra lá”. E o dinheiro que eu recebi desse projeto, uma parte eu investi, comprei um monte de materiais para eu abrir meu consultório lá em Aracaju, porque eu não sabia se eu arranjar emprego ou não, fiz folders explicando o que era Terapia Ocupacional, fiz os cartõezinhos profissionais e juntei um dinheiro e falei: “Bom, acho que eu consigo ficar durante três meses, eu me banco, é um tempo para eu arranjar um emprego ou algum local pra trabalhar”, mas eu arrumei todo o aparato. Fui, comprei minha passagem, fiz minha festinha de despedida e fui embora pra Aracaju. Na primeira semana arranjei quatro lugares pra trabalhar e fiquei quatro anos e meio.
P/1 – Onde você foi trabalhar?
R – Em clínica de reabilitação, coisa que eu nem imaginava. Fui trabalhar com crianças e adolescentes com deficiências. Deficiências múltiplas, tudo aquilo que eu vi quando eu descobri que queria ser T.O.mesmo.
P/1 – Você foi trabalhar lá.
R – Eu fui trabalhar lá. Atendia bebês com atraso no desenvolvimento, deficiência, crianças, adolescentes; idosos com sequela de AVC, com traumatismo crânio encefálico, todas as braberas, paraplégico, tetraplégico, todas, pegava tudo. Quadros psiquiátricos, quadros de demência. Porque eu saí na cidade distribuindo os folders nas clínicas (risos) e eu conversava com os médicos, explicava: “Sou T.O., faço isso”, entregava o material, então fui peregrinar. E era uma especialidade que não encontrava em todas as partes, eram dez no Estado inteiro, parece, naquele ano de 2004, foi no início de 2004 que eu fui pra Aracaju. E logo eu: “Ah, paraíso. Consegui trabalho”. E uma das clínicas me chamou, porque a dona era de São Paulo também, se formou na mesma universidade que eu, teve as mesmas professoras, sabia de onde eu vinha. E falou: “Poxa, você trabalha com projetos? A gente quer mudar a cara aqui da clínica e quer começar a fazer projetos. Então vem pra cá pra fazer projetos pra clínica”, então eu fui não só pra fazer atendimentos aos pacientes neurológicos, eu fui pra pensar em coisas novas praquele espaço clínico. E uma das coisas que eles tinham claro que precisavam de alguém pra fazer era a ponte entre a escola e a clínica, eles precisavam de um profissional que tivesse disponibilidade de tempo pra ir até a escola saber que dificuldades que as crianças com deficiência tinham no processo de inclusão pra poder trazer pra clínica, levar e trabalhar as informações das crianças e adolescentes em processo de inclusão. E a partir disso, como a gente passou a dar retorno e explicar pras professoras o que era, como fazia, começamos a orientar as escolas sobre como lidar com aqueles quadros e com aquelas pessoas especificamente. E as escolas começaram a falar: “Vocês podiam ensinar a gente, pra todos os professores”. Aí eu comecei a fazer projetos de curso para educadores da rede normal, da educação, a respeito dos quadros clínicos. Então comecei a dar aula assim, dar curso e tal. E aí começou e todo mundo queria: “Ah, fazer projeto”, eu ia e criava projetos e colocava a equipe toda pra trabalhar. Então eu escrevia os projetos, ia lá e vendia o peixe, botava todo mundo pra trabalhar e todo mundo ganhava. E foi isso que eu fiz, trabalhei também em Aracaju numa instituição pra autistas. Depois eu fui indicada pra trabalhar na Universidade Tiradentes, que era uma universidade privada lá em Aracaju, que queria implantar o setor de Terapia Ocupacional. Então eu fui pra UNIT, fiz um projeto pra seis meses lá, idealizando o serviço, implantei o projeto, passei um ano lá, esse serviço funciona até hoje, quando eu volto lá: “Essa pessoa que criou isso, olha aqui”. Trabalhei muita coisa, mudei de clínicas, mas mantinha a equipe porque as pessoas mudavam de clínica, mas se mantinha a equipe. Então eu comecei a minha vida profissional tendo muita independência, muita autonomia pra trabalhar. Não tinha aquela coisa de, eu tinha sempre um contraponto, não era uma coisa de bater cartão todo dia. E eu circulava. Eu era convidada pra dar entrevistas em programas de TV, pra dar palestras, participar de seminários, dar cursos, eu era convidada pra fazer essas coisas. Ninfeta. E aí, às vezes, quando os profissionais indicavam, já acontecia de chegar a mãe do paciente. E: “A doutora Thamara que Fulano indicou, com a doutora não sei das quantas”, e quando olhava: “Você?” “Ué, sou eu” (risos). E eu comecei a usar óculos por conta disso, pra parecer mais velha, ficar mais séria, comecei a usar salto pra ser mais respeitada (risos) porque eu era, meu, bicho grilo, andava de sandalinha, um calor danado do Nordeste, andava de sandália, calça pantalona, roupas folgadas e tal. E daí de repente eu comecei a ficar nos trinques, fazer escova, andar de unha feita, virei patricinha nessa época. E durante um tempo, logo eu comecei a ser referência em algumas coisas que eu fazia, tudo o que aparecia eu não sabia, eu ia me virar, então eu ia, pedia para alguma amiga ensinar e comecei a fazer aparelhos de mão, órteses para correção de deformidade de mão. E aí não tinha quem fizesse aquilo com o material, que são os termoplásticos. Então era só eu na cidade e tinha um cirurgião de mão que mandava...
P/1 – Não entendi, desculpa. Você começou a desenvolver esse aparelho?
R – Uma das atribuições da Terapeuta Ocupacional é fazer órtese de membro superior, que são aparelhos pra correção de movimentos, deformidades, melhorar movimentação, evitar atrofias. E eu vim aqui pra São Paulo, aprendi a fazer com uma amiga minha que me ensinou a trabalhar com um produto que chama termoplástico e voltei lá, porque tinha demanda, mas não tinha ninguém que fizesse. E aí a Maria Helena falou: “Eu banco a placa”, que era um material importado, caríssimo, tudo. Ela falou: “Eu banco a placa e você vai lá e aprende a fazer”, então a gente começou a fazer isso lá na clínica com os nossos pacientes e os médicos ficaram sabendo e de repente comecei a receber mais demanda. Então ganhei bastante dinheiro fazendo esses aparelhos de mão, mas era só os aparelhos, que eu recebia pacientes de outros profissionais também. Então foi isso mais ou menos e aí eu comecei a pensar em outros projetos também. Nesses anos que eu estive em Aracaju eu fiz uma especialização em Sociopsicomotricidade, que chama Ramain-Thiers o nome da especialização, e aí eu me habilitei pra trabalhar com grupos. E aí a cabeça foi abrindo e eu queria fazer outros trabalhos, queria fazer trabalhos voltados pros valores, pro estímulo, pro autoconhecimento. E era a metodologia, eu queria trabalhar com pessoas que não tivessem uma deficiência, queria trabalhar com um outro público, com essas pessoas. E era muita brabera, então vira e mexe eu me pegava deprimindo, mal, entristecida, distante da família, dos meus amigos, então era muito difícil. O calor, eu não me adaptava. Mas todos os anos que eu morei em Aracaju, apesar de eu ter família lá eu me voltei muito pro profissional. E ali eu fiz o meu nome e aprendi de tudo porque tinha poucos profissionais e eu tive oportunidade, me deram oportunidade, tive terreno fértil pra fazer o que eu fiz. Só que chegou um tempo que começou a ficar, porque era muito voltado pra esse público, e aí eu queria ampliar a área e aí: “Não, isso é da Psicologia”, não tinha mercado construído, e aí eu vi que talvez seria muito mais difícil construir esse mercado lá em Aracaju e aí eu comecei a fazer o movimento de voltar. Antes disso muita coisa aconteceu. Minha avó faleceu, eu era colada na minha avó porque eu morava em São Paulo e ela morava em Aracaju e eu ia passar as férias lá, então assim, os primos tinham ela o ano inteiro e eu não tinha, então quando eu ia pras férias eu grudava na minha avó. E todo ano ela ia também passar uma temporada na minha casa aqui em São Paulo, ela vinha ficar um tempo com a gente, com meu pai, e passava um, dois, às vezes até três meses com a gente. E a minha avó era contadora de histórias, eu gostava, sentava do lado e ouvia.
P/1 – Você falou, desde pequena ela contava história. Você lembra de histórias que ela contava?
