Museu da Pessoa

Sou persistente, quando falei que vinha, nasci

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria de Jesus Pereira Santana

Projeto Cotidianos Invisíveis da Ditadura
Entrevista de Maria de Jesus Pereira Santana
Entrevistada por: Lucas Torigoe (P/1), Luis Ludmer (P/2)
São Paulo, 05 de abril de 2022.
Código: COIND_HV_002

P/1 - Dona Maria, obrigado por estar aqui de novo falando. Qual é o seu nome completo, data de nascimento e local?

R - Eu agradeço, é uma honra estar aqui com vocês. Eu me chamo Maria de Jesus Pereira Santana, eu nasci dia 28/02/1955, em uma segunda-feira chuvosa em São Paulo.

P/1 - Maria você nasceu em que hospital, ou você nasceu em casa?

R - Eu nasci em casa.

P/1 - Como é que foi esse dia, contaram para senhora?

R - Me contaram que foi um dia que chovia muito, e o meu irmão tinha nascido no Leonor Mendes de Barros, e para lá seria o meu destino, mas como diz a minha filha, como eu sou muito sortuda, eles não conseguiram me levar para a maternidade porque chovia muito e a minha mãe estava passando mal e meu pai chamou uma parteira, e essa parteira era uma senhora evangélica que não enxergava direito e não tinha luz, então ela teve muita dificuldade de fazer esse parto e ela fez uma promessa para a igreja dela: que se fosse homem, seria José de Jesus, e se fosse mulher, seria Maria de Jesus, e que o primeiro lugar que eu iria quando saísse de casa, seria na igreja dela, ser apresentada por 07 pastores. Depois que tudo foi concluído, ela perguntou para a minha mãe, “dá para cumprir a promessa?” Minha mãe falou, claro que eu vou cumprir a promessa, e isso foi feito. O mais interessante é que lá na frente, 20 anos depois, eu fui morar no bairro, na gravidez e encontrei um dos pastores que tinha me apresentado lá na igreja.

P/1 - Nessa época você e a sua família moravam?

R - Na Vila Gustavo. Eu, minha mãe, meu irmão, meu pai.

P/1 - E era comum nesse bairro ter parteiras?

R - Eu acredito que na época sim, porque era Avenida Bosquete - Lote 15. Você vê que não tinha nem numeração, era lote, uma rua toda esburacada, de terra. Eu acho que nessa época era comum sim, ou então ir lá levar no Leonor Mendes de Barros, acho que é no Tatuapé, meu irmão nasceu lá, e eu sortuda nasci em casa.

P/1 - E você sabe por acaso como é que seus pais se conheceram?

R - É uma longa história, mas eu vou resumir aqui. A minha mãe, na verdade, foi casada com 13, 14 anos porque ela não tinha os pais dela, ela foi criada com madrinhas. Ela se apaixonou por um rapaz, com seus…eu imagino, 12, 13 anos. Eles começaram a ter um flash ali. Ele queria se casar com ela, mas o pessoal falava “não, imagina. Ele é um menino, muito novo”. Em um belo dia, veio o pai dele pedir a mão da minha mãe para os padrinhos, e a minha mãe ficou muito feliz, lógico queria se casar com o rapaz, só que não, ele pediu para ele, porque ele era viúvo e a minha mãe acabou casando com o sogro. O rapaz foi para Brasília e ele queria fugir. Naquela época, minha mãe falava assim: “como que eu vou fugir? Vou ficar falada, vou sofrer “. Nessa época, estava construindo Brasília, e esse rapaz foi trabalhar lá na construção. A minha mãe então acabou casando com o sogro, teve um filho desse sogro e ela disse que ele saia para trabalhar e ela ficava brincando com as bonecas porque ela era uma menina. Ele era muito bom, porém, era mais um pai para ela. Quando nasceu esse meu primeiro irmão, o Edson, a minha mãe passou muito mal, teve um problema de hérnia na barriga, esse meu irmãozinho acabou morrendo, hoje eu acredito que tenha sido de desnutrição porque ela não conseguia amamentar a criança, e os recursos eram poucos. Ela ficou muito ruim e acabou vindo para São Paulo no Hospital das Clínicas, Santa Casa, não lembro bem qual hospital que ela ficou internada para fazer esse tratamento, ela ficou muito ruim. Na Bahia, ela foi desenganada por todos os médicos, enfermeiros, até ela falava “nossa, todo mundo que me desenganou já morreu e eu estou aqui”. Ela ficou aqui e muito constrangida porque ele mandava recursos para ela, o dinheiro para ela se manter, mas o tratamento foi muito longo e ela foi ficando preocupada com isso, ela foi morar em uma pensão, porque era aquele tratamento que tinha que ir e voltar do hospital, já não ficava mais no hospital, ia e voltava, ela ficou nessa pensão e nessa pensão ela conheceu o meu pai. Meu pai disse que se apaixonou loucamente por ela e ela falava, “não, eu sou casada, sou lá da Bahia”. “Não, mas seu marido não vem, você não vai”. Ela foi se recuperando, começou a trabalhar na pensão para poder ajudar nos custos. Ela voltou para Bahia, falou para o marido: “eu tenho meu tratamento, vamos para São Paulo?” “Não, fica lá você, eu fico aqui”. Ela acabou ficando com meu pai. Ela foi lá para Bahia, conversou com o rapaz, o senhor na época, eu acredito que eles só tenham se casado na igreja, ela teve que tirar toda a documentação dela, por isso que eu falo, ela não sabe a data, ela não sabia a data do nascimento dela, perguntava para um parente, para um vizinho, para outro, que ano ela tinha nascido, uns falavam 1919, outros falavam em 1912, na verdade, ela não sabia, foi em fevereiro dia 23, que era a data que nós tínhamos, nós descobrimos que era dia 24 quando a gente foi fazer a placa do cemitério, “nossa, mas aqui está dia 24, a gente sempre comemorou dia 23”. Então é uma história… Enfim, ela casou com meu pai, eles se conheceram, meu pai queria porque queria casar com ela, ele era 10 anos mais velho, viviam bem, até que foram morar nesse lote 15 onde a minha mãe tinha comprado esse terreno, este lote era dela, se casaram fizeram um barracãozinho de madeira, realmente eu lembro bem, fizeram dois, um nós morávamos e o outro era alugado, ficaram morando ali. Minha mãe morria de dó porque tinha uma vizinha que tinha 05 filhos e poucas condições de sustentar esses filhos, o meu pai trabalhava em uma empresa e tinha uma…hoje a gente chama de cesta básica, mas ela tinha um outro nome que ela falava, ele vinha com aquelas compras que era muita coisa para 03 pessoas, dois adultos e uma criança, depois a minha mãe começava a mandar os mantimentos para casa dela, porque tinha muito dó e foi criando aquela amizade, essa senhora vinha, sentava na mesa, almoçava, jantava, e a minha mãe cozinhando para os dois inocentemente, até que essa senhora ficou grávida, essa vizinha, e a minha mãe também ficou grávida, o meu pai falou “nossa, mas a situação está difícil”, até então, minha mãe não sabia que o bebê da vizinha era o meu irmãozinho, meu pai falou, “a situação ficou difícil eu tenho medo de ser demitido. Vamos fazer o seguinte: melhor você abortar essa criança”. Minha mãe, “não, de jeito nenhum”. Ele começou a trazer umas ervas para que a minha mãe fizesse o chá abortivo, a minha mãe falava “vou fazer nada”. Ele chegava à noite, “você fez o chá?”. “Fiz, já tomei!” Minha mãe jogava fora. Segundo ela, ela descartava, e toda noite ele perguntava. Mas não deu, eu sou persistente, eu não queria vir, mas quando eu falei que vinha, quando foi essa confusão da parteira, e a vizinha grávida, até que eu nasci. Uma semana depois, nasceu o meu irmão na casa da vizinha, e a minha mãe inocente, até que a minha tia chegou, a irmã dele, e falou assim: “Escuta, você não está na terra? O que acontece com você? Você não percebe que o fulano está tendo um caso com a vizinha, daí nasceu essa criança?” A minha mãe: “ou ele vai para lá ou ele fica aqui. Eu não quero sociedade”. O meu pai queria ficar nas duas casas, mas enfim resolveu ir com a vizinha e a minha mãe tudo bem, ficou conosco, comigo, imagina semianalfabeta, com duas crianças em São Paulo, ela já não trabalhava na pensão, ela começou a fazer serviços domésticos em casa de família, ser diarista, ela foi trabalhar na casa de uma senhora que entregava leites, antigamente entregavam litros de leite nas casas e essa senhora chamada Maria das Calças, porque naquela época a mulher não usava calça comprida, tanto que ela ia em uma carroça e entregava os leites tudo, só que ela conseguiu comprar quase o bairro todo, Vila Gustavo ali era dela, e o lote 15, a minha mãe comprou dela, trabalhava para ela e comprou dela. Um belo dia, a minha mãe recebeu uma intimação, o vizinho falou “Olha essa intimação aqui é para a senhora comparecer lá no juiz porque o teu marido está querendo tirar teus filhos”. Minha mãe, “meus filhos não, meus filhos ninguém vai tirar”. Entrou em uma briga judicial e o juiz deu ganho de causa, minha mãe nunca ia atrás porque ela era tão inocente e tão ignorante que ela jamais iria atrás disso, mas como ele foi, o juiz deu causa ganha para ela, você vai ficar com os filhos e vai ficar com uma pensão, ela ficou bem na fita bem entre aspas. E essa senhora, muito exploradora, falou: “a senhora para de pagar o terreno. Para você ficar mais tranquila com os seus filhos, você não paga mais, eu vou te dar uma casa, um cômodo e cozinha, para você morar com água, com luz, com os dois filhos, até o Aroldo fazer 21 anos, Aroldo é o nome do meu irmão, minha mãe inocente, “tudo bem, então está tudo certo”, confiou. Não demorou muito tempo, essa senhora despejou a minha mãe da casa, de posse do Lote 15, deu para construir acho que de 02 a 03 sobrados. Eu lembro que eu ia com a minha mãe na cidade, na advogada e ela falava que ia destruir minha casa, que ia cortar água, enfim. A minha mãe ficou naquele sufoco com duas crianças para cuidar e sem ter um teto porque já tinha passado o único bem que tinha, único bem entre aspas, porque ela tinha um rádio de 1800, ela tinha ganhado de um filho de criação dela que ela tinha lá na Bahia que chamava-se Akin, ela tinha uma estima muito grande por esse rádio, era a única coisa que a gente tinha, a minha mãe penhorou esse rádio para conseguir pagar um aluguel em um lugarzinho para gente morar, vocês não tem ideia dos lugares que nós moramos nessa época, eram lugares assim, chovia dentro, tinha uma cama de solteiro para eu, meu irmão e minha mãe dormirmos, dormia um virado para lá, outro para cá, e quando chovia ela pregava toalha de plástico na parede com prego e ficava com os pés sobre a cama, tirando água a noite toda pra gente poder dormir. A minha mãe não tinha nem um fogão, era carvão, a casa chovia mais dentro do que fora. Então, se chovesse 15 dias, 15 a gente não tinha o que comer, não que a gente passasse fome, mas não tinha condições de fazer, minha mãe comprava para nossa alegria tubaína, pão com mortadela, para nós era festa, mas era muito sofrido, a gente não tinha nem banheiro, a gente tinha no terreno, o poço que chamava de uma privada, tinha madeiras em cima, a minha mãe não deixava a gente nem se aproximar porque ela tinha medo que a gente caísse ali, as nossas necessidades (a gente fazia) em um comadre, lá no penico, e cobríamos com jornal, com uma madeira, quando a minha mãe chegava à noite que ela ia fazer toda essa higienização. Era assim, ela trabalhava durante o dia, e à noite ela trazia roupa de fora para lavar, e puxava água no poço, ficava madrugada lavando roupa, na outra noite, ela passava. Imagina você passar roupa de dentista com ferro a carvão sem luz! Quer dizer, aquele estilhaço que saía do carvão era um negócio… mulher lutadora. Nossa, guerreira! Ela foi construindo a nossa vida. Só que ela achava que o meu irmão era o varão, ela jogava todas as fichas nele, o tal do machismo, mulher naquela época casava, o marido ia manter. Então, a mulher não precisava estudar. Ela até achava que estudava, mas não precisava ter nenhuma formação, porque eu ia ser do lar, o que eu tinha que fazer lá, lavar bem, cozinhar bem, essas coisas. Então, ela ficava muito em cima do meu irmão para o meu irmão estudar. Meu irmão realmente sofreu muito, ela (era) muito autoritária, chegava a botar um ovo embaixo para o meu irmão ser obrigado a ficar olhando para baixo, quando ele ia mal na escola, ela ajoelhava ele no milho, não era por maldade, porque ela achava que tinha que ser enérgica, ela era o pai e a mãe, quando ela saía para trabalhar, ela recomendava os vizinhos, “dá uma olhada aí nos meus filhos”, e o meu irmão coitado, eu ficava em casa quando bem pequena e o meu irmão saía, ficava no meio do gol, minha mãe falava que ele era a boca aberta, ele ficava brincando lá com os moleque, os moleques aprontavam, quando ela chegava os meninos, “o Aroldo fez isso, o Aroldo fez aquilo”, eu sabia que ele não tinha feito. “Não foi ele mãe!” “Se o fulano falou que ele fez, foi ele que fez!” Ela falava, “prepara o vinagre com sal”, e eu preparava, ela era muito enérgica, ela falava, “prepara o vinagre com sal para passar nas pancadas dela”. Hoje ela seria presa com certeza, mas tudo isso em uma inocência, de ser enérgica, de procurar com que ele estudasse, com que ele tivesse uma formação, só plantou revolta, ele ficou muito revoltado, nunca mais ele conseguiu estudar, para terminar o ginásio, foi o Deus nos acuda, ela foi chamada diversas vezes na escola. Teve um dia que ela foi chamada pelo diretor e eu fui pegar a chave, entrei na sala, pedi licença para pegar a chave com ela, porque eles estavam em reunião e o seu Odilon, o diretor na época falou: “como que pode, que ano que você está?” Eu falei, “estou no 4º ano”. “Como pode? Seu irmão está no 2º ano e você não toma conta do teu irmão, você é a mais velha!” Minha mãe falou, “não, ela é 02 anos mais nova que ele”. Como ela não ligava, não é que ela não ligava, vamos supor, se tivesse material, comprar material escolar, era para ele, ele estudava de manhã e eu estudava à tarde. Eu ficava na porta esperando ele sair para ele me dar o estojo, só que ele era uma pessoa que talvez ele não usasse, era tudo arrumadinho, tudo organizadinho, lápis apontadinho, limpinho, e eu bagunceira, jogava ponta do lápis no estojo, quebrava, eu nunca tinha aquela organização, talvez porque eu usasse e ele não, e assim foi. Eu sei que para terminar o ginásio foi um Deus nos acuda e eu fui indo.

P/1 - E qual foi a escola que vocês estudaram nessa época?

R - Escola Estadual José de Alencar, se não me engano, fica do lado da 39ª ali na Vila Gustavo.

P/1 - Me fala um pouquinho, para quem não conheceu, não conhece, como era a Vila Gustavo nessa época, a sua rua, o bairro, como é que você ia para a escola?

R - A rua que a gente morava, as pessoas eram muito pobres, o bairro era muito pobre. Tinha uma chácara na Vila Gustavo que depois a Maria Piedade, a Maria das Calças, vendeu para o Gustavo, então ficou Vila Gustavo, e a minha mãe trabalhava para essa família dos Gustavos, a gente convivia muito, vivia muito nessa chácara. A filha do caseiro, depois virou minha madrinha de casamento. Ela me ajudava muito, eu era a “velinha” dela, quando ela saía para namorar, me levava. Ela tinha uma irmã que tinha 01 ano a mais do que eu, mas ela não levava a irmã, me levava. Ela me dava banho, me levava para cima e para baixo, até o dia que eu fiquei muito doente e ninguém nunca soube o que eu tive, eu fui parar no Hospital das Clínicas e ela que cuidava do meu irmão enquanto a minha mãe estava comigo no hospital, ela cuidou muito, outro dia falei para ela, “nossa Cecília, só você sabe da minha história, você não pode morrer, você tem que ficar aí porque só você que me conhece, todos que me conheciam na época já se foram, só você está aqui”, e ela ri muito disso, mas enfim, as pessoas eram muito pobres, tinham pessoas em condições melhores, mas a minha mãe trabalhava para essas pessoas que estavam em condições melhores, tanto é que eu lembro que tinha uma patroa, que morava do lado, que o filho tinha uma bicicleta e deixava o meu irmão, mas a menina não podia, eu era menina, eles eram 02 meninos da família, o meu irmão e o menino podiam andar de bicicleta, menina não podia. Então eu não aprendi a andar de bicicleta por conta que eu era menina, muito triste, mas tudo bem, passou. Essas pessoas, ou eram bem humildes ou tinham um padrão muito melhor que a gente não alcançava. A gente trabalhava para essas pessoas. Eu falava que tinha 06 anos, mas a Tamira que era uma das sobrinhas desse Gustavo, tinha um filho Luiz Henrique, e ela precisava de uma babá, e quem foi ser babá? Euzinha. Eu falo, “nossa Tamira, eu tinha 06 anos”, ela falou que não, “você tinha 05 anos quando você veio cuidar do Luiz Henrique, do Rick”. Ele era um menino bem gordinho, bem pesado e eu lembro que ele ficava no cercadinho, e eu tinha que olhar aquele molequinho pesado no colo, eu pegava brinquedo e jogava dentro - Porque assim, você fala como que uma criança de cinco anos pode trabalhar! - trabalhava dando sopinha na boca dele, não trocando as fraldas dele, mas ajudando a cuidar dele ali, jogando os brinquedos dentro do chiqueirinho para ele poder… e eu não tinha, vamos supor, se eu quisesse dormir naquele momento, eu não podia, se eu quisesse brincar, me distrair, eu não podia. Então, realmente eu tinha aquele período que tinha que ficar ali, eu ia de manhã para lá e só ia à noite para casa, porque eles também estavam ajudando a cuidar de mim enquanto a minha mãe estava trabalhando. E o meu irmão ficava na loja, o pai da Tamira tinha uma loja ali na Avenida Júlio Buono - Casa Progresso, uma loja de material de construção e meu irmão ficava lá, eles botavam os vasos, as coisas que ficavam fora e meu irmão ficava lá tomando conta, ficava ajudando ali, ele ficava lá e eu na casa cuidando do Luiz Henrique. Depois veio o João Carlos, depois veio a Silvinha que infelizmente já partiu, a Silvinha fez aniversário agora dia primeiro, a gente se fala muito e nós fomos crescendo e fomos tomando um rumo diferente, porque nós mudamos de bairro, nós fomos crescendo. Quando eu tinha 12, 13 anos, conscientemente voltei para trabalhar na casa como doméstica. Naquela época, com 14 anos você já podia trabalhar, só que eu tinha 12 para 13 anos, então eu não podia trabalhar, precisava de fazer datilografia, eu já tinha um curso de datilografia, já tinha terminado o primário, estava entrando no ginásio, que era para entrar no ginásio e não tinha ginásio, não tinha escola na época, eles criaram o 5º ano que se chamava admissão, todo mundo que não conseguia se matricular na escola, ficava nessa, para o governo falar que a gente não estava sem escola, botava a gente em uma admissão que ensinava-se matemática e português só, era em um outro bairro bem distante, nessa época, eu já morava na Vila Medeiros e a galera lá na Vila Munhoz, bem distante, andava muito, mas era o que tínhamos no momento. Para entrar no primário, também eu sofri, porque o meu irmão entrou com 06 anos, mas eu era menina, eu entrei com 08, porque não tinha escola e a preferência mesmo da escola era para os meninos, menina podia ficar para depois. Eu fui, entrei com 08 anos, na escola e tinha uma coisa que fazia-se matricula, acho que era em setembro, outubro, eu fazia aniversário em fevereiro, então descartou, eu tive que fazer mais 01 ano. Quando eu terminei o primário, tive que fazer mais um ano que é a tal da admissão para poder entrar no colégio. Entrando no colégio, foi bem na época que mudou, acho que era científico normal e outra classificação que tinha clássico, bem no ano que eu entrei, que eu estava lá, mudaram para ciências humanas e física, era assim, eu optei por humanas, fui fazer humanas, eram 03 anos o colégio. Quando eu estava no 3º ano, eu falei, “caramba, eu vou prestar um vestibular como, se eu não tenho nada de química, física?” Eu me reprovei para poder entrar e fazer mais um ano, porque eu não ia poder pagar escola nenhuma, e paralelamente eu estava trabalhando como doméstica. Eu terminei o colégio, tinha lá meus 11, 12 anos e eu não podia trabalhar porque eu não tinha os 14 anos, e a minha mãe, “filha, você fica em casa e eu trabalho, você cuida da casa e eu trabalho”. Eu, “não mãe, eu vou trabalhar sim, eu quero trabalhar, eu preciso trabalhar”. Então eu vou lá na casa do vô Shimada, que a gente chamava ele de vô Shimada, o pai da Tamira, o vô Shimada falava, mas aqui na loja não dá para trabalhar, uma loja de material de construção que só tem homens e eu não vou te deixar aqui. A avó Lola, que era esposa dele, estava sem empregada, eu falei, “então eu posso ficar aqui, eu vou ajudando” e fui ficando, trabalhava lá de boa, nunca me consideraram como empregada, eles me tratavam muitíssimo bem, mas eu sabia minha posição, que eu era empregada, dessa condição eu sempre soube, fui fazendo, ia trabalhando, levando a minha vida ali, até que, com 17 anos, eu consegui um emprego no Bradesco. Naquela época, quem não trabalhava no Bradesco? Todo mundo trabalhava no Bradesco, era muito comum. Quando eu entrei no Bradesco, consegui um emprego para o meu irmão. Depois consegui para os meus vizinhos todos, para minha vizinhança toda, porque todo mundo foi trabalhar no Bradesco.

