Museu da Pessoa

Tem tanta luta na minha história

autoria: Museu da Pessoa personagem: Semayat Silva e Oliveira

Projeto Conte a Sua História
Depoimento de Semayat Silva e Oliveira
Entrevistada por Eduardo Barros
São Paulo, 24/02/2016
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PCSH_HV524
Transcrito por Claudia Lucena
Revisado por Luiza Gallo Favareto


P/1 – Semayat, primeiramente obrigado por participar, vai ser super legal, super importante pro projeto.

R – Tá.

P/1 – Pra gente começar, me fala o seu nome completo, o local onde você nasceu e a data em que você nasceu.

R – Tá, meu nome completo e Semayat Silva e Oliveira, eu nasci em Presidente Prudente, interior de São Paulo, e nasci no dia 24 de outubro de 1988, às onze e 45.

P/1 – Informação completa.

R – (risos).

P/1 – Semayat, eu fiquei curioso pra saber a história do seu nome, de onde vem Semayat?

R – Eu acho que pra contar um pouco da história do meu nome eu tenho que contar porque que meus pais escolheram dar um nome africano pra mim, é um nome africano, de origem etíope, e os meus pais, tanto o meu pai quanto a minha mãe, fizeram parte do início do movimento negro aqui em São Paulo. Então uma das coisas que as pessoas que fizeram parte do movimento negro, bem no início, adotaram foi colocar nomes africanos nos seus filhos, foi um pouco pra resgatar a nossa história, pra trazer um pouco mais de força pros nossos nomes mesmo e também por ser uma forma de resistência. E aí primeiro veio a minha irmã, que se chama Kuntuala, que é um nome em quimbundo que significa o futuro, e depois vem eu, que chamo Semayat, no início o meu pai falava muito pra mim que tinha sido uma homenagem ao profeta, porque o meu pai e minha mãe também sempre foram muito estudiosos e meu pai, além de fazer parte do movimento negro e estudar muito o movimento negro na América do Norte, na África, tudo mais, ele é rastafári, ele é rastafári, e aí Semayat era um codinome do Peter Tosh, que era o companheiro do Bob Marley na época que eles começaram o The Wailers e tudo mais, e aí ele tinha um codinome que chamava Old Semayat. E aí o meu pai no início me falava que tinha sido uma homenagem ao profeta, porque ele gostava muito do Peter Tosh quanto músico, quanto compositor, e me deu esse nome, aí depois ele continuou pesquisando, a gente descobriu que significa sol do meio dia, e é por isso que eu chamo Semayat (risos).

P/1 – Nossa, só por isso já valeu a entrevista.

R – (risos).

P/1 – História massa, me faz ter vontade de saber dos seus pais, me fala um pouco da sua família.

R – Tá.

P/1 – O nome do seu pai e da sua mãe, o que eles fazem ou faziam, e da sua irmã. Você só tem a sua irmã ou tem outros irmãos? Fala um pouquinho da sua família.

R – Só a minha irmã. Bom, minha mãe se chama Maria Lúcia da Silva, ela nasceu e cresceu em Presidente Prudente, é interior aqui de São Paulo, minha avó acho que era mineira, aí foi pra lá junto com meu avô, ela nasceu e cresceu lá e ela foi a única das irmãs dela que decidiu vir pra São Paulo, morar aqui. Meu pai se chama Carlos Alberto de Oliveira, ele cresceu aqui em São Paulo, grande parte da vida até mesmo aqui no mesmo bairro que a gente mora hoje, e aí eles se conheceram um pouco nesse momento de conhecer um pouco do movimento negro e tudo mais. E aí eu lembro que quando eu era criança, eu sempre tive muito movimento na minha casa de pessoas que vinham aqui estudar ou discutir alguma coisa, meus pais recebiam muitos amigos aqui que faziam parte do movimento negro, e a gente sempre morou nessa rua, a gente começou morando numa casa que tá no final dessa rua, depois a gente veio pra cá, e minha avó, que era mãe do meu pai, morava aqui do lado também. Eu me lembro que a gente sempre recebia muitas pessoas aqui, amigos dos meus pais pra discussões políticas e tudo mais e todas as minhas, quando eu comecei a entrar na escola e tudo mais, todas as vezes que eles estavam de férias do trabalho ou eu e minha irmã, a gente ia pra Presidente Prudente ficar com a minha avó e com as minhas tias de lá, que os meus pais têm muita ligação. O meu pai acabou pegando muita ligação com a família da minha mãe e a família da minha mãe é meio que o arrimo principal que a gente tem, e a nossa relação com a nossa família é muito forte sempre, porque eu acho que vem um pouco disso, da família negra mesmo, da família negra. Eu acho que a gente tem uma relação entre nós que é muito mais forte, que um cuida do outro de uma maneira muito forte e pra sempre, então a gente sempre teve isso de ir pra casa da minha avó, ficar com a minha avó, com o meu avô, almoçar no domingo e ficar todos os tios juntos e nã nã nã. E aí minha mãe, teve um momento que ela decidiu abriu uma marca de roupa, se chamava Quequerê Negrart, então os dois faziam batas africanas e vendiam em alguns congressos e encontros do movimento negro. Eu também me lembro que na minha infância e na minha juventude, eu viajei muito pelo Brasil com eles, seja de ônibus, porque o próprio movimento organizava pra gente ir em excursão pra algum lugar fazer uma conferência, alguma coisa do tipo, ou quando o meu pai e minha mãe conseguiram comprar o primeiro carro e a gente de repente viajava com o carro. Então eu me lembro que eu participei dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais, eu participei de uma série de atividades durante toda a minha infância que acabou formando muito do que eu sou hoje. Então eu sempre ficava na barraca vendendo as batas pra minha mãe, aqui embaixo, no meu quintal, tem a oficina dela até hoje, de costura, então eu lembro que era sempre uma preparação porque primeiro a gente pintava todas as estampas, daí o meu pai chamava eu e minha irmã, a gente secava todas as estampas, depois minha mãe costurava e a gente tirava ponta de linha, passava, dobrava, arrumava as malas, caía na estrada, ia viajar e tudo mais. Acho que a minha mãe e meu pai sempre formaram a gente pra gente entender o que é ser negro no Brasil e onde que eles não queriam que a gente travasse, então até onde eles queriam que a gente chegasse, pra além do que eles puderam construir até então na vida deles. Então eu lembro que a minha mãe sempre me disse: “Olha, você não vai parar de estudar até você pelo menos se formar na faculdade, você não vai parar de estudar até você pelo menos se formar na faculdade”, e aí eles acabaram levando isso pra toda a minha família, essa questão de ter uma visão crítica do que é ser negro aqui, da gente poder se proteger, da gente saber se defender, da gente saber garantir que os nosso direitos sejam cumpridos e saber também se defender de todas as violências que uma pessoa negra sofre aqui nesse país. Acho que eu me perdi (risos).

P/1 – Eu tô encantado com a sua história, agora, eu queria te fazer uma pergunta, porque eu não entendi uma parte, o seu pai era daqui, é daqui?

R – Sim.

P/1 – A sua mãe de presidente prudente, você tem uma história de infância aqui em São Paulo, mas você disse que nasceu em Presidente Prudente.

R – É.

P/1 – Me conta essa história do seu nascimento e da sua vinda pra São Paulo.

R – É porque na verdade, como minha mãe sempre ia pra Presidente Prudente, era regular, minha mãe é filha de uma família que, a minha avó Belinha, meu avô Geraldo, os dois já faleceram, e dessa família tem nove irmãos, deles sete são mulheres, minha mãe foi a única que saiu de Presidente Prudente. Porque lá é muito engraçado, as nossas tias moram tudo muito perto, primeiro era muito perto da casa da minha avó e aí como a cidade é pequena também, todo mundo acaba morando muito perto, então é como se fosse uma comunhão eterna. Mas a minha mãe queria romper com isso, ela queria vir pra cá pra tentar uma nova vida, pra tentar continuar estudando, minha mãe fez teatro, ela cantava, ela tinha mil sonhos, pra ela Presidente Prudente não bastava, e aí ele veio pra cá, conheceu meu pai, mas ela sempre ia pra lá. Eu lembro que quando a minha mãe engravidou de mim, pelo o que eu sei, eles não estavam num momento muito bom da relação, então ela optou por ir pra Presidente Prudente pra que ela pudesse ter o apoio das irmãs dela e da mãe dela nesse período de gestação e tudo mais e por isso eu acabei nascendo lá. Eu nasci lá, mas eu não fiquei lá, não vivi lá nenhum tempo da minha vida, eu nasci e logo depois vim pra cá, assim, meu nascimento em Presidente Prudente, mas eu fiquei os primeiros meses de vida e já voltei pra São Paulo com a minha mãe e com o meu pai.

P/1 – Quais são as suas lembranças desse período da infância ou da adolescência no que diz respeito à educação? Digo agora a educação não familiar, mas a educação de escola mesmo. Que escola você frequentava? Como era esse ambiente escolar aqui em São Paulo?