R – Eram histórias de Lampião, das coisas do tempo dela, de quando ela era nova, dos avós, dos pais dela. Não lembro com detalhes, por exemplo, não sei contar as histórias que ela contava, eu ficava mais contemplando, absorvendo, ficava muito no estado de êxtase nas histórias dela. Já o meu tio, irmão mais novo do meu pai, ele é um contador de histórias também, esse que é professor universitário, ele conta história que é uma maravilha e todo mundo ri, tal, ele tem esse tino de contar as coisas. É uma figura. E esse meu tio morou um tempo aqui em São Paulo, então durante a adolescência quando eu estava aí, ele me ajudou a fazer aquele discurso da oitava série, ele que deu a base pra que eu pudesse. Foi a época que ele veio fazer o mestrado aqui na USP e depois ele ficou fazendo o doutorado na USP, foi pra Sorbonne, depois voltou pra Sergipe, depois foi fazer o pós-doc no Canadá, nos Estados Unidos, publicou vários livros, é uma figura bem, ele é reconhecido pela Academia Sergipana de Letras, é uma pessoa de destaque na família. É uma pessoa que eu admirava bastante, especialmente nessa fase do final da adolescência, período do vestibular. E meu irmão também sempre foi assim, era Bruno no céu junto com Deus. E aí vai passando os anos e a gente vai sentindo um distanciamento. Quando eu entrei na faculdade ele começou a namorar também e se distanciou, a gente se distanciou bastante. Foi um processo bem sofrido porque eu e meu irmão, a gente até dormia no mesmo quarto. E a gente dormia conversando, eu dormia conversando com ele. Quando ele foi morar no interior eu fiquei uma semana sem dormir porque não tinha com quem conversar, então foi um processo difícil essa separação. E a gente sempre foi muito próximo. E aí depois, nessa fase ele não acompanhou de perto essa fase toda do cursinho, dos projetos porque ele estava morando em Botucatu. Ele namorava, vivia muito junto com a família da namorada dele na época, que hoje é esposa dele, mãe dos filhos, e depois que ele se formou ele foi morar em Natal, morou em Sobral, no Ceará também, foi trabalhar, depois ele ganhou o mundo. Ele casou nesse período que eu estava morando em Aracaju e hoje ele mora na Nova Zelândia, ele é consultor internacional, ele roda o mundo aí.
P/1 – Ele se formou em quê?
R – Em Zootecnia.
P/1 – Ah, Zootecnia, você falou.
R – Isso. E ele é uma referência na área dele, em reprodução de ovinos. Então tem umas coisas da família dos dois lados, da família da minha mãe e do meu pai, de pessoas muito pobres, mas que através do, no caso da família do meu pai foi através do estudo as pessoas alçaram. E a família da minha mãe já não. Meu irmão foi o primeiro a entrar na faculdade eu fui a segunda, e aí passou anos até que alguém entrasse também, mas hoje já é mais comum. E todos continuam lá e sempre viveram na região do M’Boi Mirim, exceto uma tia minha que é adotiva, que mora em Minas.
P/1 – Aí seus pais continuaram morando naquela casa?
R – Não. Então, quando eu estava na faculdade, acho que no ano de 2000 quando, como eles estavam trabalhando no cursinho, eles passavam manhã, tarde e noite no cursinho, voltavam tarde, o trajeto era muito desgastante pro centro da cidade, trânsito, tudo, manhã e à noite voltavam tarde, então eles só dormiam em casa. Tinha dias que eles nem conseguiam voltar pra casa de tão cansados, acabavam dormindo em algum hotel por lá, um hotelzinho desses do centro da cidade, pra não ter que voltar pra casa. E aí eles resolveram vender a casa lá do M’Boi Mirim e comprar um apartamento, e compraram um apartamento na Bela Vista. Eu e o Bruno, a gente já não morava mais junto com eles, então eles conseguiram comprar um apartamento de um dormitório lá na Monsenhor Passalaqua‎ que é uma travessa da Brigadeiro Luís Antônio. Então eles passaram a ir andando pro trabalho, era perto, tudo e aí tudo mudou. Quando eu voltei de São Carlos eu voltei e fui morar com eles e aí eu não tinha quarto, não tinha guarda-roupa, não tinha meu canto, então eu dormia na sala. E aí o quarto era grande e eles colocaram um biombo, tal, meio que tinha um sofá cama que eu dormia, que eu passei um ano vivendo naquela condição, meio sem ter espaço. E ninguém tinha privacidade. E por isso que eu também fui.
P/1 – Foi pra lá.
R – A perspectiva, é como se fosse a salvação. E aí tudo ruiu, meus pais se separaram, fecharam o cursinho, então não tinha sentido estar ali.
P/1 – E você quando voltou de lá pra cá você foi morar onde?
R – Quando eu estava lá a minha mãe estava mal e eu estimulei, falei pra minha mãe ir morar lá comigo. Quando eu fui, eu fui morar com uma tia minha, seis meses depois eu fui morar com uma amiga do trabalho que me chamou pra ir morar junto. Fiquei mais de um ano morando com a Noêmia até minha mãe resolver ir pra lá. Aí eu aluguei uma casa e a gente foi morar junto. Minha mãe ficou dois anos lá, resolveu ir embora. Minha mãe foi embora quando minha avó adoeceu, minha avó teve câncer de intestino e em seis meses ela veio a óbito. Eu acompanhei todo esse processo e minha mãe foi pra lá pra ajudar a cuidar da minha avó, embora não era mais sogra dela, nem era mãe dela, mas ela foi e cuidava da minha avó como se fosse uma das filhas. As minhas tias e a minha mãe se revezavam no cuidado. Minha mãe ajudou a dar banho nela quando ela faleceu, trocar de roupa, tudo, foi um processo muito bonito esse da doença da minha avó, o desfecho. Apesar de dramático foi uma reunião da família para uma superação, foi bem bonita essa história. E aí, enfim, quando a minha mãe resolveu. Ah, e a minha mãe, quando foi morar lá, ela já estava aposentada, ela falou: “Ah, não tenho o que fazer aqui, o que eu vou fazer? Vou estudar”. Você perguntou se minha mãe tinha formação, né? Ela não tinha até os 65 anos. Então quando minha mãe foi morar em Aracaju ela tinha 60 anos e ela se matriculou no cursinho (risos). A gente tinha o cursinho e ela queria estudar mas não conseguia porque ela trabalhava, então ela tentava, ela ia, assistia a aula, mas não conseguia sustentar pra estudar, então ela ficava de orelhada. E ela falou: “Agora é a minha vez, agora é a minha vez, agora eu que vou fazer cursinho”. Ela se matriculou lá com os adolescentes, fez cursinho durante um ano, prestou pro vestibular da Universidade Federal do Sergipe e passou no curso de Filosofia, ficou um ano lá. Depois ela resolveu: “Acho que vou voltar pra São Paulo”, pediu transferência, conseguiu transferência pra USP, pro curso de Ciências Sociais só, e ela não queria, ela queria Filosofia, então ela falou: “Vou prestar vestibular de novo”. Ela começou a estudar de novo, fazer cursinho e aí surgiu na São Camilo, eles abriram vagas pra bolsistas para o curso de Filosofia, aí ela prestou, fez a prova e conseguiu uma bolsa de 100% e fez Filosofia na São Camilo, se formou com 65 anos e começou a trabalhar, dar aula. Hoje ela está com 68. Quando ela voltou, eu vou voltar um pouquinho, quando ela voltou pra São Paulo eu não aguentei mais ficar lá, porque o que me segurava era o trabalho, as conquistas no trabalho, eu tinha muita dificuldade de ter relacionamentos lá, namorava com caras de fora, namoros breves, relacionamentos superficiais e tal e ali eu não vi, muito machismo, coisas que eu não curtia mesmo. Tinha vontade de voltar pra São Paulo, queria estar perto dos amigos, sentia falta da família, família que eu digo meus pais e meu irmão. E uma das coisas que eu queria fazer ali eu não via muita perspectiva, então o que acontecia? Eu fazia projetos, as pessoas pegavam o projeto e não me pagavam, aí chegou uma hora: “Também não faço mais”. E eu falei: “Então agora eu vou fazer o mestrado, que quando eu tiver o mestrado as pessoas vão me respeitar mais”. Eu fui, fiz o projeto pra passar no mestrado. Fiz, foi aprovado, tal, dez lá no projeto, falei com o orientador. Eu fazia cursos no Sebrae, eu estava sempre meio nessa pegada de empreendedorismo, porque eu queria fazer o projeto de

mestrado voltado pra isso. E aí na coisa, eu tinha, tudo quanto é congresso eu estava, publicava coisas, tal, aí na contagem lá não deu a pontuação. “Como assim?”, então eles deletaram, aí eu vi que tinha máfia do mestrado lá. E eu fui questionar. “Vem cá, revisão da prova, porque está aqui a prova de títulos, está aqui comprovante de tudo que foi entregue, a pontuação é x”. Então eles falaram: “Há quantos anos você está tentando?” “Primeira vez” “Quem está entrando agora está aqui há quatro anos, quem é você pra querer entrar agora?” E aí o orientador falou: “Você queimou o filme porque você questionou a banca, não pode questionar a banca, porque eles te vetam lá na frente”. Aí eu falei: “Então não vou ficar aqui, porque aqui eu não vou conseguir entrar nunca e eu não vou ficar lambendo bunda de professor”, perdão da palavra, “Não vou ficar lambendo a bunda dos caras pra conseguir ser aprovada aqui”, foi quando eu resolvi vir embora. E aí eu comecei a criar situações pra poder ir embora. Teve um concurso da Rede Sarah Kubitschek, eu comecei a estudar, aí foi outra vez que eu estudei, pra prestar. Fui, tudo, até a última etapa. Eu queria voltar pra São Paulo, ficar mais perto, mas não tinha essa área em São Paulo, aqui tem a AACD, né? E aí eu queria ir pro Rio. E quando cheguei na última etapa que eles falaram: “Você vai pra onde for sorteada”, eu não sabia, e se eles me mandassem pro Macapá? Pra São Luís do Maranhão, pra Fortaleza? Eu não queria de jeito nenhum ir pra mais longe de que eu estava, aí eu fiquei quieta. A última fase era uma entrevista, era fazer avaliação do paciente e era tudo o que eu fazia todos os dias, eu sabia fazer. Aí eu fiquei quieta, batendo papo com o paciente. E aí, tchau concurso. Fiquei mal pra caramba do boicote, de fato eu queria, passei meses estudando pra isso, quando chegou na última, fui pra Brasília, pra essa prova e tudo e dei pra trás. E nesse período eu fiz especialização durante três anos, que era esse trabalho que eu falei pros grupos. E aí comecei a pensar em outras coisas, eu quero mudar minha vida, fazer coisa diferente.