P/1 - Quais são as primeiras lembranças que você tem da sua vida, e qual é o nome inteiro da sua mãe, por favor?

R - O nome inteiro da minha mãe: Apolinária Pereira Santana. O meu pai: Assineto Cavalcante Santana. A minha mãe, como eu te falei, era analfabeta, ela aprendeu por conta, ela pagava as pessoas lá na Bahia para ensiná-la a escrever o nome dela, ela era muito esforçada, até onde deu, ela foi… ela conseguia ler e escrever. Mais tarde, ela até ensinou minha sogra a escrever o próprio nome para poder abrir uma conta no banco. Nessa época, eu trabalhava lá na casa da avó Lola, teve um dia que a avó Lola chegou e falou, “você quer férias ou você quer dinheiro”? Eu falei “como assim?” “Faz 01 ano que você trabalha aqui, eu vou te dar um dinheiro ou eu vou te dar 30 dias de férias”, “não, eu quero o dinheiro”, eu fiquei muito feliz, vinha com aquele meio salário mínimo ali na mão, “mãe olha o que eu ganhei”. “Como você conseguiu?”. “A avó Lola me deu esse dinheiro, disse que é o 13º. Vamos abrir uma conta do banco?” Minha mãe falou, “esse dinheiro você vai abrir uma conta no banco? Não vai abrir, você não consegue”. Falei, “mãe eu quero, a senhora vai precisar do dinheiro para alguma coisa?”. “Não, não”, “então vamos abrir uma conta no banco”. Ela foi lá no banco Itaú comigo e nós abrimos essa conta. E ela não acreditava. Eu comecei a fazer unha, virei manicure sem saber fazer nada. Teve uma época que as vizinhas não tinham caixa de água, não tinha água encanada na rua, então a gente puxava água, 37 metros no poço e enchia a caixinha do bar, enchia os tanques das vizinhanças e ganhava sempre um troco. Eu e meu irmão fazíamos isso. E tudo isso era dinheiro que entrava no caixa para comprar leite, pão, para gente poder se alimentar. O meu irmão carpia, tinha muito mato na casa das pessoas, nos terrenos, ele fazia esse trabalho também muito carinhosamente. Tinha um córrego lá no fundo da casa do avô Shimada, da loja, e ele pegava aquela areia, tirava aquela areia vendia, e ele era uma pessoa tão carinhosa, tão desprendida que ele ia lá e comprava brinquedo para mim, esses brinquedos bem pobrezinhos, mas tem até hoje: geladeirinha, fogãozinho, panelinha, ele deixava de comprar para ele. Eu via as mulheres fazendo tricô, com meus 07, 08 anos, eu ficava encantada com aquela mulherada fazendo aquilo, minha mãe não sabia fazer. Arrumei dois pregos e um barbante, comecei a fazer, aprendi fazer ali o tricô, crochê, meu irmão também conseguiu um dinheiro, comprou novelo de lã, duas agulhas para mim, ele era uma pessoa tão desprendida que ele podia comprar brinquedos para ele, as coisas para ele, ele sempre foi dedicado até o último dia da vida dele, ele cuidou de mim, da minha mãe e da minha filha… foi alcoólatra, trabalhou no banco como eu falei, se enveredou lá pelo pelo álcool, acabou sendo demitido por justa causa, e isso foi proporcionando mais a bebedeira… mas enfim, uma pessoa maravilhosa, fez vários tratamentos, ajudei pagar os tratamentos dele e ele ficou cuidando da gente, ele não cresceu profissionalmente, não quis estudar, porque acho que ele tinha trauma de escola, mas foi até o fim da vida dele uma pessoa honesta, nunca deixou a gente, nunca fez coisa errada teoricamente, nunca nos fez passar nenhum problema de vexame. Então, esse foi meu irmão maravilhoso. As crianças que conviviam conosco eram todas nas mesmas condições, eu às vezes eu falo para Bianca, a gente tinha tanta chance de entrar no mundo da criminalidade, porque a gente ficava muito exposto, e todos nós éramos muito pobres, todas as crianças eram muito pobres, a gente até falou para as crianças, era muito engraçado, tinha um menino no nosso grupo que o apelido dele era “Neném”, nunca soube o nome dele, era “Maria do Sobrado”, a gente não sabia o nome de ninguém, só se chamava assim. O Neném, uma vez, cortou o pé. A mãe dele comprou um par de sapato para ele, era uma coisa, quando o pé crescia cortava-se a ponta do sapato para poder ter acesso para andar, a mãe dele conseguiu comprar um par de sapato para ele, e um dia, não sei como, brincando, ele perdeu o sapato. A mãe dele falou “bom, agora só quando eu tiver condições de comprar outro”, e a irmã dele trabalhava no hospital, então trazia ataduras, ele enfaixava o pé e ia para a escola porque não tinha sapato, para dizer que estava machucado o pé, era uma coisa muito pobre, mas ao mesmo tempo a gente sabia, a gente era feliz, a gente convivia com aquilo numa boa, a gente vivia legal.

P/1 - Vocês brincavam do que, na época?

R - A gente tinha umas brincadeiras que a gente fazia comidinha. Quando eu era bem menorzinha, que eu morava lá ainda na casa dessa senhora que nos despejou, eu pegava vidrinho, panelinha, latinhas, a gente colocava plantinhas, botava barro, botava umas florzinha, perfume, a gente fazia esses negócios. A gente brincava também de pé de lata, não sei se vocês já ouviram falar, perna de pau, eram brinquedos que a gente mesmo produzia. A minha frustração, carrinho de rolimã, também era menina, nunca podia andar, era uma das outras frustrações. E, mais tarde, meu irmão fazia carreta na feira, olha que legal! Eu era louca para fazer carreta na feira, eu ficava frustrada, eu queria fazer um carreto na feira, mas eu não podia porque eu era menina. Eu queria tanto ser office girl porque eu achava sensacional. Quando meu irmão se tornou um office boy, ele sabia o nome de todas as ruas, ele sabia tudo, meu irmão era meu herói, ele sabia tudo, e às vezes ele sofria também porque ele falava, “mãe hoje foi engraçado, eu perguntei para um homem, onde é que fica a rua tal? Fica lá no endereço bem distante”. Quando ele voltou, ele estava na rua e não tinha todas as placas, era aquela rua que ele estava, as pessoas enganavam, mas ele falava, “eu tirei de letra porque eu aprendi, agora eu já sei”, e eu achava aquilo sensacional, era o meu sonho de consumo trabalhar na feira, ter um carrinho de rolimã e ser office girl, mas nunca fui, passou. Empinar quadrado eu também não pude, mas tudo bem, passou.

P/1 - E você falou do radinho da sua mãe.

R - Então, minha mãe teve que penhorar esse radinho, o único bem que a gente tinha, mas ela era uma mulher que se virava. Ela foi lá na loja do avô Shimada, na família Shimada, e penhorou. O avô Shimada falou, “pode levar o seu rádio, não quero não, te dou o dinheiro, quando você puder pagar você paga”, mas a filha dele que era a Tamira, falou “eu preciso de um rádio, eu quero ouvir rádio”. Depois ela se tornou uma grande amiga, mas nessa época ela foi bem cruel, era a única coisa que a gente tinha, mas ela pegou o rádio e a minha mãe, nem sei quanto tempo depois, conseguiu juntar o dinheiro para ir lá pegar esse rádio de volta, que era o bem que a gente tinha, e que a gente usava, eu gostava de ouvir rádio novela, não sei se vocês já viram, aquilo me fascinava. Eu ficava com o rádio ligado o dia inteiro quando eu tinha acesso a ele, é muito criativo, o fogo pegando, o papel que eles amassam, o cavalo galopando, eu era encantada por rádio novela, sempre fui apaixonada.

P/1 - Você se lembra de alguma coisa que você pode contar pra gente?

R - Tinha um programa que chamava “Juvêncio - O Justiceiro do Sertão”, vocês nunca ouviram falar porque vocês são novos, perderam, seus pais podem ter ouvido. Ele era como o Batman e o Robin. O Juvêncio tinha um parceiro também, que eu não lembro o nome, falava que ele saía para esse lugar, galopava, pegava fogo, mas era sensacional. Tinha muita novela também, mas eu não lembro de nenhuma, aquelas novelas de amor, aqueles contos de fadas, aquelas coisas de heroína, eu não lembro direito, mas eu adorava. O que eu detestava, nada contra, música sertaneja, daquela que contava aqueles dramas, que o fulano morreu, tipo o menino da porteira, aquela lá era melhorzinha porque as outras eram muito piores. A minha mãe sempre ouvia quando ela chegava em casa no final da tarde. Imagina, vai escurecendo, eu ficava com trauma, aquelas música que fulano morreu, que matou o outro, ai meu Deus do céu, era muito triste, mas era nossa diversão. E uma coisa também na minha infância que era muito legal, era que a gente sentava, quando a gente conseguiu morar na melhor casa, moramos nessa casa que tinha que pregar prego na parede, depois nós mudamos para um outro um pouquinho melhor, só que só cabia um colchão de casal. Durante a noite, a gente abaixava aquele colchão, nós 03 dormíamos ali, durante o dia encostava na parede, mas pelo menos a gente tinha um teto, era de madeira as paredes, tinham vários buracos, tinha uma vizinha muito legal que deixava a luz do quintal dela acesa, e ela fazia de propósito, para poder clarear a gente nesse ambiente, que era uma continuação da casa senhorio, do casal que alugou a casa pra gente. E às vezes esse senhor Elói chegava embriagado, ele confundia, achava que ali era o banheiro e queria fazer xixi em cima da gente, era um Deus nos acuda, era até divertido, mas da mesma forma não se podia cozinhar, o fogão era de carvão do lado de fora da casa, mas era muito melhor do que a casa que chovia dentro. Nós melhoramos, quando foi para Vila Medeiros, que foi penhorar mais, não lembro se foi lá para alugar a primeira casa, ou se foi para alugar na Vila Medeiros que a minha mãe penhorou o rádio, nós fomos morar em uma casa de alvenaria, um cômodo e cozinha de alvenaria, nossa que fabuloso! E assim começou com um cômodo, mas como essa casa tinha 06 cômodos e estava dividida da seguinte forma: moravam 03 famílias, tinha uma família que estava com 01 cômodo a mais, essa família cedeu 01 cômodo para a minha mãe, mas não que o senhorio tenha…eles que por bondade. Então ficaram 03 famílias, cada uma com 02 cômodos. Era uma casa de quintal, um cortiço. O senhorio construiu mais uma casa em cima do poço, na frente ali tinha uma casa que era um bar em cima tinha, e embaixo era um bar que ele alugava, era um banheiro para todo mundo, inclusive para o bar. Olha o risco que todo mundo corria e a dificuldade que a gente tinha! Mais tarde, ele construiu um outro banheiro, ficaram 02 banheiros, nossa que felicidade pra gente poder usar, mas o que era legal é que todo mundo nessas mesmas condições, a gente sentava à noite nesse quintal e todo mundo ficava contando os causos, delícia de causos, minha mãe contava, outros contavam, e eu não sei que horas que a gente ia dormir, porque a gente dormia muito cedo, eu acho, não sei, mas a gente ficava até às tantas ouvindo os causos, vendo a lua, uma coisa gostosa, tinha um limoeiro no quintal e a gente ficava ali se abrigando, conversando, era uma coisa bem gostosa, vivíamos todos como família, independente da época que um mudava, mudava outra pessoa, ficava tudo sendo da mesma família, todo mundo era da mesma família. Inclusive, o meu marido, que depois mais tarde foi morar lá, só que nessa época a gente tinha progredido, a gente estava morando em cima do sobrado onde tinha o bar embaixo, a prima dele morava em um cômodo de cozinha atrás do bar e eles moravam ali, nós fomos criados juntos ali. Eles faziam muito bailinho, nessa época eu já tinha uns 14, 15 anos. O meu irmão, o meu ex-marido, que até então era meu vizinho, e os irmãos dele faziam bailinho, botava uma lona lá no quintal, sexta, sábado, domingo, era o bailinho, eu não participava, uma que eu não gostava e outra que nessa época eu entrei na faculdade lá em Mogi, eu nem ia fazer faculdade, porque eu não tinha dinheiro para fazer, terminei o colégio, todo mundo prestando vestibular e eu falei, sonho distante para mim não tem jeito, não tem como.

P/1 - Antes de você continuar, lá naquele radinho ainda, vocês ouviam rádio novela, o que vocês escutavam de música nessa época, o que você gostava além do sertanejo?

R - Eu acho que talvez fosse Paulo Sérgio, porque minha mãe ficava cantando umas músicas, não sei se tinha Roberto Carlos não, porque Roberto Carlos já foi bem mais na frente, acho que uns 60 e pouco. Tinha um barzinho perto de casa, que tinha uma televisão, e o seu Antônio botava os banquinhos para a gente ficar assistindo, a gente assistia a Jovem Guarda, na época da Jovem Guarda. Daí para trás, eu não lembro. Lembro dessas músicas… não era Chitãozinho e Xororó, era… o melhor de todos, o Luiz Gonzaga, que eu amo de paixão até hoje, mas eram músicas Bil e Léo, eu não lembro o nome.

P/2 - Mais um esclarecimento. Esse seu irmão era o filho da outra mulher do seu pai?

R - Não, esse é meu irmão natural de pai e mãe?

P/2 - Porque você não falou do nascimento desse irmão.

R - Esse irmão chama-se Osmar. Lindo, maravilhoso. Mas pensa em uma pessoa 171. É o próprio. Eu tenho que voltar lá na história do meu pai. O meu pai foi morar com essa senhora, e eles tiveram esse filho que se chama Osmar, com uma diferença de idade de uma semana, mas eles adotaram uma menina também e ela já tinha lá seus outros filhos, com esse adotivo, meu pai tinha 03 filhos e uma adotiva, 04, eu e o meu irmão, na minha casa. Ele se separou dessa mulher e foi morar com a irmã dela, com a irmã dela, ele não teve filhos, porque na época que teve a TV a cores, ele comprou uma TV a cores para ela e comprou um terreno para ela, e quando estava tudo pago, ela pediu para ele dar linha na pipa, como diz o outro, mas todas as vezes ele queria voltar para casa, minha mãe que falou, “não, aqui você não entra mais, você vem visitar seus filhos, mas aqui você já era, não tem condição”. Ele arrumou uma 3ª, 4ª mulher, com essa ele teve, que tinha a idade do meu irmão Aroldo, meu irmão Aroldo era o mais velho de todos nós, depois eu sou a mais velha das mulheres, e com essa senhora, com essa última esposa ele teve 04 filhos, que eu tenho amizade até hoje: Rosângela, Rosemeire, Rafael e Ronaldo. Do meu irmão que é quase gêmeo comigo, eu não tenho amizade…teve o Jorge que eu não conheci, já morreu também, não conheci a adotada, conheci assim, teve um dia que bateram na porta quando eu morava no sobrado, tinha uma janelinha na porta, era uma porta que já ia direto para a rua e tinha uma janelinha, tocaram a campainha, eu fui atender, já era grande, tinha 18 anos, quando eu abri a janelinha, eu falei, “nossa, como é que eu posso estar lá e estar aqui!” Porque a pessoa era a minha cara, eu me reconheci na pessoa, eu abri a porta e falei, “oi, pois não”. “Eu sou a fulana!” Eu nem lembro o nome dela, acho que Gilmara. “O Aroldo está?” Eu falei “O Aroldo não está”. Ela falou, “porque o meu pai falou para eu vir conhecer o Aroldo porque ele é meu irmão” - Eu não era, só ele - “O Aroldo é meu irmão e o meu pai tem medo que a gente um dia se encontre e comece a namorar, então meu pai falou, vai lá para você conhecer teu irmão!” Eu falei “então você é minha irmã”, ela nem um semblante, nem um sorriso, mas ela sabe, ela ignorou a minha fala. Quando teve o velório da minha avó, eu vi novamente essa moça, mas até hoje eu falei, mas ela é minha cara gente, eu me vejo, como é que pode ser tão parecida, mas não tenho contato. Esse meu irmão, o quase gêmeo, o Osmar, veio procurar a gente diversas vezes, e em uma das vezes, tive que falar para ele não me procurar mais, só se ele viesse sóbrio porque ele bebia, ele vinha, meu irmão já tinha falecido e eu morava sozinha, a Bianca já não estava mais lá, meia-noite, batia na porta da minha casa, eu falei, “não, você me desculpa, volta amanhã quando estiver sóbrio”, mas ele falava, ele era 171 porque vendia coisas inexistentes… terrível.

P/1 - Tipo o quê?

R - Eu não tenho amizade com ele, a gente não tem mais contato, dos 04 eu tenho contato com 03. O Ronaldo também não tenho contato, só com os outros 03.