R – Eu lembro que desde que eu entrei na escolinha, no começo, minha mãe sempre tentava levar e buscar a gente ou tinha algumas mães aqui que se organizavam no bairro mesmo pra levar as crianças pro colégio, então eu me lembro que no começo eu sempre ia de carro com uma senhora que passava aqui, pegando várias crianças, eu era uma delas e ela levava a gente pra escola, depois teve uma perua e foi crescendo, foi crescendo, pra gente conseguir ir e voltar. Eu sempre estudei em escola pública nas redondezas aqui da minha casa e aí quando a gente foi crescendo, a gente acabou criando um pouco mais de independência pra gente se mover com mais facilidade. Então a minha irmã mais velha era responsável por mim e aí eu sempre ia com ela pro colégio e voltava com ela pro colégio, tanto que a gente tentava estudar, minha mãe sempre tentou manter a gente no mesmo horário pra que uma pudesse sempre tá ajudando a outra, cuidando mesmo da outra, nesse sentido. Sobre a educação, eu acho que a gente tem uma educação aqui no Brasil muito opressora e mentirosa, quando a gente pensa que eu, quanto uma menina negra, desde as primeiras vezes que eu fui pra um colégio, seja das primeiras vezes que a gente ia lá pra escolinha só ficar brincando e depois que a gente começou o ano letivo, tudo bonitinho, eu sempre soube que não contariam a minha história naquele lugar, muito porque os meus pais sempre me disseram isso. Mas quando você começa a viver nesse ambiente, quando você vai pra escola, porque eu acho que quando se é uma menina negra, você começa a entender como que você precisa se defender, quando você tá na época de brincar, não tem nenhuma bonequinha negra lá disponível na escola, quando você leva a sua bonequinha negra, você é zoada na escolinha pelos seus coleguinhas, é difícil alguém querer brincar com você, você precisa começar a aprender a se defender. Então eu acho que não só pra mim, mas qualquer jovem ou pessoa negra, sempre vai ter uma lembrança da escola que é um pouco dolorida nesse sentido, porque é quando a gente começa a entender como que a educação no nosso país é racista, e faz parte de uma cultura e de um racismo já estruturado. Eu acho que uma criança, ela não nasce racista, é impossível, eu não acredito que uma criança branca ou não negra nasça racista, mas eu acho que todas as crenças que a gente acaba passando pras nossas crianças, pros nossos filhos, acabam perpetuando isso. Como que uma criança, eu lembro que quando eu era pequenininha, teve uma menininha que falou assim: “Ai, não vou brincar com você porque você é preta”, a gente tinha seis anos, sete anos. Por que ela disse isso pra mim? O que será que a mãe dela acredita que tenha de ruim nessa etnia, nesse grupo social, que ela já tão nova já começa a reproduzir? Então eu lembro que eu e a minha irmã também, a gente sempre foi muito combatente na escola, eu lembro de uma história que a minha mãe sempre me contou, que a minha irmã foi pra escola, uma professora brigou com ela por algum motivo X, ela achou que a professora não tava certa, ela foi lá e derrubou a mesa. Eu reproduzia muito isso também, eu sempre fui muito questionadora na escola, muito faladora, sempre fui muito falante, sempre gostei de algumas matérias e de outras nem tanto também e tinha muito isso de defender algumas pessoas que eu achava que se pareciam comigo pela etnia, por se sentir um pouco mais atingido pelas outras pessoas na escola. E aí eu me lembro que toda a vez que a gente ia assistir um filme na aula de história, que eles vinham com aqueles filmes que mostravam a época da escravidão, com os negros apanhando na senzala e nã nã nã, eu sempre esperava que viessem as brincadeiras, cada vez que aparecia uma pessoa negra na tela falava: “Ah, a Semayat” e aí eu sempre levantava e falava que não ou batia nos meninos ou batia nas meninas e tudo mais. Eu acho que toda vez que eu lembro de escola eu lembro muito disso, dessa necessidade de sempre me afirmar muito pra poder aprender. Mas deixa eu ver se eu tenho mais alguma coisa em relação à escola. E aí pensando um pouco no território que eu sempre morei, eu sempre morei aqui nesse bairro, eu lembro que eu sempre ia e voltava da escola, a partir de uma certa idade, a partir mais ou menos da sétima, oitava série, caminhando, era mais ou menos um quilômetro de distância, e pra mim sempre foi bacana esse momento, porque eu ia conversando com as minhas amigas, a gente já sabia aonde que a gente ia parar no meio do caminho pra comer alguma coisa. Era um momento que eu me sentia muito livre também, eu me sentia mais apropriada da minha vida pra fazer qualquer coisa que eu quisesse fazer nesse meio tempo, então, sei lá, é engraçado porque aqui, pelo menos no Jardim Miriam, sempre tinha umas briguinhas de colégio que mora perto, sabe? Então o México tem um grupo lá que é contra as meninas do Martins Penna, que é onde eu estudava, e aí sempre tinha uma tretinha e a gente cabulava, a gente quase não tinha aula, eu lembro que, sei lá, das cinco aulas que a gente tinha, tinha dia que a gente não tinha quatro aulas, a gente tinha uma aula só, aí adiantava pra primeira aula e depois a gente era liberado e tal. Então eu acho que é uma memória de uma escola muito frágil, sabe, tanto de teoria, tanto de forma de educar quanto de capacidade de encantar aquele aluno mesmo pra que ele aprendesse de fato, porque a gente quase não tinha aula, quando a gente tinha, os alunos, normalmente eles acabavam dominando. Porque acho que, quando a gente é jovem, a gente tem uma energia tão grande que se a gente não tiver um professor realmente disposto e com vontade de passar alguma coisa pra gente ali, tinha professor que a gente dominava totalmente, tinha professores que não, que a gente totalmente sentava e aprendia com eles. Então eu acho que eu tenho essa lembrança de uma escola muito frágil, e de coisas que a gente aprendeu de vivência, para além do que de fato a gente precisava aprender ali, porque eu tive que buscar muito isso do conceito, da teoria, de tudo o que eu não consegui aprender na escola na época do cursinho. Então eu, depois eu saí daqui, parei de estudar aqui, fui estudar num colégio que era um pouco mais longe, era na Praça da Árvore, e aí eu estudava de manhã, aí eu tinha que acordar muito cedo, mais ou menos umas cinco e meia, seis da manhã, pra conseguir chegar até o Rui Bloem, que era na época um dos colégios estaduais mais reconhecidos que a gente tinha aqui em São Paulo. E aí era difícil pra mim, porque era longe daqui, eu chegava muito atrasada, eu tinha várias brigas com a diretora, porque ela chegou a falar pra mim: “Você deveria ir estudar mais perto da sua casa, esse não é o seu bairro, você tem que estudar perto do seu bairro”. Eu falei pra ela: “Não, eu vou estudar aqui, vocês são o melhor colégio, eu consegui uma vaga aqui, eu vou estudar aqui, você tem que entender que eu não consigo chegar aqui na hora que você quer sempre, porque a minha realidade é outra, eu preciso pegar um ônibus que leva pelo menos quarenta minutos pra chegar aqui, eu preciso andar tanto tempo pra chegar aqui”, e aí eu sempre tive que entender um pouco qual era o contexto que eu vivia, diferente de algumas outras pessoas, pra poder me defender.

P/1 – E aí, a partir do cursinho, foi quando você chegou à faculdade?

R – É.

P/1 – Como que foi essa ponte, o momento? Onde você foi estudar? O que você estudou?

R – Eu lembro que eu saí do colégio e aí eu tinha que fazer um cursinho, porque eu me sentia muito frágil, aí eu saí do colégio e minha mãe queria muito que a gente fizesse faculdade, minha irmã acho que tava começando a fazer vestibular nessa época, quando eu ainda tava saindo da faculdade, minha irmã é três anos mais velha que eu, e ela queria que a gente fizesse numa escola pública e meu pai também, mas não porque, só porque era USP e ela ia achar o máximo, claro que tem isso, tem esse sonho da USP, todo mundo acha o máximo, mas porque a gente não tinha dinheiro pra pagar uma faculdade, é surreal o preço que se paga pra ter uma graduação aqui nesse país. E aí minha irmã e meu pai, foi um processo mais ou menos assim, deixa eu ver se eu consigo lembrar, minha irmã se formou e ela começou a fazer um cursinho junto com o meu pai num cursinho popular, era muito mais acessível pro meu pai conseguir pagar esse cursinho, apesar que a gente também não tinha grana, mesmo que fosse acessível, ele dava aula pra uma das professoras ou das mulheres que lideravam esse cursinho na época. Ele dava aula de inglês, o meu pai aprendeu inglês durante sua vida, ele fez escola, fez colégio de inglês, tudo mais, mas ele sempre foi muito autodidata, ele leu muito, aí ele começou, ele fez essa troca, ele dava aula de inglês pra uma das donas do cursinho e em troca ele e minha irmã podiam estudar, e aí eles conseguiram entrar na faculdade. Entraram na PUC e foi bem no começo do início das bolsas, da discussão das cotas, porque o movimento negro começou a conseguir conquistar algumas coisas, foi a inclusão das cotas e nasceu o ProUni e aí a minha irmã e meu pai entraram nessa primeira leva, no primeiro ano os dois começaram a fazer faculdade. E aí eu tava saindo do colégio e aí o meu pai falou: “Bom, tem esse cursinho, é um cursinho acessível e a gente pode tentar fazer com que você faça esse mesmo cursinho”, aí eu falei: “Bacana”, só que a gente também não tinha grana pra pagar, aí o cursinho disse: “Ó, a gente vai precisar agora de algumas pessoas pra ajudar a gente na divulgação do cursinho, então quem não tem grana pra pagar pode panfletar, pega um papelzinho lá do cursinho, sai panfletando aqui no Centro – que era no Centro na época – e aí com isso você paga o seu cursinho”. Aí eu lembro que foi assim pra mim, muito dolorido no começo, porque eu falei: “Mãe, eu vou ter que panfletar na rua, ficar na rua quatro horas panfletando”, não sei o que, não sei o que lá, e ela: “Não, você vai conseguir”, aí fui, passou o primeiro dia, eu falei: “Não, dá tranquilo”. Aí depois eu fiquei o tempo todo do cursinho, foi um ano mais ou menos, panfletando e depois eu ia estudar, aí eu panfletei acho que mais ou menos uns cinco meses, mas aí foi pra mim super bacana, porque nesse processo de panfletar no Centro de São Paulo eu conheci tanta coisa do Centro de São Paulo, então aí eu fui pegando um pouco de malemolência. Porque eu falava: “Cara”, beleza, eu panfletava, gastava todos os meus papéis e num tempinho eu deixava os bolinhos de papéis em lugares estratégicos e descobri que a Galeria Olido dava aula de samba rock, aí eu ia lá e fazia uma aula de samba rock. Aí quando eu queria estudar, depois que eu já panfletei, antes de começar a aula, eu descobria que o lugar mais silencioso era a igreja da Consolação, então eu parava e lia ou dormia na igreja da Consolação, e aí eu descobri o que era o Viaduto do Chá, o que era o Vale do Anhangabaú. Foi a primeira vez que eu comecei a ter contato com aquele bando de criança que até hoje circula no Vale do Anhangabaú, conversei com vários deles, descobri muito o que é o assédio, na verdade não foi nessa época que eu descobri o que é assédio, acho que o assédio mesmo eu descobri desde a época que eu comecei a andar de ônibus, que eu fui assediada várias vezes no ônibus, principalmente nesse meu trâmite de ir pro Rui Bloem e voltar, que era mais ou menos um trajeto de quarenta minutos de ônibus num ônibus super lotado, então ali eu já descobri o que era ser assediada por ser mulher, simplesmente. Mas no Centro de São Paulo também, porque eu fui seguida várias vezes por vários homens, tive propostas de outros homens pra que eu fosse trabalhar no exterior, pra que eu virasse prostituta, enfim, eu tinha dezessete anos. Eu lembro que num desses momentos, porque aí era uma organização familiar muito louca, porque minha mãe começou a fazer cursinho junto comigo, então eu trabalhava, panfletava e pagava o meu cursinho e a gente pagava o cursinho dela, então nós duas estudávamos juntas e íamos embora juntas, porque aí o meu pai e minha irmã voltavam da PUC e pegavam a gente no meio do caminho de carro e a gente vinha pra casa. Eu me lembro que aconteceu uma coisa que me marcou muito, que foi, um dia a minha mãe não pôde ir pro cursinho e eu tive que voltar sozinha, e aí eu pegava um ônibus, o Terminal Bandeira, descia no meio do caminho, ali mais ou menos na altura da Avenida Brasil, que era aonde o meu pai passava e a gente ia embora, e isso era mais ou menos umas dez, dez e meia da noite, não, mais, mais tarde, era onze, onze e meia da noite. Aí um dia eu desci sem minha mãe, minha mãe falou: “Ai, tô preocupada”, eu falei: “Não, mãe, fica tranquila”, aí eu desci, fiquei lá esperando o meu pai e eu tava com jaqueta, eu acho, na época, uma jaqueta feita pela minha mãe, uma calça feita pela minha mãe. Porque eu também usei durante grande parte da minha vida e ainda uso roupas feitas pela minha mãe, ela parou de costurar pra fora, pra vender e tudo mais, mas ela costura muito pra gente ainda. E eu tava toda encapada, porque tava muito frio e eu tava com todas as apostilas, segurando assim na mão, no braço, e aí como eu tava numa esquina, uma esquina pra uma mulher já significa muito mais do que só um lugar, um cruzamento, e aí parou um cara, um homem branco atrás de mim e perguntou quanto que era o programa e aí aquilo pra mim... Eu olhei pra ele e falei: “O quê?”, eu fingi que eu não tinha, fingi não, eu não tinha entendido de fato, eu falei: “Quanto o quê?”, “O programa”, eu falei: “Eu não tô aqui pra fazer programa” e aí ele saiu super assustado e foi embora e eu falei: “Cara, o que é uma menina de dezessete anos parada numa esquina com um monte de livro na mão”, quanta coisa que a gente não tá vulnerável ali, eu fiquei super mexida e meu pai chegou cinco minutos depois e a gente veio pra casa. Mas essa coisa do assédio é muito louca, eu acabei saindo um pouco do gancho do que você tinha dito, porque eu lembrei disso e porque eu me lembro que aí eu fazia o cursinho, panfletei na rua muito tempo, conheci muita coisa da rua, fiz muitos amigos lá no Centro, circulava muito, foi quando eu comecei a perder medo de andar, quando eu descobri o que era assédio, eu queria resgatar alguma outra coisa. Ah, sim, que aí, depois que eu parei de panfletar, que tinha acabado o período que eu precisava fazer isso, foi quando eu consegui meu segundo emprego, eu já tinha trabalhado antes disso, mas foi quando eu consegui meu segundo emprego, que eu fui operadora de telemarketing. E aí eu entrei no cursinho, passei, aí eu ia prestar Serviço Social pra PUC e Jornalismo pra Metodista e a USP eu tinha tentado Letras, aí não passei em Letras na USP no primeiro corte, a PUC eu ia prestar depois que eu tinha prestado Metodista e aí aconteceu que na Metodista eu consegui uma bolsa de 100% já, pra cursar Jornalismo, e era uma bolsa da própria faculdade, era um programa da própria Metodista pra isso. E era bom pra mim, porque eu moro aqui no Jardim Miriam, a gente tá pertinho de Diadema e era em São Bernardo e aí eu já nem prestei a PUC, fiquei super feliz, eu lembro que eu não acreditava que eu tinha conseguido a bolsa, eu chorava, mas eu chorava tanto, eu não acreditava. Minha mãe falava: “Você conseguiu” e eu não acreditava, eu não acreditava e eu fui lá falar com a moça e ela falou: “Não, é o seu nome, você conseguiu, você vai fazer faculdade com a gente de graça” e eu chorava tanto. E depois disso eles passaram o meu nome pro ProUni, porque a bolsa da faculdade, ela sempre tem um monte de probleminha, tipo, ah, você não pode ter uma nota X, você não pode faltar tanto, e do ProUni era mais flexível, aí eles conseguiram passar minha nota pro ProUni e eu comecei a fazer faculdade lá, trabalhando na Atento. Então minha vida sempre foi ir pra faculdade cedinho, porque a aula começava às nove, aí eu saía à uma da Metodista e de São Bernardo, eu ia pra Barra Funda, porque eu trabalhava na Atento, entrava às duas, aí ficava das, entrava às três, ficava das três às dez, às dez eu vinha pra casa.