P/1 – Você fez especialização lá?
R – Lá em Aracaju. Isso. E aí as pessoas falavam, essas formadoras: “Aqui não é lugar pra você, vai pra São Paulo que lá você tem campo aberto, já está mais preparado pra isso que você quer fazer”. Ah, e nisso a minha família dizia que aquela vida era muito insegura. Mas eu vivia viajando, torrava todo o dinheiro que eu recebia eu não juntava nada, não queria comprar apartamento, porque eu não queria ficar ali. Então não tinha, tudo passava nos trocos, investir, investir, investir, então nunca consegui construir nada, nunca comprei um carro, eu viajava, vivia meio que no prazer, sabe, fazia o que tinha vontade. E o que eu ia falar?
P/1 – Você estava preparando a sua volta.
R – É, isso. Estava meio que preparando. E a minha família, tudo é assim: “Você tem que ser funcionária pública, tem que ter um emprego do Estado que é segurança, que é garantia”, eu não queria prestar concurso. E falaram: “Vai ter um concurso pra T.O. aqui”, eu falei: “Ah, tá bom, vai”, mas eu já estava decidida a ir embora. E aí eu fui: “Tá bom, vou prestar”. Eu fui, cheguei lá e a pessoa: “O que você está fazendo aqui? Você não é da Saúde Mental”, eu era da área de reabilitação. “Por quê?” “Porque todas as vagas são pra Caps”, que é Centro de Atenção Psicossocial, é pra Psiquiatria, pra rede de saúde mental. Eu falei: “Ah não, Deus me livre, eu não quero de jeito nenhum trabalhar em Caps”. Eu fiz a prova, eu falei: “Bom, já estou aqui vou fazer a prova”. Tudo o que caiu era conteúdo de reabilitação física que eu tinha acabado de estudar pro concurso do Sarah, então eu passei em primeiro lugar no concurso e eles chamaram logo depois, tipo, poucas semanas depois. E aí saiu e a cidade inteira ficou sabendo. E aquela pressão da família: “Você passou em primeiro lugar, vai!”, mas eu queria ir embora. Ainda eu falei: “Tá bom, eu vou, até eu resolver”, aí eu assumi esse concurso. Eu queria ir embora, eu dei um passo e aí eu deprimi. Por outro lado eu comecei a fazer nesse local onde eu assumi, eles falaram: “Você pode escolher onde você quer ficar”, aí eu escolhi na periferia cabrobó do judas, lá na periferia de Sergipe (risos), que era um Caps que não tinha sido inaugurado ainda. Eu falei: “Bom, então não está funcionando, não tem paciente pra atender, eu não vou ter que ter contato com maluco e até inaugurar eu já resolvi minhas coisas e já fui embora”. E aí eu comecei a trabalhar. Só que a equipe era toda nova, o Caps tinha sido construído, aquela estrutura arquitetônica foi construída para ser Caps, era tudo novinho, a equipe cheia de vontade, a gente começou a criar o projeto do Caps, era tudo o que eu gostava, que era inventar coisas. E aí eu propus a fazer um trabalho, naquele período que não tinha paciente pra gente atender ainda, eu me propus a fazer um trabalho com os profissionais que era de integração da equipe para esse trabalho com aqueles valores que a equipe queria construir. E a gente tinha os apoiadores institucionais dando suporte pra equipe. Eu comecei a fazer essas propostas nos dias de reunião geral da equipe toda, então desde a faxina até os gestores eu estava participando: “Vem pra cá que você vai trabalhar com a gente”, os apoiadores institucionais. Então eu estava assim, eu queria ir embora e estava havendo uma oportunidade nova dentro daquilo que eu gostava, que eu comecei a gostar de fazer, que era trabalhar com grupos de profissionais e eu comecei a amar o trabalho. Então foi aí que eu descobri a Saúde Pública, eu não tinha noção do que era a Saúde Pública, eu comecei a me apaixonar por Saúde Pública, ver que a gestão pública investia. A gente fazia muito curso de capacitação, tinha um respaldo e era na gestão do Marcelo Deda naquela época, que estava na prefeitura de Aracaju. Então começou a repercutir, mas eu tinha um foco na vida.
P/1 – Mas e os pacientes?
R – Chegou uma hora que começou. Pronto, aí inaugurou do dia pra noite assim e foi um baque. Porque eu não me sentia preparada e quando eu fiz o estágio na Psiquiatria foi na fase que eu estava sentindo que a minha família estava ruindo, então pra mim era um trauma que eu não queria reviver, não queria me deparar com esse tipo de situação, de lembrança, então eu blindava. Mas aí eu perdi o medo nesse processo porque tinha plantão de final de semana, eu trabalhava em alguns finais de semana e eu comecei a ter que encarar, estava ali, os pacientes estavam e eu comecei a aprender a lidar com maluco ali naquela fase. E eu me lembro que tinha um que estava cumprindo pena, que tinha assassinato nas costas, que era o terror, tocava o terror, todos os profissionais tinham medo, ficavam meio que escondidos na sala pra não atender. Teve um final de semana que eu estava lá sozinha e ele junto, eu não tinha pra onde correr, não tinha nenhum

segurança, nada por perto, eu falei: “E aí, mano?”, a gente começou a conversar e daqui a pouco estava ele aaa aaa, e aí mudou, eu perdi o medo, naquele tempo. Mas eu resolvi, de fato, eu falei: “Não é só trabalho, eu quero outras coisas”, e aí eu fiz uma aposta pela vida além da vida profissional. Então nisso eu tinha deprimido, eu conversei com a psiquiatra, ela falou: “Não, vou te dar tanto tempo de licença, vai pra São Paulo primeiro, antes de você mudar, largar tudo aqui e ir pra lá, você pega uma licença, passa pelo menos um mês lá pra você sentir como é a rotina e você volta aqui e resolve se você quer pedir exoneração ou não”. E eu: “Tudo bem”, peguei a licença de 70 dias, já arrumei minhas trouxas, mandei minha mudança sem esperar o tempo (risos). Já sabia o que eu queria. Providenciei lá alguém pra ficar com meu consultório, passei os pacientes, avisei pra todo mundo que eu ia embora e não ia voltar. Fiquei um mês viajando por aí, foi a primeira viagem que eu fiz sozinha, mochilão nas costas, guia do Hi Hostel, ficava onde tinha hostel e fui pra Maceió, fui pra Salvador, pra Chapada Diamantina, pra Arraial D’Ajuda, Porto Seguro. Rodopiei. Rio, BH, eu fiquei viajando. Fui descer, aí fui pro Sul até chegar mais preparada, eu fui num processo de mudança mesmo. E aí eu fui morar com a minha mãe naquele apartamento.
P/1 – Da Bela Vista.