P/1 - Então qual como é essa história? Você está falando de um funcionário da Maria das Calças?

R - Ela tinha um funcionário que eu não entendia muito o papel dele naquela casa, porque ele era funcionário, mas ao mesmo tempo ele saia para trabalhar, ele saia com uma pastinha todo dia de terninho e ia trabalhar. Ela tinha uma filha, acho que tinha tido um caso e tinha uma filha, entrava até o tempo do Ademar de Barros mesmo, e minha mãe falava, essa menina é filha do Ademar de Barros. A gente não sabe, mas se falava muito isso, essa menina chamava-se Mônica, esse Aiema cuidava muito da Mônica, bebezinho ali e foi crescendo todo cheio de zelo com ela. Esse Aiema teve uma ocasião, ele sempre lavava as roupas dele, ele ofereceu para mim e para o meu irmão um doce de leite em pedra, em barra, e o meu irmão nunca aceitou e não deixava eu aceitar, meu irmão cuidava muito de mim, ele falava “não pega Maria”, mas toda vez ele insistia, “vai pega. É uma delícia”, a Mônica também instigava, “come, come”, teve um dia que eu peguei essa barra e mordi, e era sabão. Olha que crueldade com uma criança, pelo lugar que a gente morava, eu deveria ter uns 03 anos, ele fazia essa maldade e saia rindo, ele deve tá em algum lugar aí acertando essas contas, porque fazer isso com uma criança é muito cruel, uma criança que não tinha acesso, porque eu lembro que a minha mãe fazia o que ela podia, era na Páscoa ela comprava, ela mandava a gente botar no chinelinho, fazia o ninho para o coelho e ela ia coitada, escondidinha, mas a gente via, ela ia lá no bar e comprava, mas olha aqueles ovinhos de Páscoa do tamanho do ovo de uma galinha hoje, mas era o que ela podia na época, e a gente ficava feliz da vida. Era esse acesso que a gente tinha, a esses docinhos de bar que hoje deve que só R$1,00, não sei, quando eu ganhava, porque minha mãe falava, só vai ganhar doce era uma vez por mês, quem tirar 100 em comportamento, não era nem 10, era 100 naquela época, eu sempre ganhava e o meu irmão nunca e eu dividia com ele, minha mãe falava, “você não tem que dividir, se não ele nunca vai parar”, porque ele era bagunceiro. Mas ele não era bagunceiro, coitado, mas ele sempre tinha fama de bagunceiro, e eu dava a metade do meu doce para ele, mas era um docinho. Então, essa pessoa um pouco antes, lá atrás, oferecer um sabão dizendo que era um doce para uma criança, é muita crueldade.

P/1 - Uma coisa que você falou agora do Ademar de Barros, como é que vocês sabiam quem ele era? Como era a visão que vocês tinham?

R - Essa dona Maria tinha uma filha, eu não sei se ela era amásia do Ademar de Barros e teve essa menina, essa Mônica, que eu já nem sei se era da filha da filha, ou se era filho mesmo do Ademar de Barros direto, a minha mãe comentava, o pessoal falava, “essa menina é filha do Ademar de Barros, ou é neto do Ademar de Barros”. Eu não sei, ele frequentava a casa, eu nunca o via, era uma casa que tinha uma janela enorme e a gente via pessoas lá, mas eu não distinguia com 03, 04 anos, eu sabia quem é fulano, eu não sabia de nada, não sabia quem era quem, eu só ouvia. Nesse lugar que a gente tinha esse cômodo, era um tipo de alojamento que ela tinha pedreiros que construíam casas, sobrados para vender, e eram funcionários que moravam nesse alojamento. Então tinha vários, um cômodo só e um banheiro, e a gente morava em um desses que ela deu para morar até ela expulsar a gente de lá. Então, a gente convivia com esse pessoal e na conversa com esse pessoal é que eles falavam, “olha, é fulano está aí!” Mas eu nunca vi o fulano, eu nem sabia quem era o fulano. Nesta vidraça também, eu tenho uma lembrança que a gente via que montavam aquelas árvores de Natal enorme, cheia de presente, isso aqui tudo enfeitado, eu e meu irmão ficava lá de fora olhando, criança, e a gente não entendia porque que o Papai Noel ia lá e nunca vinha aqui, era uma coisa também sofrida para a época, você imagina a criança de 03 e 05 anos, meu irmão era mais velho que eu 02 anos, e essas datas eu te falo pelo lugar que a gente morava, então você imagina o que era sofrido pra gente, a gente não entendia isso. Por outro lado, tinha essa família Shimada que vinha, que as irmãs da avó Lola eram alemãs, elas eram 07 irmãs, tinha o Max e o Bruno que eram os 02 homens, o resto era tudo mulher, umas casadas, outras não. A dona Rute casou com o Gustavo, ela era a dona da Vila Gustavo porque ela casou com o Gustavo, existia uma chácara e a gente frequentava essa chácara, elas eram pessoas boas, elas faziam roupinhas pra gente, dava roupa pra gente no Natal, e dava uma bexiga com uma panelinha, com um fogãozinho, uma bola para o meu irmão, era esse tipo de presente que a gente ganhava, mas a gente sabia que era das pessoas e não do Papai Noel, porque ele não vinha para nós, era uma parte um tanto que sofrida.

P/1 - Só uma coisa, você falou um pouco “o Ademar de Barros”. As pessoas hoje em dia, tem alguns jovens que não conhecem essa figura, quem que era ele para vocês nessa época? Como é que ele aparecia? As pessoas falavam o que por exemplo das autoridades?

R - Ele era uma autoridade. Ele era um cara rico e famoso. E tinha algum relacionamento com essa família. A gente não sabe qual tipo de relacionamento era. Então suspeitava-se que ele era o pai ou avô da menina. Não sei porque, eu não lembro na época qual era o comentário, eu sei que é do Ademar de Barros, ele frequentava a casa, eu nunca tive contato, imagina que ia conversar com a filha da empregada que mora lá na casinha, não existia isso, com a criança ainda, não, vamos dar sabão para criança falando que é doce, está tudo certo. Então tinha esse parênteses que eu queria fazer porque foi uma época que era de bastante sofrimento. E os nossos brinquedos eram basicamente isso. A gente fazia, mexia com barro que era argila, a gente fazia televisãozinha, fazíamos mesinha, fogãozinho, tudo com argila, esses brinquedos de lata, pé de pau, telefones, a gente montava aquelas casinhas, fazia tudo aqueles brinquedos, eu e meu irmão. Depois, quando a gente mudou lá para a Vila Medeiros, é que a gente começou a ser mais malvados e nos sentimentos que fazíamos esse tipo de brincadeira, de uma turminha ficar do lado da rua, outro do outro, amarrava-se um…nem sei se era pneu de bicicleta, a gente amarrava alguma coisa e puxava, não tinha luz na rua, e as pessoas pensavam que era cobra, as pessoas vindo do trabalho se assustavam e a gente ria demais, eu não fazia, mas eu ria, eu participava, eu ficava ali rindo, era a diversão da gente. Até que um adulto um dia muito decentemente falou, “gente, vocês não podem fazer isso. E se for uma mulher grávida, se for uma pessoa que tem problema cardíaco”. Nós nunca mais fizemos, quer dizer, era inocente, agora se fosse nos dias de hoje e nós somos pretinhos, estão fazendo coisa errada, já espancavam a gente. Mas não, naquela época as pessoas, os adultos, ainda tinham um tempinho de conversar e falar, alertar, “não faça isso, não pode fazer isso”, também a gente obedecia, não fazíamos, mas a nossa brincadeira era essa. Era fazer também comidinha, a gente já aprimorava, colocava dois tijolinhos ali, pegava uma panela velha, fazíamos realmente comida nas panelinhas e brincávamos de casinha fazendo comida de verdade, não era muito diferente da nossa casa, porque nós não tínhamos fogão a gás na casa, era carvão mesmo, não era muito diferente.

P/1 - E dona Maria, vocês ouviam notícias no rádio ou assistiam TV?

R - A voz no Brasil, era isso que a gente ouvia, mas criança não prestava atenção, eu sei que tinha, porque ficava um tempão e a gente ficava muito nervosa, inclusive porque acabava lá com Juvêncio do Sertão, acabava com as nossas histórias, o teleteatro e telenovela, a gente ficava até zangado com isso. Bom, antes disso, quando eu tinha uns 11 ou 12 anos, a minha mãe fez várias cirurgias. Acho que umas 08 ou 09. Éramos nós 03, eu, minha mãe e meu irmão, e a minha mãe sempre me achou muito responsável, então quando ela ia ser internada, ela sempre me chamava, “filha, a mãe não sabe se volta”. Era muito pesado para mim, era muita responsabilidade, ela falava, “pega o dinheiro da pensão, vou pedir para tia Ivonete”, que era irmã do meu pai, a que alertou a minha mãe com a vizinha, até hoje ela é a mais chegada de todas, “eu vou pedir para Ivonete trazer o dinheiro, você paga o aluguel, você paga água, paga a luz, compra comida”, era isso que eu fazia, eu ficava com essa responsabilidade. E olha, a gente tinha uma caixinha, um fundo de reserva que a gente estava juntando para comprar a blusa de lã, porque a gente não tinha, entra na coisa da roupa da época. A minha mãe ganhava roupa usada, quando ganhávamos roupa usava, mas você sabe, as pessoas davam também as que tinham, mas não tinha filhos acho que da nossa idade, então quando chegava para nós também estava bem estragadinho, meu irmão usava aquelas, na época de vocês acho que não tinha roupa com televisão que era o remendo totalmente diferente, mas era o que tinha, a minha mãe remendava tudo, e o que ela fazia? Tingia de azul porque era uniforme da escola, e eu não tinha acesso, porque não tinha menina, a minha mãe fazia a minha saia plissadinha de pano de saco, ela tingia pano de saco e fazia. E normalmente era muito grande porque eu crescia, ela fazia e aquilo ficava enrolado, imensa, porque ficava enrolado, mas era o meu uniforme, e quando crescia mais, emendava mais uma parte, tingia de novo e assim era o meu uniforme. Eu consegui uma saia de, acho que era tergal na época, plissada, quando eu terminei o primário, na minha formatura do primário que a minha mãe comprou um reloginho preto, o orgulho dela, a filha se formando no primário era um orgulho, lembro até hoje e a saia enorme que era de adulto, mas tinha que encolher porque tinha que servir até quando crescesse aquela saia e uma blusa quente, estava um calor e eu com aquela roupa ali, com meia, com o sapato apertado, como o pé vai crescendo, como eu falei, não serve mais, tudo bem, mas tem que usar, mas essa foi minha formatura, eu lembro como se fosse hoje, muito legal, foi na igreja São Camilo.

P/1 - O que aconteceu esse dia?

P/2 - Fala primeiro a data, não precisa ser a data, mas o ano em geral.

R - Eu entrei com 08 anos, então eu ia fazer quase 12 anos quando eu terminei o primário. Eu nasci em 55, então 66, 67 por aí, acho que talvez um pouquinho antes. Eu lembro também de ter uma defasagem de coisa, porque eu lembro de quando eu entrei na admissão eu tinha 11, talvez eu fosse completar os 12 anos, quando eu terminei o primário que fui fazer a tal da admissão. Também foi a época que a minha mãe começou a fazer a série de cirurgias dela, foi no seio, foi no útero, no ovário, não sei o que, aí que ela me chamava e me pedia para tomar conta do dinheiro. Eu não podia estudar à noite porque eu não tinha idade. Quando eu fui estudar à noite depois com 14 anos, ela teve que pedir uma autorização especial ao diretor, poder trabalhar durante o dia lá na casa da avó Lola. Voltando um pouquinho, quando ela começou a ser internada, que eu comecei a tomar conta do caixa da casa, eu achei que o dinheiro estava muito pouco, tinha uma vizinha que o marido dela trabalhava na Eletropaulo, ela chamava Edna e ela tem tinha 03 filhos que eram mais velhos do que eu, só que o marido fazia com que as crianças fizessem tarefa de casa, mas ela poupava, ela me pagava para que eu fizesse a tarefa dos 03. Então eu ficava na esquininha esperando o seu Paulo ir embora, quando ele pegava o ônibus, eu ia para casa dela e fazia o trabalho dos 03, eu tinha que fazer muito. O que ela me pagava! Era um valor bem irrisório, mas eu lembro que ela dava a sobra da janta pra gente que eu levava para a minha casa e a minha mãe no hospital. Eu levava a sobra da janta para mim e para o meu irmão e ainda tinha esse dinheirinho. E também não ficava o dia todo, porque eu estudava tarde, eu já estava fazendo ginásio à tarde lá na Vila Ede, que era um outro bairro, sempre foi longe. Então eu consegui esse dinheirinho. Vendo o meu esforço, o seu Antônio do barzinho, a filha dele que era de criação que morava lá com ele, casou, teve filhos e não tinha quem fizesse o serviço de casa, então ele me contratou para fazer o trabalho de sábado lá. Eu trabalhava durante a semana aqui e às vezes eu faltava no ginásio porque eu tinha que fazer a faxina que era no sábado. Ele me dava 03 cruzeiros, não lembro, que mudou, real, cruzado, cruzeiro, me dava uma nota de 03 e um pacote de macarrão. Esse era o nosso trato, todo sábado eu fazia esse extra e guardava. Quando a minha mãe chegou tinha macarrão que dava-se para um exército e tinha o dinheiro. A minha mãe muito orgulhosa de mim, porque eu tinha que fazer um caixa, tinha o dinheiro das blusas lá guardado, reservado, ainda tinha o dinheiro para comprar a blusa, depois nós fomos no Brás comprar. Aquele inverno, sabe uma malhinha super fininha, era o que a gente conseguia comprar, mas era novinha, a gente ia ter um agasalho novo, porque nós conseguimos, quando a minha mãe saiu do hospital, uma das vezes, ela foi internada diversas, e sempre foi nessa batida, sempre fui nessa luta.

P/1 - E me conta um pouquinho agora. Como é que era você na escola, o que você gostava de estudar? Tinha algum professor que te marcou?

R - No Colégio, filosofia e biologia. Os professores me cativavam: Maria Luiza e Marcelino. Marcelino professor de biologia fabuloso, e Maria Luiza um carinho imenso onde ela estiver. Professora de filosofia fantástica, me ajudou muito, me ensinou muito, aprendi muito, e esse Marcelino conseguia trazer livros pra gente, porque a gente não tinha acesso a biblioteca, ele trazia livros pra gente ler, ele emprestava, ele criou um grupo de teatro amador, eu participava desse grupo, fazia teatro amador, foi muito legal, o que mais me marcou nessa minha época foram esses professores. Quando eu terminei o colégio, todo mundo estava prestando vestibular e eu nem em sonho, escola técnica, tudo tinha que ser pago, eu não tinha dinheiro para pagar. A minha mãe além de ser diarista, ela trazia roupa para casa desde sempre para lavar, ela sempre com aquele problema de saúde, chegou uma época que eu falei, “Chega. Não dá mais, não vai mais lavar roupa. Pelo menos sábado e domingo, eu vou assumir”. Então eu comecei a assumir algumas dívidas para poupá-la. Eu não tinha dinheiro para pagar um curso.

P/1 - Você queria fazer alguma coisa nessa época, tinha um curso específico?
R - Não, era o que viesse, eu topava qualquer negócio, mas eu queria continuar estudando. Encerraram todas as inscrições de todos os vestibulares, e apareceu na UMEC, Universidade de Mogi das Cruzes. Vamos para lá. Todo mundo também nas mesmas condições. Para você ter uma ideia, quando a gente fazia o colégio, a gente não tinha o dinheiro para comprar os livros, nós nos juntávamos em 04, 05, 06 e comprava, cada um dava um pouquinho, comprava o livro, a gente tinha que se virar ali com o livro, e no fim quando terminava o curso a gente sorteava, um de nós ficava com o livro, quem ganhava, da próxima vez não entrava no sorteio, porque todo mundo era meio que na mesma situação, na mesma condição. E eu tenho amizade até hoje com 03 dessas meninas, a gente casou, teve filha, teve neto e a gente tem amizade até hoje.

P/2 - Antes de você falar da faculdade de Mogi, eu sei que você vai contar disso agora. Eu acho que a gente podia voltar um pouco. Você falou dos amigos. Você falou dos professores que você gostou. Agora você começou a falar de amigos que você não esquece nunca. Você não falou pra gente ainda, como é que era a vida na escola? Você falou que seu irmão no começo te trazia estojo, você contou da roupa, do uniforme que era complicado, mas como que era o dia na escola? Os amigos, os professores, os estudos mesmos, que tipo de aluna você era, você lembra desse período?