P/1 – Deixa eu só fazer um parêntese.

R – Eu tô falando tudo bagunçado.

P/1 – Eu não quero te cortar de jeito nenhum, mas eu quero só dar um close nesse comentário seu, digamos assim, dar um zoom nesse comentário seu, você morava aqui, ia pra faculdade, Barra Funda e voltava, descreve um pouco esse trajeto, como era o seu dia nessa época, a batalha nessa época pra se formar trabalhando e as distâncias que você percorria, se você se lembra, mais ou menos, o tempo, descreve um pouco esse dia, que devia ser insano, naquela época.

R – Era, era insano e foi incrível como eu me acostumei com aquilo, eu saía daqui, porque era um horário meio doido, eu começava na Metodista às nove da manhã, aí eu saía daqui, pegava um ônibus e o meu trajeto daqui até São Bernardo dava mais ou menos cinquenta minutos. Eu, às vezes, ia caminhando até a divisa com Diadema, porque tem aquelas coisas loucas de coletivos aqui, quando eu pego um ônibus intermunicipal, eu preciso pagar em dinheiro e aí não dava pra usar o bilhete único. Então, quando eu não tinha dinheiro pra pagar o intermunicipal daqui até o terminal de Diadema, que dá um quilômetro, dois quilômetros daqui até o terminal de Diadema, aí eu ia andando, aí eu ia andando até a divisa com Diadema, aí da divisa com Diadema eu continuava andando, andava esses dois quilômetros, chegava no terminal, aí do terminal eu pegava um ônibus direto pra Metodista, que ficava aí uns quarenta minutos dentro do ônibus, e aí chegava na Metodista. É engraçado, porque eu não tive uma vida universitária tranquila, do tipo, ai, eu venho, eu estudo, aí vou pro bar, eu vou almoçar com os meus amigos ou vou estudar mais tarde ou vou fazer não sei o que, era tudo muito cronometrado pra mim. Então eu saía daqui, caminhava até o Terminal Diadema, pegava o ônibus, chegava lá quase sempre atrasada, aí ia, ficava o período dentro da faculdade estudando, saía de lá uma hora, aí eu já tinha que sair correndo pra pegar o ônibus que ia até a Estação São Judas, da Estação São Judas eu ia até a Barra Funda, da Barra Funda eu ia caminhando pra Atento e saía de lá às dez da noite. E aí saía da Barra Funda, pegava o metrô, vinha pro Jabaquara, do Jabaquara pegava um ônibus e chegava aqui em casa, e foi muito louco, porque eu me acostumei, você se acostuma com isso, quando você só pega ônibus na sua vida, você não estranha pegar ônibus lotado nã nã nã. Mas aí eu comecei a observar que as minhas amigas de faculdade, elas falavam assim: “Nossa, mas você é muito guerreira, nossa, mas como você é forte, não, porque pegar tudo isso de ônibus”, eu olhava pra vida delas e aí foi aí que eu comecei a entender, entender não, sentir as grandes diferenças que existiam entre a minha vida e a vida de meninas que podiam ir pra faculdade e estudar mais tarde, ler um livro à tarde, e o pai levava ou qualquer coisa do tipo. Porque elas se espantavam com o quanto que eu andava, elas se espantavam com o quanto que eu me locomovia, com o fato de eu ir trabalhar, ficar seis horas atendendo ligações de cartão de crédito e ainda sair de lá dez da noite pra chegar aqui na minha casa onze da noite, com dezoito anos, tipo, muito antes dessa idade eu já fazia isso, mas isso pra elas era uma coisa muito nova, e foi aí que eu entendi: “Nossa, se é nova pra elas é porque tem alguém vivendo melhor, que no caso não sou eu” (risos). É isso que você queria?

P/1 – Fantástico. Agora, e a sua vida na faculdade, como é que era fazer Jornalismo? Por que você foi fazer Jornalismo, entre as suas opções, por que estava em Jornalismo?