R – Da Bela Vista. Aí foi outro terror, né, porque eu tinha toda a minha vida lá. Mas eu juntei um dinheiro também, eu falei: “Eu consigo passar três meses desempregada”. Na verdade eu estava de licença, então eu tinha ainda um salário; tinha juntado um dinheiro porque aquele salário da prefeitura eu não encostava, eu sobrevivia lá do consultório e nessa época eu praticamente só atendia paciente particular, já quase não atendia convênio. Meus clientes eram high society, pessoas que pagavam atendimento particular; eu não trabalhava todos os dias, todos os horários, eu fazia meio que minha agenda. Eu voltei pra São Paulo, passei um mês como a doutora tinha falado, voltei lá viajando de novo até chegar, fui lá e pedi minha exoneração. Passei o consultório, quem quer abrir a sala. Eu fabricava os brinquedos, eu fazia as coisas, eu fazia tapetes sensoriais, brinquedos adaptados, tudo isso, passei tudo nos trocos e voltei pra São Paulo. Aí me inscrevi lá na Catho, 15 dias depois eu estava empregada.
P/1 – Com quantos anos você estava nessa época?
R – Quando eu voltei pra São Paulo eu estava com 28, foi segundo semestre de 2008. Eu fiquei só seis meses na prefeitura de Aracaju, na saúde mental. E quando eu voltei foi na fase de implantação do programa Nasf, que é Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que é um anexo do PSF, na Saúde Pública nas Unidades Básicas de Saúde. Eu fui trabalhar, eles estavam contratando profissionais de várias especialidades para esse programa, que era uma equipe para dar suporte para os profissionais PSF, os médicos, enfermeiros, auxiliares e agentes comunitários de saúde. E eu fiquei dois anos morando com a minha mãe e trabalhando na atenção básica. E eu fazia grupos na comunidade, eu comecei a aplicar as coisas que eu tinha aprendido na especialização. E aí não bastava também porque eu queria mais e eu fui fazer MBA (risos) em Gestão Estratégica do Terceiro Setor.
P/1 – Onde você fez?
R – Na FMU. Em 2009 e 2010, foram os dois anos que eu fiquei lá fazendo MBA. E aí entrei em contato com o pessoal do Terceiro Setor. Eu já tinha experiência do Terceiro Setor na associação, embora tenha sido caótica em termos dos efeitos, mas foi gostoso pelo processo todo de construção e dos acontecimentos, foi muito legal, os resultados que a gente teve foram fantásticos. E aí eu falava: “Agora eu acho que eu quero trabalhar com consultoria, quero dar consultoria”, sempre com o olho lá na frente. Eu falei: “Não, mas ninguém me respeita, eu tenho que fazer o MBA pras pessoas me respeitarem”. E aí eu fui, fiz e tal, entrei como voluntária numa organização, uma ONG chamada Napra, Núcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia, que a gente fazia reuniões lá em São Carlos, reunião universitária de vários cursos da graduação e de universidades diferentes.
P/1 – Você ia até São Carlos?
R – Eu ia até São Carlos uma vez por mês participar das reuniões gerais deles. E aí o meu trabalho era fazer uma ponte entre o núcleo de formação e núcleo de projetos, eu dava suporte pras equipes pra criação dos projetos sociais lá na Amazônia. E o trabalho era muito voltado, eu usava os recursos da especialização que eu tinha feito pra sensibilizar as pessoas em relação aos valores que estavam implícitos naquilo que eles estavam criando, querendo criar, e a integração da equipe, formar a equipe para esse tipo de trabalho. E aí foi bem bacana, então durante o MBA eu fiz isso e o TCC, acabou sendo pautado nesse trabalho, que era pra se voltar pra Amazônia. Eu não consegui nunca ir pra lá nas expedições porque eu não conseguia liberação do trabalho, não coincidia com férias, não tinha liberação do trabalho.
P/1 – E você estava morando com a sua mãe?
R – Morando com a minha mãe.
P/1 – Seu pai já estava em outra.
R – Meu pai já estava morando sozinho desde que eles se separaram. Meu pai foi morar na Roosevelt e dá aula, só dá aula no estado, porque até então meu pai dava aula no estado e no cursinho, revezava, e aí ele ficou só dando aula no estado de fato. Ah, quando eu estava terminando o MBA, eu tinha acabado de terminar, nos grupos de discussão o pessoal divulgou o processo seletivo do Sesc pra animador cultural. Daí eu fiz o processo seletivo.
P/1 – Em dois mil e?
R – Em 2010. Eu não tinha a mínima noção da área de Cultura, não sabia nem como era aquilo, não sabia o que estudar, nem nada, eu falei: “Vou prestar”, eu fui. A prova era Conhecimentos Gerais então passei e fui. E aí amei o processo seletivo, falei: “Poxa, isso aqui é T.O., esse processo seletivo maravilhoso. Se num processo seletivo os caras usam, imagine, isso aqui nunca vai faltar recurso pro trabalho. Aí falei: “É mágico”, e aí eu falei: “Ah, quero trabalhar nesse lugar”, fui, entrei no Sesc, passei dois anos trabalhando.
P/1 – Que unidade?
R – Fui pra unidade de Santo André. Fiz escola lá, aprendi na raça Produção Cultural, que lá eles não dão esse nome, mas o trabalho é muito de direção de produção, e fiz coisas fantásticas que eu adorei, pintei, bordei. Eu tive liberdade, que ninguém sabia o que eu fazia, aí eu pegava e dava um tino do que era ali que afinava, onde que eu vi que se afinava mais na área da cultura era Educação Popular em Saúde que eu conheci quando estava fazendo esse trabalho no Napra. Conheci o pessoal que estava construindo a Política Nacional de Educação Popular em Saúde, foi nessa fase que eu conheci, quando eu estava trabalhando no Sesc em 2011. O primeiro projeto grande que eu fiz foi de Encontro de Educação Popular em Saúde, eu fui pesquisar e me conectei com o pessoal do Brasil inteiro que estava nesse meio. E fiquei nove meses nesse projeto.
P/1 – Mas você tinha liberdade pra colocar suas coisas, seus projetos?
R – Lá eu tive. Lá tive, sempre consegui vender meu peixe, era só isso que eu tinha que fazer. Não tinha que ir atrás de recurso, nada disso, tinha que convencer e fazer legal. E como eu estava em fase de aprendizado, eu podia arriscar, então não tinha problema se desse errado, porque estava experimentando. E a proposta que eu estava fazendo de saúde era muito diferente das propostas que as pessoas faziam, que era sempre muito ligada à atividade física e alimentação.
P/1 – Mas mesmo como animador cultural você podia puxar pra essa área de Saúde?
R – Foi o meu dever porque eles me colocaram na pasta de Educação em Saúde, então eu fiquei responsável pela programação de Educação em Saúde e Meio Ambiente. E aí era onde eu sabia, era só isso que eu sabia, eu não sabia mais nada, só que eu tinha que fazer o link, que atividades que eu posso criar aqui para um público que não está doente, entendeu? Toda e qualquer pessoa pode vir e se beneficiar e curtir isso aqui. E aí com um ano depois que eu estava no Sesc aí falaram: “Você não bateu a meta do ano”, eu criava muita oficina, “Você não bateu a meta”.
P/1 – Tem meta?
R – Tem. Eu soube disso só no final do ano, que tinha meta, não tinha cumprido.
P/1 – O que é a meta?
R – De atendimentos, número x de atendimento por área no ano. E aí eu: “Puxa, mas ninguém tinha me falado disso, eu não sabia que tinha que ter, então tem que mudar totalmente o caráter das atividades, senão nunca vai atingir”. E aí eu mudei o caráter e eu fui abarcando outras áreas, foram passando outros trabalhos pra mim, então eu comecei meio que ficar com responsabilidades do Se Liga, que era programa pra adolescentes, algumas coisas da terceira idade, porque a técnica na época ficou grávida e saiu de licença. Enfim, aí eu acabei assumindo muita coisa, estava sobrecarregada e comecei a reclamar. E aí foi vindo mais coisas e eu: “Ahhhh, não aguento!”, comecei a gritar, reclamar e: “Não, tem que fazer”, eu falei: “Então beleza, a partir de agora vai ser tudo transdisciplinar, aí eu encaixo onde está faltando meta”. E aí eu sei que eu bati as metas de Saúde no segundo mês do ano seguinte e eu fui convidada pra ir pro Consolação. E eu fui feliz da vida: “Nossa, você bateu a meta do ano em dois meses, como você conseguiu?”. Mudei o caráter das atividades. Comecei a fazer atividades em espaços abertos pra quem quisesse ver, sem essa coisa de ter que ir pra sala fechada, só se interessar. E aí rolou assim, eu fui pro Sesc Consolação e fiquei lá. E nesse tempo que eu estive no Sesc, de 2011, 2012 eu fiz amizade com esse pessoal da Educação Popular em Saúde e comecei a querer estar no espaço que eles estavam, participar dos eventos deles, trocar ideias, informações. E um dos caras que eu conheci foi o Vitor Pordeus, que era assessor do Secretário de Saúde do município, da Secretaria de Saúde do Rio. E aí ele falou: “Eu quero que você vá pro Rio pra trabalhar com a minha equipe, pra coordenar minha equipe, eu preciso de alguém”. Quando eu fiz esse evento no Sesc o pessoal do Mover começou a espalhar o que eu estava fazendo lá no Sesc, então eu acabei tendo um acesso ao Ministério da Saúde sabendo o que eu estava fazendo e eu comecei a me comunicar com esse pessoal que eu não tinha contato nenhum. Agora me veio isso, acho que nessa fase do Sesc que eu comecei a valorizar mais as ações e comecei a falar das coisas que eu fazia. Eu fui começar a me sentir valorizada profissionalmente, na verdade, nesse período.