R - Eu lembro que tinha um certo distanciamento de alguns alunos lá no primário, porque imagina, mulher preta sem marido, nós éramos filhos dessa mulher preta sem marido, infelizmente a minha mãe se tornou alcoólatra também, não estou querendo justificar, pelas diversas mágoas ela encontrou um refúgio na bebida. Imagina você, uma mulher com toda essa carga, separada, alcoólatra e negra, e a gente sendo o filho dela! Então era muito grande esse distanciamento dos filhos dos brancos, ou mesmo dos pretos que nos cercavam, porque a minha mãe era uma pessoa talvez perigosa para as mães por causa dos maridos. Talvez, não sei. Não é nenhum julgamento, mas eu às vezes me pego pensando porque. Tinha pessoas muito próximas, mas tinha pessoas que mantinha a gente em distância. Uma vez eu menti, nesse sobrado que eu vim morar muitos anos depois quando eu era pequena, eu falei que morava nele, porque, “onde você mora?”, era no morro, eu morava no fundo, mas eu falava que morava no sobrado para diminuir essa diferença, esse sofrimento. Eu e meu irmão, a gente ia pra escola junto, desde pequenininho, desde pequena, era em um outro bairro, a gente ia de mão dada, a gente sempre andou de mão dada quando era pequeno, minha mãe falava, fica de mão dada e presta atenção, a rua tem aquelas voçorocas que cabia a gente dentro, inclusive uma vez tinha uma descida na Geolândia, em cima tinha uma padaria e um jipe perdeu o freio, só que a gente achou que tinha alguém dentro querendo brincar, nós ficamos na rua, a gente quase foi atropelado, a gente entrou dentro do buraco da vossoroca e o jipe foi até o córrego lá embaixo, era isso, a gente brincava naquela rua, a gente se escondia ali de tanto buraco que tinha na rua. Eu lembro também que a gente ia no posto de saúde tomar injeção, alguma coisa, minha mãe só olhava pra gente, a gente nunca fez escândalo, nunca nem chorou. Acho que não tiveram a infelicidade de conhecer o óleo de bacalhau, que infelicidade, vocês são felizes, aquilo é um inferno gente, mas aquilo ajudou muito no nosso cálcio, e o no posto de saúde eles davam aquele e o biotônico fontoura, era um vidro só para os dois, a gente levava de manhã lá para casa da avó Lola e da Tamira, e a tarde a gente trazia para casa, a gente carregava o óleo de bacalhau. Eu lembro uma vez que caiu, choveu e já tinha guia, não tinha asfalto, não tinha nada, mas tinha as vias e a água canalizava ali, e uma vez a gente brincando, vindo ali de mão dada, a gente deixou cair o bendito do biotônico e nós fomos correndo atrás, eu não deixei meu irmão entrar, ele ia entrar dentro do córrego para pegar, olha o perigo que a gente corria constantemente, alguma coisa ali me segurou não deixa, “mas a mãe vai brigar”, “vamos apanhar juntos, mas não vai atrás”, porque ele ia morrer afogado com certeza. E teve uma outra passagem, que eu lembro que alguém estava puxando água no poço e eu peguei a chave e botei ali no prego. Imagina. Olha a cabeça! A minha mãe chegou do trabalho, mãe a chave caiu dentro do poço, e ela “nossa filha, como que aconteceu isso?” Ela nem quis saber, falou, graças a Deus que você tá viva, mas ela não sabe, ela morreu sem saber que eu tinha jogado. Ela pensou que eu tivesse puxando água, e eu deixei ela pensar isso, que estivesse puxando água e a chave tivesse caído, para uma criança pequena querer ir atrás da chave, com medo, não é muito difícil, então o que eu quero dizer é o que eu sempre falo para a Bianca, para minha filha, os riscos que a gente corria eram muito grandes. Quando a gente morou nesses lugares que tinha só 01 banheiro, que vários homens, várias pessoas frequentavam, esse período que a minha mãe era alcoólatra e que nós ficávamos…ela cuidava da gente, mas às vezes ela dormia, vencia o cansaço, o álcool vencia, a gente ficava à mercê. Então os riscos que nós corremos foi muito grande, nós somos sobreviventes, realmente, literalmente sobreviventes, porque a gente não tinha quem cuidasse da gente, foi uma infância assim, as roupas eram dessa forma que a gente tinha, material de escola a gente dividia, eu dividia com o meu irmão, eu mais usava do que ele, os professores também tinham um certo preconceito. Eu tive uma professora chamada Vanda no 2º ano que ela batia nos alunos. O aluno ia na lousa e fazia alguma coisa errada, ela pá pá no bumbum, às vezes ela dava soco na cabeça dos alunos, eu nunca apanhei dela, mas eu ficava indignada de ver. Eu sempre fui aquela aluna que sentava ali no cantinho e ficava quietinha, porque eu não podia me expor, se eu me expusesse era ruim para mim, o meu irmão chegou a tomar lanche na escola de caixa, eu nunca peguei um lanche, nunca me deram um lanche na escola, hora do lanche, hora do recreio, não, eu não tinha, eu tinha banana em casa, eu levava quando eu tinha, quando eu não tinha eu não levava, e estava tudo bem, estava tudo certo, mas no período do meu irmão tinha lanche, no meu período nunca tinha. Os melhores trabalhos eram de quem tinha melhor melhor material, quem não tinha, fazia os piores trabalhos. Então, por mais esforço que você fizesse você não conseguia, mas nunca fui reprovada, e tinha aquele negócio também das meninas levarem a bolsa da professora, na época de vocês, acho que já não tinha mais esse negócio, mas era muito importante a gente ajudar a professora, ir lá no ponto do ônibus e levar a professora até a sala da aula, levando as coisas da professora, eu falava, “não, eu também não vou fazer isso, estou cansada, não vou fazer isso”, mas às vezes as professoras me chamavam para eu fazer isso, mas eu não sei se elas sentiam que eu ficava à parte, eu não acho que era humilhação, eu acho que elas queriam me inserir nos grupos, mandava eu pagar a lousa, mas não era para subjugar, eu acho que era para inserir, porque todo mundo queria fazer isso e eu sempre ficava de fora, digo por mim, meu irmão eu não sei porque ele estudava em sala diferente, com horários diferente, nós tínhamos que fazer isso por causa dos materiais que a gente tinha que dividir. Então, existia essa diferença, eu sentia essa diferença, hoje que eu consigo analisar algumas coisas, eu consigo fazer algumas diferenciações, mas eu sempre pensei nesse perigo que a gente corria, eu sempre pensei em como nós fomos protegidos pelo universo, por Deus, por algumas pessoas, encontramos pessoas muito boas também, essa família Shimada que era as alemãs e o japonês, eles ajudaram muito a gente, tenho um carinho muito grande. Quando eu terminei a minha faculdade de economia, o avô Shimada, nós fomos para a colação de grau, nós paramos na Dutra para comer uma pizza, e a gente até tinha dinheiro para pagar, porque eu já tinha dinheiro, mas ele fez questão, e eu lembro muito do que ele falou, “Maria, eu tive 03 filhas, você não é minha filha, foi a única que me deu prazer de vir em uma formatura”. Ele tinha um orgulho, avô Shimada era uma pessoa fechada como os japoneses são, ele era um senhor, e ele falou, “eu tenho muito orgulho de você”, ele falava, “você vai conseguir comprar sua casa, você vai conseguir cuidar da sua família”, ele ditou isso, ele falou isso, ele tinha um orgulho de mim e eu me sentia muito feliz por proporcionar essa alegria para ele. Eu não falei do meu pai. Lá atrás quando ele quis que a minha mãe me abortasse, e a minha mãe me contava essa história, eu nunca falei nada para ele, quando a gente já era adulto ele se aproximou da gente. Teve um dia que eu já tinha conseguido comprar meu carro 1.0, um Gol, mas era zerinho, eu não dirigia, era meu irmão que dirigia, ele um dia me chamou, chegou lá em casa e falou: “eu preciso muito falar com você”, eu pensei, ele vai querer que leve ele em algum lugar, fomos eu, meu irmão e a Bianca já era grande, vamos lá. Cheguei na casa dele, ele falou,

“filha, só tenho um pedido para fazer, me dá um abraço, um beijo e fala que me perdoa”. “Perdão do que pai?” Pai não, Acineto, eu nunca consegui chamar ele de pai. “Perdão do que Acineto? Por que eu vou perdoar o senhor? Quem perdoa é Deus. Eu não sou ninguém para perdoar”.

“Só me diz que você me perdoe e me dê um abraço”. Ficou insistindo nessa fala várias vezes e eu falei, olha, então está perdoado, dei um abraço nele, mas me fala o porquê, ele nunca me falou, mas eu sei que era porque ele queria que eu fosse abortada, tenho os meus irmãos, esses últimos 04 dos 03 que eu tenho mais proximidade, a Rosângela, sempre fala para mim, “você não tem ideia, você não tem dimensão do orgulho que o nosso pai tinha de você, você não tem ideia, ele sempre citou você como exemplo para todos nós”. Ele tinha um orgulho muito grande, foi a filha que casou na igreja, que era importante, que se formou, foi a filha que deu gosto para ele, foi a única que ele não cuidou que deu as maiores alegrias para ele. Ainda bem que eu não dei tristeza, que dei alegria. Eu não tenho nenhuma mágoa, nunca questionei a separação dos dois, nunca julguei, porque quanto mais idade a gente vai tendo, menos julgamento a gente vai pondo na pauta, porque a gente vai vendo que a vida não é essa fantasia toda, tem coisas, são situações reais que a gente tem que viver está tudo bem.

P/1 - Maria, voltando para a escola um pouco, fala para mim como é que era o cotidiano na escola. Você chegava a que horas? Você ia como? Tinha algum ritual ou jurar bandeira, não sei como é que era?

R - Você está falando lá do primário. Tinha esse canto que a gente tinha que fazer, cada sala fazia um canto, e antes de começar o canto de cada turma, a gente cantava o hino nacional, ou o hino da bandeira, no meu primário todo teve isso. No ginásio não tinha, até porque eu fazia a tal da admissão, depois eu fui fazer o ginásio lá no Pedroso, eu sempre chegava atrasada, no primário não chegava atrasada, porque eu esperava o meu irmão sair para trocar o material, então não tinha nem como chegar atrasada, senão ele não me dava o material, ele ia embora com o material e eu ficava sem, eu chegava sempre, dava um jeito, me virava e chegava, com fita ou sem fita, como eu te falei, eu sempre achei que eu era japonesa, sentia alguma coisa, nem sei porquê, a minha mãe só podia pentear meu cabelo uma vez ou duas por semana, porque ela trabalhava muito, então ela fazia umas duas trancinhas, amarrava aqui em cima com um laço, podia não ter nada, mas o laço tinha, desse tamanho na cabeça, e não tinha uma vez que eu não perdia o laço, a minha mãe brigava comigo. A tia Leleca era uma das irmãs, ela comprava um monte de fita, e a minha mãe falava, deve ficar alguém na rua esperando, “lá vem a menina das fitas”, todo dia eu perdi a fita, eu pedia para o meu irmão me ajudar a tomar conta das fitas, mas eu perdia, e o cabelo puxadinho, até doía, ardia a cabeça de tanto que puxava o meu cabelo, era assim que eu ia para a escola, mas não chegava atrasada, nunca. No ginásio, eu nunca chegava no horário, porque eu estava trabalhando, ou eu estava limpando a casa da dona Edna, depois eu tinha que passar na minha casa, tomar um banho correndo, deixar

aquela comida que ela deu pra gente, para o meu irmão que vinha depois, a gente foi ter fogão a gás eu já tinha 11 anos, que a minha mãe conseguiu comprar uma máquina de costura e um fogão a gás, foi uma patroa dela que comprou acho que Taubaté, elas tinham orgulho de falar, a máquina tem até hoje, essa máquina, esse fogão veio lá de Taubaté, a dona Carolina comprou lá, financiou para ela. Essa dona Carolina era uma santa, porque uma vez por mês ela mandava um bombom sonho de valsa, um para mim e outro para o meu irmão, ou então ela mandava uma maçã, no tempo que vocês não conhecem, vocês não vão conhecer nunca, porque já passou, no tempo que jogava-se um papel na rua ou você via um papel de maçã roxinho, você sentia o cheiro da maçã, hoje você vê maçã, abacaxi, não tem mais aroma, não tem, mas antigamente você via um papel, ela mandava uma maçã pra gente e a gente dividia. A minha mãe ganhava uma bala da patroa, uma que ela ganhasse, ela dividia, metade para um, metade para o outro, era assim que a gente vivia, e éramos muito felizes. Então, no ginásio eu nunca chegava no horário por conta de ter que trabalhar, também os professores não queriam ouvir minha explicação. Quem ia acreditar que uma menina daquela idade estava trabalhando de manhã para poder ir à tarde na escola. Então eu nem precisava explicar, porque ninguém ia acreditar, iam zombar de mim ou talvez por até de castigo, me castigar de alguma forma, eu nem dava explicação, mas eu era aquela aluna que sempre chegava atrasada, mas que sempre entregava os trabalhos em dia, então eu nunca era punida, porque eu era uma boa aluna. Eu fiz só o 1º ano de ginásio ali durante o dia, porque depois em uma das recuperações da minha mãe, eu já estava com 14 anos, a minha mãe conseguiu falar com o diretor e eu consegui passar para a noite, tinha um negócio que a gente tinha que pagar uma taxa na escola, não sei se era uma caixa da escola, e esse diretor exigia que pagasse e a gente não tinha como. A minha mãe vendeu a nossa cama de casal para poder pagar a escola, quando ela foi, ela aproveitou e falou, “ela precisa trabalhar, eu preciso que ela estude à noite”. Então ele consentiu. À noite só estudava adulto, eu era a única menina que tinha 14 anos que estudava lá, eu era bem miudinha, bem magrinha, e eu me escondia lá no fundo da sala, tinha uma bendita de uma professora de matemática que ela. “Ei, você aí, vem escrever na lousa”. Quanto mais eu me escondia, mais ela me chamava. “Qual o seu nome?” “Maria de Jesus”. “Lurdinha, vem na lousa”. “É Maria de Jesus, professora”. “Lurdinha, vem na lousa”. Denominou Lurdinha. Eu lembro que tinha Isabel que trabalhava já no banco Itaú, era uma moça muito bonita e todo mundo já trabalhava em lugares de destaque. Eu era doméstica, tudo bem, mas eu também não falava para ninguém, ficava bem quietinha, mas todo dia eu era aquela menina que ficava escondidinha, mas eu era chamada no quadro para fazer as lições, apagava a lousa, aí já era porque eu era pequena mesmo, já não era para me incluir, porque eu era menor, os outros estavam cansado porque os outros trabalhavam e eu não, teoricamente eu tinha 14 anos, eu apagava a lousa, quando tinha lixo no cesto eu que tirava, não acredito que tenha sido preconceito, porque eles achavam que eu não trabalhava, e eu não tinha como falar para as pessoas que eu trabalhava, porque não podia, o diretor acho tinha aberto uma exceção, eu também não podia falar, ele deixou porque eu trabalho, eu ficava quietinha, mas eu sempre tive muito destaque. Foram 03 anos que eu acabei fazendo em 04 anos o colégio, que eu fui conhecendo o Marcelino que era esse professor que trazia livros e emprestava pra gente, Maria Luiza, professores maravilhosos, eu fui me enturmando com o pessoal, no teatro amador a gente se enturmou mais, uma dessas minhas amigas que eu tenho amizade até hoje, a gente já foi sabendo um pouco mais da vida uma da outra, já participávamos uma da casa da outra, a gente ia, chamava as mães de mãe, uma mãe única para todo mundo, todo mundo era mãe de todo mundo, a gente foi tratado de uma outra forma, a gente foi construindo o nosso espaço.

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Acho que você ficou menos tímida nessa época, é isso?

R - Fiquei, porque eu era uma pessoa que se escondia, eu fui ficando cara de pau, porque ou eu ficava cara de pau ou eu ia sofrer para o resto da vida, eu me desinibi de uma vez. A cara de pau que eu sou hoje foi por conta disso, me ajudou, hoje eu falo, eu não estou nem aí, se acham bonito, se acham feio, porque eu fui colocada nesse papel, e por isso que eu não lamento nada, às vezes eu me emociono com algum dado, mas eu tenho muita gratidão, porque se eu sou o que sou, posso não ser nada para ninguém, mas para mim eu sou muito, eu conquistei, foi duro para eu conquistar. Na época que eu trabalhava para essa dona Edna, fazendo o serviço dos filhos dela escondido do marido, ela gostava muito de falar que eu era pobre, gostava muito de criticar os pobres, tinha uma meia furada, ela falava, “imagina a Silvia está com essa meia furada parece pobre”, ela humilhava, mas essa dona Edna queria ser boa samaritana, quando a minha mãe era internada, ela, “eu vou junto no hospital te levar”, só que ela ia junto, mas eu que pagava a condução, para mim era muito oneroso, porque além de pagar minha condução, tinha que pagar a dela, para mim não era negócio, eu não tinha como falar isso para ela que era minha patroa e era mais velha, eu tinha que mentir para ela que eu não ia, ir escondido, para não ter que pagar a condução dela, porque ficava muito caro para mim. Eu levava mamão papaya para minha mãe, levava a laranja lima que a minha mãe era louca por isso, levava camisola, e eu também faltava na escola nos dias de visita, porque como eu poderia estar nos dois lugares ao mesmo tempo, mas eu nunca deixei minha mãe um dia sem visita, nenhuma das vezes que ela foi internada. O meu irmão não ia, “é muito triste lugar de hospital, eu não vou”, então eu ia sempre na Santa Casa, nessas últimas cirurgias foi na Santa Casa, Moacir Camargo, foram nesses hospitais.

P/2 - Eram sempre coisas diferentes ou era uma mesma doença?

R - Uma vez achavam que ela tinha câncer na mama, não era. Tiveram que fazer duas cirurgias, fizeram uma e não deu certo, fizeram outra, no Moacir Camargo teve do útero, que primeiro fizeram uma curetagem, depois fizeram uma cirurgia que não deu certo, fizeram de novo tiraram todo o útero, operou da tireoide, operou da vista, então foram vários hospitais, Matarazzo foi um dos hospitais até que o cara deu alta para ela errada e eu tive que brigar por isso, deu alta e foi engano, depois ele foi demitido do hospital por conta disso. Embora eu não quisesse que isso acontecesse, mas o diretor já tinha alguma queixa certa falou, “uma batata podre no saco, apodrece todas as outras, e se a tua mãe tivesse morrido?”. Eu tive que testemunhar uma coisa que eu não queria, eu não queria que ele fosse demitido, queria que fosse chamado, mas foi o que aconteceu, enfim, eles aproveitam a situação e a gente fica sendo usado para eles acertarem uma situação dessa. Até pouco tempo atrás, eu também tive uma diretora no trabalho, eu fui promovida, eu tinha 17 funcionários, deixa eu voltar um pouquinho. Eu fui para a faculdade, prestei o bendito vestibular e eu não sabia se eu ia fazer direito, eu ia fazer um curso superior, porque as meninas falaram, “vamos entrar”, ninguém tinha dinheiro. “Vamos entrar na faculdade, depois a gente se vira para pagar”. Tudo bem, vamos lá, falei, “bom, o que eu vou fazer? Tem que fazer alguma coisa de humanas aqui…dá para fazer direito”. Fui para faculdade fazer direito, me inscrevi para

fazer administração, prestamos o vestibular, justo aquele ano teve fraude, a gente ficou esperando esse retorno, tivemos que fazer de novo. Fui cursar, fiz o primeiro com dificuldade, imagina Mogi, o trem dos estudantes foi inaugurado naquele ano, 76 quando eu entrei, só que no 2º semestre que foi inaugurada a Estação dos Estudantes, então não tinha o trem ainda, como que eu vou pagar a faculdade e eu tive que sair do Bradesco, mas o horário não dava para ir para Mogi e sair, eu prestei um concurso público, Secretaria da Saúde, fui trabalhar como funcionária pública durante 04 anos. Só que como ninguém vê quem está atrás, eu fui uma das classificadas, as 05 primeiras pessoas que conseguiram uma boa colocação, e as primeiras pessoas trabalhavam na diretoria. Como ninguém viu, eu fui trabalhar na diretoria, só que o meu diretor Manuel Joaquim dos Reis Filho, racista, racista, racista! Ele falava que não, jurava que não, mas tudo que qualquer pessoa fizesse errado, dona Maria de Jesus, a gente colocava /MJ/Tânia/Sueli/ - éramos três secretárias, mas se aparecesse alguma falha, dona Maria de Jesus. “Drº Reis, não fui eu que fiz, olha está a barra, não fui eu que fiz”, “a senhora tem que tomar conta”, fazia aquele escarcéu, eu desabafava com uma senhora que trabalhava no administrativo, que era chefe de uma turma, ela falava, “eu vou conversar com ele,” conversava com ele, ele vinha, pedia desculpa, no outro dia ele fazia igual, ele apertava a campainha, a primeira pessoa que abria a porta era eu, porque eu estava sempre ali pra ajudar, “então é a senhora que leva as broncas”. Meu Deus, se eu não for, também vou levar bronca do mesmo jeito, porque eu não fui, era aquela pessoa metódica, ele era advogado, ele era bem baixinho, botava assim nessa altura aqui, tinha que ficar a tabaqueira dele, que ele fumava cachimbo, o negócio do fumo, na outra distância tinha que ter a água, era tudo assim milimetricamente arrumado as coisas dele, e racista, implicava com todo mundo, as pessoas, os médicos, as pessoas mais humildes iam lá para falar na coordenadoria de saúde, pedir, a gente marcava tudo, agendava, ele deixava as pessoas, ele ia almoçar e ficava 03, 04 horas fora, ele não entendia, sabe funcionário público daquele alto escalão que se acha acima, superior ao superiores. Então essa pessoa foi um grande mestre na minha vida, me ensinou muito, porque depois ele foi para um estágio superior na coordenadoria ser superintendente e veio o senhor Boldrin, Benedito Boldrin, pessoa fantástica, maravilhosa, era outra coisa, muito bom de trabalhar, mas eu precisava ficar lá os 04 anos, e eu fiquei os 04 anos enquanto eu fazia faculdade, porque eu saía 05 horas, entrava às 08, dava tempo de ir para Mogi. Foi assim a minha faculdade, eu tinha aula de sábado também, eu ficava o dia inteiro no sábado na faculdade, era muito cansativo, porque o trem de estudante no sábado só tem de manhã e para voltar, depois a tarde não tem, quem fica lá o dia todo ou eu vinha de carona, ou eu vinha de pinga pinga, em uma das vezes que eu vim de carona, foi um dia que choveu muito, não tinha trem, tinha um colega o Cláudio que tinha carro e morava perto da minha casa, e ele falou, você vai comigo Lurdinha, porque eu virei Lurdinha, você e a Luzia vão comigo, pegou mais duas pessoas, uma de educação física, uma de direito e nós viemos, e ele bateu o carro. Adivinha quem foi a sorteada, fui eu, eu me machuquei, fiquei com o estilhaço no rosto, porque eu sentei atrás dele no banco de trás, e quando o cara vinha da padaria, o padeiro ia fazer pão de madrugada, ele veio na contramão e o Cláudio virou, quando virou o carro, abriu a porta, ele caiu do lado de fora e eu bati a cabeça, eu fui a que mais me machuquei, minha voz mudou, minha voz não era essa, porque mudou aqui, teve que fazer uma cirurgia aqui interna, foi um negócio, eu fui para o hospital, estava de vestido, fui para casa vestir uma roupa para poder ir para delegacia, para ir para o hospital. Cheguei no hospital, falei que a perna estava doendo, tiraram um monte de radiografia, quando eu chego em casa, era essa perna que estava doendo, eu falei de uma perna e era outra, umas coisas assim terríveis, eu fiquei um ano indo para faculdade, trabalhando durante o dia, tomando caldinho porque eu não podia comer pão, não podia comer nada, não podia comer comida, só líquido, eu fiz até um conto da Lurdinha de queixo amarrado, porque eu amarrava toda noite para poder dormir, literalmente de queixo caído.