R – É engraçado isso da escolha do curso, porque tanto eu quanto a minha irmã, a gente não sabia o que a gente queria fazer, e isso da gente não saber o que a gente queria fazer vem muito porque a gente não tem um histórico de pessoas formadas na nossa família, nós somos a primeira geração que se formou. E aí dentro dessa primeira geração de jovens que se formou, meu pai e minha mãe são os primeiros, são os únicos filhos formados, depois que eles colocaram eu e minha irmã na faculdade, eles foram pra faculdade também, minha mãe se formou há mais ou menos um ou dois anos no Serviço Social. E aí foi uma luta eu descobrir o que eu queria fazer, eu falava: “Ai, quero fazer Serviço Social, quero fazer Letras, quero fazer Jornalismo”, mas muito porque eu tentava avaliar o que mais gostava de fazer, assim, eu sempre gostei muito de escrever, eu sempre inventei muita história, eu sempre fui boa em redação, era uma coisa que eu sabia fazer bem. Então eu me agarrei a isso, no que eu queria fazer bem, no que eu sabia fazer bem, mas eu não posso te dizer que eu queria ser jornalista porque eu sabia exatamente o que o jornalista fazia e como ia ser meu cotidiano, eu não sabia, eu descobri isso na faculdade. Depois que eu entrei eu descobri todas as possibilidades que o jornalismo me traria, mas até então eu sabia escrever, eu gostava de História, eu queria muito escrever, então eu vou fazer Jornalismo, porque jornalistas escrevem em jornais, e aí foi na faculdade que eu comecei a descobrir todas as possibilidades que eu tinha, assim. E agora, na minha família, a gente tem uma série de jovens que já estão formados, então daqui pra frente, o meu filho, o filho da minha irmã, os filhos das minhas primas, todas as crianças que estão nascendo agora, elas já têm outras referências, eu já posso falar: “Olha, Jornalismo é legal por isso, por isso e por isso, por aquilo, por aquilo, por aquilo”. O que os meus pais fizeram por nós foi: “Vocês vão fazer faculdade, estudem quais são os cursos que existem por aí e vão nesse monte de feira de profissão” e foi isso que eu fiz, mas eu não escolhi Jornalismo por paixão, porque eu amo, assim como a minha irmã não escolheu fazer Letras – Francês por paixão, porque ela ama, foi porque ela conheceu o francês, ela gostava de francês, então ela foi fazer Francês. Hoje a minha irmã faz outra coisa, não tem nenhuma relação necessária com o que ela estudou, a diferença é que eu fiz Jornalismo e que eu me apaixonei pelo Jornalismo mesmo, aí eu descobri ali possibilidades de transformação e que eu gostava. Quando eu fazia a faculdade, era engraçado que eu amava a aula de História, porque ali eu tinha um campo aberto, diferente da aula de História que eu tinha no colégio, que era uma coisa fechada, limitada, que não dava espaço nenhum pra debate, pra discussão, na faculdade não, eu podia falar, tinha colegas lá que falavam absurdos e aí eu podia debater com eles e dar a minha história. Então eu sempre fui muito na minha sala também esse contraponto, de verbalizar essa questão racial e de verbalizar uma outra visão da sociedade, porque eram oitenta alunos que tinham vivências muito parecidas, classe média, ricos, que moravam numa região de São Paulo, então o recorte também é diferente. Na faculdade, eu acho até que eu aproveitei pouco, eu acho que um pouco por conta disso, porque eu não tinha tempo pra me dedicar tanto pra todas as matérias, era sempre uma luta pra mim, porque eu precisava estudar de madrugada. Então eu não dormia muitas noites, porque eu chegava na minha casa e ia pro computador fazer os trabalhos, na madrugada, ia ler os trabalhos na madrugada, porque eu saía de lá já ia pra trabalhar, então o meu tempo útil e saudável era pouquíssimo, era na madrugada mesmo. Então eu lembro que, nossa, eu fazia uma coisa muito insana, que era pegar um texto, começar a ler, aí quando eu não aguentava mais de sono, eu dava meia hora ou uma hora no celular, dormia esse período, uma hora ou meia hora, acordava, bebia uma água, voltava a ler, aí não aguentava mais de sono, dava uma hora, aí despertava, acordava e voltava a ler. Então a minha vida foi muito assim, eu acho que se eu tivesse tido um tempo de absorção, de dedicação pra educação mais saudável, eu acho que eu teria hoje, de repente, sei lá, adquirido um pouco mais de conhecimento teórico, vamos se dizer assim. Então eu valorizo muito que hoje eu vejo vários jovens, e jovens negros, com esse tempo, porque eu acho que com essas bolsas todas que a gente começou a deslanchar nesses últimos anos, hoje a gente tá conseguindo mudar a estrutura familiar dessas famílias, principalmente as famílias pobres e negras que possibilitam que hoje muitos jovens consigam ter esse tempo saudável pra estudar, que é o que a gente precisa, até mesmo pra gente competir de uma forma de igual pra igual. Eu não tive muito isso, mas eu cresci muito, eu lembro que quando eu cheguei na faculdade, eu tinha erros de português gravíssimos, e aí as professoras falavam: “Você não vai ser jornalista, você não tem como ser jornalista, você tá errando o básico”, e aí toda vez que alguém me desafiava, eu chorava. Eu lembro que a primeira vez que eu fiquei de exame, eu fiquei uma vez só na minha vida também, foi no primeiro semestre, eu fiquei de exame e eu fiquei morrendo de medo, porque eu não podia pegar DP, porque a minha bolsa não permitia, eu podia perder a bolsa. Então eu nunca estudei tanto, eu nunca li tanto e aí eu melhorei e um ano eu comecei a escrever muito melhor, minha interpretação mudou muito, porque eu me dediquei pra aquilo, porque me disseram que eu não ia ser uma jornalista, porque os professores não entendiam a minha condição. Muitos professores só não me davam atenção, não me davam credibilidade, então a minha faculdade, até mesmo com os colegas de classe, foi de me afirmar o tempo todo, eu passei por várias situações do tipo, prova em dupla, as pessoas não queriam fazer dupla comigo. Eu lembro de uma cena que foi na aula de História, era uma das aulas que eu mais gostava, o professor fez uma prova aberta, tinha que escolher um livro pra ler e aí a gente tinha que fazer, eram livros quase sempre políticos, e aí a gente tinha que fazer uma contextualização da história que a gente leu no livro com a questão política contemporânea desse mesmo país. E aí eu lembro que eu e as minhas amigas, a gente leu todo mundo o mesmo livro pra gente facilitar, pra gente ler, o entendimento, nã nã nã, e aí eu falei pra elas: “Gente, eu acho que um caminho legal pra gente fazer essa prova é fazer uma dissertação nesse caminho”, aí elas falaram: “Ai não, Semayat, acho que não tem muito a ver”. Muito das coisas que eu falava pra elas não tinha a ver e eu quase sempre tendia a seguir um pouco o que elas falavam, porque, bom, se elas acharam que não tem a ver, aí eu lembro que nesse dia eu falei: “Não, eu vou fazer o que eu acho que tem que fazer” e eu fui a única menina que tirou dez na sala. Aí quando eu cheguei, o professor me chamou e falou: “Ah, eu queria chamar a única aluna que tirou dez”, aquilo pra mim significou tanto, não foi por conta do dez, foi porque eu tava mostrando pra eles, de alguma forma, que o fato de eu ser uma menina negra, que teve uma educação muito mais defasada do que a deles e tudo mais, não tirava de mim a capacidade de ter uma nota igual ou melhor que a deles. E aí eu lembro que, quando começou essa história de cotas, de bolsa, todo mundo falava: “Ai, mas isso vai aumentar o racismo, aí, não, porque agora a gente vai criar uma tensão racial dentro da universidade, de merecimento”, nã nã nã, a gente merece tanto tá ali dentro, a gente construiu esse país, nossas famílias, minha mãe, a minha avó, o meu avô, eles construíram isso aqui tudo. Eu me emociono, mas é muito forte, porque foram mãos negras que construíram esse país, foram mulheres negras que possibilitaram que mulheres brancas fossem pro mercado de trabalho, porque foram mulheres como a minha mãe que começou a trabalhar como empregada doméstica muito nova, que deu essa liberdade pra essas mulheres, porque minha mãe, minhas tias e várias outras mulheres negras que conheço cuidaram da casa e da vida dessas mulheres, dessas famílias. E aí, quando se pensa em dar o mínimo, que é uma cota racial, quando se pensa em dar o mínimo, que é uma bolsa de estudos, essas pessoas que estão nessa condição de privilégio a vida inteira reclamam e falam que isso não me faz merecedora, é o mínimo, e aí é muito violento isso que a gente vive, porque até hoje existe essa discussão, até hoje existe esse preconceito, e a cota, ou a bolsa, ela nunca aumentou a tensão racial e nem vai fazer isso, porque ela só evidencia um racismo que já existe. Então ter feito faculdade pra mim foi incrível por isso, tinha eu e mais duas meninas negras na minha turma, era uma turma de oitenta pessoas na classe, mais ou menos, então eu tive algumas conquistas que foram essenciais, mas eu não consegui me libertar totalmente na faculdade. Tem muita coisa que eu não consegui combater, tem muita coisa que eu tive que calar, mas eu consegui sair de lá e fazer coisas maravilhosas, e acho que por isso, quando a gente consegue, é muito pesado, porque uma pessoa negra não é vista como indivíduo, ela é vista como um coletivo. Então eu, enquanto uma mulher negra jornalista, quando eu escrevo alguma coisa, eu não tô escrevendo só o que eu acho, eu tenho que considerar todo um contexto histórico racial, porque se eu escrever alguma coisa que não seja coerente ou que seja passível de crítica, não vou criticar só a mim, Semayat, jornalista, vão criticar uma jornalista negra ou uma menina negra, porque a nossa capacidade tá sempre posta à prova. Então ter feito faculdade, que foi o que os meus pais queriam muito que eu e a minha irmã fizéssemos, foi o que começou a trazer pra gente um outro lugar nesse mundo, foi quando a gente começou a ganhar mais, quando a gente saiu da faculdade. E aí ganhar mais numa família negra significa a minha mãe conseguir fazer uma faculdade sem ter bolsa no período integral, porque aí a gente dividia as contas de casa e o meu pai conseguiu pagar pra ela, minha irmã conseguiu pagar pra ela grande parte da faculdade e tudo mais. Mas tem uma outra coisa que eu queria dizer, me perdi, pera, eu chorei, ficou essa palhaçada toda, pera aí (risos).
Um ponto crítico pra toda a pessoa negra, mas principalmente pra mulher, é o cabelo, eu queria muito falar sobre isso, marcou muito a minha história no processo da educação, na escola, porque eu lembro que desde criança a minha mãe nunca quis que eu e a minha irmã alisasse o cabelo. Como ela fez parte desse movimento, como ela criou uma emancipação desde a juventude dela em relação a isso, minha mãe raramente, foram raras, eu não lembro da minha mãe com o cabelo alisado, a minha mãe sempre usou o cabelo dela crespo, e aí ela sempre tentou falar pra mim e pra minha irmã, desde criancinha, que era pra gente não alisar o cabelo. Mas não tem jeito, uma pressão tão grande, você se sente tão fora desse mundo, sabe, umas coisas muito sutis, você quer amarrar seu cabelo com um bico de papagaio, porque a menina de cabelo liso amarra o cabelo com um bico de papagaio, todo mundo acha o máximo, e eu não consigo. Então são coisas tão sutis, são opressões diárias, as pessoas não te acham bonita, você, além de ser criticada por ser negra, você é ofendida por ter o cabelo crespo, ter o cabelo duro, neguinha do saravá e tudo mais. Eu lembro que eu tinha mais ou menos uns dez anos quando a minha mãe permitiu que a gente alisasse o cabelo. Mas nunca foi um alisar no sentido de chapar e tudo mais, minha mãe deixava a minha tia relaxar nosso cabelo um pouquinho pra gente poder abaixar o volume, era isso que a gente falava: “Ai, relaxa o cabelo, que é pra baixar o volume”, e aí foi uma coisa que minha tia criou muito. Porque essa questão do cabelo é tão tênue, já era tênue pra minha mãe e pras minhas tias naquela época, a gente criou uma gama de mulheres cabeleireiras na minha família, lá em Presidente Prudente, eu acho que a gente tem pelo menos quatro ou cinco mulheres cabeleireiras, especializadas em cabelo em cabelo afro, porque era uma forma de você aprender a lidar com o seu cabelo também, e hoje a grande maioria também tá com o cabelo muito mais natural, muito mais se libertando da química. Mas aí eu lembro que a minha irmã decidiu parar de alisar o cabelo, quando ela tinha mais ou menos uns dezesseis anos, e aí eu tinha uns treze, quatorze, e eu imitei, falei: “Ah, se você vai parar, eu também vou parar, vai ficar todo mundo de cabelo black power”. E aí eu lembro que eu tava pra entrar no primeiro ano do colégio, no primeiro ou no segundo ano, por aí, do colégio, e eu falei: “Não, beleza, vou cortar a parte alisada e vou ficar com o meu cabelo natural, eu lembro quando a minha tia cortou meu cabelo, eu fiquei com o meu cabelo black, eu chorei um dia sem parar, porque eu tinha esquecido como é que era o meu cabelo, a textura do meu cabelo, eu não conhecia mais o meu cabelo nem o meu rosto com o meu cabelo natural. E aí pra mim foi um desafio vir pra escola e foi bem na época que a Assolan lançou um diacho que uma propaganda racista que era um monte de bebezinho branco com o cabelo em formato de black power feito de esponja de aço e tinha uma maldita de uma música que todo mundo cantava pra mim, no ônibus nã nã nã e nã nã nã. Mas aí eu descobri uma potência muito grande, porque quando eu cheguei no colégio, todo mundo ficou extremamente assustado, todo mundo olhava pra mim como se, sei lá, tinha umas pessoas que devem ter achado horrível e não tinham coragem de me falar, porque eu sempre fui muito bocuda, e tinha umas outras que falavam: “Nossa, como você faz pra deixar o seu cabelo assim?”, eu falava: “Não, a gente nasceu assim”, “Não, mas como você faz pra fazer esse penteado”, “Não é um penteado, meu cabelo é assim”. Eu acho que, acho não, tenho certeza, a gente anula tanto o nosso cabelo enquanto nós negros mesmo, a gente anula tanto, é uma dor mais forte, é uma dor a mais no seu cotidiano assumir o seu cabelo, você é como se fosse, o nosso corpo é político mesmo. Quando a gente coloca o nosso cabelo crespo, a gente não mostra só que a gente aceita o nosso cabelo, mostra que a gente tá pronta ali pra um debate, quando você aceita o seu cabelo natural, você aceita ser negro, e aceitar ser negro no Brasil é aceitar lutar o tempo todo. E aí foi muito louco, porque, além de eu ter achado que aquelas pessoas... Que eu ia sofrer um racismo muito mais acirrado, eu descobri que não, as pessoas ficaram com medo de mim, eu acho que de tanta força que o meu cabelo passava pras pessoas, e aí outras meninas negras começaram a falar: “Como você faz?”, no segredinho ali e várias outras meninas negras começaram a deixar o seu cabelo natural assim. Então como que a gente precisa de referência, não só de pessoas que se locomovem como qualquer ser vivo, mas na mídia, na televisão, enquanto produtores de cultura e tudo mais, então naquele momento eu virei uma referência pras meninas negras do meu colégio. E aí várias vinham conversar comigo sobre como era difícil deixar a química, como era difícil aceitar as brincadeiras, como era difícil, como era difícil, e eu comecei a criar uma rede com várias meninas ali que começaram depois a se emancipar e aí quando eu fui pra faculdade foi um outro desafio, porque aí era um nível muito mais diferente, um nível diferente do colégio. Na faculdade, eu lembro que a violência era muito mais frequente, então as pessoas que me xingavam ou que faziam algum tipo de brincadeira quando eu passava era muito mais frequente, porque eu acho que é uma idade que a gente tá muito mais ácido e um ambiente que não era, que teoricamente não era meu, então era como se fosse uma intrusa ali, uma menina negra com um cabelo black. Mas foi tudo o que começou a me trazer muito mais repertório e muito mais força, então eu só queria lembrar esse momento da minha vida.

P/1 – É uma história melhor que a outra. E aí você se forma?

R – E aí eu me formei.

P/1 – Me conta como foi o seu primeiro trabalho?