P/1 – Quando você trabalhava no Sesc?
R – No Sesc.
P/1 – E aí você teve esse convite pra ir pro Rio de Janeiro.
R – Isso. E aí eu comecei, porque antes eu não falava, pouco tempo atrás eu não falaria das minhas conquistas. Imagina, não podia falar, então eu era intocada. Eu falava das ideias, então na hora que eu falava das ideias os olhos brilhavam, vinha e acabava encantando meio que as pessoas pelas ideias e conseguia muito espaço pra atuar por aí. Mas eu não falava das conquistas, do que repercutiu, o que aconteceu a partir delas. E tinha uma coisa muito assim, eu ouvia muito da minha mãe, uma: “As pessoas ficam com inveja, não pode contar, você incomoda as pessoas”; e outra coisa é como se tivesse se exibindo, então não podia falar pras pessoas, só pode falar das dores então, que isso não incomoda as pessoas nesse sentido, que aí ninguém vai ter prejudicar. Enfim, nesse período do Sesc eu recebi esse convite, eu falava pro Vitor: “Não, eu gosto de trabalhar aqui no Sesc, eu quero ficar aqui, ainda tem bastante coisa pra aprender”. Só que depois que eu mudei pro Sesc Consolação a coisa mudou de figura, eu já não tinha a mesma autonomia que eu tinha pra lançar as minhas propostas, eu tinha que carregar alguns pianos que eu não gostaria de carregar. Eu tinha um trabalho muito mais burocrático de contratação, então não participava de todo processo, não era o processo que eu criava e que eu me envolvia no processo que eu criava, era alguém, tipo: “Contra Fulana, vai lá e dá conta disso”, então eu era uma pessoa que estava ali carregando piano. E aquilo eu comecei a perder o sentido. E coisas que eu gostaria de fazer, fiz um projeto bem bacana junto com as escolas públicas da região na época, eu fiz uma parceria com escolas que meu pai dava aula, então consegui entrar nas escolas por intermédio dele, que ficava lá xavecando a coordenação, a diretoria, e ele sempre pedia: “Você ajuda tanta gente, por que você não faz trabalho lá na escola?”, e aí eu falava pra ele: “Não dá”, mas quando eu fui pro Sesc eu falei: “Opa, vou pensar em alguma coisa pra contemplar essas escolar públicas do entorno do Sesc”. E foi bacana, foi um trabalho de um semestre, mas eu me sentia muito limitada e eu queria ter mais liberdade no trabalho e eu não tinha autonomia, de fato não tinha. E eu comecei a querer me lançar pro mundo e sair por aí trabalhando com aquele pessoal que eu conheci, esse pessoal da Educação Popular em Saúde que lidava com saúde mas trabalhava com arte.
P/1 – E aí você saiu do Sesc?
R – Eu pedi demissão, foi um processo.
P/1 – E você pedir esse processo de exoneração no Sesc você não pensou assim: “Aqui no Sesc eu tenho um futuro garantido”?
R – Pensei. Tinha uma possibilidade de prosperar lá.
P/1 – E aí?
R – Aí é que nem tudo são flores, né?
P/1 – É.
R – Mas eu tinha vontade de fazer outras coisas e eu não queria ficar, eu não tinha domínio dos passos da minha vida, onde que eu queria. Eu gostava de Saúde, sempre gostei, e eu não queria fazer tudo, ou qualquer coisa, eu tinha as minhas preferências. E aí eu falei: “Bom, eu estou jovem, eu não tenho marido, não tenho filho, não tenho carro, não tenho casa, não tenho nada. O que eu tenho a perder?”, é um momento na minha história (risos). Eu falei: “Se eu quero fazer escolha de me lançar e arriscar é agora, depois eu não vou mais poder arriscar”. E eu comecei a falar pro Vitor: “Vitor, estou me preparando para poder ir trabalhar com você”, mas foi um processo, porque todo mundo: “Você é louca? Olha tudo o que você tem agora, você vai abrir mão?”, então foi uma briga interna. E chegou um ponto que eu não conseguia mais ficar no trabalho, eu saía de lá correndo, eu começava a chorar no caminho, chegava lá e não conseguia ficar. E também não dava pra voltar pra onde eu estava, embora o gerente na época me fez essa proposta, para eu ser transferida para outra unidade, eu falei: “Não tem pra onde correr, porque a instituição é a mesma, tal, fica queimada, uma série de coisas. Vou continuar sem autonomia, uma estrutura burocrática, rígida, fazendo trabalhos que se propõe num outro contraponto”, e aí eu pedi demissão. E eu falei: “Vitor, estou disponível”, aí ele me levou, me apresentou pro Secretário de Saúde lá do Rio e falou: “Essa daqui eu quero que seja meu braço direito”, e ele: “Beleza, vamos providenciar a papelada”. Aí virou o ano ele não assinou a papelada, depois entrou em férias, depois teve escândalo lá no Rio, ele foi exonerado, saiu, depois voltou. Quando voltou: “Não, não vamos fazer mais alteração nenhuma”. E aí o Vitor: “Vamos pro Plano B”, a gente foi criando possibilidades de trabalhar junto, com consultoria. Ele me apresentou para o Superintendente de Saúde Mental. Tararara, bacana, é isso que eu quero, fiz o projeto, projeto de 22 milhões pra criar uma rede de espaços de convivência e cuidado no Rio. E a prioridade era lidar com a questão do crack e a proposta era gerar estruturas culturais nas comunidades pra atender a comunidade toda que os usuários de crack pudessem fazer parte dessa cena, dessa construção e ter ali o reduto, não pra se tratar, mas pra viver junto com os outros e poder trabalhar, poder manifestar sua arte, enfim. E até hoje não recebi. Aí também me irritei, como diz assim, eu ia morar no Rio, resolvi: “Não, não vou arriscar dessa forma”. Minha mãe morava sozinha nessa época. Quando eu entrei no Sesc, uns meses depois eu aluguei um apartamento e fui morar sozinha, foi a primeira vez que eu morei sozinha.
P/1 – Você foi morar onde?
R – No Tatuapé, que é onde eu moro até hoje.
P/1 – Por que Tatuapé?
R – Porque na época o meu namorado morava no Anália Franco e era perto dele, da família dele, eu passava os finais de semana com ele quando tinha folga. E era fácil acesso também pra ir pra casa da minha mãe e do meu pai. E para o trabalho. Então pensei num ponto que eu tivesse facilidade no trajeto pra qualquer um deles, que na época os meus vínculos afetivos estavam ali. Um tempo depois quando eu aluguei o apartamento terminei o namoro, foi bem difícil, foi uma escolha, mas foi bem difícil.
P/1 – Você namorava há quanto tempo?
R – Um ano e pouco, mas era com um amigo meu que eu conhecia há mais de dez anos antes de começar a namorar. E foi difícil o processo. E aí eu gestei esse encontro de Educação Popular em Saúde nessa fase de luto, do término do relacionamento e aquilo me fez ressurgir das cinzas pra outra coisa, foi um giro mesmo, foi um marco e me fez aprender muita coisa, bastante coisa. Mas foi o primeiro namoro, de fato, mais duradouro e significativo envolvendo família e tal, antes era mais piriguetagem mesmo, que foi, quando que eu comecei a namorar com ele? Com 29 anos. E era uma pessoa que eu confiava muito. Bom, daí eu me enfiei lá no trabalho e fiquei vivendo essa vida. Bom, voltando, eu fiquei morando sozinha até o início do ano passado, 2013, que foi quando eu queria morar no Rio e estava nesse processo de mudança.
P/1 – Mas aí ficou como? Você saiu do Sesc tem quanto tempo?