P/1 - E o trabalho era longe, o seu emprego na saúde?

R - Era na coordenadoria de saúde, na avenida São Luís, que hoje é uma outra coisa, passei lá outro dia que eu fui no Copan, é outra coisa, mas continua sendo um órgão público, mas era ali São Luís, 99, trabalhei ali 04 anos.

P/1 - Você andava muito no centro de São Paulo como é que era mesmo?

R - Andava, lá atrás, quando eu ia visitar minha mãe, que eu escondia da dona Edna para ir sozinha, os policiais ali na república, cavalaria e eu fugindo das balas, que era bala que saía para tudo quanto era lado, eu miudinha com aquela sacolinha de plástico fugindo das balas para poder ir para o hospital e voltava nessa condição, morria de medo, passava entre os cavalos, quase embaixo das pata dos cavalo, ali do lado.

P/1 - Mas era o que, era atrás de alguém?

R - Eles estavam atrás do estudante. Nossa, não podia aglomerar, era motim, não podia ter 02, 03 alunos conversando, então eles ficavam ali na Praça da República, a cavalaria, e eu passava meio eles, porque não tinha como, eu vinha da Zona Norte, eu tinha ir lá da Santa Casa, eu passava, pelo menos uma ou duas vezes por semana eu enfrentava essa situação, era correndo de bala mesmo, correndo de bala porque era bala, não sei se era de borracha, era bala adoidada.

P/1 - Na época você entendia o que estava acontecendo, alguém te explicou, o que você achava?

R - Eu não tinha tempo de pensar, eu sabia que eu ia enfrentar aquela situação, que eu não podia fugir, não podia falar para ninguém, eu tinha que visitar minha mãe no hospital, tinha que voltar para casa e dar conta das minhas obrigações, o que acontecia ali não me diz respeito, chegava a noite na escola as pessoas comentavam e eu falava, “não sei porquê, tinha um monte de jacaré na Praça da República”, a gente comentava, a gente falava dos medos, eu ouvia as pessoas falando dos medos, o Marcelino era meio político, ele falava, mas eu ficava, eu tinha que enfrentar aquela situação, não lembro porque, eu sei que era para pegar os estudantes mesmo, porque não podia se falar nada que: ou a borracha comia, ou as balas que eu não sei como que rolava.

P/1 - A polícia era assim no seu bairro também?

R - Não, no meu bairro eu não via, era só no centro. Principalmente na Praça da República, ali perto do Correio, no Anhangabaú, se via um outro ali pessoal de cavalo, mas assim que rolava mesmo era aqui na Praça da República, rolava muita confusão.

P/1 - Mas como era a relação?

R - Eles me ignoravam, o que esse rato está fazendo aqui, miudinha com a sacolinha debaixo do braço, também nunca me auxiliaram, ou “vai ali ó menininha, vai por ali”, nunca me ajudaram também, nenhum nunca me ajudou, também nunca me atrapalharam.

P/1 - Você não quer confusão ali?

R - Eles não queriam, eu era criança, então eu acho que eles nem se davam conta que uma criança estava correndo no meio da praça, no meio do tiroteio, ninguém dava confiança, que mal que eu podia fazer com uma sacolinha, hoje eu podia até achar que eu estava levando droga, que eu estava sendo aviãozinho, mas aquela época acho que não rolava esse tipo de ideia, esse questionamento, também não me ajudava, não me atrapalhava, tudo certo, eu sempre passava batido.

P/1 - Você falou que isso não era muito importante para você nessa época. Mas como é que era esses medos? Era medo de que? O que as pessoas falavam que você identificava?

R - Então, eu tinha medo da minha mãe, primeira coisa era o ser que era responsável por nós, eu tinha medo que ela nunca retornasse do hospital, eu tinha muito medo, cada vez que ela ia, que ela era internada, eu tinha medo que ela não voltasse, e naquela época não era a Fundação Casa, era a FEBEM, a gente tinha muito medo, porque a gente criou o meu pai na nossa cabeça, não foi coisa da minha mãe, foi atitudes dele mesmo, não indo visitar a gente, não dando atenção pra gente, nós criamos uma figura que o meu pai era um monstro, porque teve uma vez que eu estava brincando atrás da casa, do barracão, eu tinha 01 ano e pouco, 02 anos talvez, eu lembro que eu estava lá brincando, fazendo casinha e eu passei mal, a minha mãe estava lavando roupa, lavava roupa para fora e estava no tanque, eu falei para ela, ela falou, deita lá que eu já vou te ver, eu fui, deitei, mas eu lembro que a minha mãe chegou, ela me chamava, eu ouvia ela me chamar, mas eu não conseguia responder, eu não respondi, e ela fala que ela colocava o dedo dentro do meu olho, eu nem piscava, ela ficou desesperada, com a roupa que ela estava, com o avental, com o dinheiro da cândida só no bolso, ela me pegou, me pôs um capuz, chamou a Cecília que morava na chácara, era filha do caseiro, para cuidar do meu irmão, e fomos para o posto de saúde. Eu lembro que a minha mãe (estava) comigo no colo correndo, chovendo, nós fomos para o pronto-socorro de Santana. Do pronto-socorro de Santana, mandaram a gente lá para Santa Casa. Lá eu fui, lá eu fiquei, nunca descobriram o que eu tive, nunca. Minha mãe depois fez exames de pesquisa, foi várias vezes lá, eu lembro que eu acordei e eu estava de cabeça para baixo, porque tinha um crucifixo na recepção, eu olhei e fazia 14 horas que eu estava desacordada, e eu não tinha noção, eu era pequena, eu falei, “mãe, porque o papai do céu anda de cabeça para baixo?” A minha mãe chamou a enfermeira, foi uma alegria, “ela acordou”, eles achavam que eu não fosse mais acordar, diz que eu urinava vinha tudo para a minha boca, porque eu estava crucificada de ponta cabeça, eu fico imaginando hoje que talvez fosse para vir oxigenação e funcionou, foi uma outra promessa que a minha mãe fez, quando, se eu escapasse dessa, levaria a gente lá para Aparecida, eu esqueci de trazer a foto, eu, meu irmão e ela pagaria por uma pessoa órfã, ela pagaria, porque seria um sacrifício, ela pagar para uma pessoa órfã, para gente ir para Aparecida e eu tirar a fotografia com a imagem na mão, eu tenho essa fotografia que ela tirou, eu escapei também dessa, mas eu não sei te dizer o que eu tive, porque ninguém nunca descobriu qual foi esse mal súbito que eu tive.

P/1 - Vocês tinham medo de perder uma a outra.

R - Todo mundo tinha medo de se perder ali, todo mundo, meu irmão também tinha medo. Então, eu queria chegar nessa história porque esse dia meu pai ficou sabendo, não sei como, não sei se a Cecília, alguém avisou para o meu pai e ele veio visitar a gente no dia que eu cheguei do hospital, eu lembro que eu estava no colo da minha mãe, ele foi pegar o meu irmão, e o meu irmão queria escalar a minha mãe de qualquer jeito, por isso que eu te falo, medo, pavor que tinha do meu pai, eu virava, eu não queria, lembro que ele queria me agradar, mas eu não conseguia, era um estranho pra gente, e mais tarde quando a gente morava naquelas casinhas lá da Vilinha, eu lembro que uma vez ele foi todo elegante de terno, chapéu, tinha um guarda-chuva e tinha alguma coisa na mão, ele falou “e aí minha princesa o que você quer ganhar?” Eu falei, “quero uma boneca de cabelo!” Ele perguntou, eu falei, “mas você não precisa de boneca que você já é uma boneca”, deu umas batidinha na minha cabeça eu ainda fiquei esperando essa boneca, que eu fui ganhar quando eu fiz 18 anos da minha mãe, uma Susi. Então, era uma pessoa que com todo o respeito, a gente não tinha apego, o apego era com a minha mãe, e a minha mãe era o nosso porto seguro, a minha mãe era responsável por nós, e graças a Deus muitos anos depois ela parou de realmente beber, ela sempre prometia e nunca conseguia, ela conseguiu, ela se recuperou, depois nunca mais ela bebeu, eu tinha uns 14, 15

anos talvez, que ela nunca mais bebeu e foi até o fim da vida sem ingerir álcool, ela sabia que era alcoólatra e tinha essa condição, só que aí quem entrou no álcool foi meu irmão, olha só, meu pai era alcoólatra, minha mãe é alcoólatra, meu irmão alcoólatra, são muitos traumas, se você puder analisar são muitos traumas.

P/2 - Eu queria, acho que tem algumas coisas bonitas que a gente pode tentar voltar aproveitar sem ser, acho que já teve uma fala (ruim), dos traumas que estão em toda a sua narrativa, mas o que eu queria pontuar é, você falou que você entrou na faculdade em 76, podia contar um pouco disso, e tem uma coisa lá de trás que você citou, eu acho que você trouxe a foto se não me engano da formatura, são duas coisas, eu não sei se era a formatura do ginásio ou se era a formatura do colégio para ir para a faculdade.

R - Era da faculdade. A única formatura exceto aquela do primário que eu ganhei o reloginho preto que foi uma missa, eu eu nunca participei porque é um dinheiro para pagar e não participava, fui participar só da formatura da faculdade porque era um presente que eu estava dando para minha mãe, um presente que ela merecia, era uma conquista da minha mãe, a minha formatura, então, eu paguei, fiz questão, comprei meu vestido, fiz tudo certinho. Voltando um pouquinho, quando dos meus nomes, porque eu sou Maria de Jesus, registrada, mas poucos me conhecem como a Maria de Jesus, e eu nunca falei outro nome para outras pessoas, no banco quando eu entrei eu era Maria José, eu corrigia, Maria de Jesus, colocava Maria J. P. Santana, quando chegou o cartãozinho do PIS recebi meu cartão e estava Maria José. Eu falei, “gente, eu sou Maria de Jesus”, me registraram errado, admitiram errado e era sempre Maria J. P. Santana, eu não sabia que estava errado, as pessoas daquela época no banco, os clientes eram Maria José, Zezé, Mazé e Zeca, eu tinha apelido do apelido. Fui entrar lá no ginásio que a minha professora achou que eu tinha cara de Lurdinha. Na faculdade eu fiquei sendo Lurdinha porque eu fiz vestibular com o pessoal que foi a minha turminha no trem, eu era Lurdinha, na faculdade eu era Lurdinha, mesmo velha: Lurdinha, quando eu estava fazendo o 2º ano que era 1º, 2º, você fazia todo mundo junto, 3º e 4º já era profissão, era contábeis, economia ou administração. Vou fazer administração. Estou lá na sala de administração entra o meu professor Domingo Soma que está na fotografia, vice- reitor da faculdade “Qual o nome dela?” “Lurdinha não, professora. Eu sou Maria de Jesus”, “não, você é Lurdinha”, também virei Lurdinha. Quando eu entrei, os veteranos, “você vai pegar duas DPs na tua vida, uma vai ser com Ícaro de matemática, e outra vai ser com Soma”, todo mundo já avisava, e eu também tinha uma frustração, hoje os trotes são muito rigorosos, mas naquela época até que eram bonitinhas, porque quando eu passei no vestibular, que nós fomos lá para casa comemorar com aquela turma, meu irmão, eles abriram champanhe, Cidra, a gente chamava de champanhe, e deu banho em todo mundo, naquele pessoal que fez o vestibular, todo mundo comemorou, me pintou, nossa que festa, entrou na faculdade. No trem eu ficava frustrada, porque o pessoal ia assim, bicho, veterana, bicho, bicho, veterano, eu era veterana, eu acho que tinha cara de velha, ou de séria, todo mundo achava que eu era veterana, nunca me pintaram na faculdade, pintava todo mundo, jogava talco, acho que farinha de trigo nas pessoas, molhava, eu não, eu era veterana, nossa que frustração, demorei tanto para ir na faculdade, ninguém faz isso comigo, mas hoje a gente dá graças a Deus, porque os trotes hoje são de matar, eles querem matar as pessoas. Realmente, de matemática, eu fiquei em DP, 1º ano. 2º ano era o Soma, eu falei “com esse eu não vou pegar DP”, ele veio, as pessoas tremiam na base, ele abria a boca, ele era vice-reitor e era economia brasileira, o cara era perigo, “não é meu pai eu vou enfrentar, timidez eu já não tinha mais”, ele falava uma, eu falava duas, eu enfrentava ele. Lembro uma vez que a nossa sala era menor, primeiro ele falou assim, “o que você está fazendo nessa sala aqui de administração”? Eu falei, fazer administração. “Vai fazer o quê? Prendas domésticas? Fica em casa fazendo prendas domésticas. Vai fazer economia, vai para você poder pensar, faz economia. Amanhã eu quero te ver na minha sala de economia”. Está bom, deixa eu fazer economia, vai ver que ele tem razão, sabe o que está falando, ele é o mais respeitado aqui na faculdade, e eu fui fazer economia. Ele falava as coisas, o cara com o maior número de dependentes na faculdade, tinha pessoas que já tinham terminado a faculdade e estava em DP com ele. Eu falei “comigo não vai ser assim”. Aí eu comecei, ele sabe, eu também sei. Na primeira prova que esse homem deu, ele falou assim, deu uma folha, tinha o timbre da faculdade, como se fosse uma sulfite, que não é sulfite, é almaço, uma folha com 04 páginas, ele distribuiu as provas para o pessoal, eram duas perguntas somente, e falou, “escolhe uma das duas e faz”. Muito bem, eu fiquei lá pensando, pensando na morte da bezerra, fiquei pensando na resposta, qual eu ia fazer, qual resposta eu ia dar, e ele passava para lá, passava para ver, aquilo foi incomodando o homem de uma tal forma, ele chegou em mim e falou, “o que você está pensando? Que horas você vai fazer a prova? Eu não espero ninguém não, tá? Deu horário, pego minhas coisas e vou embora. Não vou esperar ninguém”. “Está bom professor. Sobe de novo”. “Vai começar a escrever quando”? Fica tranquilo professor, daqui a pouco pensei, respondi as duas, respondi uma, respondi as duas. “Baixou o santo aí? O que você quer?” “Dá para você me dar mais uma folha?” “Para que, para encher linguiça”?

Pegou a prova em todo mundo. Acho que demorou 01 mês para esse homem vir com essas notas. É isso? Número tal, 1/2, porque eu não dou zero para ninguém, numero tal, 1 e 1/2, 02, 03. Quem é 3.200? “Eu, professor”, próximo número, passou. “E eu professor, você não corrigiu minha prova?” “Deixa por último”. Todo mundo, aquele sofrimento. “E aí professor, qual é a minha nota?” “Eu também não dou 10 para ninguém, 9 e 1/2. Não deu 0, mas também não dou 10. Pronto, todo mundo vinha, a veterana, vinha pessoal da outra sala. “Como que você fez?” Falei, “eu não fiz, eu fiz a prova e respondi as duas”. “Em outra situação eu daria 10, mas eu não dou 10 para ninguém”. “Está bom professor, tudo bem, sem problema nenhum”. “Espera até o próximo bimestre”. Tudo bem. “Isso daí não vai ficar assim não”. “Está bom professor”. Eu provocava, tudo ele contestava, tudo que eu falava ele contestava. Ele só discutia comigo. “Está bom professor, está tudo certo”. Até um dia que ele me chamou, teve o crédito educativo, isso também foi no meu ano que teve crédito educativo, começou no meu ano em 76, 77, pode analisar lá, eu fui lá fazer a bolsa, é semestral, eu fui no 2º semestre. Falei, “eu vou pegar uma bolsa disso”, porque você não sabe da dificuldade para pagar a primeira, meu Deus do céu, juntamos o dinheiro, pagamos a primeira mensalidade, 500 e poucos reais na época, que não eram reais, era cruzeiro. E agora como é que eu vou pagar a outra… no dia de pagar, o meu pai queria parar de pagar pensão porque eu já era grande, só que o juiz falou, não, ela tem que terminar a faculdade, 21 anos vai terminar a faculdade, não é assim não que funciona. E ele teve que continuar, ele teve que dar um valor atrasado e aí deu para pagar a faculdade aquele mês, outro mês que estou aliviada, meu Deus do céu, aí veio o crédito educativo. Eu falei, vou pegar. “E aí, como é que você vai pagar”? Depois a gente vê, um passo de cada vez. Eu saí um dia na aula dele que me chamaram lá na secretaria, eu voltei, ele falou, “o que aconteceu”? Eu falei não, eu fui lá assinar o negócio da bolsa do crédito educativo. “Você é louca? Como você vai fazer um negócio desse”? Eu sou louca, “Como você vai pagar”? Eu falei, olha na pior das hipóteses, quando eu terminar a faculdade eu falo para o governo, eu vou trabalhar com você 04 anos de graça, na pior das hipóteses eu vou fazer isso, porque o que eu vou fazer, eu preciso. Pagava 5% ao ano naquela época, eu não peguei só a bolsa, peguei o auxílio que era uma manutenção do aluno, comprei um telefone no tempo que o telefone tinha valor, me inscrevi na TELESP na época, consegui um telefone, não era pelo telefone, era pelo valor do telefone, com a manutenção eu pagava o telefone, ainda sobrava uns trocos e eu guardava, o dinheiro eu consegui entrar lá na secretaria da saúde, então eu tinha dinheiro para pagar a faculdade, eu guardava o dinheiro de pagar a faculdade, mas tudo isso não era por ser esperta, era com medo que alguma coisa desse errado e eu tivesse que travar o meu estudo ou faltar comida na minha casa, eu fui dando esse jeito. Quando esse homem viu que deu tudo certo, ele falou, “mas você é nata mesmo”, eu desafiava ele até que um dia ele me chamou e falou, “eu preciso indicar um aluno para ser meu assistente e eu estou te indicando, você topa”? Eu falei, “está certo”, ganhei bolsa de estudo em 02 semestres por conta de ser assistente dele, auxiliar dele, monitora de ensino. Depois ele queria que eu continuasse como assistente dele, quando eu terminei a faculdade, falei, “não dá para eu ficar indo para Mogi, tenho que trabalhar, agora tem que tirar o atraso”.