R – Antes, eu estudei grande parte trabalhando na Atento, é uma das principais empresas de telemarketing ainda hoje, eu acho, só que aí eu fiquei dois anos na Atento e eu comecei a trabalhar como operadora de telemarketing na Gol Linhas Aéreas, eu fiz esse trâmite. Eu trabalhei a faculdade inteira como operadora de telemarketing, mudando poucas coisas na Gol, porque aí dentro da Gol eu comecei a galgar outros espaços, aí eu saí da central de atendimento, comecei a trabalhar como assistente administrativa numa outra área. Eu me dava muito bem com os diretores, eu sempre fui muito faladeira, eu sempre falei muito, e aí eu circulava entre todos os espaços ali dentro dessa área em que eu trabalhava, depois que eu saí do telemarketing, e na Gol nunca tinham aberto um processo seletivo pra recrutamento interno pra pessoas pra área de comunicação, e aí eu já tinha falado: “Gente, ó, tô me formando, eu vou começar a sair mais cedo, eu vou faltar algumas vezes porque eu tô fazendo entrevista”. Eu não fiz estágio a faculdade inteira, então todas as horas que eu tive que comprovar e que fazer e tudo mais foi como freelancer, fazendo voluntariado, participando de grupos do movimento negro, fazendo um textinho aqui, fazendo um textinho ali, foi assim, porque eu trabalhava e não tinha muito gás pra fazer mais que isso. Aí eu lembro que abriu uma vaga, eu tava formada há seis meses, fazendo um monte de entrevista pra ver se eu conseguia começar a entrar na área, foi me dando um medo, porque eu não queria me formar e nunca ter trabalhado na minha área, eu comecei a ficar muito frustrada, muito assustada. E aí abriu uma vaga pra comunicação corporativa na Gol, e aí foi muito louco, porque aí o meu gerente e o meu diretor fizeram uma rede, aí eles foram lá falar com o diretor, falou: “Não, olha, tem uma profissional aqui, ela é muito boa, por favor, entrevista ela”, aí eu fui, fui fazendo as entrevistas, passando nas etapas e entrei na comunicação corporativa da Gol. E aí foi muito louco, porque é uma empresa que eu tô até hoje, ela me abraçou, tudo o que eu sei de comunicação corporativa eu aprendi na Gol, eu entrei totalmente crua, e aí foi um espaço que eu comecei a conquistar também, porque eu era a única menina negra na época. E aí eu comecei a perceber algumas coisas de como era importante o lugar que eu tava ocupando ali e de como eu, como uma analista de comunicação, tinha um poder de decisão que eu não tinha experimentado antes, mas que era muito potente, como, por exemplo, definir que a agência de comunicação passasse a ter negros no banco de imagem, porque todas as comunicações que a gente fazia lá dentro precisava fazer uma peça de comunicação pra alguma coisa, era composto por pessoas brancas. E aí foi algumas das coisas que eu fui travando lá, eu levei muita discussão racial pra lá e hoje a comunicação da Gol é uma coisa, assim, outras pessoas negras foram contratadas, e o meu chefe na época atribuiu muito isso a mim, e hoje é natural a gente ver pessoas negras ocupando espaços de destaque nas nossas campanhas internas. Então eu aprendi muito na Gol e foi minha primeira experiência dentro da área de comunicação, só que ainda não era jornalismo pra mim, eu escrevia e tudo mais, cuidava dos veículos de comunicação, mas não era jornalismo. E aí eu me candidatei pra um blog que chamava Blog Mural - isso no finalzinho de 2011 - o Blog Mural é um blog que faz parte da lista de blogs da Folha de São Paulo, mas é um blog totalmente independente do jornal, na verdade, e a ideia, desde o início, era criar uma rede de correspondentes jornalistas da periferia e trazer pra dentro da Folha de São Paulo e desse blog histórias da periferia que normalmente não são contadas. Porque a periferia, normalmente, ela só aparece no noticiário quando morre alguém, quando alguém foi assaltado e tudo mais, e aí a proposta desse blog era: “Cadê as histórias positivas dessas regiões e cadê as histórias pra problematizar como vivem as pessoas que moram na periferia hoje?”. E aí eu participei do processo seletivo, passei, e aí foi quando eu comecei a ter uma experiência mais jornalista de escrever, de apurar, de andar pelo meu bairro, de procurar pautas aqui no meu bairro, de começar a pautar um pouco a questão racial dentro desse blog também. E eu conheci uma série de jornalista que, como eu, também estavam à margem das redações e tudo mais, porque os processos pra entrar numa redação, eu lembro que eu tentei fazer o Curso Abril, aí não deu, não passei, aí eu tentei fazer o estágio da Globo, quando eu tava quase me formando, aí não deu, eu não passei, eu fiquei barrada numa parte lá. Aí eu fui fazer um processo seletivo pra entrar na redação do R7, eu achei uma coisa tão opressora, porque durante o processo de entrevista, a mulher que tava entrevistando a gente gritava com os jornalistas o tempo todo: “Tá errado, seu burro, não sei o que, não sei o que lá”, eu falei: “Ah, não, isso daqui eu não quero pra mim, não, eu quero trabalhar com outro jornalismo”. Eu também já sabia que eu não queria ser uma jornalista que ficava reproduzindo notícias que a gente dá todos os anos, numa lógica que não me satisfazia, e aí o Blog Mural me trouxe essa liberdade, porque eu queria escrever do que eu quisesse, eu podia escrever sobre o Jardim Miriam, sobre a Cidade Ademar, que é onde eu moro. Mudou meu olhar sobre o meu bairro, porque eu fiquei muito tempo nessa de trabalhar e estudar, eu não vivia o meu bairro, até hoje eu acho que eu vivo pouco, porque a gente não consegue estar aqui, a periferia, ela é por origem um bairro dormitório, mas aí eu comecei a olhar um pouco mais o que que faltava aqui, faltava centro cultural, até hoje não tem, da dificuldade que a gente tem de conseguir um cinema, porque pra ir pro cinema você tem que ir pro shopping, de como o transporte pra gente é necessário e de como é ruim um ônibus não circular até mais tarde dentro da periferia, porque aí limita o seu horário de poder ir pra uma festa e voltar, por exemplo. Então no Blog Mural eu comecei a apurar esse olhar, e aí em 2012, a editora na época convidou cinco meninas que faziam parte dessa rede pra fazer, aí ela convidou a gente, falou assim: “Vocês já pensaram em escrever sobre o que é ser uma mulher da periferia?”, aí eu lembro que a gente falou: “Ah, não”, porque a gente nunca tinha pensado nisso. Aí ela falou: “Ah, eu queria convidar vocês pra escrever um texto sobre o que é ser mulher da periferia, pra gente publicar no blog no dia da mulher”, em 2012, e eu lembro que foi um exercício, a gente sentou e falou: “Cara, mas o que eu tenho de diferente de uma mulher que não mora na periferia?”, claro, tudo pra gente é muito mais difícil, mas é muito difícil a gente colocar no papel o que a gente vive todos os dias, o que pra gente é rotina, o que pra gente faz parte. E aí a gente começou a desdobrar, foi um artigo meio crônica, de como é ir pra faculdade, trabalhar e sair daqui, pegar o ônibus lotado, de como nossos trajetos são longos, de como as pessoas estereotipam o que a gente é, porque só porque eu moro na periferia e eu sou negra eu preciso gostar de samba, eu preciso gostar de funk, eu preciso sair numa escola de samba todos os anos, como morar aqui determina que eu sou uma vencedora na vida, porque é tão difícil sair da periferia pra conseguir entrar numa faculdade, como é, no happy hour do seu trabalho todo mundo fica preocupado, porque acha que o seu bairro é o mais violento e aí ficam preocupados pra você voltar pra casa, mas não querem te trazer até aqui, porque também têm medo. E a gente começou a refletir de tudo isso, das nossas mães, de como as nossas mães lutaram pra gente poder ir pra faculdade, como a maioria delas, ou todas elas no nosso caso, eram empregadas domésticas e tudo mais, e a gente colocou tudo isso no papel e o artigo se chamou: “Nós, mulheres da periferia”. Quando a editora recebeu o texto, ela falou: “Vou tentar emplacar no jornal” e acabou por sair no Tendências e Debates da Folha de São Paulo no dia sete, um dia antes do dia da mulher, e foi uma repercussão estrondosa, porque aí muitas mulheres compartilhavam o nosso texto e como a gente assinou coletivamente, embaixo do texto tava o meu nome, o nome das outras quatro meninas que fizeram parte desse processo, aí as meninas compartilhavam e assinavam com o nome delas, como se elas também tivessem vivido aquilo. E aí, como se elas tivessem vivido não, porque elas vivem aquilo, então elas começaram a falar: “Nossa, até que enfim eu me senti representada na Folha de São Paulo, nossa, a primeira vez que eu vejo a Folha de São Paulo fazendo um texto sobre isso” e nã nã nã e elas começaram a elogiar muito o texto, foi um texto super bem embasado, além de vivência, a gente trouxe entrevista, trouxe dados estatísticos e tudo mais. E aí essa editora na época foi a nossa mentora, falou: “Gente, olha a potência do que vocês têm, a vivência de vocês não tá sendo contada, ninguém sabe o que é ser uma mulher da periferia. O que vocês vão fazer com isso?” e a gente ficou muito mexida na época, mas a gente não sabia o que fazer, se a gente fazia um blog, se a gente fazia um livro, se a gente, sei lá. A gente ficou, passou 2012, 2013, a gente começou a se… Eu e mais sete meninas, não necessariamente todas tinham escrito o artigo, mas a gente começou a se encontrar pra pensar o que a gente podia fazer, a gente decidiu: “Bom, já que não tem um site especializado e focado em pensar a questão de gênero com foco na mulher, na questão de raça, na questão de classe e do território que a gente habita, eu acho que tá aí um segmento bacana pra gente ocupar”. E quando a gente escreveu um artigo que saiu na Folha, que se chamava “Nós, mulheres da periferia”, as feministas começaram a falar que a gente tinha inventado o feminismo na periferia e aí todo mundo queria que a gente desse palestra sobre feminismo na periferia, e a gente nem se entendia como feminista, porque pra gente ser feminista era uma coisa distante, era uma coisa que eu tinha que ler trinta mulheres, que eu tinha que ter lido a Frida, não sei quem, a gente nunca tinha lido todas essas mulheres. E foi aí que a gente desmistificou também, estudando em grupo e tudo mais, o que a gente queria, o que a gente acreditava que era o feminismo, foi aí que a gente descobriu que o feminismo na verdade nada mais é do que você ser uma mulher disposta a enfrentar o mundo machista todos os dias, respeitando o que você quer, o que você é, até onde você quer chegar e tudo o que você quer enfrentar. A gente falou: “Não, a gente é feminista”, não necessariamente com todo esse embasamento teórico, mas o feminismo na periferia é esse, é minha mãe, é lutar pra construir a casa dela e conseguir construir, é a minha avó que foi lavadeira a vida inteira pra ajudar o meu avô a sustentar a casa, e a casa era do jeito dela, porque era ela que organizava, porque ela que educou os filhos, isso é ser feminista. Então o que é ser feminista na periferia? É dar um espaço pra gente contar as histórias dessas mulheres, é dar um espaço pra que elas sejam colocadas de uma outra forma, não só numa situação de fragilidade ou na situação da morte, que é quando a mulher negra é colocada na mídia, porque normalmente as histórias dessas mulheres só aparecem quando elas já foram vítimas das violências todas e elas já estão mortas, na maioria das vezes. “Marido mata mulher”, “Marido mata mulher”, todos os dias a gente tem notícia sobre isso, todo dia, se você jogar no Google, todo dia vai ter uma mulher morta, no Nordeste, aqui no Jardim Miriam já tiveram várias histórias, todos os dias, de mulheres assassinadas, e são as mulheres que têm menos capacidade, capacidade não, possibilidade de ter a sua história contada, mesmo numa condição de violência, e as mulheres têm menos possibilidade e crença numa segurança de verdade. Porque aqui onde eu moro, quando eu tô subindo a minha rua, a polícia passa e mexe comigo, como é que eu vou acreditar que eu vou lá na delegacia falar que o meu companheiro me bateu e que eu vou ser protegida de alguma forma? Isso acontece pra todas essas mulheres, imagina uma mulher que já tá à margem a vida toda, que mora num lugar onde a rua não é iluminada, que mora num lugar onde você tem que subir a sua rua correndo depois das dez, onze da noite. E não é porque a periferia é lugar muito mais violento pra mulher, é porque aqui a segurança não existe pra quase ninguém, porque a polícia chega e mata o seu namorado, mata alguém no bar aí sentado. Então a gente precisava falar da vida dessas mulheres, não só do processo de violência que elas passam todos os dias, que nós passamos, mas também de como a gente trabalha, de como tá difícil ser uma empregada doméstica e não ter todos os seus direitos pagos, como que a gente vai fazer pra gente resolver isso, de tudo que a gente cria aqui dentro, de como a mulher da periferia foi responsável por construir os bairros.
Tem aqui a Dona Luzia, eu fiz uma entrevista com ela, até hoje eu não escrevi o diacho dessa entrevista, tenho que sentar e escrever, mas ela conta de quando ela chegou aqui, ela chegou num bairro que tem aqui em cima, chama Santa Terezinha, ela fala que era só mato e que aí as mulheres iam lá e tiravam o mato, construíam a casa e tudo mais. São essas mulheres, as mulheres que depois tinham que sair daqui e ir trabalhar na casa da patroa, pra patroa poder trabalhar, e aí são feminismos diferentes, não que não é uma luta que seja conjunta, é uma luta conjunta, quando a gente pensa na luta pela igualdade de gênero e tudo que a questão do gênero engloba, mas as mulheres, elas precisam se emancipar, todas. Mas nós, mulheres negras, periféricas, a gente precisa ainda chegar aonde a mulher branca está, porque a gente ainda não chegou, a mulher branca, rica, ou sei lá o que, a gente ainda não chegou lá, a gente ainda cuida dos filhos deles, delas, pra que elas possam trabalhar, e a gente não recebe bem por isso. E aí a gente nasceu em 2014 oficialmente, num site, e foi super bem aceito e até hoje a gente trabalha nesse sentido, de rodar um conteúdo de qualidade, que seja um texto com menos estereótipos possíveis, ouvir a história dessas mulheres, contar a história dessas mulheres na essência, com respeito, com dignidade, que seja um lugar honesto, onde a gente possa construir ali um espelho, não só de coisas que a gente precisa mudar e revolucionar, mas de como essas mulheres são importantes. Quando a gente para pra entrevistar uma mulher, normalmente elas falam assim: “Mas por que você quer ouvir minha história?”, porque elas não acham que elas têm alguma coisa de relevante pra contar, a gente fala: “Não, a gente acha que é super relevante tudo o que você viveu, tudo o que você construiu até aqui, conta pra gente”. E aí dentro dessas entrevistas, elas vêm na gente amigas, porque a gente normalmente mora em lugares como o delas, então a gente já tem coisas semelhantes pra falar: “Ah, você passou por isso, ah, eu também”, e aí elas já começam a desabafar e já contam das violências que elas viveram, contam das alegrias que elas viveram. E a gente acaba ali criando um laço muito além da entrevista, e a felicidade que elas têm quando elas vêm o nome delas, a história delas na internet, circulando, porque aí a filha vai lá e marca: “Ai, olha mãe, que orgulho”. Ou quando a gente coloca uma notícia falando dos serviços, de onde uma mulher que é empregada doméstica precisa, ela pode encontrar ajuda pra denunciar um patrão ou ver todos os direitos que ela tem, e aí foi um dia que a gente fez um post sobre isso, e a gente ficou super feliz, porque as filhas ficavam marcando as mães: “Mãe, lê, mãe, você já foi ver? Mãe, você já não sei o quê?”. Então é isso que a gente queria ter construído, porque a gente tá conseguindo construir, assim, aí em 2014 foi um ano de nascimento, de parto pra gente, a gente nasceu enquanto site, o ano passado, e a gente mantém o site que é o nosso carro chefe, mas a gente ganhou um financiamento da Secretaria de Cultura de São Paulo e a gente conseguiu visitar seis bairros diferentes e fazer uma oficina com mulheres de diferentes idades, a gente trabalhou com mulheres de dezessete até 93 anos. A gente refletiu como elas se veem na mídia, se elas achavam que as histórias delas estavam sendo contadas, o que elas achavam do entretenimento, o que elas achavam, como elas eram representadas, e a gente discutiu sobre tudo isso, a gente fez oficinas de fotografia com elas, a gente fez fotografia de tela de pintura com elas, de autorretrato. E no final do ano passado a gente conseguiu um trabalho, entregar um trabalho que foi muito lindo, que mudou a nossas vidas, que se chamou: “Quem somos (Por nós)”, que foi uma exposição multimídia que a gente levou as telas que elas pintaram, as fotos que elas tiraram e as entrevistas que a gente fez com algumas mulheres que a gente escolheu, que tinham mais desenvoltura. Foram onze entrevistas profundas que a gente fez em vídeo, viraram mini documentários, e a gente fez uma exposição com tudo isso e foi uma exposição que a gente assinou com o nome de mais de cem mulheres, a gente colocou todas elas como coautoras, e aí foi o ano passado o lançamento, em novembro, no Centro Cultural da Juventude, e foi a coisa mais linda ver essas mulheres circulando lá e se sentirem super orgulhosas do que elas tinham construído.