R – Eu saí do Sesc em final de novembro de 2012. E aí eu me dei férias num tempo, mudei a minha casa, mobiliei o restante, decorei, mudei, mexi, sabe? Foi um processo de limpeza. E uma prima minha que morava no Maranhão, em São Luís, veio assistir um show e ficou lá em casa. Eu falei: “Você quer morar aí? Fica aí. Eu estou pensando em ir pro Rio, qualquer coisa você fica aqui com meu apartamento”, e aí ela ficou dez meses lá em casa. Eu ia pro Rio e falei: “Mãe, fica aqui no meu apartamento, eu vou e volto, passo uns dias lá, outros dias aqui e você fica com a Indira”, que era minha prima. Então minha mãe foi morar lá no meu apartamento, ficaram as duas, só que eu não fui.
P/1 – E alugou o dela?
R – E minha mãe alugou o dela. Só que eu não fui pro Rio, fiquei, então nós ficamos as três morando juntas e até hoje minha mãe mora comigo.
P/1 – E a sua prima também?
R – E a minha prima foi embora pra China. Ela fazia mandarim, começou a trabalhar, logo no ano seguinte ela começou a trabalhar e ela já fazia mandarim. Ela prestou uma prova lá e conseguiu uma bolsa pra passar seis meses na China, foi. Aí passou no mestrado lá e vai ficar mais dois anos. E eu continuei com a minha mãe. E nesse meio tempo tudo deu errado lá no Rio e eu comecei a perceber, poxa, eu não posso perder os vínculos, as coisas que eu construí aqui em São Paulo. E as pessoas me procuravam pra fazer produção cultural, pra trabalhar como produtora. E eu comecei a fazer projetos e comecei a fazer projetos com coletivos que me chamavam. Então eu fiz um evento no ano passado, o Dia da Luta Antimanicomial, foi um evento do pessoal da saúde mental envolvendo vários coletivos. E aí a gente começou a articular o pessoal da Educação Popular em Saúde aqui em São Paulo, logo depois o pessoal da Faculdade de Saúde Pública ficou sabendo e chamou pra fazer a Tenda Paulo Freire do Congresso Paulista de Saúde Pública. Depois a gente. Ah, aí eu comecei a fazer eventos grandes articulando as pessoas que eu conhecia, que estava envolvidas no cenário da Educação Popular em Saúde. Só que assim, quando eu estava trabalhando no Sesc, em 2012, eu fui num evento lá no Rio que se chamava Ocupa Nise, que foi o Segundo Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência. E quem idealizou essa universidade foi o Vitor Pordeus, que era o mesmo que tinha me chamado pra trabalhar com a equipe dele e pra fazer o projeto lá para a Superintendência de Saúde Mental. Aí não saiu, ele me apresentou uma outra secretária que é a Cristiane Brasil, que é Secretária de Qualidade de Vida e Envelhecimento Saudável lá no Rio pra dar uma olhada. E tudo morreu na praia, assim, então eu fui ficando super frustrada. Mas 2012, que eu estava com muito mais contato com o Vitor, o Vitor organiza um evento lá que foi o segundo congresso dessa rede que ele idealizou. A proposta era fazer o congresso dentro do manicômio. Então ele fez uma negociação, conseguiu uma abertura pra fazer uma ocupação das enfermarias desativadas do Manicômio do Engenho de Dentro, que é o Nise da Silveira lá no Rio de Janeiro. E ele falou: “O congresso vai ter semanas e o programa é não ter programa”. E eu: “Vitor, você é louco? Como assim? Como vai rolar isso?” “Não, a gente chama os artistas, as pessoas e a ideia é mergulhar, ficar naquele espaço e construir a proposta, o congresso, vivenciar a realidade e produzir coisas, produzir Arte e Ciência a partir dessa vivência coletiva”. Daí eu consegui liberação do Sesc e fui não nas três semanas, mas na última semana. E aquilo foi um salto na vida, foi uma transformação profunda de uma situação de aprendizado de todos nós, que não tem como descrever, só quem vai lá e conhece, sente na pele o que é estar internado no manicômio, numa proposta de aprendizado, de aprender a viver junto com as pessoas como quer que ela seja. E muitos artistas participaram desse processo, hoje são super amigos, irmãos, são pessoas muito queridas. E a gente viu que as pessoas desenvolvem um afeto ali que não rui. Não sei se o tempo pode dizer uma outra coisa, mas foi algo muito forte. E aí no ano passado o Vitor falou: “Vamos fazer de novo o Ocupa Nise, Segundo Ocupa Nise”, e aí me chamou pra ajudar na produção desse evento lá no Rio. Nesse evento a gente leva pessoas do Brasil inteiro. E aí a gente não tinha possibilidade de financiar o meu trabalho lá, eu fui mais pra colaborar com o processo do que pra trabalhar efetivamente. Então todo mundo colabora, não tem uma coisa que você está ganhando pra trabalhar aqui e você vai fazer. Não, todo mundo colabora com o que pode. E aí eu entrei dessa forma nesse evento, e não foram mais três semanas, foi uma semana. No primeiro ano, se não me engano, foram umas 70 pessoas hospedadas em um espaço que foi chamado de Hotel da Loucura. No ano passado foram 150 em uma semana; antes foram 70 em três semanas, depois 150 em uma semana, né, as pessoas começaram a procurar. E tinha rituais de cura, todos os dias começavam com os rituais de cura e a gente fazia, tinha as rodas de conversa, sei lá, tinha algum tema lá, o tema era jogado e as pessoas alimentavam aquilo. E às vezes tinha alguns convidados especiais que iam ajudar a fazer provocação, mas as discussões eram sustentadas pelo coletivo, o círculo de cultura, a música, as encenações, a poesia, tudo vem, brota ali, maluco não fica sentado ouvindo, ele se manifesta o tempo todo, eles entram. Se você está falando demais eles entram e falam: “Cala a boca, chega, está um saco isso daqui”, então a gente começa a aprender a ser mais de verdade no contato com eles, acho que essa foi a grande sacada do Vitor dessa proposta, não de entrar com assistencialismo: “Olha, teatro para loucos e parara”, é outra coisa: “Vamos aprender juntos”, então não era uma proposta de assistência, de aprendizado comum, todo mundo aprende e ensina ao mesmo tempo. Paulo Freire, né? E nesse evento, nesse Ocupa Nise, aí foi uma recomendação do Vitor e foi aprovado que eu fosse a secretária geral. Ele falou: “A gente precisa ter alguém que organize, que pense na rede”. Ele falou: “O pessoal de São Paulo é mais organizado, o pessoal de São Paulo tem esse tino”. E aí me elegeram Secretária Geral da UPAC, dessa rede, mas é um trabalho totalmente voluntário. A gente gera renda a partir dos projetos que a gente consegue captar. Então todo mundo se mobiliza, a gente consegue recurso, faz com recurso, a gente faz o que a gente quer. É um território de muita liberdade, de autonomia, de aprendizado coletivo, ninguém tem chefe, ninguém manda, ninguém obedece, então tem um desafio. E desde o ano passado eu estou pensando nisso, eu comecei a fazer projetos pra articular a participação dessas pessoas que estão envolvidas nessa dinâmica, que se encontraram ali em diversos momentos, mas que participaram ali do Ocupa Nise I, II e III esse ano que são os congressos da rede, da Upac, e eu comece ia criar propostas pras pessoas saírem do manicômio, saírem dali e começarem a circular. Então a gente propôs evento aqui em São Paulo, fizemos eventos, trouxemos pessoal do manicômio pra cá. Depois a gente teve um convite pra participar da Bienal de Artes de Búzios, fomos lá pra Búzios, levamos a galera pra lá.
P/1 – E como é que você se sustenta financeiramente?
R – Recursos. Quem consegue, às vezes são parcerias, a gente consegue, é como se fosse a troca, a gente faz esse serviço e vocês providenciam hospedagem, alimentação, tarara, então às vezes sai no zero a zero, mas a gente faz. E em outros momentos não, às vezes a gente recebe recursos e paga a diária pro pessoal. O Ministério da Saúde passou a mandar e-mails falando: “Ó, vamos fazer tal evento, temos tantas vagas pra rede de vocês”,

a SGEP, que é a Secretaria de Gestão Estratégica Participativa: “Thamara, resolvam aí”, aí eu fazia essa intermediação, via quem podia, quem que iria, passava todos os dados, o Ministério mandava passagem, hospedagem, alimentação, tudo. A gente ia participar dos eventos de construção política, o que a gente faz é manifestar outras, é fazer o que a gente fala que quer, então a gente está nesse tino. E aí os malucos começaram a ir com a gente também. O Vitor é uma força absurda, eles têm os recursos, têm um audiovisual ali junto, eles criaram um espaço do Hotel da Loucura, um espaço de residências artístico científicas e esse espaço começou a abrigar coletivos artísticos pra fazer residência lá e ocuparam o espaço. E aí foram sendo conquistadas outras enfermarias. A gente ocupou o terceiro andar todo, era uma parte do terceiro andar o primeiro congresso; no segundo a gente ocupou a outra ala, ficou o andar inteiro. E agora, nesse ano que foi o Terceiro Ocupa Nise, o Quarto Congresso da Upac, o Terceiro Ocupa Nise, a gente conquistou o andar de cima inteiro. E aí a gente recebeu, parece, se não me engano, foram 450 pessoas que passaram. Aí chegou o encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua foi feito junto, então a gente teve um boom de artistas por um lado que ampliou muito o número de pessoas, veio muita gente fora da casinha que não tinha noção do que estava acontecendo, o que significava. Não era fazer espetáculo para maluco ali, era fazer a parte de despertar a arte, a potência, a partir das nossas loucuras. E fazer junto, construir junto com quem quer que seja, do jeito que acontece. Então assim, eu estou nesse momento de, meio que em suspenso.