P/1 - Você terminou com quantos anos?

R - 24, eu entrei com 20, terminei com 24, no tempo normal e sem a DP de matemática. No 2º ano eu me livrei da bendita da DP.

P/2 - E durante esse período da faculdade, já existia mais uma certa consciência do que estava acontecendo no Brasil, porque você estudava economia, economia brasileira, como que isso era ensinado?
R - Tinha esse meu professor, imaginei assim bolsonarista, e ele sempre trabalhava em uma multinacional, na época não era multinacional, era Siderúrgica Fiel, mais tarde eu fui trabalhar nessa Siderúrgica Fiel. Então, não se falava de política, a gente falava entre nós alguma coisa, mas não era, ele era todo radical, todo na dele, e a gente vai enfrentar o lobo para que, vai bater de frente para que? Então a gente não falava. Tinha um grupinho da gente que a gente conversava, a gente falava das nossas dificuldades, dos nossos anseios, mas era bem longe da escola, bem longe da faculdade, muito longe, porque já tinha essa represália, tinha o Valdir que acho que era o reitor, e tinha ele que era o vice-reitor, então tinha essa restrição, mas o que eu quero te dizer é que eu saí com o mérito, no dia não era a vez dele me dar o canudo e ele quis, fez questão. No 3º bimestre, eu tinha fechado com 9 e 1⁄2, o pessoal de DP ficou um tempão ainda de DP, mas eu discutia, eu enfrentava, eu falava e ele tinha mania de falar que ele tinha me dado apelido, até hoje ele fala que ele me deu o apelido de Lurdinha por causa do Napoleão, ele queria sempre me desconcertar e eu não é por nada, mas ele está querendo sempre dizer que eu sou uma máquina, mas eu desconcertada ele, eu sou de desconcertar. Terminada a faculdade, eu comecei a mandar meus currículos, eu mandei para várias empresas, inclusive para a Siderúrgica Fiel e fui chamada.

P/1 - Era aonde?

R - Era na rua Guaicurus 225, na Lapa, ela é paralela à Clélia.

P/2 -

E você precisava sair da Secretaria da Saúde porque não era bom, qual era a razão?

R - Não, porque aquilo ali foi só para eu fazer faculdade, era um salarinho assim ó. E outra, não dava para eu continuar. Eu tinha terminado o curso de economia, lembra que eu tinha que pagar o crédito educativo, eu não podia pagar com aquilo. Então eu falei, vou ter que sair daqui, vou ter que mandar meus currículos. Eu estava de férias, tem uma coisa, não era não era ganância, mas eu sempre tive essa necessidade de trabalhar muito, na época que eu trabalhava na Secretaria da Saúde, o serviço público eram 30 dias de férias, e a privada eram 20 dias, eu tirava 30 dias do serviço público e eu já ia na Base que era ali na Galeria Metrópole, tinha uma agência de emprego que chamava Base. Eu já ia direto, uma semana antes procurar um emprego temporário nas minhas férias. Então, os 30 dias que eu tinha de férias lá, eu trabalhava em uma empresa cá. Trabalhava no Pico da Jaraguá, trabalhei na Constran, que era uma construtora, trabalhei em várias empresas, 30 dias que eu tinha de férias, eram 30 dias que eu trabalhava em outro lugar, porque aí eu tinha dois salários e é lógico, esse salário que era maior eu guardava, sempre guardei. Ajudava em casa, cobria as contas e guardava, mas eu nunca tinha férias por conta disso, porque eu trabalhava. Quando eu mandei meu currículo para a Fiel, que eu fui admitida, eu achava até que era Siderúrgica Fiel, não sei se vocês conheceram que tinham móveis de aço Fiel, era um cachorrinho com a língua de fora, eu achava, olha a minha ignorância, eu não sabia que essa fiel que estava trabalhando era de fios elétricos, me colocaram de cara para uma concorrência lá na Telene, Rio Grande do Norte, nunca tinha viajado de avião, nunca tinha entrado em um hotel. “Gente, que bicho é esse? Ai, meu Deus!” Fui para participar de uma concorrência, participei e ganhei a concorrência. A ignorância era tanta que só fecha por dentro, e se alguém entra aqui e rastreia, a mesa do hotel tudo para porta, ignorância, medo de avião, mas superei, voltei no dia da minha formatura. No dia do meu baile, eu não dormi, porque fiquei direto que eu voltei nesse dia, eu estava trabalhando, tinha que pedir exoneração do serviço público, porque deu 30 dias, pedi uma audiência para falar com esse doutor Manoel Joaquim dos 06 filhos, que ele já estava em uma posição maior, e a secretária dele era minha amiga, fui lá falar com ele, nossa, ele me recebeu, só faltou estender o tapete vermelho para me receber, “nossa, dona Lourdes eu sabia que a senhora”…, “eu só vim aqui agradecer o senhor”. “Mas por que que aconteceu”? Eu falei “nossa o senhor me ensinou muito, eu aprendi tanto com o senhor que ninguém mais vai fazer comigo o que o senhor fazia. Nunca mais, ninguém, nem o senhor, ninguém”. “Mas eu soube que a senhora se formou, eu sabia que a senhora era luz”, eu falei, “então eu fui pra Teleme, consegui, estou trabalhando nessa empresa Fiel”, me estendeu o tapete vermelho, me enalteceu, e eu só agradeci porque realmente ninguém nunca mais fez o que ele fazia comigo, aquele homem me fazia chorar de humilhação, ele me humilhava e eu sabia que era por causa da minha cor, por causa da minha condição, sabia que era por isso que eu estava sendo humilhada, eu tinha noção, mas embora fosse o serviço público, eu ia ficar brigando, dando murro em ponta de faca para quê, para me sangrar mais, me machucar mais, então não.

P/1 - Maria, queria te fazer uma pergunta um pouco específica, até pensando em tudo que a gente conversou aqui, você, a sua família, sua mãe, seu irmão. Vocês se sentiam vivendo em uma ditadura? Você acha, às vezes ou em alguns momentos só, como que era isso?

R - Não, a gente não sentia, porque a minha mãe é semianalfabeta, meu irmão não era muito voltado para coisas reais, fazia algum comentário de alguma coisa que estava estranha, mas não era uma coisa pontual, não afetou diretamente a gente não, em nenhum momento, ninguém comentava nada, minha mãe também não. Agora teve uma coisa interessante que eu não sei se era na minha época, se eu já tinha nascido, que se falava em “ouro para o bem do Brasil”. Já ouviram isso? Já leram, já viram em algum lugar? Eu nunca tive certeza, mas eu acho que a minha mãe doou a aliança dela, coitada, nessa época, ouro, acho que era Carvalho Pinto, se eu não me engano, porque eu lembro que tinha um homem da vassourinha que eu cheguei a ver um broche, um alfinete que tinha uma vassourinha, eu cheguei a ver isso em algum lugar, e falava-se do “ouro para o bem do Brasil”, eles tiraram hoje ouro de todo mundo, passaram em casa e a mãe deve ter dado a aliança dela, depois uma outra pessoa deu uma aliança para minha mãe, porque também era um sinal de respeito para uma pessoa separada, era uma pessoa de respeito, então usava aliança, mas era isso, era a única coisa que eu lembro que era forte, que todo mundo “o ouro para o bem do Brasil”, eu ouvia falar, mas eu não sei se tinha sido em uma época antes ou se estava acontecendo naquela época, mas eu era muito pequena.

P/1 - Agora você falou da polícia, dos jacarés lá na Praça da República, mas no seu bairro ou na sua vivência você sentia a presença de polícia?

R - Não, como eu te falei que a gente comentava fora da escola, e a gente virou piada, porque quando a gente juntava 02, 03 alunos ali, “ó, não pode ter, olha multinha”. Então a gente virou piada, mas não tinha ninguém, quando a gente via policial também, a gente não sabia o porquê que estava ali, mas também a gente ficava na nossa, nunca nos colocamos ali, nem enfrentamos, carros da nossa, mas também nunca mexeram conosco. Se não ajudaram também não atrapalharam, é assim que funcionava.

P/1 - E lá na Fiel como é que era?

R - Eu entrei na Fiel mandando meu currículo, e a Fiel era uma empresa de fios elétricos, é uma empresa onde eu ganhava com meu sustento, na boa, mas tinha aquele compromisso entre aspas, que eu não lembro se foi nessa época que o meu diretor, que foi meu professor da faculdade, eu não sei se foi nessa época que ele falou, “não se iluda com empresa que eles são machistas”, tanto é que não tinha nenhuma gerente, não tinha, uma pessoa com coordenadora, não existia. Existia uma figura de uma pessoa que coordenava, uma coordenadora das meninas, mas não existia, eu não participava, porque ia trabalhar em vendas, então eu não era desse grupo, mas ele falou, “a empresa é machista”. Eu não sei se foi nessa época, porque eu não sei até que ponto, eu não sei se o pessoal da Fiel já era alemã, porque eu lembro que uma vez ele me chamou na sala dele, a gente conversando e ele falou, “você sabe que não dá para mulher ter ilusão nessa empresa”, acho que já foi na Gerdau, eles são gaúchos, eles são machistas, racistas. Então quieta, quietinha, ganha teu pão, fica quietinha. Esse foi o recado. E eu entendi muito bem. A Fiel Fios Elétricos, entrou em concordata e eu pedi demissão dessa empresa, eles me pagaram direitinho, esse meu diretor ele não trabalhava mais na Fiel, ele trabalhava no grupo Gerdau, e eu mandei o meu currículo para o grupo Gerdau, eu, a Vera e umas 05 pessoas, e nós fomos chamados para trabalhar, na época ele falou para mim, “é alemã, racista, machista, a empresa, não se iluda”. Eu fui trabalhar lá na Gerdau, e como a outra tinha entrado em concordata, ela foi para a concorrência, a Gerdau, a Mannesmann, tudo siderúrgica, acelerou e entraram na concorrência, a Mannesmann comprou a Fiel, a Gerdau não conseguiu, ficou Mannesmann Fiel, ainda tem, tem outras outras concorrentes, mas as duas ali na paralela. Mais tarde, a Mannesmann foi comprada pela Gerdau, então ficou tudo grupo Gerdau, e eles retroagiram nosso tempo lá para Fiel, porque foi tudo Gerdau, por isso que eu completei 28 anos na Gerdau, eu me aposentei lá porque somaram todos os anos, mas era uma empresa que realmente não tinha gerente, muito tempo depois teve uma gerente de RH. Em um determinado momento, admitiram uma gerente, e essa gerente foi colocada lá e me colocou como coordenadora de 17 funcionários que já estavam lá até mais tempo do que eu, porque eu tinha vindo da Fiel.

P/1 - Você entrou na Fiel, qual era a sua função lá, na Gerdau também?

R - Em vendas, na Gerdau também, sempre em vendas. Essa senhora tinha entrado na empresa fazia 01 ano, e ela me colocou como coordenadora lá de 17 funcionários, mas o objetivo que eu senti ali naquele momento é que eu seria um bode expiatório, porque eu teria que demitir os outros funcionários, para ela não fazer aquele papel eu fui colocada, como a Gerdau é uma multinacional e tinha empresas do grupo, tinha filiados lá em Recife, cada lugar tinha um coordenador e eu era aqui de São Paulo, e ela trouxe uma galera que trabalhava com ela em outras empresas, a Valéria, ela trouxe essa galera para trabalhar na minha equipe ganhando duas ou três vezes mais do que o pessoal que já estava lá. Então ela queria que eu demitisse as pessoas, as pessoas não podiam nem olhar para o lado, que criaram uma CRC e o pessoal não podia, tinha que controlar horário de banheiro, era um absurdo, sabe coisas péssimas, mesquinhas e tinha funcionário que precisava de sair, tinha que ir ao médico, tinha filho pequeno e ela, “demite, suspende”, e eu “não vou fazer isso”, não fiz, nunca fiz. Até que um dia eu não aguentei mais e falei, eu não quero ficar nesse papel, eu quero que você me demita, ou você coloca alguém e eu vou ser uma dessas pessoas que trabalha aqui, ou então você me demite. Ficou enrolando, eu tirei férias, ela me chamou para trabalhar. Bem, vou trabalhar nas férias sim, estou acostumada mesmo, sem problema, mas não, ela me prendeu lá em uma sexta-feira para me demitir, burra, me demitir nas férias, eu ganho um salário a mais. Ela me demitiu e quando ela me chamou para me demitir ela falou, “tem outras empresas do grupo, mas ninguém se interessou pelo seu perfil, eu queria te dizer que eu vou ter que te demitir já que você não quer fazer o que a gente está te propondo a fazer”, eu falei, “eu aceito”. Ela se desmontou. “E agora o que eu faço”? Falei, “beleza”. “Mas como, você não vai reagir”? “Beleza, a empresa não é minha, a empresa não é sua, hoje eu vou, amanhã você vai. Existem algumas formas de eu sair da empresa, uma é sendo demitida, outra é eu pedindo demissão, não tenho o menor interesse de pedir demissão, porque eu amo a empresa, não vou sair, não vou pedir demissão. Eu me aposentar pela empresa, que aposentada eu já era, ou de morrer que não está nos meus planos”, e tinha caído um pouco antes o avião, aquele 07, aquele avião que caiu morreram 05 colegas nosso da Gerdau, eu falei, “ou então acontece o que aconteceu com os nossos colegas aqui, caiu um avião e morreu, mas não está nos meus planos, a outra é você me demitir, eu acho que de tudo isso que você falou é mais fácil você me demitir, tudo certo”, “mas então a gente vai fazer uma festa, você convida todo mundo que você quer”. Eu “ não, peraí peraí vamos, vamos, vamos, vamos botar aqui os negócios no lugar. Ninguém sai de um divórcio, até que hoje sai, ninguém sai de um divórcio fazendo uma festa”, “mas é que você é muito querida, todo mundo gosta muito de você”. “Eu agradeço, mas eu não vou fazer festa para sair do lugar que eu não quero sair, você que quer que eu saia, então eu saio, mas eu não vou fazer festa”, ela ficou muito decepcionada, a decepção que ela achou que eu ia ter, ela teve. Ela falou, não adianta que eu já ofereci o teu passe para outras empresas, claro porque o teu salário é muito alto. Então está tudo certinho. “E não adianta falar com Benzhou" que é superior a ela. “Não adianta falar com o Benzhou, porque ele me deu carta branca”. Eu falei “sem problemas, nem pensei nessa possibilidade”, até porque tinha um outro, o Carlos, o Benzhou ainda tinha 28 anos que nem eu, mas o outro era a mesma idade dela, tinha 01 ano de empresa, que era superior ao Benzhou. “Todos eles assinaram embaixo da sua demissão”. “Nenhum problema”. Isso foi em uma sexta feira, todo mundo já tinha ido embora, na segunda-feira quando todo mundo soube, “pelo amor de Deus o que aconteceu”, os diretores começaram a me chamar, esse Domingo Soma já não estava mais na empresa, “nossa, o que aconteceu? Vai trabalhar em outra empresa do grupo? A gente não quer te perder”. O meu irmão lá em casa falou, “Maria, Bianca já se formou, a mãe já morreu, você ganha, tem casa de aluguel, pelo amor de Deus, para de trabalhar, você trabalha desde os cinco anos, para”! Porque era de manhã, era de madrugada, a hora que me ligava eu estava na ativa. “Para, se a mãe ainda fosse viva”, porque eles pagavam, dos 17 mil funcionários, pagavam 05 assistência médica para os pais, 05 pessoas e eu era uma dessas que tinha conseguido lá atrás na Fiel ainda, por isso que eles não podiam tirar, e se a minha mãe fosse viva, eu ia porque minha mãe faleceu com 83 anos, mas se ela tivesse viva na época eu ia ter que ficar, porque como que eu ia pagar uma saúde Bradesco para minha mãe, não dava, meu irmão falou, “larga de ser boba, sai fora” eu fiquei pensando e o sindicato do Lula lá atrás, o Sindicato dos Metalúrgicos tinha feito um acordo, que quem tivesse 05 anos de empresa, tinha um salário nominal quando saísse se não fosse por justa causa, eu sei que tinha assim uns anos até o máximo de 06 salários nominais, eu estava dentro da possibilidade. Eu não sei até hoje, se eles queriam que eu voltasse por conta dos 06 salários, ou realmente o que, porque eles me fizeram as melhores propostas. “Você entra, você volta para o grupo, você vai ganhar o mesmo salário, mas você vai entrar como nova”. Tudo bem, como funcionária nova eu entro, e os 06 salários? “Não, você vai entrar como nova”. Meu irmão falava, “Maria, pensa bem, eles vão te pegar de volta, 02 meses depois eles te mandam embora, ainda vão ganhar 04 meses em cima de você. Então não, eu ganhei os 06 salários e mais o mês de férias, mas o pessoal do RH, mas tirava tanto sarro, como é burra, gente como é burra.

P/1 - E a rescisão também toda?

R - Recebi tudo, recebi tudo, fiquei bonita na fita, e ela foi demitida também, o Benzhou foi demitido e outro foi para Ambev, ele saiu o que estava acima do Benzhou, foi para Ambev lá no Rio de Janeiro, teve uma doença que ninguém sabe que diabo de doença que foi, que o homem foi consumido em 02 meses, juro por Deus que eu nunca desejei nada. Eu sou até kardecista, nunca desejei mal para ele, mas para você ver que o universo anda e eu confio muito na lei do universo.

P/1 - Em que ano que foi isso?