P/1 – Nesse período todo, desde que você jornalisticamente passou a enxergar, a pesquisar, a apurar a realidade da periferia, da mulher da periferia, seja lá no começo, com o blog na Folha ou, principalmente, agora com o site, porque eu imagino que deve ter uma frequência, uma assiduidade maior, conta pra gente quais personagens, histórias mais te marcaram.

R – No blog, eu lembro que uma das coisas que mais me deu felicidade, porque como eu sempre fui muito envolvida com o movimento negro, então eu fazia faculdade, trabalhava e aí produzia eventos no meio do caminho, às vezes eu conhecia tantas pessoas, eu queria arrumar um lugar pra poder colocar aquelas histórias. Aí quando eu entrei no blog, eu lembro que um dos primeiros textos que eu fiz foi sobre um coletivo de teatro, que se chama Companhia Os Crespos, e eu pude entrevista-los e colocar esse, a história deles lá pela primeira vez. E foi incrível pra mim conhecer o trabalho d’Os Crespos na época, porque são dois atores principais que fazem parte dessa companhia, vieram das periferias de Santos e da Baixada Santista e tudo mais, vieram pra cá e começaram a consolidar um trabalho muito importante sobre a questão racial. Então todas as dramaturgias que eles fazem têm esse recorte racial e tudo mais e eu nunca tinha frequentado tanto o teatro assim, e aí depois eu comecei a frequentar muito e eu lembro que uma das coisas que me marcou muito foi a peça deles que falava sobre afetividade negra, mostra um pouco da dificuldade que a mulher negra tem de conseguir relações sólidas, não só pelo racismo que nos permeia e tudo mais, mas por esse arquétipo que a gente acabou construindo de ser uma mulher guerreira, que vai lá e faz tudo sozinha, vai lá e decide tudo sozinha, e isso acaba limitando um pouco a gente quando a gente vai falar de afetividade, e todas as dificuldades de afetividade que um homem negro tem também. E aí quando eu pude entrevistá-los, pra mim foi uma inspiração muito grande, porque eles já estavam fazendo um trabalho super fundamental pra toda a comunidade e pra todo mundo no Brasil, enfim, mas pra mim foi muito importante sentar e ouvir de onde eles tinham vindo, de como tinha sido e tudo mais, escrever isso pra mim foi muito gostoso. Depois tem um grupo de mulheres que eu fiz a entrevista com elas em 2011 e acabei voltando a trabalhar com elas o ano passado, são mulheres que fazem parte de um coletivo que se chama Manifesto Crespo. Esse coletivo é um coletivo de mulheres negras da periferia de São Paulo e elas vão nas escolas, em outras associações, ou trabalham nos seus próprios bairros, mostrando pras mulheres negras como elas fazem pra trançar o cabelo e se libertar da química. Porque a trança, pra mulher negra, além de ser um outro tipo, uma outra forma que a gente pode usar nosso cabelo e tudo mais, no processo de transição, que a gente fala de transição entre usar meu cabelo quimicado, alisado, e voltar meu cabelo natural, a trança ajuda muito, porque um cabelo crespo, quando ele tá totalmente natural, o meu cabelo, eu tô de trança hoje, mas quando o meu cabelo tá totalmente natural e quando eu usava química, a textura dele era totalmente diferente. Então essas meninas ensinavam as mulheres, ensinam até hoje, a trançar os seus cabelos pra poder fazer essa transição e voltar a usar o seu cabelo natural de novo, então foi uma outra entrevista que me fez muito feliz na época. O que mais?

P/1 – No período agora do site.

R – No site do “Nós, mulheres da periferia”, eu tô com umas histórias das mulheres que a gente trabalhou o ano passado muito vivas na minha cabeça, mas pera que tem outras. A gente lançou o site com uma reportagem especial sobre moradia e aí a gente tentou traçar várias mulheres, várias personagens com experiências diferentes em moradia, então a gente entrevistou mulheres que faziam parte de algumas ocupações, e aí essa foi uma das mulheres que me marcou muito, ela chamava Luciane, ela não foi uma das entrevistadas da ocupação, mas quando a gente fez o evento de lançamento pro site, a gente convidou uma das mulheres da ocupação pra falar no nosso lançamento, a gente fez um debate, mas o debate não era composto por nós, criadoras, foi composto pelas primeiras personagens que a gente identificou, e a Luciane foi uma delas. E aí ela trouxe a experiência dela como moradora de uma ocupação e tem uma fala dela que me marcou muito, eu nunca mais esqueci, ela disse: “Todo mundo fala que quando você vai pra uma ocupação é porque você tá invadindo, é porque você tá tomando uma coisa que não é sua, é porque você é desocupada, é porque você é um vagabundo, mas eu fui pra uma ocupação porque com o dinheiro que eu pagava no aluguel, agora, eu posso dar uma alimentação melhor pros meus filhos”. Então ela pagava seisentos reais de aluguel, aí ela não tinha mais dinheiro pra pagar aluguel, porque ela comia mal, o filho dela comia mal, ela foi pra uma ocupação, ocupar um lugar que não tava sendo utilizado pra nada, com uma série de outras pessoas, ocuparam o espaço. E nesse período que ela não precisou mais pagar o aluguel, o que mais deixou ela feliz foi que com o dinheiro que ela não pagava o aluguel ela conseguia melhorar os produtos que ela comprava pra alimentação do filho dela, e aí eu não esqueço disso, dessa fala dessa mulher. Depois dela tem uma outra mulher que se chama Luciane também, foi uma mulher da Zona Leste, professora, resolveu escrever um livro sobre a ausência paterna, ela é uma mãe autônoma que a gente tá adotando essa palavra agora pra substituir mãe solteira, o marido dela nunca quis conhecer a filha e tudo mais, e ela fez um livro pra falar desse aborto paterno, porque a gente fala muito do aborto das mulheres, mas tem uma série de homens que não querem, não são pais porque não querem e ninguém questiona isso, e aí ela fez um livro que falava sobre como foi esse processo desse abandono, de como ela lidou com isso, de como ela lidou com a filha dela e tudo mais. Ela fez um livro, que tá sempre super vendido hoje, inclusive, e a gente entrevistou ela o ano passado, no comecinho do ano passado, também foi uma história que me marcou bastante. Depois tem uma outra mulher, eu esqueci o nome agora, mas ela era uma doula e ela faz partos de mulheres nas periferias, e aí foi uma história bacana, porque nem fui eu que fiz essa entrevista, foi uma parceira, mas ela faz partos na periferia. E aí a gente foi num evento do Museu da Pessoa, eu contei a história dela e aí tinha uma comunicadora lá que faz parte da Revista Sou Você, Sou Mais Você, eu acho, e aí ela colocou uma capa da revista com essa mulher. Eu lembro que essa mulher substitui a foto de capa dela do perfil pela capa da revista, e pra gente foi muito simbólico, porque o que a gente sempre quis era contar as histórias positivas dessas mulheres e colocá las numa outra condição. Então quando ela se tornou capa de revista, pra gente foi muito importante porque ela se tornou capa de revista como a mulher da periferia que faz partos, ela era um sujeito ali, ela tinha coisas pra contar, ela tinha coisa pra mostrar, ela foi colocada como um sujeito, isso pra gente foi ótimo. Aí, tem tantas, eu vou ficar aqui falando um monte (risos).

P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, você falou uma coisa agora há pouco que foi marcante, você falando que quando começou com esse trabalho, foi quando você começou a enxergar o seu bairro, e é o bairro que você viveu, se não toda, quase toda a sua vida, pelo o que eu entendi.

R – Toda a vida.

P/1 – Toda a sua vida, apresenta esse bairro pra gente, que bairro é esse? Você já falou muito dele ao longo do seu discurso, mas agora faça, vamos dizer assim, uma apresentação formal pra gente, por favor, descreva o seu bairro pra mim.

R – Ai, meu Deus do Céu (risos), bom, aqui a gente tá num complexo, o meu bairro pode se chamar Jardim Miriam como Americanópolis, mas tem uma coisa muito louca que eu acho em São Paulo que as divisões dos bairros são muito tênues, então normalmente eu falo: “Ah, eu moro no Jardim Miriam, complexo Cidade Ademar”. Cidade Ademar é o distrito e aqui na Cidade Ademar a gente tem vários bairros, como o Jardim Miriam, Americanópolis, Vila Clara, Missionária, Pedreira, Santa Terezinha, Vila Bacuri, a gente tem um monte de bairro, é um grudado no outro. E aí o que eu posso mais falar do meu bairro? Pera, aqui, por exemplo, a gente tem algumas diferenças, pra falar um pouco de como a gente se classifica aqui, eu lembro que quando eu conversava com uma vizinha minha que mora aqui na frente, a gente tava fazendo cursinho junto e ela falava que onde a gente mora, aqui, é como se fosse a classe B do bairro, porque se você subir, as condições são mais precárias ainda. Então quanto mais você sobe, as casas vão ficando mais simples, o acesso ao ônibus é muito mais difícil, então como eu moro numa via aqui que tá muito mais próxima da avenida do que o pessoal lá de cima, há, aqui dentro da nossa periferia, aquela visão de que eu estou numa condição melhor do que muitas outras pessoas. Mas aqui é um bairro de ausências, tem muitas pessoas morando no mesmo espaço e a gente tem poucas escolas, a gente não tem um centro cultural de referência aqui pra que as pessoas possam ir visitar, a gente tem poucos lugares de convivência,, um lugar pra você ir e conviver, sei lá, com os seus amigos e tudo mais. Eu acho que não só o meu bairro, mas vários bairros de periferia, a sua casa acaba virando um grande polo, então é na sua casa que você recebe os seus amigos, principalmente quando se fala de mulher, porque eu acho que aqui a gente tem uma série de bares, tudo o que a gente tem na periferia de mais, de excesso, falta um monte de coisa, mas a gente tem de excesso igreja e bar, só que os bares são dominados pelos homens. Tem algumas amigas... Eu tava até conversando com uma amiga minha que mora no Jardim Ibirapuera, é Zona Sul também, mas é do outro lado, é pro lado de Campo Limpo e tudo mais, ela fala que ela super frequenta bar no bairro dela. Aqui eu nunca tive muito essa experiência de frequentar bar, porque normalmente eles são sempre dominados por homens. Então onde a gente, as mulheres, normalmente param pra conversar é no portão mesmo, aí senta no portão da sua casa, chama as suas amigas, você fica ali bebendo uma cerveja e tudo mais, você chama pra entrar e tudo mais. Mas aqui tem algumas coisas interessantes, a gente tá pertinho do Jabaquara, é a estação de metrô mais próxima pra gente, é uma estação superlotada, inclusive, se você for sete da manhã no Jabaquara é uma fila que chega na porta do metrô, porque como é a estação mais próxima desse complexo todo de bairro, é sempre muito lotada nesses horários de pico. E o Jabaquara é um dos bairros que a gente tem, é um centro cultural que a gente tem, o mais perto é no Jabaquara, não circula muita gente, mas é onde a gente tinha uma antiga fazenda, que, diz a lenda, tinha um grupo, um encontro de abolicionistas que faziam algumas reuniões ali e que recebiam alguns negros que conseguiam fugir. E aí a gente tem uma via aqui, fica do outro lado da avenida, chama Caminho do Mar, Estrada do Mar, e aí essa via dizem que era um dos caminhos que os escravos percorriam pra chegar no Quilombo do Jabaquara. Era um quilombo que a gente tinha já lá perto da praia. Então a gente tem essas histórias todas aqui, então onde eu moro é como se fosse um grande quilombo, a concentração de negros aqui é muito grande, tem essa história e tudo mais. E o que mais eu posso falar do Jardim Miriam? Deixa eu ver.