P/1 – E a T.O., você abandonou de vez?
R – Quando eu terminei o namoro com esse meu namorado na fase que eu estava no Sesc eu conheci o Espaço Terapêutico lá no Tatuapé, comecei a fazer terapia de grupo lá, terapia individual, faz três anos e meio que eu estou lá. E nesse meio tempo eu fiz vários projetos em parceria com eles, que chama Instituto Evoluir e esse ano eu comecei a trabalhar lá com eles. Eu propus um projeto do coletivo Pode Tudo, que é o pessoal da Upac aqui de São Paulo, eles toparam incubar esse projeto e a gente levou todo o coletivo pra trabalhar lá dentro. Então a gente faz saraus, grupo convivência e cuidado, faz oficina, workshops, faz oficina cantada. E tem uma proposta de Turismo Arte Científico, que é fazer um retiro em Ilhabela com a proposta voltada pro trabalho, mas dessa ressignificação do trabalho na vida de cada um. E aí isso foi em maio desse ano que eu comecei a trabalhar lá junto com o coletivo, que eles incubaram o nosso grupo. E a partir de agosto eu comecei a trabalhar como Terapeuta Ocupacional. Então assim, todos esses anos eu nunca deixei de fazer atendimento como T.O., atendia pacientes particulares eventualmente, ou poucos durante um período mais prolongado, então tem paciente que eu atendi dois anos direto. E todo ano eu volto pra Aracaju, eu faço acolhimento e atendo os pacientes que eu atendia, que eram crianças e hoje são adolescentes, que eram adolescentes e hoje são adultos e manti o vínculo. Só que eu mudei o perfil, aliás, mudei o tipo de trabalho que eu fazia muito junto com eles, hoje eu estou fazendo com a família numa situação de sustentação.
P/1 – Você passa um período lá?
R – Passo dias lá, e às vezes, tem uma paciente por exemplo que eu passo dois, três dias na casa dela, treino todos os cuidadores, enfermeiras, tal, vou trabalhando com a família, que momento da vida é esse agora e como a gente traz vida pra esse momento, nessa situação, às vezes são quadros que é só cuidados paliativos, tal, mas dessa situação toda de impossibilidade, de total dependência. O que resta? Um olho que movimenta, que diz o que quer. Então o meu trabalho como T.O. é de estruturação de um determinado ambiente e de um fazer nesse ambiente, junto com aquelas pessoas que possam emancipar aquele que é o foco da atenção, à princípio, pra família. Mas a atenção é pra família inteira. Então eu modifiquei meu jeito de atuar. E hoje eu participo de vários eventos na Tenda Paulo Freire, organizando como produtora. Me apropriei recentemente do meu papel de cuidadora, então se eu faço isso com meus pacientes eu posso fazer isso lá na Tenda Paulo Freire. Só que na Tenda Paulo Freire as pessoas trabalham com cuidados tradicionais, ou arte, ela entra. Eu comecei a estar muito conectada com esse pessoal, de repente eu me vi cantando, recitando poesia e escrevendo. E agora escrevendo cartas com mensagens pras pessoas e é esse o cuidado que eu tenho pra oferecer, então isso tem despertado, aberto canais para o acolhimento que as pessoas estão buscando, que é um espaço de atenção e cuidado, e isso eu sei fazer. Então eu me apropriei da arte e dessas referências culturais que eu estou bebendo agora nesses últimos anos pra aplicar no cuidado, então estou num momento de giro, num processo de autoconhecimento, como eu estou funcionando agora? Como se contempla a minha alma de uma outra forma. E está muito rico. E aí recentemente, como eu me conectei com essa habilidade de escrever, agora eu posso dizer que eu tirei da caixinha tudo o que eu escrevia, eu escrevia coisas, só que eu nunca contava pra ninguém o que eu estava escrevendo, o que saía. E aí eu comecei a tirar dessa caixa e ler pras pessoas o que eu tinha escrito. Eu estou entendendo melhor o que é isso agora. E eu acho que eu estou escrevendo um livro que conta a minha história (risos). Que conta minha história.
P/1 – Thamara, olhando a sua trajetória, tem, claro, memória seletiva que a gente está num espaço delimitado de tempo, então tem várias coisas que a gente não deve ter falado, mas olhando a sua trajetória, se você pudesse fazer alguma coisa você faria alguma coisa diferente?
R – Ah, faria (risos). Se eu pudesse, mas hoje eu vejo que eu tenho aprendido muito nesse espaço que eu frequento e que agora eu estou trabalhando. Uma frase que eu ouço sempre é: “Tudo foi como foi”, e que “A vida está sempre certa”, é prepotência nossa querer mudar o rumo da vida. A gente muda o nosso rumo a partir do momento que a gente tem consciência. Então eu vejo hoje eu estou tomando consciência que antes eu não tinha, então não dava pra ser diferente do que era. Mas não dá. E eu acho que é esse processo de maturidade. Às vezes eu converso muito com a minha mãe a respeito disso. Eu falo: “Você tem 68 anos, eu só tenho 34, é metade disso. Não espere que eu tenha suas atitudes, da sua maturidade, a sua sabedoria. Eu posso ter inteligência, mas não tenho ainda sabedoria. Tenho um caminho pra chegar até lá”. E às vezes eu tenho que conversar com partes minhas que são partes doloridas, são partes que gostariam que fosse diferente e me apropriando. É um movimento que eu estou fazendo muito agora, nesse momento, com a minha parte adolescente, pra ver o que ficou daquilo, o que de saudável, o que de muito rico essa adolescente colocou dentro da possibilidade que tinha? E eu vejo assim, por exemplo, poderia ter vivido muito mais relacionamentos, eu nunca me permiti ter um relacionamento duradouro e saudável, não queria nada que comprometesse a minha liberdade, primeiro. E outra coisa, de viver a profundidade, eu não tinha, apesar de eu ver meus pais heróis, chegou um momento que eu comecei a julgar: “Opa, eles não são tão perfeitos assim”, foi quando eu saí de casa, que eu voltei: “Opa, acho que eu não gosto do que eu estou vendo”. Mas eu acho, se eu pudesse fazer diferente eu talvez tivesse me relacionado com os homens de uma maneira menos medrosa, menos medo de me envolver. Por outro lado, eu vejo que isso me direcionou muito pra focar no trabalho, então talvez eu tenha construído a minha trajetória profissional por conta disso, por ter o desejo muito grande de fazer coisas que eu não sabia exatamente que eu estava desejando, mas eu ia abrindo caminhos pra tentar me encontrar. E eu me perdia em vários momentos, que parece que eu gostava de tudo, não conseguia delimitar o que eu não gostava, depois que começava a abrir mão de tudo e jogar tudo pro alto e começar do zero. E muito recentemente que eu comecei a agregar: “Opa, tudo isso aqui cabe e eu posso aplicar em locais diferentes e maneiras diferentes, mas tudo aqui cabe”. Mas só foi um determinado pessoal que me disse isso: “Você não se adapta, você não se adequa, você não é pra isso”, e eu achava sempre que era impossibilitada: “Não, mas eu tenho que ser especialista de alguma coisa”, e aí eu virei generalista, então é como se eu nunca fosse apta para estar num trabalho porque eu estava o tempo todo querendo um outro trabalho (risos). E aí tenho só, vou pegar aqui, é um minutinho, que eu acho que eu coloquei aqui, dessa conversa que eu disse que tive recentemente em relação a adolescente, né? Esses tempos agora eu estava com uma preguiça danada, não queria fazer nada e me achando vítima do mundo: Por que eu estou sem grana? Por que eu me meto nessas coisas e depois fico vendo, dei passo errado. E aí eu fui olhar e vi que partes que ficaram, e aí eu fui olhar essa adolescência pra conversar um pouquinho com ela, eu falei: "Olha, você precisa ajudar aqui a trabalhar, preciso trabalhar e você está se sentindo vítima do mundo, com raiva de Deus e de tudo”. Tem um trechinho aqui que eu começo a contar pra ela que eu. Posso ler?