R - Eu saí em 2007 e foi ótimo, eu saí dia 05/08, meu irmão foi internado em dezembro, eu sei que eu fiquei 05 meses contado em dias e horas, eu pude conviver com meu irmão, tomar café da manhã, almoçar e jantar, ficar com ele e ele partiu. Ele partiu novo, 52, 53 anos, ia fazer 53 quando ele partiu, foi a oportunidade que eu tive de ficar com ele. O universo caminha tão bem que nesse mesmo ano a Bianca engravidou do Lucas, em 2007, quando meu irmão faleceu em janeiro, em 2008, o Lucas nasceu em outubro. Não estou falando de troca, não estou falando de substituição, eu estou falando de acalento, um partiu e o outro veio. Minha vida é maravilhosa. Agora os nomes, como eu te falei, eu sou católica por canção, por comodismo talvez, mas eu acredito muito no kardecismo. Então eu fiz cursos desde os 17 anos, dei aula, eu dei aula na faculdade também, como assistente, dei aula para várias turmas no centro espírita, no kardecismo, eu pertenço a duas casas espíritas, uma que fica bem próxima da minha casa, e a outra que fica um pouquinho mais afastada. Mais de 30 anos que eu estou lá. Agora por causa da pandemia eu me afastei e estou com dificuldade de voltar por conta da situação da minha filha com os netos. Lá no centro espírita, eu sou conhecida como Maria Aparecida, aí vem os apelidos, Cidinha, Cidoca, e é muito engraçado isso, eu tenho uma vizinhança que me chama de Tereza, Terezinha, Teresoca, eu te falo o que eu menos sou é Maria de Jesus, mas de resto eu sou, qualquer nome que me chamarem, está tudo certo, eu acho que foram épocas que as pessoas conviveram comigo porque só pode, não tem outra explicação. Terminada a faculdade comecei a namorar o meu vizinho. Estava 11 anos ali do meu lado meu vizinho, namorou, foi noivo de amiga minha e eu comecei a namorar meu vizinho, terminaram tudo, começamos a namorar e casamos, ficamos noivos, 01 ano e 05 meses depois nós nos casamos, ficamos morando ali perto da casa da minha mãe, da casa da minha sogra, e eu não engravidava nunca, fomos fazer um tratamento, fizemos um tratamento, foi por isso que eu falo, a Bianca não queria vir, mas ela veio. A Bianca nasceu, é a alegria da minha vida, minha filha.

P/1 - Qual é o nome do seu marido?

R - Era Feliciano Mamede de Brito, dá umas 08 horas de fala, se for falar do casamento, foi uma pessoa que sempre me respeitou, foi muito legal, mas teve uma história por trás da morte dele, mas antes a gente já tinha se divorciado, ele casou com outra pessoa, essa pessoa já tinha desquitado dele, eu não sabia, essa pessoa pediu para morar na minha casa e eu autorizei, essa pessoa com o filho dela, uma mulher com uma criança pequena pode vir morar aqui, mas ficou só uma noite, não quis mais, é um outro capítulo que rende 08 horas, mas me dou bem com a família dele, minha sogra já faleceu, os irmãos, mas a gente era amigo antes, não podia interromper essa amizade por conta do casamento que não deu certo, então a gente tem amizade sim, mas tudo bem. E do lado da minha mãe, minha mãe era filha única, então minha mãe não tem irmãos, tem umas primas muito afastadas, então na minha casa era sempre eu, minha mãe, meu irmão, e a Bianca quando o pai dela morreu. E aí agora que ela tem os filhos dela, eu tenho toda essa maravilha que são os meus netos.

P/1 - Quando a Bianca nasceu, que ano que foi?

R - 1984.

P/1 - Como é que foi o dia do nascimento dela?

R - Nossa, maravilhoso. Na hora do Fantástico, no domingo à noite, eu comecei a sentir dores, eu falei, nossa senhora, estou com umas dores aqui, e o meu marido era frustrado porque ele via acho que os amigos dele correr para maternidade, ir e voltar da maternidade, acho que tinha uma frustração. Eu acho que eu estou sentindo umas dores. “Vamos para a maternidade”, então deixa eu tomar um banho, porque tinha que melecar a barriga com um monte de coisa que o médico mandou, tomei banho, pus salto alto que eu nem gosto, me maquiei, me arrumei direitinho e ele de pijama na rua, foi na casa da minha mãe de pijama, meu irmão já saiu de pijama, “vou matar todo mundo”. Vamos para a maternidade, e eu cresci tanto que tive que comprar uma camisola para levar para o Santa Joana, e a minha camisola não ia caber. No sábado, eu tinha ido no Brás com a minha mãe comprar uma camisola só para hora lá, número 54, eu cheguei estava cansada, falei mas segunda-feira a gente lava. Fui no domingo à noite para a maternidade, passou a mão na sacola, levou a sacola, a médica falou, “vai ter que ficar internada, porque já está com dilatação, já está com 04 dedos”. Também vai ser rápido, bichinha nasceu no outro dia 10h45 da manhã no outro dia. Na hora que o médico foi me dar a anestesia, eu estava com a camisola, eu estava nervosa. “Tudo bem eu tirar a etiqueta?” Nem a etiqueta eu tinha tirado da camisola. A Bianca é o que eu falo, ela sempre foi guerreira e sempre foi de gritar, ela se faz ouvir, porque vinha aqueles carrinhos de bebê, todo mundo quietinho, neném tudo dormindo, tudo quietinho, quando ela apontava no corredor, todo mundo “nossa que bebê que chorava, gente do céu chorava, gritava, meu Deus do céu” e assim foi e até hoje. Bianca é uma pessoa de berrar, de gritar, essa é minha filha.

P/1 - O que ela acabou fazendo?

R - A Bianca, quando nós morávamos na Vila Medeiros, tive uma priminha, eu tenho uma tia por parte de pai. Uma das minhas tias é muda e surda, é uma outra história também, essa minha tia, ela alugava uma casa, e o inquilino dela estuprou minha tia, e ela teve um filho, eles são todos loiros, um tinha olho azul, os outros verdes. Esse cara era uma pessoa negra, e o Paulo Vitor nasceu negro, menino lindo, maravilhoso, mas a minha tia não aceitava, ela não aceitava pelo sofrimento, ela não aceitava acho que pelo sofrimento que ela teve, ela não aceitava nem amamentar essa criança, mas no fim ela amamentou, cuidou, a minha avó que é filha de italiano, que era uma pessoa ajudou, eu estou falando esse detalhe para você entender, ajudou ela, e ela teve esse cuidado desse Paulo Vitor. Só que com o passar dos anos, essa minha avó que ajudava a cuidar dessa minha tia, o marido da minha tia já tinha morrido, por isso que o cara fez isso, essa minha avó ficou doente, então ela pediu para minha mãe, ela tinha mais filhas, porque meu pai era o único filho, ela tinha mais duas filhas, que é minha tia Ivonete e minha tia Maria Francisca, mas ela pediu para minha mãe, que era a nora, que não teve convivência cuidar, para você ver como eles confiavam na minha mãe, tinham consideração, confiaram a Isabel que era a única menina dessa minha tia muda e surda para minha mãe cuidar, com medo que acontecesse alguma coisa com a menina. Então minha mãe cuidava da Isabelzinha,quando a Bianca nasceu ela ajudava a cuidar da Bianca, ela foi estudar e quando ela ia para a escola, a Bianca ficava animada para ir para a escola. Então nós tivemos que matricular ela em uma escola que ela não gostou, não queria ir na escola, no balé, não queria ir, quando nós mudamos, eu fui mudar para a Cohab por eu pagava o meu aluguel e o da minha mãe, e o dono da casa da minha mãe pediu e o meu aluguel de 05 anos tinha vencido. Então ela tinha que alugar. Eu comprei uma casa que era uma casa no fundo e outra na frente, mas essa casa nós descobrimos que era um ponto de droga, só que eu não sabia na época, eu soube 01 ano depois quando a gente já ia mudar pra casa, foi aquele Deus nos acuda, tivemos que vender essa casa de um dia para noite, pelo valor que tinha comprado, eu vendi e restou a Cohab, 21 anos ainda para pagar. Fomos parar na Cohab, que também é uma outra história muito legal, que eu me diverti muito com essa história, mas não vou prolongar aqui. Eu tive preconceito terrível, gente eu tinha um preconceito e não sei, eu tinha um preconceito da COHAB, porque o que se falava na mídia da COHAB, e eu via quando eu passava de trem, eu via Cohab Itaquera, o Pombal, chamava de Pombal, começava daí, só mora marginal, gente marginalizada mora na Cohab e eu tinha falado, mas pode ser, não pode, mas eu morava na Vila Medeiros, na Vila Sabrina não tinha, e eu trabalhava dia e noite, eu não tinha condição de ter contato com ninguém, mas quando apertou vamos procurar na COHAB. Tinha um monte de apartamento. Chegou um dia, o corretor levou a gente para ver diversos apartamentos, e teve um que eu abri a porta eu apaixonei, “nossa que apartamento lindo, que bom gosto”, o cara fez uma divisória entre a sala de visita e a sala de jantar com uma treliça, mas toda trabalhada, era um tapete verde musgo, me apaixonei, nem quis olhar o resto, a dona do apartamento falou, “entra, o meu marido não quer mais vender, mas vocês esperam até ele chegar, porque a gente conversa com ele”. O homem chegou, Lázaro chegou. “Então você quer comprar meu apartamento”? Eu falei, estou interessada. “Você tem dinheiro pra usar”? Era 230 mil, não sei que moeda, eu falei, “eu não tenho dinheiro”. “Você vem na minha casa comprar o meu apartamento e você não tem dinheiro para pagar”?. Falei, “o que eu tenho eu vou te falar, eu tenho tanto, que acho que era 150 e eu vou te pagar o resto depois”. “Começa que nem está mais à venda”. Eu falei, “tua esposa que falou que está à venda, se não está mais à venda…porque ela tinha interesse de vender para morar na casa da mãe dela, e ele já não queria mais essa negociação”, mas ele começou a conversar. Eu falei, “bom, então, prazer em te conhecer, vamos embora, vamos, não vamos perder tempo”. “Senta, vamos conversar. Eu tenho que comprar guarda-roupa, eu tenho que comprar cama, porque é tudo embutido”. Eu nem tinha visto porque eles mostraram, mas eu não vi. Eu falei, “se aqui tem uma cama e tem um guarda-roupa, eu tenho cama e guarda-roupa, te dou a minha cama e não vou comprar guarda-roupas”. “Ah! Deve estar caindo aos pedaços”. Eu falei, não é o caso, está tudo novinho. “Então vamos lá ver”. Ficaram apaixonados pelo meu dormitório que era novo, tudo novo. Eu falei o colchão não, você fica com o teu que eu fico com o meu. “O tapete da sala”. Eu falei que não está na negociação, o quarto que está na negociação, se quiser é isso. Falei, “quer saber, você fica com o seu apartamento, eu fico com o meu dinheiro, está tudo certo”. Ficou uma negociação assim por uma semana e fechou negócio. Mudamos para o apartamento, mas foi muito engraçado, porque, não vou vender, não vou vender, você quer comprar o meu apartamento que nem está mais à venda e você nem tem dinheiro para comprar. Foi uma discussão medonha, no fim a gente ficou muito amigo, porque fomos muito honestos um com o outro, compramos e fomos morar eu e a minha mãe, juntou a casa dela com a minha casa, deu, doou o que sobrava e fomos morar lá, depois reformamos, depois eu quitei esse apartamento, foi o primeiro apartamento da COHAB Fernão Dias, que foi quitado com documento foi o meu, porque eu fiquei atrás e eu peguei empréstimo, eu me virei e quitei, fiquei com meu apartamento bonitinho, reformadinho, era um pitelzinho, amei morar na COHAB. Quando chegou na COHAB, a Bianca tinha 03 anos, o pessoal da Cohab na EMEI, escola ali do lado, e ela queria estudar lá, mas a menina estudava em uma escola particular, “não, quero estudar, quero ir lá”, e ela não podia porque era só com 04 anos, mas conversou, o zelador morava lá, que cuidava da escola, conversou com a diretora, a Bianca foi lá. Quando foi para ir no Jardim da Infância, a professora chamou e falou, “aqui a gente pode puxar muito para o lado, o intelectual a gente não pode, a gente puxa muito pelo lado de desenvolvimento da criança, mas não intelectual”, porque eles não dão conta. “A gente cuida mais da outra parte. Se vocês tiverem condição de colocar, não só ela, mas umas 04 crianças, em uma escola particular, intelectualmente ela vai ficar melhor, porque ela exige isso e a gente não tem condição de dar”. O pai dela procurou uma escola particular, ela foi estudou no São Judas até terminar o ginásio, quando terminou o ginásio, eu também não quero ficar mais aqui, ela foi para o Liceu, mas nesse meio tempo, exatamente na festa de 12 anos, ela queria fazer uma festinha, eu já era separada com o pai dela, ele morava na Vila Medeiros e a gente foi lá no domingo acertar os detalhes da festa, e a gente estranhou porque ele não queria abrir a porta, ele tinha um bar na frente e ele morava no fundo, e estava um funcionário dele lá no bar, a gente chamava, chamava, ele não atendia, uma janela aberta, ela pulou, abriu a porta, a gente entrou, ele estava lá na cama fumando, quieto, acho que estava depressivo, sei lá, a gente conversou, para sair foi o mesmo processo, fechar porta, ela pular a janela, ele estava bem malzinho, mas falamos sobre o aniversário, ele falou, “é melhor fazer aqui”, porque eu morava na COHAB, era um prédio e lá ele tinha espaço, tinha o quintal. Está bom, então vamos fazer a festa, ia ser em abril. Quando foi no domingo à tarde, eu estranhei que ele foi em casa, ele pegou um táxi para ir lá em casa, tinha sido uma semana depois que tinha acontecido o acidente dos mamonas, nesse meio tempo eu estava lá limpando a cozinha, ela tinha temperado, ela queria fazer iscas de frango para jantar, e ela tinha temperado a Bianca, eu estava lá arrumando a cozinha, chegou cumprimentando, ele ficou na sala com meu irmão, com a minha mãe, ligaram o rádio para ouvir jogo. Eu falei, gente, por que vocês não ligam a televisão? “Porque não dá na televisão, está no rádio”. Entendo muito de jogo. Eles ficaram lá ouvindo e ela falou, “eu posso fritar as iscas para comer?” Fica à vontade. Abriu cerveja para o pai, ficou ali, conversaram, eu fiquei pouco ali porque eu estava fazendo as minhas coisas, minhas tarefas, na hora de ir embora ficou tudo acertado, que a gente ia fazer a festa na casa dele, eu até lembro que eu estava limpando uma cristaleira, ele pôs a mão em cima da minha mão, me abraçou e falou, “tchau
Ma, obrigada por tudo”. Você não quer ficar mais? “Não, não”. Aí meu irmão falou, “eu te levo de carro”, levou ele de carro, ainda sai na janela vi ele dando tchau, na segunda-feira, a hora que eu chego do serviço, recebo telefonema, a irmã dele, foi a Bianca que atendeu ela não falou para Bianca. Ela falou, “chama tua mãe”, mas eu não pude, eu não consegui segurar. Ela falou assim, “o teu marido”...eu ainda me considerava como cunhada, “o teu marido está no hospital”. E o que que aconteceu? “Tiro”, eu pensei, aconteceu alguma briga no bar, não entrei em detalhes, eu falei, então nós vamos. Quando eu perguntei o que aconteceu a Bianca já se tocou, eu sei que nós fomos para vários hospitais e no fim ele estava no Mandaqui, nós chegamos e ele ainda estava vivo, ele morreu 14 dias depois, e ele assumiu que foi ele que deu um tiro na cabeça, eu achei muito triste essa história, muito triste. Ele foi operado e ficou lá 14 dias, mas depois ele faleceu, ele estava se recuperando, as pessoas acham que o paciente, eu já pensei nisso porque eu já passei por essa situação, acham que a pessoa não está ouvindo, a pessoa está ouvindo, eu acho que ele descobriu que ele tinha ficado cego, porque cortou a córnea, acho que ele se entregou, porque aí ele morreu e foi muito triste.

P/1 - Faz muito tempo isso? Diga?

R - Quando eu fui no hospital no sábado, que ele já estava com toda aquela atadura, ainda estava vivo, estava ali no hospital internado e eu vi que o tiro tinha sido com a mão esquerda, ele era destro. No dia seguinte, ele faleceu, o hospital demorou para avisar, na terça-feira que nós ficamos sabendo, foi uma história imensa para poder enterrar, para tudo. Tenho minhas dúvidas, mas não levanto essa parte se pudesse até…por causa da Bianca, porque é o seguinte, eu não acho, por favor, vocês, não acho que ele…porque depois que a gente se separou ele começou a trabalhar com o jogo do bicho, e ele tinha uma banca noturna, eles ganhavam muito dinheiro, muito dinheiro, que a Bianca chegava lá era criança, “meu pai tem uma mala, ela falava, uma mala 007 debaixo da cama, cheio de dólar, dinheiro igual a esse aqui, dólar”, era muito dinheiro, ele não dava pensão, nem eu exigia. No divórcio quando teve a separação, ficou dele dar acho que eram 03 ou 05 salários mínimos, ele nunca deu, também nunca cobrei, eu acho que ele se suicidou porque qualquer pessoa sabe até porque uma arma enferrujada, se você está com alguma ideia você tem dificuldade, você vai raciocinar porque você não vai conseguir dar um tiro com ela, eu falei, “não, esse cara é não se matou, eu acho que mataram, eu falei, queima de arquivo”. E mais tarde a Bianca foi atrás disso, os próprios amigos dele convenceram ela que foi ele que se suicidou mesmo, e ela veio falar, “foi ele sim, foi ele, ele estava endividado, foi ele sim”, mas eu não acredito, mas para que mexer, porque ele falava para mim, quando ele saiu do jogo do bicho, ele falou, “Ma, é uma vida, é um caminho sem volta, eu nem quero te contar”. Nós éramos muito amigos, “mas você queria tanto ter um bar, você não está feliz agora?”, “mas nem queira saber, para tua própria segurança é melhor você não saber”, ele saiu e ficou 01 ano fora, só que as portas se fecharam, não arrumava emprego, não arrumava nada, e a mulher dele, eu acho que ela era uma garota de programa pelo estilo dela, eles tiveram filho, pagou faculdade para ela, era carro importado, ela queria a grana dele, chegou nesse dia que a gente conversou, ele falou “Ma, eu voltei, não tem jeito, eu vou ter que voltar com outro bicheiro”. Então por isso que eu acho que foi queima de arquivo. Então é muito sofrido, quando aconteceu isso, no dia em que ele faleceu, a Bianca não quis faltar na escola, nós fomos no velório, a hora que eu me aproximei, ela falou, “mãe, vamos embora”, ela não quis ficar, as pessoas até estranharam, não sei qual é a cabeça das pessoas, eu falei depois que não fui eu que quis, mas ela que quis sair, ela não quis ficar, ela não quis ir no enterro, eu fiquei com medo e ela quis ir para escola que ela tinha prova de matemática. “Como assim, é o enterro do seu pai?”

Eu fui na diretora e falei, não precisa fazer prova hoje, faz outro dia, ela fez e foi bem na prova, eu falei, agora eu tenho que ocupar a cabeça dessa menina, foi aí que eu coloquei ela para fazer inglês lá na Fisk da Vila Maria, ela falou, “mãe não dá para você pagar também espanhol”? Eu falei, mas é muita coisa, “mas se der para você pagar, eu vou fazer”, ela fez o inglês e espanhol junto. Ela estava terminando o espanhol, ela pegou na vejinha uma escola Barão de Itapetininga que um professorzinho dava alemão e francês, ela foi fazer. Terminou o francês, ele me chamou e falou, “tudo que eu sabia eu já esgotei, tem que ir pra Aliança”, ela falou, “mãe antes de ir para Aliança eu quero ir lá para a França”, eu nunca tinha saído, no máximo até Porto Seguro na formatura dela, ela me convenceu. “Mãe, eu tenho que ir”. Ela até comentou assim, “mãe se Maria, mãe de Jesus tivesse proibido ele com 12 anos de fazer as coisas, ele não teria sido Jesus”. Eu falei, mas “você não está te pretendendo?” Ela falou, “mas a gente não pode interromper a vida das pessoas”. Sempre foi assim, eu falei então tá. Ela foi para a França, ela foi fazer um curso com o pessoal que tinha ido daqui do Brasil, da Aliança Francesa fazer o curso, ficou nesse estágio, me pediu mais dinheiro porque ela estava no estágio superior, a menina saiu fluente no francês, inglês e espanhol ela tem fluência, alemão e italiano, mais ou menos, o alemão menos ainda, mas ela é super estudiosa. Quando ela entrou na faculdade, ela entrou em 03, em filosofia na São Judas que é de graça, não sei se vocês sabem, não sei se ainda é, filosofia era de graça, entrou na Cásper e entrou na USP, uns 03 meses ela conseguiu fazer tudo, depois não conseguia porque era um de manhã, outra tarde e outra noite, aí deixou a filosofia e ficou com as outras duas faculdades.