P/1 – O que transformou aqui desde a sua infância até hoje?

R – Mudou muita coisa, nossa, muita coisa, eu pego pela minha casa mesmo, o meu portão antes era de madeirite, todo de madeirite, a gente não tinha as, como é o nome desse negócio? Não tinha piso no quintal, era de terra batida e de cimento, então a minha casa mesmo, minha mãe fala que é uma casa que a gente ainda não acabou, que ela tá (risos), ainda falta fazer um monte de coisa, ainda falta rebocar e tudo mais, mas a evolução da minha casa mostra um pouco como é a evolução de todo o meu bairro. Quando eu era criança e quando eu era jovem, na minha adolescência, todas as casas eram muito mais simples, todas as casas, todas, todos os portões eram mais simples, as vias eram mais simples, a iluminação era muito pior, as coisas foram melhorando de pouquinho em pouquinho, mas eu acho que, principalmente, os moradores foram conquistando outras coisas. Na minha casa, por exemplo, a gente conseguiu todo mundo se formar, hoje a minha família inteira é formada, a minha mãe se formou há dois anos, meu pai se formou, minha irmã se formou, eu me formei, então a nossa condição melhorou bastante, a gente começa a colocar isso na nossa casa, mas ainda falta um monte de coisa que a gente quer fazer. Mas eu acho que a evolução do meu bairro eu simbolizo muito pelo o que foi a minha casa, a gente tinha um portão de madeirite, aí minha irmã odiava o portão de madeirite, aí um dia ela saiu de uma empresa, pegou todo o dinheiro da empresa e falou: “Ah, eu vou comprar um portão”, aí minha mãe foi lá e automatizou o portão pra gente já significou muito. Então eu acho o Jardim Miriam e todas as periferias são bairros que estão em evolução constante, e que são cuidados e zelados pelos próprios moradores, é aqui que a gente consegue construir o nosso jeito melhor de viver, começando pela nossa casa. Mas eu acho que a gente tá num, aqui a gente tá na Zona Sul e aqui a gente tem uma articulação cultural grande feita pelos moradores, a gente tem uma história de sarau aqui, é o Sarau do Ademar, mas a Zona Sul é uma potência muito forte na periferia em relação à articulação cultural. Lá do lado do Capão Redondo, do Campo Limpo, é onde a gente tem os maiores saraus, que cresceram nos últimos anos, tem uma das articulações mais potentes em termos de economia solidária, é o pessoal da Solano Trindade. Então as periferias começaram a produzir tudo aquilo que ninguém nunca olhava pra gente, ninguém nunca dava, então a gente tem a nossa própria cultura hoje, a gente tem os nossos próprios livros, porque aí começaram a nascer um monte de escritores. Então hoje a gente tem uma literatura periférica, a gente tem sessões de cinema, que a gente começou, que o pessoal começou a fazer nas suas próprias casas e tudo mais, tudo isso pra mim foi referência quando eu comecei a me tornar jornalista, eu comecei a ficar muito atenta a tudo isso. E acho que eu ainda fico muito menos tempo aqui do que eu gostaria, eu podia fazer muito mais coisas, mas eu acho legal observar essa potência que a gente tem na periferia de transformar o nosso ambiente, de transformar o nosso território num território melhor pra gente se viver, e que tenha menos ausências, que tenha mais coisas. E aí eu acho que nos últimos anos a gente tem essa potência muito grande de coisas que decidiram se produzir por nós mesmos, e aí é engraçado, eu tive uma conversa com o meu pai aqui esses dias, ele: “Ah, eu não gosto disso de falar cultura periférica, porque parece que a gente tá sempre à margem”. Realmente pode ter essa conotação e pode ser que num momento a gente nem use mais, mas quando a gente fala em cultura periférica, em mídia periférica, a gente fala: “Ah, eu sou um coletivo de comunicação da periferia”, é importante frisar, porque pra gente é uma conquista isso. A gente tá mostrando que a gente conseguiu fazer isso por nós mesmos, porque a gente tá conseguindo fazer isso por nós mesmos, a nossa cultura, a nossa literatura, os nossos veículos de comunicação, como a gente conseguiu apontar nossas histórias e colocar a periferia hoje num outro lugar.

P/1 – Meu Deus, que entrevista! Me fala da sua relação com São Paulo de um modo geral, a gente ficou muito focado aqui, mas São Paulo de um modo geral, independente de ser São Paulo mais central ou mais periférica. Como você se relaciona com a sua cidade, de um modo geral, hoje em dia?

R – Cara, eu amo São Paulo. Quando eu comecei a conhecer um pouco mais, eu sempre fui obrigada a me locomover pra trabalhar, pra estudar e tudo mais, mas teve um momento específico da minha vida que eu acho que foi quando eu comecei a sair da faculdade, eu quis começar a conhecer São Paulo de um jeito mais prazeroso, assim, sabe: “Onde eu vou?”. Quando eu era mais novinha, que eu tinha uns quinze, dezesseis anos, minha irmã sempre foi minha referência, ela sempre me levou pros lugares, então eu sempre fui muito de ir pra baile black lá no Rio Pequeno, lá não sei aonde, minha irmã sempre foi muito comigo, e aí eu sempre saí bastante, mas sempre com a minha irmã. Aí depois eu comecei a sair um pouco mais sozinha e a minha relação com a cidade nunca se desvencilha desse lance racial também, porque eu e os lugares aonde eu ia eram os lugares onde tinham a maior concentração de negros, era no baile black, era os encontros pra discutir, que era em tudo isso, tudo mais. Mas eu acho que teve um momento especial, é um pouco parecido, eu não lembro a época certinho, se eu tava na faculdade ainda, se eu tava saindo, mas teve um dia muito emblemático, foi quando eu fui na virada cultural, eu sempre fui em todas as viradas culturais, desde que começou esse paranauê eu ia na virada cultural, e aí eu fui no show dos Racionais.

P/1 – Aquele.

R – Aquele fatídico, e aí eu lembro que a minha mãe ficou louca aqui (risos), eu falei: “Ó, tá acontecendo tal coisa, mas tá tudo bem”, e aí eu achei o máximo eu tá lá e ver, porque eu tava bem do lado de onde começou a discussão, começou o desentendimento com os policiais, eu vi a postura deles e aí eles começaram a jogar bomba, eu tava no meio daquele negócio e eu achei incrível tá ali. E aí eu falei: “Nossa, a gente precisa ocupar a cidade mesmo, porque eu acho que eles não querem muito que a gente esteja em vários lugares”, e aí eu comecei a circular muito mais, eu comecei a sair muito mais.
Eu tinha um problema muito grande com a Vila Madalena, porque sempre foi um lugar extremamente racista e eu lembro que quando eu era mais novinha, eu usava o meu cabelo black power, eu ia nos sambas na Vila Madalena e as pessoas me ofendiam, me xingavam, me olhavam feio. Eu falava: “Como essas pessoas podem abrir um lugar e ganhar dinheiro com samba e ser racista?”, é uma coisa que eu nunca entendi na minha vida. Aí teve um momento da minha vida que eu falei: “Não, eu vou, eu vou na Vila Madalena, eu vou entrar nessa loja, eu posso pagar, eu vou fazer isso, eu vou comer nesse restaurante, eu vou fazer não sei o que lá, eu vou no japonês, eu vou não sei aonde, eu vou no Outback, eu vou, vou, vou, vou, vou e dane-se”. E aí eu acho que a minha relação começou a mudar aí também, de como a gente enfrenta o racismo de uma forma mais: “Eu vou tá aqui, o meu corpo pra você significa uma resistência, lide com isso, porque agora a gente vai começar a tá em todos os lugares e lide com isso”, porque eu acho que é um pouco quando a gente perde o medo desse enfrentamento e começa a se apropriar da cidade de um outro jeito. Então eu amo São Paulo, eu amo circular, minha mãe fala que eu tenho rodinha no pé, porque todos os dias eu saio pra trabalhar de manhã e chego muito mais tarde aqui, porque eu sempre vou trabalhar, aí vou pra uma reunião ou vou num samba ou vou encontrar uma amiga ou vou no bar ou vou… Tô sempre fazendo alguma outra coisa. E aí eu fico sempre observando, a Vila Madalena pra mim é um ponto que eu preciso observar, porque quando eu tô na Vila Madalena, eu faço terapia lá todas as sextas-feiras, e aí eu falo: “Nossa”, sei lá, nove da noite, dez da noite, você tá circulando na Vila Madalena, aí tem uma tiazinha passeando com o cachorro, aí tá todo mundo num bar bebendo uma tranquilo, homens e mulheres, aí você quer comer alguma coisa, tem a padaria, aí se você não quiser nessa padaria, tem outra padaria, aí tem... Que bairro tem isso? Por que eu não tenho isso no Jardim Miriam? Por que aqui no Jardim Miriam eu não tenho duas ou três opções de padaria legal pra eu comer? Por que aqui no Jardim Miriam eu não tenho um bar bacana pra eu poder ir lá com a minhas amigas, sentar e beber? Deve ter, aí é um problema meu, porque eu tenho que ir lá, sentar e me apropriar desse lugar, aí é um bloqueio meu, que eu de repente tenho que romper. Mas por que a gente não tem opções de lazer aqui dentro? Por que aqui no Jardim Miriam eu não consigo ter essa circulação que as pessoas têm na Vila Madalena? É uma coisa que eu penso muito.

P/1 – Pra quem não sabe o episódio do Racionais, você falou, porque a gente sabe, mas pra entrevista, conta um pouquinho o que aconteceu naquele episódio da virada cultural.

R – Aquele dia, nossa, que dia da hora, eu adorei aquele show, gente! Eu tava super feliz, porque eu sempre gostei de rap e eu sempre amei Racionais, como qualquer criatura que goste de rap, e eu tava, ele tava cantando uma música que eu acho que é... Como é que é? É 157, que fala um pouco da polícia e tudo mais, do cara, o jovenzinho que se envolve com o crime, tal, e aí tem falas na música que afrontam a polícia e é um momento que a gente tá lá, que a gente fala: “Ah, não sei o que lá”, a gente coloca mais força. Tinha um monte de policial lá, porque coincidentemente tinha um monte, acho que todos os policiais da virada cultural estava nesse show, nessa hora, e era um show que já tinha atrasado muito, começou super tarde, acho que começou quatro e meia da manhã, mais ou menos, ou cinco da manhã, e tudo mais. E aí tinha um grupo de meninos que estavam cantando essa música com muito mais força, eu acho que alguns estavam em cima de uma banca de jornal, se eu não me engano, do nada, eu não me lembro muito bem porquê ou de onde surgiu, eu só sei que um policial jogou uma bomba no meio das pessoas, no meio do público, de efeito, esses negócios que tem esses efeitos aí (risos). E aí começou a subir aquele fumaceiro e todo mundo, aí abriu um círculo, e aí começaram a jogar um monte de bombas e a gente não sabia de onde vinha, porque tinha policiais espalhados por lá. Eu lembro que tava eu e mais três amigas e aí no momento, naquele momento rolou uma tensão e aí o metrô que era 24 horas, na Sé, naquele momento foi trancado, então a gente não conseguia entrar no metrô, a gente começou a correr, eu lembro que eu corri de lá até a São Bento. E os carros da polícia passavam jogando bomba e atirando bala de borracha, eles perseguiam as pessoas jogando bomba e atirando, aí eu cheguei na São Bento, não estava aberto, tava fechado, daí eu corri até o Parque Dom Pedro, aí eu entrei no terminal do Parque Dom Pedro. A gente ficou lá um tempo e depois a gente tentou correr de novo, aí a gente voltou pra São Bento e aí tinha, como a São Bento tem várias, acho que tem três saídas, a gente encontrou uma das saídas que estavam abertas, a gente ficou lá até eles abrirem o metrô de novo, porque eles tinham fechado a maioria das estações, pra gente voltar pra casa. Mas foi um dia muito tenso, porque eu tava super feliz, super cantando Racionais, começa a pipocar bomba, aí eu saio correndo, com carro da polícia perseguindo a gente, atirando e soltando bomba na rua, desperdiçando mesmo, sabe: “Esse lugar aqui não é seu, você tá curtindo essa música, vai embora”. E aí eu lembro que a minha mãe ficou desesperada, mas que eu voltei super feliz de ter participado daquilo, até hoje eu falo: “Ainda bem que eu tava naquele show” (risos).