P/1 – Claro.
R – Bom, vou ler aqui. “Querida Thamara”, eu estou falando com uma adolescente de 13 anos, né? “Os dias não têm sido tão fáceis como você gostaria, não é mesmo? Apesar de todos os percalços hoje tivemos um encontro necessariamente possível e isso muda muito as coisas. Então espero, aliás desejo, que você me escute e confie em mim nesse momento. Sinto por ter demorado tanto tempo para perceber sua presença em minha vida, embora estivesse tão atuante nos últimos 20 anos e, claro, tenha contribuído tanto para que chegássemos até aqui. Agora, somente agora, compreendo um pouco mais sobre o que se passou conosco. Nossa vida é a mesma, caminhamos juntas e estaremos ligadas sempre. Tivemos alguns momentos felizes e outros nem tanto, mas sinto que foi o que conseguimos por hora, com o melhor que pudemos ser ou fazer, apesar de eu desejar ir muito mais além. Enfim, para ir direto ao ponto central dessa nossa conversa, não desisti dos meus sonhos, dos nossos desejos, continuo seguindo em busca, quero e vou encontrar. Mesmo sem consciência te dei bastante espaço, deixei que você dominasse meus pensamentos e permiti que exercesse sua revolta, e até uma certa tirania, por tempos a fio e situações importantes nas fases de mudança e incertezas, tive que dar um puxão de orelha, para, é o limite. Não te culpo por isso porque sei bem da sua dor e da profundidade da sua tristeza, porém a angústia é nossa, então precisamos e conseguiremos transpor essa insegurança. Vamos seguir juntas pois agora estou aqui de corpo e alma presentes. Sei que gostaria que o pai e a mãe cuidassem disso, mas saiba que eles estiveram muito ocupados tentando melhorar a nossa condição e tomando as providências necessárias, ou as que eles viram como prioritárias. Tudo foi como foi porque cada um fez suas opções, inclusive você através do silêncio e do isolamento. Como eles poderiam adivinhar o grau do nosso sofrimento? Eles também estavam frustrados, se sentindo fracassados e desesperados quando a gente foi pro M’Boi Mirim. E não precisamos nos colocar no lugar deles para entender, ou mesmo para honrá-los, se cada um ficar com a sua parte já está ótimo, daí a gente dá conta, certo? Bruno também ficou com uma parte lá atrás, mas ele vai caminhar e no tempo certo vai se encontrar, fique tranquila. Você não precisa salvar ninguém, nem tacar pedras e muito menos se punir por agir assim ou por se colocar como vítima da própria vida. Estamos dando atenção uma à outra neste momento sincero, claro e aberto, então não poderia deixar de lembrá-la sobre a parte que te cabe, também te dar um devido limite que o pai e a mãe também poderiam ter te dado, mas não fizeram por opção deles. Talvez o que você veja como falta pode ter sido o canal aberto para termos conseguido percorrer e escolher caminhos tão gostosos, iluminados e louváveis. Terreno eles prepararam e nós saímos para conquistar os materiais e poder construir a casa própria, assim como eles fizeram cada um a seu jeito. Fomos para a faculdade estudar onde queríamos, adquirimos uma certa autonomia, fizemos amizades especiais, conhecemos vários garotos lindos com quem você, nós, pudemos nos relacionar. Tivemos muitos aprendizados, prazeres e conquistas. Por outro lado, tivemos medo de viver tantas novas experiências que poderiam nos tornar mais plenas e felizes. Hoje já posso transformar nosso medo em prudência, nossa raiva em energia de ação, nossa dor em compaixão, tudo isso porque nossas máscaras em parte já se transpuseram em papéis e os escudos em proteção. Vamos ter mais paciência ao descamar a cebola daqui pra frente, sem tanto choro e gasto desnecessário de tamanha energia. Confie em mim que agora eu já sei, permita-nos um pouco mais. Tente, experimente, meu bem, eu te amo e quero o melhor para nós, querida. Somos companheiras, não estamos sozinhas. Percebe que a solidão não existe? É uma ilusão. Por isso não precisamos depender de ninguém, já estamos nos tornando independentes em alguns aspectos e interdependentes em outros. Podemos ter mais e melhor, podemos ser mais e melhor. Deixemos agora os seus boicotes e a minha cegueira ou indiferença para trás pra superar o nosso desamor comum. Este papo reto é o nosso remédio e a cura será nossa união com respeito, e assim as pessoas nos verão à frente e reconhecerão nosso brilho, sentirão nossa alma e valorizarão dos nossos papéis e essência. Conquistaremos o necessário e o desejado. Transformaremos tudo o que for possível e encantaremos todos que quiserem, com a forma da nossa arte de viver, com o nosso jeito de ser. É mais do que uma promessa, é um fato, acredite. A energia de falta, de perda e escassez está sendo substituída pela de abundância e prosperidade em todos os sentidos. Responsabilidade e satisfação virão a tiracolo, prepare-se para o bom e belo. Reconheça o que é viver na luz a partir de agora, sorria com as novas possibilidades e vamos agradecer de coração repleto e peito aberto por toda a trajetória que percorremos até aqui que deram passagem para o nosso crescimento. Sejamos gratas à criação pelas oportunidades que estão se abrindo nesse momento e pelas cores que nos preenchem, que darão acesso à nossa evolução futura. O dinheiro já vem como retorno do nosso trabalho, de todos esses últimos anos de construção e de aprimoramento da nossa maturidade com a finalidade de viabilizar nossos projetos de vida e os de tantos outros que seguirão conosco. Ao chegar” – minha mãe está viajando – “a mãe encontrará uma pessoa inteira, plena e feliz com os passos que deu, consciente de seu propósito e realizada com suas tarefas e com os retornos multidimensionais, se é que posso dizer assim. Ela poderá ficar tranquila com a filha que tem, sabendo que todo seu esforço está sendo recompensado; que é a melhor mãe que poderia ter sido e que não precisa recorrer aos bloqueios mentais por adquirir a certeza de que sua inteligência foi aplicada em cada posicionamento durante a vida. O pai poderá viver melhor sem se preocupar conosco, ou duvidar se daremos conta das nossas escolhas; saberá que pode se aposentar e aproveitar do bem-estar sem o aparato da doença para parar. Vamos libertá-los e tentar nos libertar dessa dor da falta que corrói e paralisa. A nossa atitude estimulará o Bruno que está conectado conosco e poderá sentir espiritualmente esse movimento em família. Enfim, tudo isso é um preparo para também podermos formar nossa própria descendência. Nossos filhos adolescentes poderão ser melhor assistidos sendo uma mãe consciente do seu devido lugar. A ancestralidade agora em festa nos preparará, pois sabe que somos capazes de passar a vida adiante com dignidade através do meu corpo de mulher e numa estrutura saudável que teve a superação de tantas crises depois da sua colaboração. A potência da sua juventude e a sua ânsia de fazer a diferença, a força da sua criatividade e a graça da sua beleza são sagradas para o sucesso nesse processo que te faço o convite: vamos colocá-las a serviço, agora que fizemos as pazes, que agregamos a minha intuição, atitude e conhecimento rumo à sabedoria. E de mãos dadas podemos ir dormir. Está tarde, mocinha, precisamos nos recompor, pois amanhã é um novo dia e um novo amor está pra nascer. Boa noite, eu cuido de você agora”. Thamara adulta, aos 34 anos, quem assina.
P/1 – Lindo.
R – E depois eu começo a contar uma história pra ela, do que aconteceu depois dos 13 anos, se é que ela não está lembrada, pra parar de rebeldia, de “não quero, ninguém me ama, ninguém me quer e nada dá certo pra mim”. E é isso.
P/1 – Lindo. Thamara, o que você achou da experiência de contar seu depoimento aqui no Museu da Pessoa?
R – Fantástico. Vocês não têm noção do que isso significa pra mim. Dentro do meu processo terapêutico foi inusitado, de estar, de eu poder contar essa história toda que eu vim trabalhando. É como se fosse um desfecho de um período, sabe?
P/1 – O que te moveu vir até aqui?
R – Acho que foi a curiosidade. Não do que ia acontecer, mas: “O que será que eu vou contar? O que será que eu vou lembrar, o que eu vou valorizar na hora de deixar um registro?” E eu acho que eu só vim porque, justamente esse momento de começar a valorizar o que eu faço, talvez eu não tivesse vindo pra contar essa história se não tivesse essa permissão, sabe? Ah, eu posso contar, é uma história bonita (emocionada).
P/1 – Uma história linda. Queria te agradecer por ter compartilhado conosco e agora com internautas, com os brasileiros, estrangeiros, a sua história.
FINAL DA ENTREVISTA