P/1 - Se formou na USP e na Cásper no que?

R - Jornalismo, Ciências sociais na USP, eu acho que ela não terminou, ela fez mestrado depois da USP, depois ela fez doutorado, acho que Ciências Sociais ela achou que não valia mais a pena, acho que no 3º ou 4º ano ela abandonou.

P/1 - O que você pensa disso, até pensando no começo, na sua filha, mas eu digo no começo da história que você contou para mim?

R - É bem triste, eu acho que ele não se suicidou.

P/1 - Digo o começo da sua história, sua mãe?

R - Eu acho que a linhagem das mulheres da minha casa partindo da minha mãe, eu acho que a gente não desanima, que a gente é forte, que a gente luta, porque a Bianca também sofreu preconceitos, você vê, se você já leu algum livro dela, ela já foi chamada para dar um curso e acharam que era copeira, não se desfazendo da copeira, não desmerecendo, mas achava que ela era copeira, o cara mandou ela servir café, e ela falou, “eu não conheço, mas eu vou descobrir quem para servir o café para o senhor”. Quando ela entrou para dar o curso, o cara se desmoronou, porque ia dar o curso para ele. Teve uma época, preconceito a gente sofre mesmo, eu tinha um corcelzinho e o meu irmão tinha outro corcelzinho, resolvi vender o meu porque era muito ruim para dirigir, e ele ficou com o dele. Vamos comprar um carro mesmo que seja 1.0, mas que seja novinho, fomos, nós saímos até para aula de espanhol dela que era no sábado, e eu estava com a camiseta da Gerdau fazendo faxina, também eu sou muito descolada com esse negócio, não ligo para essas coisas, a que estava mais arrumadinha era a Bianca, que ia pra escola de espanhol, eu e meu irmão, a gente foi. Chegou a Vimave, na Vila Maria, a gente foi ver os carros, ninguém atendia a gente, tudo pretinho, um carro, quando nós conseguimos entrar na loja, ter acesso à loja veio um rapaz, “os usados é do outro lado”. Não, a gente quer novo”. “Usados são do outro lado”. “Nós queremos ver carro novo, nós entramos, começamos a olhar os carros, ninguém dava confiança, ninguém dava a mínima, até que veio uma moça, acho que ela pensou assim (mulher é mais fácil, eu tenho mais facilidade de dispensar) ela veio falar conosco, nós falamos, quanto é que está? Porque a gente era fissurado por carro preto. Quanto que está esse Gol bolinha, nossa, lindo me apaixonei, acho que eram 19 mil não sei o quê, “mas a gente não está financiando”. Não, tudo bem, ele é completo. “Tem que comprar o protetor de cárter, tem que comprar os tapetes, tem que comprar o seu rádio”. Tudo bem. Quanto que dá o total do carro completinho com o rádio, com cárter e com tapete, com tudo? “Mas eu já falei pra senhora, a gente não está financiando”! E eu não estou falando em financiamento. Quanto que dá o carro? Qual é o valor do carro? R $20.000,00. Tudo bem, quando o carro sai daqui licenciado, com placa, com tudo certinho? “É tanto”. Então, por favor, fecha o negócio, você quer receber como? Cheque, como que você quer receber? “Com cheque”. Tudo bem, nominal. Vem os vendedores e bate naquele negócio lá, bate no sino e fizeram aquela farra. Não foi a primeira vez, teve outras vezes que eu entrei em lojas de não atender, de deixar a gente para o lado e também é isso. O meu irmão foi parado, imagina um carro 1.0 parar na rua o meu irmão que estava lembrando a minha filha para escola, a polícia parar “como que você tem um carro, em uma segunda-feira essa hora você está com o carro aqui. Cadê os documentos?” Está em nome da minha irmã. Me ligaram, pedi os documentos, a carteira dele tudo, “desculpa viu”. A gente sofre preconceito, não tem jeito, não tem jeito. É muito cruel e essa é a vida da gente, e a Bianca enfrenta essa situação e ela enfrenta com muita sabedoria, ela é muito séria, eu aprendo muito com ela, os ensinamentos dela são fantásticos, eu aprendo muito com ela.

P/2 - É interessantíssimo. Então, você acha que você hoje consegue rever essas coisas todas que você passou, com outros olhos, você fica pensando muito no passado?

R - Não, eu sou uma pessoa estranha, porque eu acho tudo muito, eu nunca pisei na bola, nunca passei por cima da cabeça de ninguém, eu sempre procurei… Nessa minha equipe que eu trabalhei eu sempre procurei ajudar, ensinar, e as pessoas até hoje me conhecem, que tem daquelas 17 pessoas lá, me ligam e me agradecem, “você não me demitiu, você tinha oportunidade, poxa tia Lu”, me chamam de tia Lu. “Tia Lu, você me deu”… não, não dei, você que teve essa oportunidade, eu nunca neguei, porque eu acho que o que você aprende não é seu, você tem obrigação de passar para outra pessoa, se a outra pessoa tem interesse de aprender ou não é problema dela, agora você tem passar para outra pessoa. A gente não pode reter conhecimento. Como livro. Eu falo, então essa pessoa não devolveu, ótimo, eu quero que circule, eu não quero que jogue fora, não quero que estrague, circule, não devolveu, passou para outra pessoa que está precisando mais e vai embora, o conhecimento é a mesma coisa, o que você sabe você tem obrigação de passar para as pessoas e com amor, obrigação que eu não gosto nem dessa palavra obrigação, é que eu não me sinto obrigada a nada, eu faço as coisas espontaneamente, você tem que passar os seus conhecimentos para outras pessoas, porque essa é a roda da vida, a gente só vai crescer, a gente só vai aprender a ser gente, a gente só vai mudar uma sociedade, só vai se transformar, quando a gente tiver essa cabeça de que isso não me pertence, eu sou um instrumento, eu estou aqui, eu faço parte dessa engrenagem, e eu vou ajudar o outro. Eu fico pensando, e eu acho que mesmo essas pessoas que teoricamente tentaram prejudicar às vezes até inconscientemente, acho que elas acabam te ajudando porque elas te impulsionam, porque se não você fica naquele lugar lá atrás que você não sai do lugar, você se oprime. Lembra quando a Maria, a Lurdinha entrou lá no ginásio à noite, a vidinha ficava lá, se não fosse aquela professora mandar eu ir para lousa, apagar a lousa, fazer isso, se não fosse depois o meu professor ficar em cima de mim, me testando, querendo me subjugar, eu estaria naquele lugar lá atrás. Então elas me impulsionaram, agora tem pessoas que se ofendem, se magoam ou entram para escapes, vícios, drogas. Cai fora. Eu pensei “não, eu tenho que ir para frente, não vou ficar no lugar atrás”, eu não vou ficar, eu não vou, eu não brigo, eu não discuto e olha o que meu marido falava, se tem uma coisa que brigar de tapa você perde, mas de boca, não tem, você ganha todas, porque eu falo mais que a média, fala mais que a minha boca, mas eu nunca contexto, não brigo, está tudo bem, eu ouço estou de boa, faço o que eu acho que eu devo fazer, na medida do que eu posso fazer, já me puni muito, já me prejudiquei em algumas formas tentando fazer o que as pessoas não entendiam. Eu acho que não vale a pena, porque a pessoa que eu tenho que respeitar, eu respeito a todos, mas o maior respeito tem que vir em mim mesma. Eu tenho que me respeitar porque eu convivo comigo 24 horas, eu estou falando aqui com você, eu vou embora, você vai embora está tudo certo, e eu para me aguentar? Se eu não estiver bem comigo, como é que eu vou me aguentar! Então eu sou egoísta nessa parte, as pessoas questionam, porque você faz tanta coisa por todo mundo? Por que você ajuda todo mundo? Por egoísmo. Como egoísmo? Porque eu quero ficar bem comigo. Quero ver se você está aceitando, se você está entendendo. Eu quero deitar minha cabeça no travesseiro, levantar bem, dormir bem e é assim que eu vivo. Eu vivo de boa, eu vivo cantando, eu vivo rindo. Algumas coisas me deprimem, a situação do país, do mundo, isso me deixa angustiada, mas eu tento arejar porque eu não vou, eu faço a minha parte, mas eu não posso consertar, eu vivo de boa, faço o que eu posso a medida do que eu posso, tenho a palavra, eu não deixo ninguém falar. Só eu.

P/1 - Na verdade, indo para as últimas perguntas, você até começou a falar, a situação que a gente vive hoje. Como tem esse recorte do projeto, eu queria te perguntar então, eu já te falei, você se sentiu vivendo uma ditadura, você disse que não exatamente.

R - Você tem as consequências dessa ditadura, ninguém pode dizer que saiu ileso de uma situação dessa, ninguém sai ileso, você é afetado de uma forma ou de outra, mas assim diretamente não me sentia afetada.

P/1 - Mas indiretamente como seria?

R - Porque em uma sociedade em que as coisas não vão bem, você não pode estar bem. Eu não posso ficar bem sabendo que o meu vizinho não tem o que comer, sabendo que ainda hoje em 2022, eu posso ser presa pela minha cor, eu posso ser morta pela minha cor, eu posso ser acusada de alguma coisa pela minha cor. As pessoas que não me conhecem, não sabem da minha história, não conhecem a minha história de vida, não me conhecem como pessoa, o que eu faço? Talvez por uma proteção eu fico na minha, eu não me exponho, mas também não é aquele tipo que não leva desaforo para sua casa, é que eu quero ser feliz, eu não quero ter razão, eu quero ser feliz. Então, eu sou feliz. A tua opinião é sua, não me pertence. Não discuto. Eu convivo, nem sei se pode falar de partidário aqui, mas eu convivo com pessoas que são contra as minhas filosofias. Querem me fazer a cabeça, desculpa que eu não faço cabeça nem de religião, time de futebol, eu sou corinthiana graças a Deus, adoro, mas não discuto com outro time, não imponho para ninguém, e não gosto do presidente, é o meu direito, eu não gosto do presidente, a minha vizinha “mas ele é tão bom”, “ótimo, fica para você”. Eu não gosto, não queira discutir comigo sobre isso, você não vai ouvir nada. Eu não gosto dele. Acabou. Ponto final. Não fico dando murro, eu não tenho idade para ser infeliz gente, eu já passei por muita coisa para ficar discutindo. Eu ouço lá na casa, a Bianca, o pessoal discutindo, o Sérgio ficava furioso e eu meu Deus só estava perdendo a saúde dele, porque tem coisa que não vale a pena, cria uma úlcera, olha minha saúde está ótima, ando meus 6km, faço academia, faço pilates, faço ioga, estou de boa, assisto minhas séries, leio meus livros de boa. É isso. Não que não me incomoda, me incomoda muito, é o que eu te falei, me incomoda muito a situação do mundo, essas guerras que não tem o porque existir, do nosso país então nem se fala, olha no mercado gente, eu consigo, eu sou sozinha, eu tenho uma aposentadoria, eu tenho uma casinha de aluguel, eu tenho minhas economias, mas eu não me preocupo comigo, eu me preocupo com as pessoas que não podem. Você vai no mercado, você não consegue, quando você acha alguma coisa para comprar, porque já está nessa situação, a fruta está terrível, pelo menos lá do meu bairro, lá do meu lado, você vai na feira, pouquíssima barracas, você já não encontra aquele número de barracas. Xepa não existe mais. Ou você compra aquela hora, ou você não compra mais. Porque é daquilo para pior, aquilo já vem ruim, o mamão que eu acho que eles colocam na geladeira verde, laranja, apodrece antes de amadurecer, e é um absurdo, uma fortuna. Então você entra com o valor que dava para você fazer o mês, e não dá para você fazer uma semana. Eu sou só. Agora imagina uma pessoa que tem 04, 05 filhos, que paga aluguel, como é que fica?” E como é que você pode ficar feliz com uma situação dessa! Só se você…é demais para mim, eu não consigo, você ajuda? Ajuda. Mas você não pode, cada pessoa que vem bater na sua porta não dá para você ajudar. Você ajuda uma instituição aqui, a outra ali. Aquilo ali faz parte da minha ajuda, eu ajudava voluntariamente quando eu tinha mais disponibilidade antes da covid, a gente entregava refeição. Eles continuam. Eu não posso mais. Nesse momento, eu não posso, que eu estou com problema de cuidar dos meus netos. Não adianta eu cuidar de um e deixar o outro, deixar a minha casa para cuidar de fora e também não dá, mas é isso, a gente ajuda na medida do possível, mas não dá para você ficar feliz com a situação que a gente está vivendo. Ficar à parte vendo de vitrine, não dá. Por outro lado você se envolver até que ponto sem se prejudicar? Se prejudicar, eu digo adquirir uma úlcera, ficar em uma cama, ficar internada, ficar doente, para quê! Vou resolver o que! Ajudar quem?

P/1 - O que você pensa sobre as pessoas que dizem que naquela época os governos militares eram melhores, ou até para os jovens que não viveram esse período e não sabem?

R - Não sabem e acham que era melhor porque era uma ditadura. Se um falava lá os outros obedeciam, se não obedeciam, morriam. Ou morriam, ou iam presos, sumiam. Da minha época foi o Vladimir, que depois eu fui trabalhar ali na Cenno Sbrighi, do lado da TV Cultura, e colocaram até o nome da rua, tem uma rua, e aquilo todo dia que olhava o nome daquela rua, aquela placa me doía muito, porque vinha toda hora a história dele, foi a história que eu mais acompanhei da minha época, e eu comentava muito isso mesmo na faculdade, nas provas, eu tentava colocar, mas eu sentia uma certa rejeição. Como é que pode até hoje ter pessoas desaparecidas? Se você sabe que a pessoa morreu, sem terror, agora a pessoa sumiu, não existe isso. Embora as pessoas tenham sido mortas, sacrificadas dessas formas horríveis, mas pelo menos você sabe, ela está ali, hoje nem isso, tem pessoas que sumiram lá atrás. Como é que você pode achar isso normal? Como é que você pode aceitar isso numa boa? E estão querendo voltar a fazer isso. Cadê a Marielle? Onde está Mariele? Quem fez isso com Marielle? Não se encontra uma resposta? Desculpa, e tantos outros que a gente nem fica sabendo. A Marielle porque foi uma deputada, uma pessoa pública e tantos outros que você nem fica sabendo. No noticiário ou outro você sabe que está desaparecido, você vê essas placas no metrô, a pessoa está desaparecida há 14, 15 anos. Como? Quem eram essas pessoas? Ninguém faz nada? Cadê? O que aconteceu? Quem eram elas? E a família delas? São dores, são cicatrizes que elas não fecham. São contas que não fecham, não fecham essas contas. Você tem que escolher. O que você pode fazer por isso? Na medida que você pode você faz, na medida que você não pode…eu já te falei, eu fico na minha, eu quero ser feliz. Nesse momento, eu quero ser feliz. Eu falo, o motor são peças originais, motor 6.7, são peças originais, não tem reposição, então eu tenho que cuidar muito bem dessa manutenção. Cuidando dessa manutenção, começa pela minha cabeça, então eu não quero pirar. Vamos embora. Não é deixa a vida me levar, não. É que vamos, na medida do possível, o que a gente pode fazer, a gente faz, senão não vamos nos estressar mais do que o necessário.

P/1 - E como é que foi contar um pouquinho da sua história pra gente hoje?

R - Para mim de boa, meu maxilar dói um pouco, mas agora imagina o ouvido de vocês, eu nem sei quanto tempo a gente está aqui. E se puxar tem história, mas a minha vida com 67, a vida de vocês, que vocês não devem ter nem 30, vocês tem muita história para contar, não tem? Se parar para contar, agora você imagina uma pessoinha de 67 que já tem os 05 nomes. Eu ainda tenho muita história para contar. Se vocês puxarem, vai ter história. Eu me divirto, eu sou uma pessoa que sou super de boa, eu me divirto muito. Aquela da Bethânia foi pouco, foi para você que eu contei?

P/1 - Foi, foi pra gente.

R - Foi pra vocês então. Foi pouco. É normal para mim. Então, eu me divirto, eu venho sozinha, faço cada coisa, faço o que eu tenho vontade, de falar, eu consegui o meu sonho de consumo foi no dia daquela reunião, nossa como empresa faz reunião! Não resolve nada, mas reunião, vamos para reunião. Eu tinha vontade, meu sonho de consumo era pegar minha bolsa. Hoje eu faço gente, delícia. Se eu não estivesse bem aqui eu falava “tchau gente, estou indo, beijos”, eu faço isso na casa da minha filha, onde eu estiver, onde eu não estiver bem, pego minha bolsa e vou embora. Lavo a alma. Tão bom gente, mas não tem preço isso. Não tem preço. Então eu falo, hoje eu vivo assim, não tenho pressa de ir, mas quando for também estou de boa também, posso ir na boa. Na hora que puxar minha fichinha lá também, estou de boa. Pode ter certeza, Maria, Maria, estou feliz da vida, Maria, carnaval e cinza, estou feliz da vida. Estou homenageada, aquelas que não tem pretensão nenhuma.

P/1 - Não, mas que bom que você gostou. Obrigado, que bom que você não levantou.

R - Porque corria esse risco se eu não gostasse, eu tenho isso, eu não avisei.

P/1 - Ia ser inédito.

R - Eu não avisei porque vocês vão fechar muito a porta. Já estava com dificuldade de abrir. Vocês iam trancar, essa mulher é doida, ela vai saindo, vai deixar a gente aqui falando sozinho.

P/1 - Imagina.

R - Essa sou eu, gente. Sempre à disposição. Foram muito acolhedores.

P/1 - Obrigado. Que bom que você gostou.

R - Como é gostoso falar com jovens, e tem isso também, eu sempre trabalhei. As pessoas, ah eu tenho problema em trabalhar com menino. Eu sempre trabalhei e estudei porque economia tinha 05 meninas e o resto 25 homens, e eu sempre trabalhei com meninos na minha equipe. Essa última equipe tinha umas meninas, mas eu sempre trabalhei com meninos e adoro trabalhar com meninos. Gosto de jovem, aquele sangue jovem transmite para mim. Na academia também, com os meninos. Eu pertenço também ao centro do idoso, eu faço ioga e pilates. Eles são idosos e eu não me sinto idosa, eu me sinto muito bem, sem nenhuma crítica, mas é que tem aquele velhinho, eu acho que a gente tem que usar, eu acho que eles usam a favor, eu também às vezes posso usar. Pede para você fazer uma coisa, você fala, eu tenho 67 anos. Você quer que eu faça isso? E tem outro lado que você fala, eu tenho 67 anos. Então, você pode usar a favor ou contra. Eu sempre uso a minha favor. Desculpa aí. Obrigada, viu gente!

P/1 - Obrigado a você!