P/1 – A gente tá caminhando pro final, eu vou te fazer algumas perguntas mais pontuais, digamos assim. O que você mais gosta de São Paulo?

R – Deixa eu ver o que mais gosto de São Paulo, a possibilidade de ter mais de uma coisa pra fazer no mesmo dia, de ter uma efervescência cultural tão grande assim, você conseguir ir pro sarau se eu quiser, você conseguir ir pro teatro que você quiser, conseguir ver tantas coisas numa cidade só, acho que aqui a gente tem um pouco de tudo.

P/1 – O que você menos gosta em São Paulo?

R – A mobilidade, o trânsito é infernal, tá caro andar em São Paulo, ter um ônibus, pegar uma integração, acho que a integração hoje, ônibus e metrô, tá, sei lá, cinco e vinte ou cinco e trinta. Nossa, quem tem cinco e vinte pra ir, cinco e vinte pra voltar e ainda tomar uma cerveja, sabe? Eu fico pensando, eu faço um exercício muito grande de sair desse mundo corporativo, de parar, eu quero muito sair da Gol e me dedicar mais pro Nós e pros projetos pessoais que eu tenho, mas eu tenho muito medo de, porque como eu trabalho desde muito cedo, eu tenho medo de não ter salário, eu tenho medo desse momento de não ter salário. Aí quando foi pra cinco e vinte, pra cinco e pouquinho, a integração, eu pensei: “Caraca, como que vai ser sem o bilhete único?”, porque a empresa carrega, porque eu ando tanto nessa cidade, eu preciso tanto de transporte público. Eu sou o tipo de pessoa que não quer ter carro tão cedo, porque eu acho que é um investimento que eu não quero fazer agora, eu gosto mais, eu prefiro, como tem um carro aqui na minha casa, dá pra dividir com o meu pai, eu não preciso ter o meu, porque eu não tenho problema de pegar uma lotação, pegar o metrô e pegar uma lotação e vir pra minha casa, ou de pegar um táxi, mas tem gente que não tem essa opção de pegar um táxi se precisar, nem nada. É uma coisa que eu comecei a pensar, eu ando tanto aqui, tem dia que eu pego metrô e ônibus mais de uma vez, pra ir trabalhar, pra sair do trabalho, pra ir pra algum outro lugar, pra voltar pra casa. Cinco e vinte? Ainda numa condução, sabe, tão precária, é insano, acho que mobilidade aqui é cara, abusiva e maluca.

P/1 – É possível resumir São Paulo numa palavra?

R – É possível, deixa eu só pensar na palavra, São Paulo é a contradição pra mim, eu traduziria São Paulo como contradição, porque é a capital que mais ganha, aqui, e que menos oferece pro povo, mesmo sendo a que mais ganha, e das pessoas que fazem de tudo pra defender o que já tem, as que já conseguiram ter o mínimo pra se viver bem em São Paulo, fazem de tudo pra manter o que tem e tem uma outra população que ainda não tem e que faz de tudo pra ter. Então eu acho que aqui, que a gente tem manifestações super travadas nesses últimos anos, a gente tem cada vez mais enfrentamento, São Paulo pra mim é uma terra de contradição.

P/1 – A gente falou muito da questão racial nessa entrevista, muito focado na questão negra e todo seu trabalho, a sua vida como ativista, pelo visto uma vida, como você disse, desde criança, com essa família feliz que você teve a oportunidade de ter. Agora, ampliando um pouco isso, São Paulo é uma cidade de muitos povos, de muitas culturas, de muita migração, seja migração do Nordeste, por exemplo, ou imigrações de outras culturas. Indo para além da questão racial, da questão negra, do racismo, como você enxerga esse, digamos, esse caos cultural que é São Paulo, essa convivência de muitas culturas?

R – Cara, eu acho bacana isso, por exemplo, aqui em São Paulo eu tive a oportunidade do ano passado conhecer uma aldeia indígena que fica em Parelheiros. Parelheiros é um bairro periférico aqui da Zona Sul, e aí lá tem uma aldeia indígena de guaranis que não cederam a tudo isso que a gente vive aqui, e eles chamam a gente de, tipo: “Ah, você, brasileiro”, porque eles não são brasileiros, eles são guaranis. E eles estão em São Paulo, e é uma aldeia indígena que segue todas as culturas, alguma coisinha ou outra diferente tem? Tem, mas eles têm a cultura deles, a educação deles, tudo mais, e eles estão em São Paulo, assim como a gente tem no Real Parque alguns índios que moram no Real Parque, na favela do Real Parque, e aí a gente tem uma série de quilombos também aqui, não na capital, mas no nosso estado. E aí por isso que eu acho que São Paulo é contradição, eu não consigo fugir disso, porque a gente tem tudo aqui, a gente tem tudo convivendo harmonicamente e não harmonicamente ao mesmo tempo, entendeu? Então eu acho muito bom que eu esteja em São Paulo e que eu consiga conhecer uma aldeia indígena, que eu consiga conhecer o Bairro da Liberdade e todos os costumes que tem lá, eu vou no Bexiga, que é um lugar tradicional de samba e que tem uma história de um quilombo muito forte. Eu acho que São Paulo tem de tudo, tem de tudo e é por isso que pra mim é tão contraditório, mas não que a contradição pra mim seja um problema, pra mim ela é positiva, é a partir da contradição que a gente cresce também.

P/1 – Na parte do site, do seu, digamos, empreendimento jornalístico, que deve ter muito do seu lado pessoal, do seu sonho pessoal, no campo profissional, digamos assim, quais são seus planos pra isso, pra essa iniciativa sua, pra esse coletivo, de agora em diante?

R – Ah, eu quero muito que a gente consiga se sustentar financeiramente, que a gente encontre meios de, com o conteúdo que a gente produz, a gente consiga começar a se remunerar por isso, eu quero muito que a gente se torne um negócio sustentável. Eu quero que a gente tenha cada vez mais condições de produzir mais conteúdo, numa velocidade que atenda muito mais, essa velocidade de informação, como as informações circulam hoje, a gente tá buscando, é isso que a gente tá trabalhando inclusive nesse meio, esse ano, como a gente vai fazer pro Nós se sustentar, como a gente vai fazer pra gente conseguir parar de trabalhar pra outras empresas e trabalhar pra gente, como que a gente consegue fazer isso e sustentar. Tem muitas meninas no Nós que, e aí é uma coisa dessa independência financeira, que a gente conversa muito, que é, eu nem tanto, eu ajudo, sempre ajudei na minha casa, o meu salário sempre parte pra cá pra ajudar nas contas, a sempre dividiu isso e tudo mais, mas ainda tem meninas que estão no Nós que estão numa condição ainda mais atrelada às suas famílias. Tem meninas que têm a minha idade e que sustentam a casa sozinha, então como que a gente se desvencilha desse medo de arriscar, porque a gente tem uma possibilidade de não dar certo, de não conseguir se sustentar a curto prazo e nem a longo prazo, então a gente tá nesse trabalho de arriscar, de avançar pro risco mesmo pra gente conseguir fazer o Nós girar cada vez mais e aí a gente tá estudando isso, qual vai ser o modelo de negócio do Nós. A gente quer que o nosso empreendimento vire, então a gente tá nesse momento, então a gente quer ser um portal de referência quando se trata de mulheres da periferia, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres brancas que vivem na periferia, a gente quer se tornar um conteúdo de referência quando a gente fala dessas mulheres.

P/1 – E seu sonho pessoal, pra sua vida, qual é o seu maior sonho hoje?

R – Difícil, cara, eu tô inclusive tentando descobrir quais são os sonhos (risos), são tantos, mas ao mesmo tempo, às vezes, eu tenho a sensação de que nenhum, assim, que passa tanta coisa na minha cabeça que eu tenho até medo de passar pela vida e de não conseguir todas as coisas. Deixa eu pensar, é difícil de dizer qual que é o meu sonho. Eu acho que o meu sonho é, não é nem me tornar reconhecida, assim, é poder fazer o que me dá vontade de fazer, poder, sei lá. Tem uma coisa que eu tenho muita vontade de fazer que é morar um tempo fora de São Paulo e não ter que me preocupar com dinheiro, eu acho que o meu sonho tá um pouco nisso de não ter que me preocupar com dinheiro. Agora, profissionalmente eu tenho vários sonhos, eu tenho vontade de ser uma grande documentarista, eu tenho vontade de conseguir colocar todos os meus documentários pra rodar, eu tenho vontade de escrever roteiros mil, eu tenho vontade de escrever um livro. Vontades eu tenho muitas, mas sonho, sonho, acho que um sonho era não ter que me preocupar com dinheiro, sabe?

P/1 – Última pergunta, ainda tendo a ver com sonho. Qual que seria a São Paulo do seu sonho?

R – A São Paulo do meu sonho acho que seria uma São Paulo que a gente pudesse transitar sem medo de violência nenhuma, nenhuma, nem falada, nem olhada, nem insinuada, nem concretizada, e aí eu falo de violência em vários sentidos. Um dia eu fui atravessar a rua e um cara me chamou de cadela preta, eu poderia ter passado uma noite muito mais tranquila se ele não tivesse dito aquilo, então eu acho que a São Paulo do meu sonho, na verdade, se todo mundo saísse de casa, eu acho, disposto a respeitar o que o outro é pela sua essência, a dar bom dia, circular mais em paz, a não exigir que o outro ande mais rápido porque você saiu atrasado, sabe, se a gente não saísse tão armado de tanta arrogância, de tanta prepotência, se a gente não se preocupasse tanto com o que a gente quer ser, com o que a gente quer ser, com o que a gente quer ser, às custas de pisar na cabeça dos outros, assim. Então eu acho que a São Paulo dos meus sonhos, na verdade, seria formada por pessoas mais sustentáveis humanamente mesmo, com o outro, porque eu acho que isso já mudaria muita coisa. Agora, se colocarem um pouco mais de ônibus, também já ajuda (risos).

P/1 – Cara, obrigado.

R – Obrigada você.

P/1 – Você quer falar mais alguma coisa que eu deixei de perguntar?

R – Acho que não, cara.

P/1 – Alguma história, algum comentário.

R – Não, eu acho que só falar que, principalmente em relação ao Nós, aqui eu falei de muitas coisas que eu fiz parte. O Nós é um coletivo formado por, eram nove mulheres, agora duas saíram, a gente tá com, eram oito, sei lá, só sei que a gente tá com sete, eram nove, agora a gente tá com sete mulheres que me fizeram crescer muito. Assim que fizeram, a gente fez muito uma pela outra, nesse sentido se ouvir, de parar e de ouvir o que é a dor da outra, onde tá a dificuldade da outra, onde a gente pode se ajudar e como a gente pode crescer enquanto profissionais, como que a gente pode produzir o que a gente quer produzir, como que a gente construiria. Hoje a gente construiu um espaço em que a gente pode falar o que a gente quer falar, isso é uma coisa que me deixa muito feliz e que deixa todas elas muito felizes também. Eu sou pessoa formada por todas elas, pela minha mãe, pelo meu pai, pela minha irmã. Tem tanta luta na minha história, de pessoas que lutaram antes de mim, que lutaram junto comigo, que lutaram por mim, sabe? Eu acho que, eu fico emocionada, porque é isso, eu só queria falar isso, que tudo o que eu falei aqui não é só meu, sabe, é de muita gente que passou por mim.

P/1 – Obrigado.

R – Obrigada vocês.